Resumo completo de História do Brasil até o fim da escravidão

Henry Thomas – Maravilhas do Conhecimento Humano

 

O ROMANCE DO BRASIL – Resumo completo de História do Brasil até o Império

Adendo ao livro por Oscar Mendes

Descobre-se uma nova terra

 

ERA
um
domingo festivo. Na praia do Restelo, em Portugal,
apinhava-se uma multidão variegada e entusiasta, que contemplava
com orgulho os mastros de uma numerosa esquadra, prestes a partir para as
índias, afim de levar o Evangelho aos povos do Oriente, combater os mouros c
negociar especiarias.

Celebrava-se uma
missa solene, na ermida
da
praia. Lá estavam, na tribuna de honra, o próprio rei, D. Manuel, o Venturoso,
o
almirante da esquadra a partir, Pedro Álvares Cabral e o bispo de Ceuta, D. Diogo de Ortiz. O bispo benze um
estandarte, que o rei entrega ao almirante.

Forma-se depois
um cortejo solene, em que se vêem padres e frades, cantando, carregando cruzes
e relíquias, oficiais da armada e o povo contente, barulhento, aplaudindo os
atrevidos marinheiros, que partiam a alargar os domínios de Portugal. Levam o
almirante e os seus homens até a praia, onde embarcam.

Mas só no dia
seguinte, 9 de março de 1500, parte aquela esquadra de dez caravelas e três
navios de transporte. Vai às índias, seguindo o caminho que Vasco da Gama já
devassara. Aventuram-se as naus pelo "mar de largo", isto é, oceano
afora. Desviam-se, porém, de seu roteiro. Para fugir às calmarias, prejudiciais à
navegação? Ou obedecendo a instruções secretas e propósitos determinados?
Discute-se ainda hoje o caso.

Mas o que interessa é que,
afinal, no dia 22 de abril, quando os ardores do sol cediam à fresca
da tarde, no horizonte se delineia o vulto de um monte. Terra à vista!
A marinhada grita, de entusiasmo. Era uma quarta-feira de Páscoa. E o monte
avistado passa logo a ser o "Monte Pascoal" e a terra, que se
entregava ao descobridor, "Vera Cruz".

Descobria-se um mundo novo. Mais uma
glória para o pequeno reino português. Na praia, para onde se aproximam
as naus, reúne-se estranha gente. São homens nus, armados de arcos e flechas,
mais espantados que ameaçadores, diante das naus imponentes e das
criaturas de rostos brancos que as povoam. A esquadra procura depois lugar
mais abrigado. Velejam as naus mais para o norte e encontram acolhedora
enseada. Era um "porto seguro".

Os homens saltam e se acamaradam
com os índios. No domingo seguinte, um frade celebra missa, como que santificando
aquela
terra desconhecida. O almirante Cabral no dia 1.* de maio, toma posse da nova
terra. É mais um feudo de Portugal. Celebra-se outra missa. Os índios
contemplam com respeito e curiosidade, aquelas cenas estranhas daqueles
estranhos homens. Dois destes ficarão com eles. Os outros partirão, desta vez
rumo certo às índias.

O almirante despacha alguém a levar a
alviçareira notícia ao rei de Portugal. E assim Portugal incluía na história da
humanidade mais um povo e mais uma terra. Que terra? Vera Cruz? Santa Cruz?
Terra dos Papagaios? Terra do pau côr de brasa, do brasino. Terra do Brasil.
Brasil, tão só, para designar todo um vasto território, dos mais ricos e dos
mais férteis do continente sul-americano.

Um escrivão amável

 

A BORDO de uma das naus que o almirante portugués Pedro Álvares
Cabral conduzia às índias, seguia o escrivão Pero Vaz de Caminha, que
ia ficar na feitoria
de Calecut.
O
escrivão punha por escrito tudo quanto ia vendo na aventurosa viagem. Quando a
terra do Brasil foi tornada posse de Portugal, em carta cheia de deliciosas
minúcias, dá êle parte ao rei das coisas maravilhosas sucedidas e das
novidades mais curiosas das terras novas descobertas.

Descreve os
índios: "A feição deles é serem pardos, maneira de avermelhados, de bons
rostos e bons narizes, bem feitos; andam nus, sem nenhuma cobertura, nem estimam
nenhuma coisa, cobrir, nem mostrar suas vergonhas, e estão acerca disso com
tanta inocência como têm em mostrar o rosto".

"Traziam ambos o beiço de baixo
furado, e metido por êle senhos ossos de osso brancos, de compridão de uma mão
travessa, e de grossura
de
um fuso de algodão, e agudo na ponta como um furador; metem-nos pela parte de
dentro do beiço, e o que lhe fica entre o beiço e os cientes é feito como roque
de xadrez e em tal maneira trazem ali encaixado que lhes não dá paixão, nem
lhes estorva a fala, nem comer, nem beber. Os cabelos seus são corredios,
e
andavam tosquiados
de tosquia alta, mais que
de sobrepente, de boa grandura, e rapados até por cima das
orelhas."

Chamam-lhe a
atenção a limpeza dos corpos selvagens e as suas formas esbeltas: "Os outros
dois que o capitão teve nas naus, a que deu o que já dito é, nunca aqui mais
pareceram; de que tiro ser gente bestial e de pouco saber e por isso são assim esquivos;
porém
contudo andam
muito bem curados e muito limpos, e naquilo me parece ainda mais, que são como
aves ou alimárias
monteses, que
lhes faz o ar melhor pena e melhor cabelo que as mansas; porque os corpos seus
são tão limpos, e tão gordos e tão formosos, que não podem mais ser. E isto me
faz presumir que não tem casa, nem moradas em que se colham, e o ar a que se
criam os faz tais. Nem nós ainda até agora não vimos nenhumas casas nem maneira
delas."

Estabelece
comparação entre o sistema alimentar europeu "e o indígena em louvor
deste: "Eles não lavram, nem criam, nem há aqui boi, nem vaca, nem cabra,
nem ovelha, nem galinha, nem outra nenhuma alimária, que costumada
seja ao viver dos homens; nem comem senão desse inhame, que aqui há
muito, e dessa semente e frutos, que a terra e as árvores de si lançam; e com
isto andam tais e tão rijos e tão nédios que o não somos nós tanto com
quanto trigo e legumes comemos".

E acaba a sua pitoresca e minudente
carta descrevendo a nova terra, prevendo quanto dela esperar-se possa:
"Esta terra, Senhor, me parece que da ponta que mais está contra o sul
vimos até outra ponta, que contra o norte vem, de que deste porto houvemos
vista, será tamanha, que haverá nela vinte ou vinte e cinco léguas por
costas".

"Traz ao
longo do mar, em algumas partes, grandes barreiras, delas vermelhas e delas
brancas, e a terra por cima toda chã, e muito cheia de grandes arvoredos
de ponta em ponta: é toda prata parma, muito chã e muito formosa. Pelo sertão
nos pareceu do mar muito grande, porque a estender olhos não podíamos ver senão
terra e
arvoredos,
que nos pareceu mui longa terra".

"Nela até
agora não podemos saber se haja ouro nem prata, nem nenhuma coisa de metal, nem
de ferro, nem lho vimos; porém a terra em si é de mui bons ares assim frios e temperados, como
os dentre Douro e Minho, porque neste tempo de agora assim os achávamos como
os de lá: as águas são muitas, infindas; em tal maneira é graciosa, que,
querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo por bem das águas que tem.   Porém o
melhor fruto, que ne la se pode fazer, me parece, que será salvar esta
gente, e esta deve ser a principal semente, que Vossa Alteza em ela deve
lançar; e que aí não houvesse mais que aqui esta pousada, para esta navegação
de Calecut,
bastaria,
quanto mais disposição para nela cumprir e fazer o que Vossa Alteza tanto deseja, a
saber: acrescentamento
de
nossa santa fé."

 

Os pioneiros da civilização

 

NUM
casebre de palha, de barro e de chão batido, em  toscos bancos, indiozinhos
escutam,
entre admirados e curiosos, as coisas maravilhosas que lhes contam aqueles
homens de roupa preta, de ar bondoso e de palavras extraordinárias. São os
jesuítas no seu trabalho de catequese. São os pioneiros
da civilização, que ensinam os donos da terra recém-descoberta a ler, a
compreender as palavras do Evangelho e a usar dos costumes que da Europa lhes
traziam.

A tarefa que os espera é das mais
tremendas. Os sofrimentos que os aguardam, dos mais terríficos. Não desanimarão,
porém. Não hesitarão. Embrenham-se pelas selvas inhóspitas, entre feras e
homens ameaçadores. Vadeiam rios. Transpõem montanhas. Vão à procura
de almas, riquezas para eles mais valiosas que as minas de ouro ou as pedras
preciosas. Querem batizar a indiada bronca, esquiva e belicosa. Querem trazê-la
ao grêmio da civilização. Por isso não se poupam sacrifícios. A tudo se
sujeitam. A tudo se dedicam. São carpinteiros, ferreiros, músicos, sapateiros,
arquitetos, engenheiros, médicos.

A aspereza
das
estradas ínvias
lacera-lhes
os pés. Os espinhos rasgam-lhes as sotainas.  As feras rasgamlhes
os corpos com as garras e os dentes. As febres os salteiam. As tempestades e
as intempéries fustigam-lhes a pele. Os insetos a empolam. E a bugrada feroz
tortura-os, martiriza-os, trucida-os sem piedade.

Eles, porém, continuam a sua tarefa.
Constróem colégios e igrejas. Arregimentam índios. Acolhem-nos em aldeamentos.
Servem-lhes
de conselheiros. Apaziguam-lhes as contendas.

Manuel da Nóbrega, seu primeiro
chefe, no Brasil, vai com seu jovem discípulo José de Anchieta, pôr-se como fiador da paz, entre as
tribus alvoroçadas e desejosas de guerra. Sofrem torturas, ameaças,
tentações do pavor e da carne. Mas resistem. Nas horas de acalmia,
o
jovem Anchieta
desce
à praia e escreve na areia branca os versos de seu poema à Virgem, versos
que a onda apaga, mas que se gravam para sempre na sua milagrosa memória.

Amansam os chefes, convertem as crianças,
aprendem-lhes a língua, pregam, batizam, curam, aconselham, lavram a
terra, defendem os índios contra os abusos e injustiças dos colonos. A
história desses homens é o mais belo poema, que nenhum poeta ainda se arrojou a
compor.

Nas "Cartas" que nos deixaram,
estão relatados, em linguagem simples e modesta, todos os atos de sacrifício,
heroísmo e caridade, que praticaram. O que lhes era a vida nos primeiros tempos
da catequese,
descreve-no-lo
José de Anchieta,
nesta
informação a seus superiores:

"Aqui se fez uma casinha de palha,
com uma esteira de canas por porta, em que moraram algum tempo bem apertados os
irmãos; mas este aperto era ajuda contra o frio, que naquela terra é grande com
muitas geadas. As camas eram redes, que os índios costumam; os cobertores o
fogo, para o qual os irmãos comumente, acabada a lição da tarde, iam por lenha
ao mato, e a traziam às costas para passar a noite, o vestido era muito
pouco, e pobre, sem calças, nem sapatos, de pano de algodão. Para a mesa usaram
algum tempo de folhas largas de árvores em lugar de guardanapos:
mas bem se escusavam toalhas, onde faltava o comer, o qual não tinham donde
lhes viesse, senão dos índios, que lhes davam alguma esmola de farinha e às vezes
(mas raras) alguns peixinhos do rio, e caça do mato. Muito tempo passaram
grande fome, e frio: e contudo prosseguiam seu estudo com fervor lendo às
vezes a lição fora ao frio, com o qual se haviam
melhor que com 0
fumo
dentro de casa."

Eram
assim esses homens: heróis de todos os ins tantes, santos, dedicados, ardentes
de caridade e de compaixão. Castro Alves, o gênio condoreiro, narra-lhes a epopéia nestas estrofes:

 

"O
martírio, o deserto, o cardo, o espinho, A pedra, a serpe do sertão maninho, A
fome, o frio, a dôr,

Os insetos, os rios,
as lianas, Chuvas, miasmas, setas e savanas, Horror e mais horror.
. .

 

Nada
turbava aquelas frontes calmas, Nada curvava aquelas grandes almas. Voltadas
pra amplidão.
.
.

No entanto eles
só tinham na jornada Por couraça
a sotaina
esfarrapada.
.
.

E
uma cruz

por
bordão."

 

(Os Jesuítas),

 

 

E Humberto de Campos termina um soneto
que lhes dedicou, dizendo:

"                  A cruz
quando fechar os braços

Há de dizer a
séculos melhores

Que a civilização
seguiu seus passos!"

 

(Os
Jesuítas).

Os homens que habitaram o Brasil

 

DE
centenas de milhares ou talvez mesmo de milhões era a população indígena, que
habitava as terras que o almirante Cabral descobriu. Tribus diversas, de raças
diversas, falando variados dialetos. É ainda hoje trabalho árduo para
historiadores e etnólogos
destrinçar toda a teia de tribus e de raças das terras
brasileiras. A origem desses índios e a época em que emigraram e se espalharam
pelas regiões do continente sul-americano, constituem problema ainda debatido.
Mas que espécie de gente eram afinal? Tinham uma civilização já adiantada,
como os Incas
e
como os Maias?
Eram
selvagens, de vida bem primitiva, com seus costumes e modos de vida ainda bem
rudimentares. A caça, a pesca e a guerra eram suas diversões favoritas. Raças
inferiores, degeneradas, que deveriam ser esmagadas e destruídas pelos
invasores brancos? A história de suas relações com os homens que lhes
conquistaram as terras mostra que eram homens capazes, como todos nós, de bons
e de maus sentimentos, de heroísmos e de traições. Precisavam, isso sim, de
ser civilizados, de ser adaptados a uma vida melhor.

Foi o que
empreenderam os jesuítas. E se a cobiça e a maldade dos colonos não houvessem
impedido a realização desse objetivo, milhares de criaturas prestantes
teriam
sido incorporados à vida civilizada do Brasil.

‘Nas crônicas e
relações dos acontecimentos dos primeiros anos da colonização brasileira,
encontram-se episódios e feitos bem interessantes da vida dos selvagens.
Vejamos alguns.

Em Pernambuco, dominava a grande nação
dos índios Tabajaras. Seu chefe, Tabira, é um guerreiro famoso. Duarte
Coelho, o donatário da capitania de Pernambuco, consegue aliar-se ao grande
chefe tabajara. Mas as demais tribus não concordam com essa aliança. Revoltam-se.
As lutas que se travam são ferozes. Tabira redo^ bra de valor e de heroísmo. O
inimigo foge ao simples som de sua voz. É o terror das tribus. Estas resolvem
coligar-se para destruir o grande índio.

Um exército numerosíssimo, dez ou doze
vezes maior do que o da tribu de Tabira, avança contra as aldeias tabajaras.
Tabira não se amedronta. Trava luta desigual e ferocíssima. Combate o dia
inteiro. O herói tabajara se multiplica. Luta sem descanso, dizimando os
assaltantes. Em dado momento, uma flecha vem cravar-se no olho do indómito
selvagem.
Sem esmorecer, Tabira arranca do ferimento a flecha e o olho e grita:

— Para vencer os inimigos, basta um olho a Tabira! E
a vitória foi sua.


*  *

 

Tibiriçá é a figura extraordinária da
colonização no sul. Alia-se também com os portugueses. É um exemplo de
fidelidade. Quando os índios tamóios atacam a aldeia de Piratininga, desejosos
de
trucidar principalmente os jesuítas, Tibiriçá corre, lealmente, em defesa de
seus aliados.

O chefe das tribus invasoras é o seu
próprio sobrinho Jagoanharo. Mas Tibiriçá não hesita. Combate ferozmente e
mata o sobrinho, quando este tentava apoderar-se da igrejinha da aldeia.

Outro chefe guerreiro, cujas façanhas
enchem a história dos primeiros tempos da colonização, é Ararigbóia,
chefe dos índios Temininós. Aliou-se com o governador Mem de Sá, para expulsar
os franceses da baía de Guanabara. É o herói das primeiras linhas e dos
assaltos fulminantes. Ao seu valor, devem os colonos portugueses, em grande
parte, não terem perdido as terras do Rio de Janeiro.

Frei Vicente do Salvador, historiador
dos feitos daqueles tempos, narra interessante anedota, a respeito de
Ararigbóia.

Quando no ano de 1575, chega ao Rio de
Janeiro, o governador D. Antônio Salema, Ararigbóia vai com sua tribu
cumprimentá-lo e prestar-lhe obediência. Ararigbóia já está bem velho e
coberto de glórias. O rei, não só lhe concedeu a comendadoria da Ordem de
Cristo, mas ainda lhe mandou, de presente, uma roupa de seu próprio uso.

Para honrar o velho herói, convida-o o
governador a sentar-se a seu lado. Em dado momento, porém, Ararigbóia, cansado
da posição cerimoniosa,
encarapita-se
na cadeira. Diante daquela quebra do cerimonial, o governador, que é homem
rigoroso em questões de etiqueta, manda, por um intérprete, dizer ao chefe
índio que aquilo não são modos de sentar-se diante do representante do rei.

Conta Frei Vicente do Salvador que
Ararigbóia assim respondeu:

— "Se tu souberas quão cansadas eu
tenho as pernas das guerras em que servi a el-rei, não estranharás dar-lhe agora
este pequeno descanso; mas, já que me achas pouco cortesão, eu me vou para
minha aldeia, onde nós não curamos desses pontos e não tornarei mais à tua
corte."

Episódios da guerra contra os holandeses

 

A HOLANDA era, naqueles começos do século XVII,
uma grande potência marítima c militar. Suas naus de comércio corriam o mundo e
seus exércitos se haviam tornado famosos nas lutas que sustentava contra sua
inimiga, a Espanha. Nos mares e nos campos da Europa, as duas rivais se
defrontavam. E a Holanda resolve arruinar economicamente a poderosa
adversária, cujos domínios se achavam então de muito acrescidos, com a submissão
de Portugal e todas as suas colônias à coroa espanhola. Fundam os holandeses
companhias de comércio, de finalidades econômicas c militares. Uma dessas, a
Companhia das índias Ocidentais, irá tentar conquistar as colônias portuguesas,
então sob o domínio da Espanha.

O Brasil era a
mais cobiçada dessas colônias. Será contra o Brasil o primeiro ataque dos
navios da Companhia das índias Ocidentais. As tropas holandesas, vindas em
poderosa esquadra, atacam a cidade da Baía, sede do governo da colônia, e dela
se apoderam. Prendem o governador. Tomam conta de tudo e permanecem na cidade
durante um ano.

Na falta do governador, cabe ao bispo,
D. Marcos Teixeira, assumir a direção da parte da capitania não sujeita aos
holandeses. O bispo cria companhias de assalto, que mantêm os holandeses em
contínuas lutas, como que sitiados na cidade que haviam tomado. Após longos
meses de luta e com o auxílio mandado da Espanha, são afinal expulsos os
holandeses.

Apesar-do mau
êxito dessa investida, não desanimam os holandeses. Poucos anos mais tarde,
empreendem nova expedição. Desta vez será a rica capitania de Pernambuco o
objetivo em vista.   O governo da Espanha

tem
ciência da expedição que se apresta. Despacha Matias de Albuquerque,
fidalgo português, a tratar da defesa de Pernambuco. Mas o povo da capitania,
especialmente as famílias abastadas, amolentadas pelo luxo, não parece temer
muito a ameaça remota. Fazia ouvidos moucos às advertências dos mais avisados e
prudentes. Em vão, clamava um pregador, do seu púlpito: "De Olinda a
Olanda não há aí mais que a mudança de um i em a, e esta vila de
Olinda se há de mudar em Olanda e há de ser abrasada pelos holandeses
antes de muitos dias; porque, pois, falta a justiça da terra, há de acudir a do céu."

Foram proféticas as palavras do
pregador. Chegaram os holandeses. Tomam a cidade de Olinda. Destroçam as
poucas tropas portuguesas. Assenhoreiam-se da capitania. Mais tarde, diante dos
ataques de Matias
de
Albuquerque, incendeiam Olinda e fazem do Recife a capital de sua conquista.
Calabar, um mestiço, auxilia os conquistadores. Os portugueses vão perdendo
suas posições. As tropas são forçadas a retirar-se para Alagoas No caminho, Matias de Albuquerque
toma a vila de Porto Calvo, onde
prende Calabar, que é enforcado.

Consuma-se a conquista holandesa, que se
alastra pela Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará e Maranhão. Vitoriosa a Companhia
das índias Ocidentais, manda a governar as novas conquistas um príncipe de
sangue, Maurício de Nassau. Homem de valor militar e intelectual, Maurício de
Nassau procura fazer aumentar as conquistas e prosperar a colônia. Constrói palácios no
Recife. Manda buscar artistas e sábios na Holanda. Cerca-se duma verdadeira
corte. Movimenta o comércio. Procura governar com tolerância, justiça e
habilidade, embora nem sempre o conseguisse. Graças, porém, às suas qualidades,
promoveu o progresso da colônia. Isso não desarmou as gentes das terras
conquistadas. O anseio de liberdade era grande, especialmente depois que a
intolerância dos calvinistas holandeses levou-os a perseguir os
moradores católicos.

 

 

Mas o príncipe de Nassau não estava agradando
muito aos homens da Companhia das índias Ocidentais. Regressa à Holanda. Sua
partida marca o início do declínio do domínio holandês. Brasileiros e
portugueses de todas as classes sociais começam a conspirar contra os
invasores. Coordenam-se os esforços isolados dos que mantinham o sistema de
guerrilhas. Da conspiração fa-:;em parte o rico negociante português João
Fernandes Vieira, o brasileiro André Vidal de Negreiros
e
outros. Contam-se entre os elementos destinados às lutas de guerrilhas o chefe
índio Potí, batizado com o nome de Antônio Filipe Camarão, e o preto Henrique
Dias.

Arvorando uma bandeira como signo da
revolta, com o lema "Deus e liberdade", os habitantes de Pernambuco e
das capitanias vizinhas, sob o jugo holandês, se sublevam. Travam-se
combates heróicos e desesperados. Monte das Tabocas, Casa Forte, Guararapes,
são
os grandes marcos das vitórias dos insurretos pernambucanos. Embalde
o
rei de Portugal, já livre da Espanha, aconselha os revoltosos, para atender a
protestos do governo holandês, a que deponham as armas. A resposta deles é a
seguinte : "Depois que expulsarmos os intrusos, iremos receber
no reino o castigo de nossa desobediência". E desobedecem ao rei que, na
realidade, ficou satisfeito com a desobediência, pois, às ocultas,
mandava estimular e aco-roçoar os insurgentes.

Depois das duas
grandes batalhas nos mesmos montes Guararapes, os holandeses se
vêem forçados a abandonar o país. Na campina do Taborda, perto da cidade
do Recife, assinam a capitulação. O Brasil voltava a ser só dos portugueses e
dos brasileiros. Terminava assim o domínio holandês em Pernambuco. Havia durado
24 anos. Vejamos agora alguns episódios impressionantes dessa luta de
homens que defendiam a sua liberdade e a sua religião.

Fala-se muito na retirada dos dez mil,
que Xeno-fonte fixou para a história. Na guerra contra os holandeses, no
Brasil, houve também uma retirada não menos trágica e não menos
dolorosa. Quando Matias
de
Albuquerque não pôde sustentar mais a defesa das terras pernambucanas,
resolveu retirar-se com suas tropas para a vizinha capitania de Alagoas. Ao
terem notícia dessa retirada, numerosos foram os pernambucanos e portugueses
que não quiseram permanecer sob o jugo holandês. Oito mil pessoas se juntaram
às tropas de Matias
de
Albuquerque, para acompanhá-lo na retirada. Era um cortejo imenso de
mulheres, inválidos e crianças, que se arrastavam pelas matas e pelas
montanhas, num êxodo doloroso e heróico. Morriam pelos caminhos, de inanição,
de fadiga, de fome, de moléstias. Mas preferiam tudo isso a ter de prestar
obediência aos invasores.


*  *

 

Calabar, mestiço que se pusera às ordens
dos invasores holandeses, combina com estes um ataque ao fortim de Rio Formoso.
Dez navios e quinze lanchas são enviados para o assédio por mar e Calabar
segue, com trezentos homens, para completar o cerco de terra. Mandam intimar o
comandante do forte a render-se, pois a superioridade dos sitiantes é enorme.
Mas o comandante pernambucano Pedro de Albuquerque se recusa terminantemente
a
entregar-se, a-pesar-do reduzido número de defensores que possuía o forte.

Os atacantes
iniciam o combate. Despejam simultaneamente suas baterias de mar e de terra
contra o fortim.
Os
defensores respondem ao ataque e, após três combates, conseguem fazer oitenta
baixas entre os atacantes. Todos os soldados do fortim estão, porém,
feridos. Diante de situação tão precária, Pedro de Albuquerque resolve
solicitar socorro de Matias de Albuquerque. Mas quem se atreverá a
ir até o Arraial de Bom Jesus, onde se encontra Matias, entre Recife e
Olinda?

O jovem Jerônimo de Albuquerque,
parente do comandante, apesar-de ferido, se oferece a fazer a perigosa
travessia. Parte. Seus companheiros aguardarão o auxílio. Mas os holandeses
resolvem tentar a quarta investida. Os defensores ainda resistem tenazmente. Depois
o forte silencia. Os holandeses, cautelosamente, penetram ali. O espetáculo
que lhes salta à vista é dos mais impressionantes. O reduto, que só contava com
vinte defensores, tem-nos dezenove mortos e gravemente ferido, numa poça de
sangue, o próprio comandante Pedro de Albuquerque. O inimigo se curva comovido
e entusiasmado diante de tanto heroísmo.

*    *  *

 

O episódio seguinte ocorreu ao tempo em
que os holandeses, após serem derrotados no monte das Tabocas, procuraram
fortalecer-se dentro dos muros da cidade do Recife. Nas proximidades da cidade,
num velho engenho de D. Ana Pais, as tropas holandesas se fortificam.
Fernandes Vieira resolve desalojá-las daquela posição. À frente dos insurgentes,
sitia os holandeses na Casa Forte. A peleja é renhida, de parte a parte. Na
iminência da derrota, uma idéia covarde salteia a mente do holandês.
Manda colocar nas janelas da casa grande do engenho algumas pernambucanas, por
êle aprisionadas na sua marcha de retirada.

Os atacantes
suspendem a fuzilaria. Não ousam atirar contra as suas conterrâneas. Mas as denodadas
mulheres,
no desejo de inutilizar o vil estratagema, gritam aos soldados insurgentes que
atirem, que não devem importar-se com aquilo. Os chefes insurgentes, porém, num
arrojo extraordinário, preferem tomar, à arma branca, o engenho, sem
necessidade de sacrificar as heróicas pernambucanas.

Outro episódio, em que se revela o valor
e o denodo
das
brasileiras daqueles tempos, é o das chamadas "heroínas de
Tejucopapo".

Tejucopapo era uma aldeola pernambucana,
situada entre Itamaracá
e
Goiana. Os habitantes, receosos dum
ataque
holandês, haviam-se fortificado, armando po-derosa trincheira de pau a pique. À aproximação
do inimigo os homens válidos se colocaram fora da trincheira para atacá-lo, e
dentro da trincheira ficam apenas os velhos, as mulheres
e as crianças.

Seiscentos soldados
holandeses atacam o reduto. Mas são
repelidos.
No início do
assalto, já seu chefe pagara com a vida .1 atrevida
empresa. O segundo comandante estimula os homens a novos assaltos,
envergonhado que está
por ver
que
tantos soldados aguerridos não conseguiam apoderar-se
daquele reduto, defendido por velhos, mulheres e crianças. O perigo é iminente. O
ataque é tremendo. Os atacantes já conseguiram romper a paliçada c estão prestes a abrir
brecha na trincheira. Os defen-sores sentem-se enfraquecidos de tanto lutar.
Terão de ceder ou morrer.

É neste instante que se opera
maravilhosa reviravolta Uma
mulher, tendo numa mão uma cruz ena outra uma e.pada, incita
os homens a combater em defesa da cruz, símbolo de sua religião. Ela mesma brande sua espada,
outras mulheres
seguem-lhe
o exemplo. Redobra então o entusiasmo dos
defensores. A peleja recrudesce. As heroínas
combatem tão valentemente como os ho-mens, enchendo de
admiração e de temor os atacantes, que
vão
recuando,
pouco a pouco, para fugirem depois, numa vergonhosa derrota.

Entre as mulheres que se bateram então
com tanta coragem, contava-se D. Clara, esposa daquele outro herói dessa
guerra, o índio Antônio Filipe Camarão.

> 

Caçadores de homens e de riquezas

 

NA
praça da igreja da cidade colonial celebra-se uma missa. É o dia importante da
partida de uma bandeira.
Descendentes
de velhas famílias paulistas, aventureiros portugueses e espanhóis, gente do
povo, escravos, mamelucos,
índios
mansos, soldados, frades, todos formando a mais heterogênea das multidões, se aprestam
para
varar as florestas ínvias, descer as bocainas profundas, galgar as
serras íngremes, transpor os rios caudalosos, atravessar os
sertões adustos,
durante
meses, durante anos, sujeitos às febres, às feras, aos insetos, aos ataques
traiçoeiros dos índios bravos.

Vão em busca de
riquezas fantásticas, que aventureiros outros disseram existir no
recesso das matas, no coração das montanhas misteriosas. Vão descobrir o pouso
certo da montanha fabulosa, que a lenda dizia mudava de lugar, para enganar os
que buscavam roubar a riqueza avaramente escondida no seu
seio. Vão à cata do ouro e da prata. Vão no afã de recolher as pedras
preciosas espalhadas ou ocultas, nas areias das praias fluviais, no cascalho
das serras, no fundo das grotas, no coração mesmo da montanha. Vão ávidos de
conquista e de cobiça, prear índios para escravizá-los. Querem ouro, querem
prata, querem diamantes, querem esmeraldas, querem rubis, topázios,
toda
a gama das gemas valiosas e matizadas.

São centenas,
são milhares de homens de todas as idades e de todas as procedências. Há nobres
e plebeus. Há ricos e pobres. Escravos e livres. Criminosos e homens de bem.
Soldados e religiosos. Armas e bagagens amontoam-se em quantidade espantosa.
Cavalos de montaria, burros de carga, bruacas repletas de mantimentos, caixotes, odres de
bebidas, fardos de roupas e cobertores, pólvora, armas de vários feitios, desde
o arco e a flecha do índio até as pistolas e trabucos dos civilizados, compõem
o acervo da bandeira.

Muitos daqueles homens não mais voltarão
aos lares. Morrerão de febres pelas margens dos rios. Serão devorados pelas
feras, ou cairão feridos de morte pela seta certeira do índio, na tocaia.
Levados pelo ódio e pela cobiça se entredestruirão. Poucos serão os que
alcancem os seus objetivos.
Poucos
os que voltarão com a riqueza ambicionada. Mas nenhum desses receios e temores
os deterá. São homens duma fibra rija, corajosos, desassombrados, cobiçosos e
violentos. Tornarão viáveis os caminhos a dentro da terra desconhecida.
Fundarão povoados, plantarão roças, lançarão as bases das futuras cidades, que
marcarão no mapa futuro da pátria o caminho que a civilização seguiu, empós
daqueles homens truculentos, desapiedados, magnânimos, destemidos. Alargaram
os limites das terras que seus pais lhes herdaram. Tornaram mais amplo e mais
rico o domínio português, preparando ao mesmo tempo a futura e grande pátria
brasileira. Foram os pioneiros que prepararam o caminho para os pósteros.
Foram os plantadores de cidades. Cometeram crimes. Foram cruéis para com os
índios. Eram rudes e violentos. Mas a obra que realizaram, na descoberta dos
sertões e de suas riquezas ocultas, foi uma epopéia magnífica.

Após a missa e as despedidas, toda a
multidão dos varejadores do sertão se movimenta e parte. É uma serpente
rumorejante e longa, colubrejando pelas picadas, pelas matas, pelos
desfiladeiros. À frente, o estandarte guiador.  A bandeira segue a
caçar homens e riquezas.

* * *

 

Entre os bandeirantes mais famosos, conta-se pela sua
astúcia Bartolomeu Bueno da Silva, que os índios chamavam de Anhangoéra,
o
espectro, o fantasma, o diaboconsumado.
Donde viera esse temor dos selvagens pelo sertanista aventureiro? É que Bartolomeu
Bueno se
valia, entre aqueles homens broncos e supersticiosos, de um estratagema hábil
para arrancar-lhes o segredo dos esconderijos do ouro e das pedras preciosas.

Nos sertões de Goiaz certa vez fingiu
que retirava água do rio Vermelho, colocando-a numa escudela. Mas era
aguardente. Diante da indiada receosa, quis mostrar o seu poder tremendo de
grande feiticeiro, capaz das coisas mais extraordinárias. Se eles não lhe
mostrassem o lugar onde havia ouro, poderia fazer secar todos os rios e os índios não
teriam assim mais onde beber água. Como prova do seu poder acende o líquido
contido na escudela.
A
chama reponta.
E
os índios vêem, horrorizados, que a água pegara fogo mesmo. Que formidável e perigoso
feiticeiro era aquele homem! Pois se podia até incendiar a água! E não tiveram
outro jeito senão mostrar onde se encontrava o precioso metal amarelo.


*  *

 

A mais importante das bandeiras foi
talvez a de Fernão
Dias
Pais Leme, aí pela segunda metade do século XVII. Era numerosíssima. Esse
poderoso senhor paulista cobiçava encontrar ricas esmeraldas, que se, dizia
deviam existir perto duma lagoa encantada, Vufabus-sú, nos sertões de
Minas Gerais. Sua procura das valiosas pedras é uma epopéia maravilhosa.

Durante anos
percorre as matas sertanejas, indiferente aos perigos e às desilusões. Nada o
demove de seu intento. Nem as intempéries e perigos das jornadas, nem a má
vontade e revolta dos homens. É teimoso e severo. Muitos dos amigos que o
acompanharam, na arremetida
pelo
sertão a dentro, o abandonam e regressam a S. Paulo. Êle continua. Um filho
seu, bastardo, conspira e tenta sublevar os homens da bandeira contra o
seu chefe. Êle não hesita. Condena o filho à morte. E José Dias é enforcado.

Fernão Dias continua as suas jornadas e
suas buscas. Descobre afinal umas pedras verdes. Devem ser as esmeraldas
cobiçadas! Realizara a sua ambição. Tem nas mãos uma fortuna. Mas a febre, que
a lagoa encantada tem como defesa, ataca o bandeirante audaz. E êle morre, ali
mesmo, crendo haver descoberto o reino das esmeraldas.

Mais tarde, os que levaram as pedras
encontradas, verificam que não são autênticas esmeraldas. O sonho de Fernão
Dias fora mesmo um sonho. As esmeraldas não eram verdadeiras. Mas o sertão
havia sido desvendado. Por onde passara a sua bandeira, surgiram povoações e
mais tarde cidades. Olavo Bilac imortalizou o episódio máximo da vida de
Fernão Dias, num poema O Caçador de Esmeraldas, considerado uma
das obras primas da literatura brasileira. Vamos citar a sua parte final, em
que descreve o delírio e a morte de Fernão Dias:

 

Adoça-se-lhe
o olhar, num fulgor indeciso; Leve, na boca aflante, esvoaça-lhe um sorriso…
E
adelgaça-se o véu das sombras.   O luar Abre no horror da noite uma verde
clareira.
.
.
Como
para abraçar a natureza inteira, Fernão Dias Pais Leme estira os braços no ar.
. .

 

Verdes,
os astros no alto
abrem-se
em
verdes chamai Verdes, na verde mata, embalançam-se as ramas: E flores verdes no
ar brandamente se movem; Chispam verdes fuzis riscando o céu sombrio; Em
esmeraldas flue a água verde do rio, E do céu, todo verde, as esmeraldas
chovem.
.
..

 

E é uma
ressurreição!   O corpo se levanta:

Nos olhos, já sem
luz, a vida exsurge e canta!

E esse destroço
humano, esse pouco de pó.

Contra a
destruição se aferra à vida, e luta,

E
treme, e jresce, e brilha, e afia o ouvido, e escuta

A voz, que, na
solidão, só êle escuta,
sói

‘Morre! morrem-te
às mãos as pedras desejadas. Desfeitas como um sonho, e em lodo desmanchadas. .
. Que importa?   Dorme em paz, que o teu labor é findo! Nos campos, no pendor
das montanhas fragosas, Como um grande colar de esmeraldas gloriosas, As tuas
povoações
se
estenderão
fulgindo.
.
.

 

‘Quando, do
acampamento, o bando peregrino Saía,
antemanhã, ao sabor do
destino, Em busca, ao norte e ao sul, de jazida melhor, No
cômoro de terra, em que
teu pé pisara, Os colmados de palha aprumavam-se, c, clara, A luz de uma
lareira espancava o
arredor.

 

‘Nesse louco
vagar, nessa marcha perdida, Tu
foste, como o sol, uma
fonte de vida: Cada passada tua — era um caminho aberto! Cada pouso mudado —
uma nova conquistai E, enquanto ias, sonhando o teu sonho egoísta, Teu pé, como
o de um deus, fecundava o deserto?. . .

 

"Morre! tu viverás nas estradas que abriste! Teu nome rolará
no largo choro triste Da água do Guaicuí. . .    Morre, Conquistador!
Viverás quando — feito cm
seiva o sangue, — aos ares
Subires, e nutrindo uma
árvore,
cantares
Numa
ramada
verde,
entre um ninho e uma flor!

 

"Morre!
germinarão as sagradas sementes Das gotas df> suor, das lágrimas ardentes!.
. . Hão de
frutificar
as
fomes
e
as vigílias! E um dia, povoada a terra em que te
deitas, Quando, aos
beijos do sol, sobrarem as colheitas, Quando, aos beijos do amor, crescerem as
famílias,

 

"Tu cantarás na voz dos sinos,
nas
charruas,
No
esto da multidão, no tumultuar das ruas, No clamor do trabalho e nos hinos da
paz! E, subjugando o olvido, através das idades. Violador de sertões, plantador
de cidades. Dentro do coração da pátria
viverás!"

 

Cala-se a
estranha voz.   Dorme de novo tudo.

Agora,
a deslizar pelo arvoredo mudo,

Como
um choro de prata
algente o luar escorre.

E
sereno, feliz, no
maternal regaço
Da
terra, sob a paz estrelada do espaço,

Fernão
Dias
Pais Leme os olhos cerra.   E morre.

Uma república de negros

essa que
formaram os negros fugidos dos engenhos, desde a Paraíba até Porto Seguro,
principalmente durante a época da guerra holandesa, não passava de uma
monarquia, com um rei eletivo e vitalício, chamado Zumbi. Por esse nome
eram também apelidados os capitães, que chefiavam os soldados da república
negra. Reinava ordem entre os habitantes, governados por severa disciplina. O
roubo, o adultério, a deserção e o homicídio eram punidos com a pena de
morte. Os escravos fugidos voluntariamente eram considerados livres na
república. Interessante, porém, é que esses ex-escravos capturavam, nos
engenhos, os escravos que não haviam querido fugir, e os tornavam
escravos seus, dentro do território onde se achavam localizadas suas aldeias,
chamadas quilombos.

Alguns desses quilombos chegaram a
possuir mais de 1.500 casas, com uma população de 8 a 10 mil almas.
Viviam os quilombolas de agricultura, de caça, de pesca e dos assaltos frequentes
que
faziam às fazendas, engenhos e vilas. Tornaram-se, por isso, perigosíssimos.
Numerosas
expedições foram enviadas contra eles, não só pelos portugueses, mas também
pelos holandeses. Mas o núcleo principal dos quilombos, na serra da Barriga,
resistia a todas as expedições. Somente em 1695, foi a "Tróia Negra"
destruída por uma expedição militar comandada pelo paulista Domingos Jorge
Velho. O cerco dos Palmares durou três anos.

A luta pela
conquista do reduto final foi terrível. Os negros se defendiam, com um heroísmo
de espantar. Já desfalcados de munições, utilizaram nos combates tições de fogo e água fervente.  
Conta
a lenda que o rei e seus principais capitães lançaram-se de um despenhadeiro
abaixo,
para não cair vivos nas mãos dos expedicionários. Mas os historiadores afirmam
que o zumbi morreu em combate, vítima da traição de um mulato de seu bando.

Terminava assim, tragicamente, a
história desses escravos que se haviam declarado livres e formado uma república
própria.

Uma conspiração de
poetas

FOI
em Vila Rica, hoje cidade de Ouro Preto, que se tramou essa interessantíssima
conspiração de poetas, estudantes e padres. Os brasileiros estavam descontentes
com os excessos de tributação e com certas medidas tirânicas das autoridades
portuguesas. Estudantes que regressavam da Europa, de lá traziam as últimas
novidades políticas e as doutrinas libertárias, que os filósofos preconizavam.
Vendo os sofrimentos do povo, escorcha-do pelo fisco real, sonharam com a
libertação da pátria.

Entre os "sonhadores" dessa
pátria liberta se contavam vários sacerdotes e, os poetas Inácio José de Alvarenga
Peixoto, Cláudio Manuel da Costa e Tomaz Antônio Gonzaga, este último
desembargador e lírico apaixonado da jovem Maria Dorotéia Joaquim de Seixas, que imortalizou
nos seus versos de amor, chamando-a Marília, enquanto que a si próprio se dava
o nome de Dirceu.

Dos mais exaltados e dos mais esforçados
dos conspiradores
era
o alferes
do
regimento de dragões de Minas Gerais, Joaquim José da Silva Xavier. A sua grande
habilidade no tratar dentes mereceu-lhe a alcunha de Tiradentes,

Os conjurados se reuniam em pontos diversos
e tratavam
de
conseguir adeptos para o levante, não só em outros lugares de Minas
Gerais, mas até no Rio de Janeiro. Procuravam também obter o apoio dos
Estados-Unidos. O
papel dos poetas não foi de grande relevo, mas a eles se devem certas idéias
abraçadas pelos conspiradores, tais como a da criação de uma
universidade em Vila Rica, a abolição da escravidão e bem assim a escolha do
lema da bandeira da república, que seria proclamada, se vitoriosa a
conjura. Foi
um verso de Virgílio o escolhido para figurar na bandeira: Libertas
quae sera tamen.

Mas, como em
toda conspiração, houve também nessa traidores. Três portugueses, o coronel
Joaquim Silvério
dos
Reis, o coronel Basílio
de
Brito Malheiro
e
o mestre de campo Inácio Corrêa Pamplona correram a denunciar
a
conjura ao
Visconde de Barbacena,
governador
da capitania. Sendo a cobrança do imposto sobre, o ouro o pretêsto de que se
valeriam os conjurados
para
concitar
o
povo à revolta, susteve
o
governador a cobrança e tratou de prender os conspiradores. Não foi difícil,
ciente como estava de toda a trama, deitar a mão aos implicados.

Tiradentes, que se achava no Rio, em
ativa e franca propaganda da rebelião, foi também detido. Seguiu-se o
processo, longo e cheio de dolorosos incidentes. O poeta Cláudio Manuel da
Costa suicidara-se na prisão. Os outros negavam a sua participação na conjura,
faziam
protestos de fidelidade à coroa portuguesa, acusavam-se uns aos outros. Raros
os que se mostravam intrépidos na adversidade. O cónego Luiz Vieira e Tiradentes revelaram-se, porém, corajosos
e dedicados.

O processo teve como resultado a
condenação de 10 dos acusados à morte. A rainha de Portugal comutou-lhes,
porém, a pena em degredo perpétuo para a África. Somente Tiradentes não mereceu
a misericórdia real. Subiu ao patíbulo, no dia 21 de abril de 1792, sendo
enforcado. Cortaram-lhe em seguida a cabeça, que foi exposta em Vila Rica, e seus membros esquartejados,
espalhados pelos lugares onde mais ativa se fizera sentir a sua propaganda da
rebelião. O escrivão do ato lavrou a certidão do enforcamento e do
esquartejamento com o próprio sangue do condenado.

E com esse epílogo de sangue se esvaiu o
sonho daqueles que queriam uma pátria livre. Anos mais tarde esse sonho se
realizaria, com o auxílio mesmo dum descendente dessa rainha, que mandou
enforcar Tiradentes. E a memória desse
mártir da independência da terra brasileira ficou como um símbolo dos anseios
de liberdade e de altivez de todo um povo.

Nem sempre tal pai, tal filho

O VELHO brocardo, "tal pai, tal filho"
tem, na figura dos dois
imperadores do Brasil, D. Pedro I e D. Pedro II, formal desmentido. Poucas
vezes pai e filho divergem tanto. Vinho e água. Vinagre e azeite. O filho de Carlota
Joaquina não
parece o pai do filho de Leopoldina de Habsburgo.
Suas vidas são diversíssimas.
Um,
aventuroso,
incoerente,
instintivo, mulherengo. O outro, prudente, conservador, pouco amante de
aventuras, quer políticas, quer amorosas. Pedro I tem audácias loucas de
jogador que tudo aventura numa cartada. Pedro II joga também, mas com a cautela
e o sossego de quem faz um joguinho em família.

Filho de D. João
VI, sôrna
e glutão, porém mais inteligente
do que fazem crer os historiadores, e de Carlota Joaquina, a espanhola desbragada
e
estabanada, o príncipe D. Pedro e seu irmão D. Miguel foram criados à solta,
satisfazendo seus caprichos, vivendo com criados e arrieiros, cuja linguagem
aprendem com perfeição. Quando imperador, dirá D. Pedro I, a propósito dos próprios
filhos
c
confessando
a
péssima
educação que
ele e o irmão
tiveram: "Estes
(seus
filhos) serão bem educados; eu e o mano Miguel seremos os últimos malcriados
da família".

Quando Napoleão I põe em fuga a
família real portuguesa, vem D. Pedro parar com seus pais no Brasil. Sua
vida na nova sede da monarquia não se modifica. Seus companheiros não primam
pela qualidade. É um farrista, amante de esbórnias, brigas, ceatas,
serenatas e de aventuras extraconjugais. Voltando para
Portugal, seu pai que o deixa tomar conta do Brasil, pressentindo, talvez, que a
sua colônia não demorará em emancipar-se, aconselha o filho a apoderar-se
de tão magnífico quinhão antes que êle venha a cair em outras mãos, não
braganti-nas. No momento azado, D. Pedro não esquece o conselho paterno. Coloca-se
ao lado dos brasileiros, quando estes clamam por seus direitos contra as
exigências descabidas do governo português. Insurgindo-se contra as ordens
reais, proclama a independência do Brasil, desistindo com esse gesto, pelo
menos temporariamente, de sua sucessão à coroa portuguesa. E com a mesma impetuosidade,
anos
mais tarde, abdica o trono brasileiro para se fazer defensor dos direitos de
sua filha ao trono português, que a cobiça do mano Miguel ameaçava tomar.

Poucas figuras na história oferecem
aspectos tão discordantes, como a desse príncipe e imperador impetuoso,
inculto, mesquinho e magnífico, brutal e cavalheiresco, mau marido e bom pai, ora
autócrata, ora
constitucionalista,
capaz
de grandes gestos quixotescos e de grosseiros assomos de cólera epiléptica. A
crônica escandalosa do Primeiro Império brasileiro está cheia da história de
seus amores, de suas aventuras e estroinices. Faz de sua
amante predileta, D. Domitila de Castro, marquesa de Santos, dando
também títulos de nobreza às filhas dessa união ilícita. Nas suas correrias
noturnas
chega a ser vítima de surras de pau, dadas por maridos pouco acomodaticios.
É
uma figura de romance, de vida cheia de peripécias extraordinárias.   Quando
morre aos 36 anos, na idade em que muitos começam a fazer alguma coisa na vida,
já havia fundado um grande império e reconquistado um reino.

Tendo vivido na época do romantismo, foi
na realidade um romântico autêntico, sem a morbidez dos Byrons e dos Renés.
Viveu o romantismo nos amores, nas atitudes, nas loucuras, na política. Foi um
D. Juan
grosseiro,
mas teve gestos líricos de personagem lamartiniano. Seus ímpetos de ferrabraz e
epilético eram compensados pelas lágrimas de seu arrependimento e pelas ternuras
doces
de sen coração amoroso. Foi sempre um voluntarioso indomável. E desconcerta
pelos contrastes. Abandona um vasto império a um filho criança e vai correr a
aventura de disputar um pequeno reino para uma filha menina. No Brasil, faz da
constituição uma convenção desprezível a seus olhos de senhor
absoluto. Em Portugal, faz da Carta um ideal sagrado, batendo-se por ela como
um cavalheiro medieval pela sua dama.

Neste último período de sua vida, o
homem Pedro I não é mais o inconsequente e aloucado de outrora.
Dedica-se.
Tortura-se. Sofre. É uma vontade sobrepu-jando-se a todos os reveses e desânimos.
Anima-o
um ideal. A êle se entrega, por êle se bate, numa obstinação maravilhosa e
ardente. Não é mais o homem das cartas fesceninas a Domitila. Dá conselhos de
Marco Aurélio, como diz o escritor Pedro Calmon, ao filho que
deixara como imperador do Brasil.

Mas o romântico nele não morre. Pelo
contrário, avulta
e
se extrema. O imperador que criou a Ordem da Rosa, em delicada recordação do
traje enfeitado de rosas com que se lhe apresentou sua segunda esposa, a imperatriz
Amélia de Leuchtenberg,
é o
mesmo duque de Bragança que viaja, à noite, 19 léguas por mar, para cumprir a
palavra de assistir a uma festa de aniversário. No cerco da cidade do Porto,
quando a causa de sua filha perigava e faltava madeira para reparo dum
morteiro, recusa-se a mandar derrubar uma das velhas árvores ás quinta de Wanzeller, porque
"dera a sua palavra de que não cortaria uma só das árvores do Porto e
preferia capitular ao inimigo antes de quebrar o juramento", êle que,
anos antes, ordenara a destruição feroz das amoreiras do intendente
Paulo Viana, que morreu de desgosto. Vitoriosa a sua causa, não teve o ocaso melancólico dos
heróis que se burocratizam.
Desapareceu
ainda no calor das apoteoses, vítima da doença que infestou as páginas da
literatura romântica: a tuberculose.

O atrabiliário, o vingativo, o desrespeitador
de outrora,
morre
aconselhando à jovem rainha, sua filha, "a clemência, a magnanimidade, a
justiça". Morre abraçado a um crucifixo e, num imprevisto símbolo, na
sala de D. Quixote
do
Palácio de Queluz, aquele que foi o cavalheiro andante do liberalismo.

D. Pedro II foi precisamente o
contrário. Nada de romantismos e de aventuras bironianas. O menino que aos
cinco anos de idade era deixado pelo pai entre estranhos, para ser o imperador
de um imenso império, teve uma infância triste de estudos e protocolos. E
durante toda a sua vida será um lestudioso. Não mais as
correrias
noturnas,
as funçanatas, as amantes, que constituíram o trem de vida do impetuoso Pedro
I. O novo imperador amadureceu bem cedo, no trato com os mestres e com os
livros. Sua vida toda terá o método e o cinzento rigor de um meticuloso e
severo chefe de repartição. É um burocrata, dirigindo um vasto império, nem
sempre pacífico e ordeiro.

Lê filósofos e historiadores. Traduz
poetas clássicos. Estuda ciências e línguas mortas. Corresponde-se com
escritores. Tem mais prazer em visitar Vitor Hugo, que o cognomina de "neto de
Marco Aurélio", do que iem avistar-se com seus parentes coroados da Europa.
Anda burguesmente vestido, com sua cartola alta e seu guarda-chuva deselegante.
Gosta de assistir a exames, de presiair sessões acadêmicas, de discretear
com
diplomatas que sejam também literatos.   Protege artistas.

Prova
a comida que se destina aos alunos internos do Colégio que tem o seu nome. Faz
sonetos, com menos felicidade do que equilibra a balança do regime
parlamentar.

Terá seus assomos de teimosia, suas
tacanhices die velho e de soberano, seus erros de visão e de tacto. Maa
será
magnânimo, caridoso, marido fiel, pai dedicado e amoroso, amigo da
justiça, tolerante, democrata. Já se disse que foi mais republicano que os
próprios membros do partido republicano. E se assim não se declarava abertamente,
era porque afinal não ficava bem a um imperador tal declaração.

Quando se proclamou a República
Brasileira, não quis lutar pelo trono. Magoado embora, não relutou em
ausentar-se do país. Morreu no exílio, saudoso de sua pátria, que sempre amara entranhadamente,
contente
por ter um pouco de terra do Brasil no travesseiro sobre que repousaria para
sempre a sua cabeça encanecida. E cheio de esperança de que a história
lhe faria justiça. E fez. Seu nome é hoje venerado pelos próprios republicanos e
seu corpo repousa para a eternidade na cidade brasileira que tem o seu
nome: Petrópolis.

 

Batinas revoltosas

 

OS anos 1817 e de 1824 marcaram na história do Brasil períodos
de grande agitação. Duas revoltas sérias irromperam, naqueles anos, em
Pernambuco, com ramificações nas outras províncias. E, coisa interessante,
revoltas iem que tomaram parte numerosos sacerdotes, patriotas é certo, mas de
vida canónica
pouco
regular, como salientou o historiador Oliveira Lima.

Uma das causas da revolução de 1817 foi
a rivalidade existente entre portugueses e brasileiros, em Pernambuco. E o
descontentamento contra o governador Caetano Pinto de Miranda Montenegro,
de
quem diziam os adversários políticos que era Caetano, no nome; Pinto, na
coragem; Monte nas alturas e Negro, nas ações, com evidente exagero, próprio
das paixões políticas.

Conspirava-se nos cenáculos da maçonaria.
Havia
banquetes em que os conspiradores estabeleciam os planos da revolta. Mas
banquetes de caráter estritamente nacionalista. Nada de pão de trigo, porque o
trigo vinha de Portugal. Comia-se pirão de farinha de mandioca. Nada de vinho,
que também era importado do Reino, mas a legítima e nacional aguardente de
cana.

Soube o governador da conspirata e deu
logo ordem de prisão para os oficiais brasileiros envolvidos na conjura.
Foi
isso na véspera da data marcada pelos revoltosos para o começo da
revolta. Barros
Lima,
um deles, apelidado de "Leão Coroado", vê, na hora da prisão, que não
é possível esperar mais. O brigadeiro português encarregado da prisão dos
oficiais suspeitos chama de infames e traidores aos brasileiros. O insulto é
por demais pesado. E Barros Lima tira da espada e atravessa com ela
o corpo do brigadeiro. Depois, estendendo a espada ensanguentada, em saudação
romana, grita para os seus colegas: "Juremos vencer ou morrer pela
pátria!" E todos respondem: "Viva o Brasil!" Estava iniciada a
revolução.

Elege-se um governo provisório. O povo
já ciente do que ocorria, confraterniza com os revoltosos e sai pelas
ruas, gritando: "Viva a pátria! Mata marinheiro!" Com este nome tratavam
depreciativamente os portugueses. O governador foge do palácio e se refugia
numa fortaleza. Estava vitoriosa a revolta. O governo se organiza, toma providências,
trata de propagar o movimento republicano pelas províncias vizinhas.   Mas o
governo português
toma também suas providências. Prende-se o padre Roma, na Baía, e o padre José
Martiniano de Alencar, no Ceará. Enviam-se tropas. Bloqueia-se o Recife. Escasseiam
os víveres.
As
primeiras derrotas começam a fazer pender a vitória para o lado dos
governis-tas. O padre Roma é fuzilado, na Baía. Dentro em pouco são debandados
os revoltosos
e o
castigo real pesa sobre a cabeça dos republicanos de Pernambuco. O padre João
Ribeiro, membro do governo revolucionário, suicida-se. Pagam também com a vida
o seu gesto de rebeldia os padres Miguelinho, Pedro Tenório, Antônio Pereira,
além de numerosos outros revolucionários. Foram tantas as execuções capitais que
o próprio rei mandou sustar os poderes da comissão militar, encarregada
de processar os revoltosos.
A
propósito dos excessos havidos naquela ocasião, escreveu Frei Antônio da
Conceição a seguinte sátira, alusiva aos prêmios com que eram galardoados
os
perseguidores dos brasileiros:

 

"Quando
os séculos das trevas dominavam,
Das cruzes os ladrões se penduravam;
Hoje
domina o século das luzes:
Pendentes dos ladrões andam as cruzes!"

 

Esses excessos acirraram o espírito
popular. Por isso, fácil foi, mais tarde, em 1824, repetir outra revolução
republicana, de maior vulto ainda e mais difícil de jugular. Chefiada por
Pais de Andrade, contou com a adesão das províncias de Ceará, Paraíba e Rio
Grande do Norte. E denominou-se "Confederação do Equador". As forças
imperiais mandadas contra os revoltosos conseguem
vencer as províncias revoltadas. E seguem-se as execuções dos que. participaram
da nova república. Novos padres se lencontram entre os revoltosos. O padre
Mororó é executado no Ceará, e no Recife, Frei Joaquim do Amor Divino Caneca é
fuzilado na praça pública.   Sua morte comove pela serenidade e pela elevação.
Na véspera da execução, escreve ainda uns versos:

 

Quem passa a vida
que eu passo,
Não deve a morte temer;
Com a morte não se assusta
Quem está
sempre a morrer.

A medonha catadura
Da morte feia e
cruel,
Do rosto só muda a côr
Da pátria ao filho infiel.

Tem fim a vida
daquele
Que a pátria não soube amar;
A vida do patriota
Não pode o tempo
acabar.

O servil acaba inglório
Da
existência a curta idade;
Mas não morre o liberal,
Vive toda a eternidade.

 

O povo todo da cidade freme de dôr e
compaixão. Por onde passa o cortejo, as mulheres rezam nas portas e janelas das
casas. O preto Agostinho Vieira, réu de pena de morte e cuja sentença será
comutada após servir de carrasco de Frei Caneca, recusa-se a executar o patriota.
Os soldados, indignados com a recusa do preto, abatem-no a coronhadas. O
ajudante do carrasco, também condenado à morte, recusa-se por sua vez à nefanda missão.
Retarda-se a execução. Frei Caneca espera serenamente a hora da morte.
Manda-se buscar qualquer outro condenado para servir de carrasco. Mas ninguém
aceita. Em vez, então, de ser garroteado, o frade s^rá arcabuzado. Um soldado do
pelotão desmaia. Frei Caneca quer falar, depois de amarrado ao poste de
execução. Mas seu confessor lhe pede que guarde silêncio. E apenas
dirá aos soldados, no momento em que é dada a ordem de "sentido!": —
Amigos, peço que não me deixem padecer por mais tempo…"

Uma guerra de esfarrapados

 

DESCONTENTES
com a má administração da província do Rio Grande do Sul, acirrados pelos uruguaios
que desejam formar uma confederação dos territórios da zona oriental e
sentindo desperto o ardor nati-vista contra os portugueses, desejosos
de
repor D. Pedro I no trono do
Brasil, revoltaram-se os gaúchos. Os partidários do governo imperial alcunharam
logo os revoltosos
de
"farrapos", por causa dos uniformes não muito elegantes e perfeitos
das forças que se colocaram às ordens de Bento Gonçalves da Silva.

Os rebeldes
aceitam com orgulho a alcunha depreciativa. Serão farrapos, sim, serão farroupilhas,
mas irão dar que fazer ao governo imperial. Efetivamente, a luta dura dez
anos. Luta em que, de parte a parte, se cometem atos de heroísmo e de
crueldade, como costuma acontecer nas guerras civis. As brigas de família são
sempre mais terríveis e mais cruéis.

As primeiras
vitórias cabem aos farrapos. Mas na ilha do Fanfa, Bento Gonçalves é derrotado
por Bento Manuel Ribeiro, comandante das tropas imperiais, e remetido para o
Rio de Janeiro. A perda do chefe não faz cessar a luta. Na sua ausência os revoltosos
proclamam
a República de Piratiní, separando-se assim do império brasileiro. Bento
Gonçalves consegue, romanescamente, fugir da fortaleza do Mar, na Baía, e volta
a comandar as forças farroupilhas.

No ano seguinte,
Bento Manuel passa-se para o lado dos revoltosos. E a luta
prossegue, ora favorável aos legalistas, ora aos federalistas. Mas não dura
muito a união dos dois adversários de outrora. Bento Manuel se
retira.  E Bento Gonçalves prossegue na defesa dos seus ideais. Resolve invadir
a província de Santa Catarina. Tem, então, a ajudá-lo o caudilho italiano José Garibaldi.  
Mas
é repelido e duramente derrotado.

Com a maioridade de D. Pedro II,
promete-se anistia aos revolucionários. Bento Gonçalves não aceita. O governo
imperial resolve enviar então ao Rio Grande um experimentado comandante, Luiz
Alves de Lima e Silva, que será depois, pelas vitórias alcançadas na campanha
contra os farroupilhas, feito conde de Caxias e mais tarde marquês e duque do
mesmo título. Lima e Silva é, antes de tudo, um verdadeiro amante de sua terra
e sofre por ter de cumprir dever tão duro como esse de combater seus compatrícios.
Combate
os adversários, mas nunca deixa de convidá-los à união fraterna. Nas suas proclamações
lê-se:
"Abracemo-nos e unamo-nos para marcharmos, não peito a peito, mas ombro a
ombro, em defesa da pátria, que é nossa mãe comum."

Bento Manuel volta à atividade, pondo-se
ao lado de Lima e Silva. Frequentes derrotas dos
farroupilhas marcam os últimos episódios de lutas tão sangrentas. Ambos os
adversários estão esgotados. Para que prosseguir luta tão inglória? Faz-se a
paz. E o Rio Grande continua cada vez mais integrado na comunhão dos Estados
Unidos do Brasil.


*  *

 

O caráter separatista que aparentava ter
essa guerra dos Farrapos é, por vezes, desmentido por certos atos e palavras
dos próprios chefes farroupilhas. O que havia era muito mal-entendido, de
parte a partie. Quando o ditador de Buenos Aires, Rosas, procurou aliciar o auxílio
dos revolucionários brasileiros em favor de suas ambições políticas, mandou
propor um acordo a Davi Canabarro, um dos
principais chefes farroupilhas, prontificam do-se a enviar-lhe tropas para
combater os imperiais.

A situação dos farroupilhas era crítica,
no momento.   Mas Canabarro respondeu, da seguinte forma, a Rosas:
"Senhor:
O
primeiro
de
vossos
soldados
que transpuser
a
fronteira
fornecerá o
sangue
com que assinaremos a paz de Piratiní com os imperiais, pois
acima de
nosso
amor
à República
está o nosso
brio de
brasileiros.
Quisemos ontem a separação de nossa pátria, hoje almejamos a sua integridade.
Vossos homens, se ousassem invadir nosso país, encontrariam, ombro a ombro, os
republicanos de Piratiní e os monarquistas do Sr. D. Pedro
II."


*  *

 

Há nessa terrível guerra civil dos
Farrapos um episódio romântico-heróico, digno de inspirar poemas. E’ a
história dos amores e aventuras de José Garibaldi e de sua amante,
e depois esposa, Ana de Jesús Ribeiro, mais conhecida pelo nome de
Anita Garibaldi.

Quando os Farrapos resolveram tomar a
província de Santa Catarina os navios de Garibaldi ancoraram em
Laguna. E ali o guerrilheiro italiano conhece a formosa e jovem Anita. O
namoro começa com uma chicara de café e acaba num rapto
romântico da jovem brasileira pelo atrevido italiano. Em plena lua de mel dos
jovens apaixonados, dá-se o ataque das forças imperiais aos navios rebeldes.
Anita Garibaldi
tem
ocasião de mostrar, pela primeira vez, o seu valor combativo. Comanda, com seu
amado, a pequena esquadrilha de três navios apenas. Uma bala a prostra,
ela
porém se ergue e continua a peleja.

Conta-se dela que, certa vez, não
hesitou em atravessar uma zona perigosa para ir buscar um grupo de combatentes
acovardados. Perdido o combate naval, Garibaldi se refugia com
os seus homens na serra de Curi-tibanos. Cercadas suas forças, luta um dia
inteiro, tendo a seu lado a indómita Anita. Garibaldi foge. Anita cai
prisioneira, mas obtém permissão para procurar, entre os que tombaram no
combate, o cadáver de Garibaldi, que se acreditava ter morrido.
Certificada de que Garibaldi não morrera e tendo obtido um cavalo de
empréstimo,
Anita, a-pesar-de achar-se
grávida, foge, através de terrível tempestade, e consegue romper os postos de sentinelas,
como
uma aparição fantástica que apavora os soldados rudes e supersticiosos.

Terminada a guerra dos Farrapos, Anita
acompanha Garibaldi
a
Montevidéu, casa-se ali com êle e irá mais tarde combater a seu lado, com o
mesmo denôdo e a mesma desassombrada coragem, na
Itália, quando seu marido se bate pela unificação italiana contra as forças
austríacas. Morre aos 28 anos, numa floresta de pinheiros, numa casinha onde
se refugiara com o marido, após uma fuga aventurosa e plena de
perigos, através de pântanos e lagunas. A brasileirinha de Laguna, pelo seu
amor e pelo seu
heroísmo, tornou-se uma figura quase lendária em sua pátria.

 

 

 

 

 

Um ditador como há
muitos

guai, tinha,
como certos ditadores modernos, a mania de reviver figuras históricas de
grandes guerreiros e conquistadores, um Alexandre, um César, um Napoleão.
Conseguiu
criar e manter, no seu pequeno país, um exército, para aqueles tempos,
respeitabilíssimo, de 80.000 homens. O Brasil, o Uruguai e a Argentina
achavam-se militarmente
desprevenidos. O
exército brasileiro tinha apenas 17.000 soldados. E López sonhava em
alargar os limites de seu país, conquistando terras limítrofes, para formar um
império também, de que seria êle senhor autônomo e primeiro imperador. Quando
um ditador quer conquistar "espaço vital", não lhe faltam pretestos.

E a guerra começou.  Primeiro houve o aprisionamento
do
vapor brasileiro "Marquês de Olinda", que levava a seu bordo o
presidente da província de Mato Grosso, Frederico Carneiro de Campos. Depois, Lopez manda invadir
aquela província. A resistência do Forte Coimbra foi heróica. As 70 mulheres
que nele se encontravam auxiliaram corajosamente seus esposos e pais na luta
contra o invasor. Rechassados os assaltantes, os defensores do forte o
abandonam, pela impossibilidade de continuar a defesa.

O Brasil forma uma aliança com a
Argentina e o Uruguai. E a luta se multiplica em várias frentes, com
alternativas de vitórias e derrotas, pois o adversário comum é corajoso,
adestrado e bem provido. Feitos de raro heroísmo são praticados de parte e
outra. As batalhas navais e as batalhas terrestres estão repletas de episódios
admiráveis de coragem e de grandeza heróica. Riachuelo, Uruguaiana onde estivera
o
próprio Imperador D. Pedro II, Passo da Pátria, Tuiutí, Curuzú,
Humai-tá, Itororó, Avaí, Lomas Valentinas, Peribebuí, Campo Grande, são nomes
que assinalam as grandes batalhas e as grandes vitórias do lado brasileiro.
Greenhalgh, Maia,
Marcilio
Dias, Barroso, Tamandaré, Porto Alegre, Andrade Neves, Osório, Inhaúma, Mariz
e Barros,
Argolo, Caxias,
e muitos outros, são os heróis dessa luta de tantos anos.

Apesar-do forte potencial guerreiro e
da bravura de seus soldados, Lopez vai sendo pouco a pouco derrotado.
Os exércitos aliados tomam a capital do país, Assunção. Lopez não se entrega.
Foge para o interior, com os restos de seu exército, e continua a luta. Morre,
porém, afinal, de espada em punho, combatendo até o último momento e deixando
atrás de si os destroços e ruínas duma pátria que poderia ter feito grande e
próspera, pelo trabalho e pela paz, em vez de lançá-la aos azares de uma guerra
de conquista. Um ditador como há muitos, embora nem todos mostrem tal coragem.

Vejamos
alguns episódios interessantes dessa guerra.

Greenhalgh era um jovem guarda-marinha
de apenas 17 anos, cuja beleza e mocidade lhe davam grande prestígio nas
festas e bailes da corte. Parte para a guerra do Paraguai. Um amigo o adverte,
profeticamente.
"Adeus,
Greenhalgh! Tu partes para o campo da morte". Ao que ele respondeu: —
"Não!… Eu parto para o campo da glória!…"

Trava-se a batalha de Riachuelo. Para
estimula; seus comandados, o almirante Barroso, chefe da esquadra brasileira,
faz suas as palavras de Nelson, em Trafal-gar: "O Brasil espera que cada
um cumpra o seu dever!" O embate das duas esquadras é terrível. Barroso,
de pé, em meio do cruzar das balas, dá o exemplo da coragem aos seus
subordinados. A fragata Paranaíba é cercada por quatro navios paraguaios.
O combale
corpo
a corpo se engaja. Um oficial paraguaio, no mais aceso da luta, tenta arriar a bandeira
brasileira. Greenhalgh derruba o oficial inimigo e toma-lhe o símbolo sagrado
da pátria. E cai, por sua vez, aos golpes de fuzis e machadinhas, abraçado à sua bandeira. Maia, oficial do
exército, tem a mão direita decepada, mas vale-se da esquerda para prosseguir
na luta, e Marcílio Dias, simples marinheiro, com um arrojo indescritível,
tendo apenas um sabre, terça-o contra quatro paraguaios, prostra dois deles, mas
sucumbe à superioridade numérica.

*  *  *

 

Manuel Marques de Souza, conde de Porto Alegre, comandava as forças
brasileiras que, após a vitória de Curuzú, atacaram o forte de Curupaití. A
demora de Mitre,
general
argentino que comandava os exércitos aliados, deu tempo a que Lopez se fortificasse
bastante. A-pesar-do mau estado do terreno, Porto
Alegre, à frente de seus homens,
conduz o ataque em meio duma apavorante saraivada de balas, e consegue
transpor as linhas de defesa do adversário, começando a escalar os muros do
forte.

As forças argentinas haviam sido, porém,
detidas num paul e se achavam em situação crítica. Mitre dá
ordem de retirada. Porto Alegre, cujos soldados estão a ponto de vencer a
resistência do inimigo, fica indignado com a ordem extemporânea, que anulava
todos os seus esforços. E responde: "Não recuo nem um passo!" Nova
ordem lhe é enviada e, fora de si, grita êle para o emissário: "Diga ao
general Mitre
que
vá para o diabo que o carregue!"

Mas os clarins soaram a ordem de retirada
e Porto Alegre, como comandado, teve
de obedecer, a contragosto e de
coração amargurado. Conta-se que, à noite, quando em sua barraca de campanha
escrevia êle o relato dos acontecimentos do dia, um de seus ajudantes de
ordens, tomando nas mãos a farda com que estivera durante a batalha
o seu general, farda suja, ensanguentada, de abas
esfuracadas pelas balas, lhe disse: "General, a melhor resposta que o
senhor poderia dar ao general Mitre era mandar-lhe esta casaca para
êle comparar com a dele…"


*  *

 

No combate do Itapirú, Mariz e Barros comanda o
couraçado Tamandaré. No mais forte da peleja, uma bala atinge grande número de
marinheiros e comandante. Mariz e Barros tomba entre seus marinheiros, com
uma perna partida e presa ao joelho apenas pelos tendões. Com a maior
calma, no dia seguinte, no momento em que vai ser operado, pergunta com bom
humor, indagando do nome do médico que vai operá-lo: "Quem é o homem do
leme?" Quando lhe oferecem clorofórmio, diz: — "Dispenso
isso. Prefiro um bom charuto". E ficou fumando, enquanto durava a
operação, cujo resultado lhe foi fatal. Antes de morrer, ainda murmurou:
"Digam ao meu pai… que honrei sempre o seu nome…"

Mariz e Barros era filho do
velho almirante, e também herói da guerra paraguaia, Joaquim José Inácio,
vi-conde de Inhaúma. Quando sabe da morte de seu filho, o velho guerreiro
começa a chorar. Um amigo lhe diz: — "Resigne-se, almirante". E êle
responde: — "Não repare, não repare. E’ um velho navio a fazer água… Mas a bomba da resignação acabará de
estancá-lo".

*    *  *

 

O general Argolo Ferrão, visconde
de Itaparica, um dos heróis da guerra paraguaia, era baixinho e precisava por
vezes, quando na trincheira, de se pôr nas pontas dos pés para observar as
manobras do inimigo. Certa vez achava-se em posição perigosa, tendo a seu lado
um general de grande estatura, que se abaixava todas as vezes que uma bala sibilava
por
cima da trincheira. Argolo, de quem os colegas costumavam zombar,
aproveitou a oportunidade para uma maliciosa vingança, e diz ao seu
companheiro: — "Colega, muita gente zomba de mim, porque sou de pequena
estatura e chega mesmo a dizer que a natureza não foi pródiga para comigo.
Felizmente, colega, felizmente, porque, sendo deste tamanho, não tenho
necessidade de agachar-me, como você, quando as balas passam…"

*    *  *

 

O batalhão de voluntários cearenses, 26,
comandado por Figueira de Melo, é quase todo dizimado num combate. Osório
interroga o comandante que escapara ao desastre, com poucos soldados. Indaga
os motivos da derrota. As respostas são satisfatórias e mostram que o
comandante agira mesmo com coragem e dedicação. Mas de repente, Osório pergunta
onde se encontra a bandeira do batalhão. Figueira de Melo abaixa a cabeça e
chora. Dum grupo de soldados, avança um deles, faz continência e diz ao
comandante: — "A bandeira do nosso 26, Sr. Comandante, está aqui!" E
desabotoando
a
blusa, tira, toda rota e ensanguentada, a bandeira do
batalhão, que guardava carinhosamente de encontro ao coração.


*  *

 

Foi nos combates dos pantanais do Estero-Bellaco.
O
42 de voluntários paulistas toma parte ativa no avanço. Seis corneteiros
tocam
o sinal de avançar e de fogo. Quatro deles tombam, ceifados pela metralha.
As cornetas
emudecem.
O embate é tremendo. O batalhão de voluntários começa a fraquejar. O
comandante, que, desmontado, luta de pé em meio de seus soldados, dá ordem ao
preto corneteiro João José para que toque o sinal de avançar. Ao toque
eletrizante reagem os paulistas e repelem a cavalaria inimiga.

Mas a corneta silencia. E’ que
João José fora ferido no braço. Pede então a seu companheiro, um gaúcho, que
lhe apanhe a corneta
caída.
O combate recrudesce. Do batalhão restam poucos soldados. Coberto de sangue,
João José empunha a corneta com a mão esquerda, e toca o sinal de
avanço. Nova bala atinge-lhe a perna. Pede então ao companheiro:
"Camarada, desta vez é a perna que os malditos me quebraram. .. Encoste-me àquele montão de mortos, pelo
amor de Deus". E êle continua a tocar. Osório vem em socorro dos heróicos
paulistas. Uma bala atinge o peito do corneteiro. E encostado ao montão de
cadáveres, vendo que a vitória por fim cabe aos voluntários do 42, João José de
Jesus ainda tem forças para tocar a
marcha da vitória, antes de morrer.

* * *

 

Caxias é, no Brasil, o tipo do soldado
perfeito. Sua dedicação pelos seus soldados é proverbial. O visconde de Taunay narra o seguinte
episódio: "O duque de Caxias, quando em campanha, fazia questão de sofrer
as mesmas agruras e correr os mesmos riscos que os seus soldados. Uma tarde, em
Lomas Valentinas, estava êle completamente molhado, sob uma laranjeira,
esperando o momento do ataque, quando uma ordenança se aproximou,
trazendo com cuidado uma fumegante chícara de café. "Aqui está
— disse — que o sr. dr. Bonifácio de Abreu mandou para V. Excia., e ordenou-me
que não deixasse cair um só pingo no chão". O marechal fitou-o, pausadamente.

"Eu não quero" — respondeu afinal. E para o soldado, abrandando a
voz: — "Beba-o você, camarada".

*
*  *

 

Em Tuiutí, um recruta
recolhe três granadas inimigas que não haviam detonado, e forma com elas uma
trem-pe, sobre a qual coloca sua panela para cozinhar um pouco de feijão. Mas
as granadas, cuja pólvora humedecida não tarda a
secar ao calor do fogo, explodem. Todos correm para o lugar da explosão, certos
de encontrarem morto o simplório do recruta. Do meio da fumaça surge então,
todo chamuscado, o recruta, que pergunta, com a maior calma: — "Vocês
viram se derramou o meu feijão?"

Como se libertaram os escravos

 

A
LIBERTAÇÃO dos escravos provocou, na América do Norte, uma terrível e odienta guerra entre o
Norte e o Sul do país, ameaçando a própria integridade territorial dos
Estados-Unidos. No
Brasil, se bem que tivesse sido mais demorada, a abolição da escravidão se
processou sem guerra. Tanto que, quando foi votada no Senado do Império a lei
do Ventre Livre, a 28 de setembro de 1878, que declarava libertos
os filhos
de
escravos
nascidos daí por diante, pôde o ministro dos Estados-Unidos
dizer,
apanhando algumas das flores com que o povo cobrira o Visconde do Rio Branco:
— "Vou mandar estas flores ao meu país, para mostrar como aqui se fez
deste modo, uma lei que lá custou tanto sangue."

A abolição da
escravidão no Brasil foi um movimento verdadeiramente nacional, de que
compartilharam todas
as classes sociais, inclusive a própria família imperial, tendo à frente o Imperador. Verdade é que este queria que se fizesse a abolição pouco
a pouco, afim de preparar com prudência a mudança do regime econômico brasileiro,
baseado no trabalho escravo. E’ conhecida a sua frase, quando estava no
ministério Souza Dantas, desejoso de resolver quanto antes o
problema da abolição: "Quando o sr. quiser correr, eu o puxo pela aba da casaca."

O sentimentalismo nacional
encontrava na vida trabalhosa e sofredora do escravo terreno propício para os arrebatamentos
de
seus impulsos generosos. O choro das crianças escravas, as cantilenas
tristes
do desterrado e sofredor, as frases candentes dos jornalistas, os versos arrebatadores
dos
poetas, a eloquência
fogosa
dos oradores, as críticas dos povos civilizados, os sermões dos sacerdotes,
tudo concorria para a fogueira purificadora, que sanearia um
dos focos mais repelentes de mal-estar social da nacionalidade.

O movimento abrangeu, pois, todas as
regiões do país e todas as classes sociais, a partir dos próprios escravos, os
mais interessados no caso. E’ comovedor, por exemplo,
aquele episódio ocorrido entre os escravos que, para libertar o seu rei, se
cotizaram e conseguiram comprar-lhe a alforria. E cada escravo alforriado ia
depois juntando a soma necessária, para alforriar, por sua vez, os seus irmãos de
tribus, de
maneira que veio afinal Chi-co-Rei a ter todo o seu povo libertado.

Em várias
províncias se formaram sociedades anties-cra vagis tas, com o fim de angariar
dinheiro para alforriar
escravos. Essa cumplicidade do povo e das sociedades antiescravagistas é
bastante explicável. Já de há muito vinha sendo o elemento servil o melhor
tratado. Os senhores desalmados eram menos numerosos e tamanho contacto
se
estabelecera entre escravos e livres que, em muitos casos, a escravidão
era apenas uma questão de direito e não de fato. O escravo era parte
integrante da família, com ela convivia, com ela partilhava de alegrias e
tristezas. Ocorria isso até mesmo nas regiões rurais, onde a escravidão
sempre foi mais rigorosa.

O branco mamava
o leite da escrava preta, dela aprendia as primeiras palavras e as primeiras
superstições, as primeiras cantigas e os primeiros pecados. O filho do senhor
brincava nos terreiros das casas-grandes ou das fazendas com os molequinhos,
escravos muitos deles, tantas vezes seus próprios irmãos de sangue, pois uma
das chagas da escravidão era criar, nas fazendas e engenhos, esses serralhos em
que os senhores davam pasto à sua concupiscência, diminuindo-se e
desmoralizan-do-se. No interior das casas a escrava convivia dia e noite com
as demais pessoas da família. As narrativas dos viajantes e as gravuras da
época mostram eloquente
e
interessantemente esses aspectos da vida familiar.

Os escravos viviam, pois, em contacto
contínuo
com todas as classes sociais, sendo barbeiros, cabeleireiros, pedreiros, aguadeiros,
carregadores,
cocheiros,
marceneiros,
alfaiates, cozinheiros, padeiros e até mesmo alcoviteiros, isto é, os
intermediários nos amores do sinhô-mo-ço e da sinhazinha, chegando muitos
a tal perfeição na arte de tecer enredos e mexericos, que eram considerados
verdadeiros mefistófeles
nas
suas maquinações e intrigas. José de Alencar, na sua comédia O demônio
familiar,
deixou
uma amostra bem viva do moleque recadista e forjador de complicações
familiares.

O escravo
encontrou, portanto, no próprio povo um cúmplice para suas fugas. O próprio
exército se negou à missão de prender escravos fugidos, alegando não serem
"capitães de mato", para desempenhar tão triste mister. Estudantes e literatos, poetas e romancistas punham seu ardor moço, sua arte, sua eloquência,
ao
serviço da causa da libertação dos escravos. Por isso, na propaganda
abolicionista vemos inteligências de todas as idades e de todos os feitios,
homens
das mais diversas classes sociais, ao serviço da grande causa.

Castro Alves, a genial voz lírica da nação, arrebatava as multidões ao calor de
suas estrofes de fogo. Luiz Gama, ex-escravo, atacava com ironia e eloquência
as podridões
sociais.
José do Patrocínio, o gigante negro da oratória, era a própria voz de sua raça clamando justiça e liberdade. André
Rebouças, sereno mas enérgico, reclamava os direitos de seus irmãos de côr.
Joaquim Nabuco era a própria aristocracia rural que se curvava sobre o
sofrimento da raça, que lhe facultava, com seu trabalho, o granjeio
da
fartura econômica, afim de, no quebrar-lhe as cadeias, redimir-se do grande
pecado que cometera. Rui Barbosa era a conciência jurídica do país
insurgin-do-se contra uma legislação insueta e inhumana.

Todo esse ardor
e toda essa agitação precipitaram os
acontecimentos. A princesa Isabel, que presidia o governo na ausência do
Imperador, estava ansiosa pela solução do grande problema brasileiro. Debalde seus conselheiros
lhe aconselhavam prudência e mostravam
a necessidade da abolição gradativa.
Quando subiu ao governo o ministério abolicionista de João Alfredo, que iria
apresentar o projeto de abolição, ela diz a
Cotegipe, partidário do adiamento da lei emancipadora: "Então, ganhei ou
não?…" Ao que respondeu o grande político baiano. "Vossa Alteza ganhou a
partida, mas perdeu o trono."

A parte final da
campanha foi rápida. Havia tal excitação da parte do povo, que seria
imprudente retardar a votação e assinatura da lei, a qual constava de dois
únicos artigos:

"Artigo 1.°
— E’ declarada extinta a escravidão no Brasil. — Artigo 2.° — Revogam-se as
disposições em contrário".   A princesa regente, depois que o projeto de lei
correu todos
os tramites, apressou-se
em assinar, com pena de ouro, a lei que
se chamaria,
na
historia do Brasil de leí áurea. Uma testemunha ocular
do ato, João
Marques,
assim
descreve a
cena da assinatura:
"Eu vi
D. Isabel,
radiante de felicidade,
curvar-se sobre
a mesa e assinar
o
decreto de sua
imortalidade e de sua deposição. Entre
mim
e
ela
não mediava a distância de dois metros. Eu vi Patrocínio pronunciar as palavras
que nunca mais I
se
extinguirão
de
meus ouvidos: "Minha alma sobe de joelhos nestes Paços…" E nós, os
abolicionistas, nos abraçávamos, nos beijávamos, com os olhos luzindo de lágrimas e
com a voz enrouquecida pelos gritos de admiração e de alegria."

Assim chegava a seu termo, naquele gesto
de desprendimento da princesa e naquele gesto de gratidão do tribuno negro, o
grande movimento que empolgara a alma inteira da nação . Comentando esse
acontecimento, escreveu o professor Percy Alvim Martin, da
Universidade de Stanford, nos Estados-Unidos:
"Graças,
pois, às circunstâncias peculiares sob as quais se desenrolou a abolição, o
desaparecimento da escravidão não deixou às demais gerações uma herança de ódio
eterno ou problemas não resolvidos. O problema doméstico mais difícil que o
Brasil teve de afrontar foi resolvido de um modo que reflete o mais alto
crédito para o bom senso, o domínio pessoal e a humanidade do povo
brasileiro".

Brasil, esperança do
mundo

 

TERRA
fecunda e maternal,
que
abriga e dá pão a gen-tes de todas as latitudes e de todos os climas, sem
preconceitos de côr e sem ódios de raça, é o Brasil o cadinho em que se
aprimora, para os séculos vindouros, uma civilização
de caráter cristão e de espírito aberto ao bafejo das idéias nobres e humanas.
Não foi em vão que encharcaram o seu solo o sangue do jesuíta, as lágrimas do
branco saudoso, o suor do negro escravo e lágrimas, suor e sangue dos seus
índios e donos da terra conquistada.

Nas lições de sua história, nos
ensinamentos de sua religião, no exemplo de seus filhos, encontra êle os roteiros
de suas novas "bandeiras", para a conquista dos séculos por vir. Nos
seus mares, nas suas montanhas, nos seus rios, nas suas florestas, nos seus
campos, jazem riquezas sem conta, com que alimentar e enriquecer a todos
quantos trabalhem e ousem. Na sua música, "flor amorosa de três raças
tristes", cantam as saudades dos que por êle morreram c trabalharam, e
ressoam as vozes alegres dos que plasmam no momento a sua grandeza futura.

De braços abertos, como o Cristo enorme
que, no alto da montanha, deixa a descoberto o coração acolhedor, êle também
convida os que são perseguidos, os que têm fome de justiça, os que querem
ganhar honestamente o seu pão, a fazer parte de sua grande família, que une o
negro de carapinha
ao
ariano de cabelo louro, o homem das montanhas ao homem das planícies, o gaúcho
ao amazonense, o homem do litoral ao homem das florestas impervias.

E’ uma terra moça que sente abalar-lhe os
flancos a
dôr forte de produzir e criar. Os seus filhos se erguem "do berço
esplêndido", que Deus lhes deu, para as tarefas laboriosas da construção
de uma grande pátria, de uma pátria em que a liberdade seja religiosamente respeitada,
em que não se humilhe nem escravize ninguém com os mitos da força, da raça e da
classe. A essa tarefa de civilização e de grandeza convoca o Brasil todos os
homens de boa vontade. A sua bandeira acena a todos quantos queiram trabalhar e
criar. A terra é dadivosa e boa, como dela já dizia o escrivão
Caminha.   E os seus homens
podem não ser arianos puros, mas são humanos e são cristãos.

O Brasil, pela sua extensão e pela sua
riqueza, pela sua inteligência e pela sua humanidade, é ainda a esperança do
mundo, que as "idéias loucas" devastam. Bem viu o seu poeta genial,
Castro Alves, o grande símbolo de sua bandeira, quando cantou:

 

"Auriverde pendão de
minha terra
Que a brisa do Brasil beija e balança.
Estandarte que a luz do sol
encerra
E
as
promessas divinas da esperança.. .**

 


Fonte: Maravilhas do Conhecimento Humano, 1949. Complemento ao livro de Oscar Mendes.


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