CARTA ENCÍCLICA
FIDES ET RATIO
DO SUMO PONTÍFICE
JOÃO PAULO II
AOS BISPOS DA IGREJA CATÓLICA
SOBRE AS RELAÇÕES
ENTRE FÉ E RAZÃO
Venerados Irmãos no Episcopado,
saúde e Bênção Apostólica!
A fé e a razão (fides et ratio) constituem como
que as duas asas pelas quais o espírito humano se eleva para a
contemplação da verdade. Foi Deus quem colocou no coração
do homem o desejo de conhecer a verdade e, em última análise,
de O conhecer a Ele, para que, conhecendo-O e amando-O, possa chegar também
à verdade plena sobre si próprio (cf. Ex 33, 18;
Sal 2726, 8-9; 6362, 2-3; Jo 14, 8; 1 Jo 3, 2).
INTRODUÇÃO
CONHECE-TE A TI MESMO
1. Tanto no Oriente como no Ocidente, é possível entrever
um caminho que, ao longo dos séculos, levou a humanidade a
encontrar-se progressivamente com a verdade e a confrontar-se com ela. É
um caminho que se realizou — nem podia ser de outro modo — no âmbito
da autoconsciência pessoal: quanto mais o homem conhece a realidade
e o mundo, tanto mais se conhece a si mesmo na sua unicidade, ao mesmo
tempo que nele se torna cada vez mais premente a questão do sentido
das coisas e da sua própria existência. O que chega a ser
objecto do nosso conhecimento, torna-se por isso mesmo parte da nossa
vida. A recomendação conhece-te a ti mesmo estava
esculpida no dintel do templo de Delfos, para testemunhar uma verdade
basilar que deve ser assumida como regra mínima de todo o homem que
deseje distinguir-se, no meio da criação inteira, pela sua
qualificação de « homem », ou seja, enquanto «conhecedor
de si mesmo ».
Aliás, basta um simples olhar pela história antiga para
ver com toda a clareza como surgiram simultaneamente, em diversas partes
da terra animadas por culturas diferentes, as questões fundamentais
que caracterizam o percurso da existência humana: Quem sou eu?
Donde venho e para onde vou? Porque existe o mal? O que é que
existirá depois desta vida? Estas perguntas encontram-se nos
escritos sagrados de Israel, mas aparecem também nos Vedas e no
Avestá; achamo-las tanto nos escritos de Confúcio e Lao-Tze,
como na pregação de Tirtankara e de Buda; e assomam ainda
quer nos poemas de Homero e nas tragédias de Eurípides e Sófocles,
quer nos tratados filosóficos de Platão e Aristóteles.
São questões que têm a sua fonte comum naquela exigência
de sentido que, desde sempre, urge no coração do homem: da
resposta a tais perguntas depende efectivamente a orientação
que se imprime à existência.
2. A Igreja não é alheia, nem pode sê-lo, a este
caminho de pesquisa. Desde que recebeu, no Mistério Pascal, o dom
da verdade última sobre a vida do homem, ela fez-se peregrina pelas
estradas do mundo, para anunciar que Jesus Cristo é « o
caminho, a verdade e a vida » (Jo 14, 6). De entre os vários
serviços que ela deve oferecer à humanidade, há um
cuja responsabilidade lhe cabe de modo absolutamente peculiar: é a
diaconia da verdade. (1) Por um lado, esta missão torna a
comunidade crente participante do esforço comum que a humanidade
realiza para alcançar a verdade, (2) e, por outro, obriga-a a
empenhar-se no anúncio das certezas adquiridas, ciente todavia de
que cada verdade alcançada é apenas mais uma etapa rumo àquela
verdade plena que se há–de manifestar na última revelação
de Deus: « Hoje vemos como por um espelho, de maneira confusa, mas
então veremos face a face. Hoje conheço de maneira
imperfeita, então conhecerei exactamente » (1 Cor 13,
12).
3. Variados são os recursos que o homem possui para progredir no
conhecimento da verdade, tornando assim cada vez mais humana a sua existência.
De entre eles sobressai a filosofia, cujo contributo específico
é colocar a questão do sentido da vida e esboçar a
resposta: constitui, pois, uma das tarefas mais nobres da humanidade. O
termo filosofia significa, segundo a etimologia grega, « amor à
sabedoria ». Efectivamente a filosofia nasceu e começou a
desenvolver-se quando o homem principiou a interrogar-se sobre o porquê
das coisas e o seu fim. Ela demonstra, de diferentes modos e formas, que o
desejo da verdade pertence à própria natureza do homem.
Interrogar-se sobre o porquê das coisas é uma propriedade
natural da sua razão, embora as respostas, que esta aos poucos vai
dando, se integrem num horizonte que evidencia a complementaridade das
diferentes culturas onde o homem vive.
A grande incidência que a filosofia teve na formação
e desenvolvimento das culturas do Ocidente não deve fazer-nos
esquecer a influência que a mesma exerceu também nos modos de
conceber a existência presentes no Oriente. Na realidade, cada povo
possui a sua própria sabedoria natural, que tende, como autêntica
riqueza das culturas, a exprimir-se e a maturar em formas propriamente
filosóficas. Prova da verdade de tudo isto é a existência
duma forma basilar de conhecimento filosófico, que perdura até
aos nossos dias e que se pode constatar nos próprios postulados em
que as várias legislações nacionais e internacionais
se inspiram para regular a vida social.
4. Deve-se assinalar, porém, que, por detrás dum único
termo, se escondem significados diferentes. Por isso, é necessária
uma explicitação preliminar. Impelido pelo desejo de
descobrir a verdade última da existência, o homem procura
adquirir aqueles conhecimentos universais que lhe permitam uma melhor
compreensão de si mesmo e progredir na sua realização.
Os conhecimentos fundamentais nascem da maravilha que nele suscita
a contemplação da criação: o ser humano
enche-se de encanto ao descobrir-se incluído no mundo e relacionado
com outros seres semelhantes, com quem partilha o destino. Parte daqui o
caminho que o levará, depois, à descoberta de horizontes de
conhecimentos sempre novos. Sem tal assombro, o homem tornar-se-ia
repetitivo e, pouco a pouco, incapaz de uma existência
verdadeiramente pessoal.
A capacidade reflexiva própria do intelecto humano permite
elaborar, através da actividade filosófica, uma forma de
pensamento rigoroso, e assim construir, com coerência lógica
entre as afirmações e coesão orgânica dos conteúdos,
um conhecimento sistemático. Graças a tal processo, alcançaram-se,
em contextos culturais diversos e em diferentes épocas históricas,
resultados que levaram à elaboração de verdadeiros
sistemas de pensamento. Historicamente isto gerou muitas vezes a tentação
de identificar uma única corrente com o pensamento filosófico
inteiro. Mas, nestes casos, é claro que entra em jogo uma certa «soberba
filosófica », que pretende arvorar em leitura universal a própria
perspectiva e visão imperfeita. Na realidade, cada sistema filosófico,
sempre no respeito da sua integridade e livre de qualquer instrumentalização,
deve reconhecer a prioridade do pensar filosófico de que
teve origem e ao qual deve coerentemente servir.
Neste sentido, é possível, não obstante a mudança
dos tempos e os progressos do saber, reconhecer um núcleo de
conhecimentos filosóficos, cuja presença é constante
na história do pensamento. Pense-se, só como exemplo, nos
princípios de não-contradição, finalidade,
causalidade, e ainda na concepção da pessoa como sujeito
livre e inteligente, e na sua capacidade de conhecer Deus, a verdade, o
bem; pense-se, além disso, em algumas normas morais fundamentais
que geralmente são aceites por todos. Estes e outros temas indicam
que, para além das correntes de pensamento, existe um conjunto de
conhecimentos, nos quais é possível ver uma espécie
de património espiritual da humanidade. É como se nos
encontrássemos perante uma filosofia implícita, em
virtude da qual cada um sente que possui estes princípios, embora
de forma genérica e não reflectida. Estes conhecimentos,
precisamente porque partilhados em certa medida por todos, deveriam
constituir uma espécie de ponto de referência para as
diversas escolas filosóficas. Quando a razão consegue intuir
e formular os princípios primeiros e universais do ser, e deles
deduzir correcta e coerentemente conclusões de ordem lógica
e deontológica, então pode-se considerar uma razão
recta, ou, como era chamada pelos antigos, orthòs logos,
recta ratio.
5. A Igreja, por sua vez, não pode deixar de apreciar o esforço
da razão na consecução de objectivos que tornem cada
vez mais digna a existência pessoal. Na verdade, ela vê, na
filosofia, o caminho para conhecer verdades fundamentais relativas à
existência do homem. Ao mesmo tempo, considera a filosofia uma ajuda
indispensável para aprofundar a compreensão da fé e
comunicar a verdade do Evangelho a quantos não a conhecem ainda.
Na sequência de iniciativas análogas dos meus
Predecessores, desejo também eu debruçar-me sobre esta
actividade peculiar da razão. Faço-o movido pela constatação,
sobretudo em nossos dias, de que a busca da verdade última aparece
muitas vezes ofuscada. A filosofia moderna possui, sem dúvida, o
grande mérito de ter concentrado a sua atenção sobre
o homem. Partindo daí, uma razão cheia de interrogativos
levou por diante o seu desejo de conhecer sempre mais ampla e
profundamente. Desta forma, foram construídos sistemas de
pensamento complexos, que deram os seus frutos nos diversos âmbitos
do conhecimento, favorecendo o progresso da cultura e da história.
A antropologia, a lógica, as ciências da natureza, a história,
a linguística, de algum modo todo o universo do saber foi abarcado.
Todavia, os resultados positivos alcançados não devem levar
a transcurar o facto de que essa mesma razão, porque ocupada a
investigar de maneira unilateral o homem como objecto, parece ter-se
esquecido de que este é sempre chamado a voltar-se também
para uma realidade que o transcende. Sem referência a esta, cada um
fica ao sabor do livre arbítrio, e a sua condição de
pessoa acaba por ser avaliada com critérios pragmáticos
baseados essencialmente sobre o dado experimental, na errada convicção
de que tudo deve ser dominado pela técnica. Foi assim que a razão,
sob o peso de tanto saber, em vez de exprimir melhor a tensão para
a verdade, curvou-se sobre si mesma, tornando-se incapaz, com o passar do
tempo, de levantar o olhar para o alto e de ousar atingir a verdade do
ser. A filosofia moderna, esquecendo-se de orientar a sua pesquisa para o
ser, concentrou a própria investigação sobre o
conhecimento humano. Em vez de se apoiar sobre a capacidade que o homem
tem de conhecer a verdade, preferiu sublinhar as suas limitações
e condicionalismos.
Daí provieram várias formas de agnosticismo e relativismo,
que levaram a investigação filosófica a perder-se nas
areias movediças dum cepticismo geral. E, mais recentemente,
ganharam relevo diversas doutrinas que tendem a desvalorizar até
mesmo aquelas verdades que o homem estava certo de ter alcançado. A
legítima pluralidade de posições cedeu o lugar a um
pluralismo indefinido, fundado no pressuposto de que todas as posições
são equivalentes: trata-se de um dos sintomas mais difusos, no
contexto actual, de desconfiança na verdade. E esta ressalva vale
também para certas concepções de vida originárias
do Oriente: é que negam à verdade o seu carácter
exclusivo, ao partirem do pressuposto de que ela se manifesta de modo
igual em doutrinas diversas ou mesmo contraditórias entre si. Neste
horizonte, tudo fica reduzido a mera opinião. Dá a impressão
de um movimento ondulatório: enquanto, por um lado, a razão
filosófica conseguiu avançar pela estrada que a torna cada
vez mais atenta à existência humana e às suas formas
de expressão, por outro tende a desenvolver considerações
existenciais, hermenêuticas ou linguísticas, que prescindem
da questão radical relativa à verdade da vida pessoal, do
ser e de Deus. Como consequência, despontaram, não só
em alguns filósofos mas no homem contemporâneo em geral,
atitudes de desconfiança generalizada quanto aos grandes recursos
cognoscitivos do ser humano. Com falsa modéstia, contentam-se de
verdades parciais e provisórias, deixando de tentar pôr as
perguntas radicais sobre o sentido e o fundamento último da vida
humana, pessoal e social. Em suma, esmoreceu a esperança de se
poder receber da filosofia respostas definitivas a tais questões.
6. Credenciada pelo facto de ser depositária da revelação
de Jesus Cristo, a Igreja deseja reafirmar a necessidade da reflexão
sobre a verdade. Foi por este motivo que decidi dirigir-me a vós,
venerados Irmãos no Episcopado, com quem partilho a missão
de anunciar « abertamente a verdade » (2 Cor 4, 2), e
dirigir-me também aos teólogos e filósofos a quem
compete o dever de investigar os diversos aspectos da verdade, e ainda a
quantos andam à procura duma resposta, para comunicar algumas
reflexões sobre o caminho que conduz à verdadeira sabedoria,
a fim de que todo aquele que tiver no coração o amor por ela
possa tomar a estrada certa para a alcançar, e nela encontrar
repouso para a sua fadiga e também satisfação
espiritual.
Tomo esta iniciativa impelido, antes de mais, pela certeza de que os
Bispos, como assinala o Concílio Vaticano II, são «
testemunhas da verdade divina e católica » (3). Por isso,
testemunhar a verdade é um encargo que nos foi confiado a nós,
os Bispos; não podemos renunciar a ele, sem faltar ao ministério
que recebemos. Reafirmando a verdade da fé, podemos restituir ao
homem de hoje uma genuína confiança nas suas capacidades
cognoscitivas e oferecer à filosofia um estímulo para poder
recuperar e promover a sua plena dignidade.
Há um segundo motivo que me induz a escrever estas reflexões
Na carta encíclica Veritatis splendor, chamei a atenção
para « algumas verdades fundamentais da doutrina católica que,
no contexto actual, correm o risco de serem deformadas ou negadas ».
(4) Com este novo documento, desejo continuar aquela reflexão,
concentrando a atenção precisamente sobre o tema da verdade
e sobre o seu fundamento em relação com a fé.
De facto, não se pode negar que este período, de mudanças
rápidas e complexas, deixa sobretudo os jovens, a quem pertence e
de quem depende o futuro, na sensação de estarem privados de
pontos de referência autênticos. A necessidade de um alicerce
sobre o qual construir a existência pessoal e social faz-se sentir
de maneira premente, principalmente quando se é obrigado a
constatar o carácter fragmentário de propostas que elevam o
efémero ao nível de valor, iludindo assim a possibilidade de
se alcançar o verdadeiro sentido da existência. Deste modo,
muitos arrastam a sua vida quase até à borda do precipício,
sem saber o que os espera. Isto depende também do facto de, às
vezes, quem era chamado por vocação a exprimir em formas
culturais o fruto da sua reflexão, ter desviado o olhar da verdade,
preferindo o sucesso imediato ao esforço duma paciente investigação
sobre aquilo que merece ser vivido. A filosofia, que tem a grande
responsabilidade de formar o pensamento e a cultura através do
apelo perene à busca da verdade, deve recuperar vigorosamente a sua
vocação originária. É por isso que senti a
necessidade e o dever de intervir sobre este tema, para que, no limiar do
terceiro milénio da era cristã, a humanidade tome consciência
mais clara dos grandes recursos que lhe foram concedidos, e se empenhe com
renovada coragem no cumprimento do plano de salvação, no
qual está inserida a sua história.
CAPÍTULO I
A REVELAÇÃO
DA SABEDORIA DE DEUS
1. Jesus, revelador do Pai
7. Na base de toda a reflexão feita pela Igreja, está a
consciência de ser depositária duma mensagem, que tem a sua
origem no próprio Deus (cf. 2 Cor 4, 1-2). O conhecimento
que ela propõe ao homem, não provém de uma reflexão
sua, nem sequer da mais alta, mas de ter acolhido na fé a palavra
de Deus (cf. 1 Tes 2, 13). Na origem do nosso ser crentes existe
um encontro, único no seu género, que assinala a abertura de
um mistério escondido durante tantos séculos (cf. 1 Cor
2, 7; Rom 16, 25-26), mas agora revelado: « Aprouve a
Deus, na sua bondade e sabedoria, revelar-Se a Si mesmo e dar a conhecer o
mistério da sua vontade (cf. Ef 1, 9), segundo o qual os
homens, por meio de Cristo, Verbo encarnado, têm acesso ao Pai no
Espírito Santo e se tornam participantes da natureza divina ».
(5) Trata-se de uma iniciativa completamente gratuita, que parte de Deus e
vem ao encontro da humanidade para a salvar. Enquanto fonte de amor, Deus
deseja dar-Se a conhecer, e o conhecimento que o homem adquire d’Ele leva
à plenitude qualquer outro conhecimento verdadeiro que a sua mente
seja capaz de alcançar sobre o sentido da própria existência.
8. Retomando quase literalmente a doutrina presente na constituição
Dei Filius do Concílio Vaticano I e tendo em conta os princípios
propostos pelo Concílio de Trento, a constituição
Dei Verbum do Vaticano II continuou aquele caminho plurissecular
de compreensão da fé, reflectindo sobre a Revelação
à luz da doutrina bíblica e de toda a tradição
patrística. No primeiro Concílio do Vaticano, os Padres
tinham sublinhado o carácter sobrenatural da revelação
de Deus. A crítica racionalista que então se fazia sentir
contra a fé, baseada em teses erradas mas muito difusas, insistia
sobre a negação de qualquer conhecimento que não
fosse fruto das capacidades naturais da razão. Isto obrigara o Concílio
a reafirmar vigorosamente que, além do conhecimento da razão
humana, por sua natureza, capaz de chegar ao Criador, existe um
conhecimento que é peculiar da fé. Este conhecimento exprime
uma verdade que se funda precisamente no facto de Deus que Se revela, e é
uma verdade certíssima porque Deus não Se engana nem quer
enganar. (6)
9. Por isso, o Concílio Vaticano I ensina que a verdade alcançada
pela via da reflexão filosófica e a verdade da Revelação
não se confundem, nem uma torna a outra supérflua: «
Existem duas ordens de conhecimento, diversas não apenas pelo seu
princípio, mas também pelo objecto. Pelo seu princípio,
porque, se num conhecemos pela razão natural, no outro fazêmo-lo
por meio da fé divina; pelo objecto, porque, além das
verdades que a razão natural pode compreender, é-nos
proposto ver os mistérios escondidos em Deus, que só podem
ser conhecidos se nos forem revelados do Alto ». (7) A fé, que
se fundamenta no testemunho de Deus e conta com a ajuda sobrenatural da
graça, pertence efectivamente a uma ordem de conhecimento diversa
da do conhecimento filosófico. De facto, este assenta sobre a
percepção dos sentidos, sobre a experiência, e move-se
apenas com a luz do intelecto. A filosofia e as ciências situam-se
na ordem da razão natural, enquanto a fé, iluminada e guiada
pelo Espírito, reconhece na mensagem da salvação a «
plenitude de graça e de verdade » (cf. Jo 1, 14) que
Deus quis revelar na história, de maneira definitiva, por meio do
seu Filho Jesus Cristo (cf. 1 Jo 5, 9; Jo 5, 31-32).
10. No Concílio Vaticano II, os Padres, fixando a atenção
sobre Jesus revelador, ilustraram o carácter salvífico da
revelação de Deus na história e exprimiram a sua
natureza do seguinte modo: « Em virtude desta revelação,
Deus invisível (cf. Col 1, 15; 1 Tim 1, 17), na
riqueza do seu amor, fala aos homens como amigos (cf. Ex 33, 11;
Jo 15, 14-15) e convive com eles (cf. Bar 3, 38), para os
convidar e admitir à comunhão com Ele. Esta economia da
Revelação realiza-se por meio de acções e
palavras intimamente relacionadas entre si, de tal maneira que as obras,
realizadas por Deus na história da salvação,
manifestam e confirmam a doutrina e as realidades significadas pelas
palavras; e as palavras, por sua vez, declaram as obras e esclarecem o
mistério nelas contido. Porém, a verdade profunda tanto a
respeito de Deus como a respeito da salvação dos homens
manifesta-se-nos, por esta Revelação, em Cristo, que é
simultaneamente o mediador e a plenitude de toda a revelação
». (8)
11. Assim, a revelação de Deus entrou no tempo e na história.
Mais, a encarnação de Jesus Cristo realiza-se na «
plenitude dos tempos » (Gal 4, 4). À distância
de dois mil anos deste acontecimento, sinto o dever de reafirmar
intensamente que, « no cristianismo, o tempo tem uma importância
fundamental ». (9) Com efeito, é nele que tem lugar toda a
obra da criação e da salvação, e sobretudo
merece destaque o facto de que, com a encarnação do Filho de
Deus, vivemos e antecipamos desde já aquilo que se seguirá
ao fim dos tempos (cf. Heb 1, 2).
A verdade que Deus confiou ao homem a respeito de Si mesmo e da sua vida
insere-se, portanto, no tempo e na história. Sem dúvida,
aquela foi pronunciada uma vez por todas no mistério de Jesus de
Nazaré. Afirma-o, com palavras muito expressivas, a constituição
Dei Verbum: « Depois de ter falado muitas vezes e de muitos
modos pelos profetas, falou-nos Deus nestes nossos dias, que são os
últimos, através de seu Filho (Heb 1, 1-2). Com
efeito, enviou o seu Filho, isto é, o Verbo eterno, que ilumina
todos os homens, para habitar entre os homens e manifestar-lhes a vida íntima
de Deus (cf. Jo 1, 1-18). Jesus Cristo, Verbo feito carne, enviado
como homem para os homens, "fala, portanto, as palavras de Deus"
(Jo 3, 34) e consuma a obra de salvação que o Pai
Lhe mandou realizar (cf. Jo 5, 36; 17, 4). Por isso, Ele — vê-l’O
a Ele é ver o Pai (cf. Jo 14, 9) —, com toda a sua
presença e manifestação da sua pessoa, com palavras e
obras, sinais e milagres, e sobretudo com a sua morte e gloriosa ressurreição,
e enfim, com o envio do Espírito de verdade, completa totalmente e
confirma com o testemunho divino a Revelação ». (10)
Assim, a história constitui um caminho que o Povo de Deus há-de
percorrer inteiramente, de tal modo que a verdade revelada possa exprimir
em plenitude os seus conteúdos, graças à acção
incessante do Espírito Santo (cf. Jo 16, 13). Ensina-o também
a constituição Dei Verbum, quando afirma que «
a Igreja, no decurso dos séculos, tende continuamente para a
plenitude da verdade divina, até que nela se realizem as palavras
de Deus ». (11)
12. A história torna-se, assim, o lugar onde podemos constatar a
acção de Deus em favor da humanidade. Ele vem ter connosco,
servindo-Se daquilo que nos é mais familiar e mais fácil de
verificar, ou seja, o nosso contexto quotidiano, fora do qual não
conseguiríamos entender-nos.
A encarnação do Filho de Deus permite ver realizada uma síntese
definitiva que a mente humana, por si mesma, nem sequer poderia imaginar:
o Eterno entra no tempo, o Tudo esconde-se no fragmento, Deus assume o
rosto do homem. Deste modo, a verdade expressa na revelação
de Cristo deixou de estar circunscrita a um restrito âmbito
territorial e cultural, abrindo-se a todo o homem e mulher que a queira
acolher como palavra definitivamente válida para dar sentido à
existência. Agora todos têm acesso ao Pai, em Cristo; de
facto, com a sua morte e ressurreição, Ele concedeu-nos a
vida divina que o primeiro Adão tinha rejeitado (cf. Rom 5,
12-15). Com esta Revelação, é oferecida ao homem a
verdade última a respeito da própria vida e do destino da
história: « Na realidade, o mistério do homem só
no mistério do Verbo encarnado se esclarece verdadeiramente »,
afirma a constituição Gaudium et spes. (12) Fora
desta perspectiva, o mistério da existência pessoal permanece
um enigma insolúvel. Onde poderia o homem procurar resposta para
questões tão dramáticas como a dor, o sofrimento do
inocente e a morte, a não ser na luz que dimana do mistério
da paixão, morte e ressurreição de Cristo?
2. A razão perante o mistério
13. Entretanto, não se pode esquecer que a Revelação
permanece envolvida no mistério. Jesus, com toda a sua vida, revela
seguramente o rosto do Pai, porque Ele veio para manifestar os segredos de
Deus; (13) e contudo, o conhecimento que possuímos daquele rosto,
está marcado sempre pelo carácter parcial e limitado da
nossa compreensão. Somente a fé permite entrar dentro do
mistério, proporcionando uma sua compreensão coerente.
O Concílio ensina que, « a Deus que revela, é devida
a obediência da fé ». (14) Com esta breve mas densa
afirmação, é indicada uma verdade fundamental do
cristianismo. Diz-se, em primeiro lugar, que a fé é uma
resposta de obediência a Deus. Isto implica que Ele seja reconhecido
na sua divindade, transcendência e liberdade suprema. Deus que Se dá
a conhecer na autoridade da sua transcendência absoluta, traz
consigo também a credibilidade dos conteúdos que revela.
Pela fé, o homem presta assentimento a esse testemunho
divino. Isto significa que reconhece plena e integralmente a verdade de
tudo o que foi revelado, porque é o próprio Deus que o
garante. Esta verdade, oferecida ao homem sem que ele a possa exigir,
insere-se no horizonte da comunicação interpessoal e impele
a razão a abrir-se a esta e a acolher o seu sentido profundo. É
por isso que o acto pelo qual nos entregamos a Deus, sempre foi
considerado pela Igreja como um momento de opção
fundamental, que envolve a pessoa inteira. Inteligência e vontade põem
em acção o melhor da sua natureza espiritual, para consentir
que o sujeito realize um acto no pleno exercício da sua liberdade
pessoal. (15) Na fé, portanto, não basta a liberdade estar
presente, exige-se que entre em acção. Mais, é a fé
que permite a cada um exprimir, do melhor modo, a sua própria
liberdade. Por outras palavras, a liberdade não se realiza nas opções
contra Deus. Na verdade, como poderia ser considerado um uso autêntico
da liberdade, a recusa de se abrir àquilo que permite a realização
de si mesmo? No acreditar é que a pessoa realiza o acto mais
significativo da sua existência; de facto, nele a liberdade alcança
a certeza da verdade e decide viver nela.
Em auxílio da razão, que procura a compreensão do
mistério, vêm também os sinais presentes na Revelação.
Estes servem para conduzir mais longe a busca da verdade e permitir que a
mente possa autonomamente investigar inclusive dentro do mistério.
De qualquer modo, se, por um lado, esses sinais dão maior força
à razão, porque lhe permitem pesquisar dentro do mistério
com os seus próprios meios, de que ela justamente se sente ciosa,
por outro lado, impelem-na a transcender a sua realidade de sinais para
apreender o significado ulterior de que eles são portadores.
Portanto, já há neles uma verdade escondida, para a qual
encaminham a mente e da qual esta não pode prescindir sem destruir
o próprio sinal que lhe foi proposto.
Chega-se, assim, ao horizonte sacramental da Revelação
e de forma particular ao sinal eucarístico, onde a união
indivisível entre a realidade e o respectivo significado permite
identificar a profundidade do mistério. Na Eucaristia, Cristo está
verdadeiramente presente e vivo, actua pelo seu Espírito, mas, como
justamente diz S. Tomás, « nada vês nem compreendes, mas
t’o afirma a fé mais viva, para além das leis da Terra. Sob
espécies diferentes, que não passam de sinais, é que
está o dom de Deus ». (16) Temos um eco disto mesmo nas
seguintes palavras do filósofo Pascal: « Como Jesus Cristo
passou despercebido no meio dos homens, assim a sua verdade permanece,
entre as opiniões comuns, sem diferença exterior. O mesmo se
dá com a Eucaristia relativamente ao pão comum ».(17)
Em resumo, o conhecimento da fé não anula o mistério;
torna-o apenas mais evidente e apresenta-o como um facto essencial para a
vida do homem: Cristo Senhor, « na própria revelação
do mistério do Pai e do seu amor, revela o homem a si mesmo e
descobre-lhe a sua vocação sublime », (18) que é
participar no mistério da vida trinitária de Deus. (19)
14. A doutrina do primeiro e segundo Concílio do Vaticano abre um
horizonte verdadeiramente novo também ao saber filosófico. A
Revelação coloca dentro da história um ponto de referência
de que o homem não pode prescindir, se quiser chegar a compreender
o mistério da sua existência; mas, por outro lado, este
conhecimento apela constantemente para o mistério de Deus que a
mente não consegue abarcar, mas apenas receber e acolher na fé.
Entre estes dois momentos, a razão possui o seu espaço
peculiar que lhe permite investigar e compreender, sem ser limitada por
nada mais que a sua finitude ante o mistério infinito de Deus.
A Revelação introduz, portanto, na nossa história
uma verdade universal e última que leva a mente do homem a nunca
mais se deter; antes, impele-a a ampliar continuamente os espaços
do próprio conhecimento até sentir que realizou tudo o que
estava ao seu alcance, sem nada descurar. Ajuda-nos, nesta reflexão,
uma das inteligências mais fecundas e significativas da história
da humanidade, à qual obrigatoriamente fazem referência a
filosofia e a teologia: Santo Anselmo. Na sua obra, Proslogion, o
Arcebispo de Cantuária exprime-se assim: « Detendo-me com
frequência e atenção a pensar neste problema, sucedia
umas vezes que me parecia estar para agarrar o que buscava, outras vezes,
pelo contrário, furtava-se completamente ao meu pensamento; até
que finalmente, desesperado de o poder achar, decidi deixar de procurar
algo que me era impossível encontrar. Mas, quando quis afastar de
mim tal pensamento para que a sua ocupação da minha mente não
me alheasse de outros problemas de que podia tirar algum proveito, foi então
que começou a apresentar-se cada vez mais teimoso. (…) Mas, pobre
de mim, um dos pobres filhos de Eva, longe de Deus, o que é que
comecei a fazer e o que é que consegui? O que é que visava e
a que ponto cheguei? A que é que aspirava e por que é que
suspiro? (…) Ó Senhor, Vós não sois apenas algo
acerca do qual não se pode pensar nada de maior (non solum es
quo maius cogitari nequit), mas sois maior de tudo o que se possa
pensar (quiddam maius quam cogitari possit) (…). Se não fôsseis
o que sois, poder-se-ia pensar algo maior do que Vós, mas isso é
impossível ». (20)
15. A verdade da revelação cristã, que se encontra
em Jesus de Nazaré, permite a quemquer que seja perceber o «
mistério » da própria vida. Enquanto verdade suprema,
ao mesmo tempo que respeita a autonomia da criatura e a sua liberdade,
obriga-a a abrir-se à transcendência. Aqui, a relação
entre liberdade e verdade atinge o seu máximo grau, podendo-se
compreender plenamente esta palavra do Senhor: « Conhecereis a
verdade e a verdade libertar-vos-á » (Jo 8, 32).
A revelação cristã é a verdadeira estrela de
orientação para o homem, que avança por entre os
condicionalismos da mentalidade imanentista e os reducionismos duma lógica
tecnocrática; é a última possibilidade oferecida por
Deus, para reencontrar em plenitude aquele projecto primordial de amor que
teve início com a criação. Ao homem ansioso de
conhecer a verdade — se ainda é capaz de ver para além
de si mesmo e levantar os olhos acima dos seus próprios projectos —
é-lhe concedida a possibilidade de recuperar a genuína relação
com a sua vida, seguindo a estrada da verdade. Podem-se aplicar a esta
situação as seguintes palavras do Deuteronómio: «
A lei que hoje te imponho não está acima das tuas forças
nem fora do teu alcance. Não está no céu, para que
digas: "Quem subirá por nós ao céu e no-la irá
buscar?" Não está tão pouco do outro lado do
mar, para que digas: "Quem atravessará o mar para no-la buscar
e no-la fazer ouvir para que a observemos?" Não, ela está
muito perto de ti: está na tua boca e no teu coração;
e tu podes cumpri-la » (30, 11-14). Temos um eco deste texto no
famoso pensamento do filósofo e teólogo Santo Agostinho: «
Noli foras ire, in te ipsum redi. In interiore homine habitat veritas
». (21)
À luz destas considerações, impõe-se uma
primeira conclusão: a verdade que a Revelação nos dá
a conhecer não é o fruto maduro ou o ponto culminante dum
pensamento elaborado pela razão. Pelo contrário, aquela
apresenta-se com a característica da gratuidade, obriga a pensá-la,
e pede para ser acolhida, como expressão de amor. Esta verdade
revelada é a presença antecipada na nossa história
daquela visão última e definitiva de Deus, que está
reservada para quantos acreditam n’Ele ou O procuram de coração
sincero. Assim, o fim último da existência pessoal é
objecto de estudo quer da filosofia, quer da teologia. Embora com meios e
conteúdos diversos, ambas apontam para aquele « caminho da
vida » (Sal 1615, 11) que, segundo nos diz a fé, tem o
seu termo último de chegada na alegria plena e duradoura da
contemplação de Deus Uno e Trino.
CAPÍTULO II
CREDO UT INTELLEGAM
1. « A sabedoria sabe e compreende todas as coisas»
(Sab9, 11)
16. Quão profunda seja a ligação entre o
conhecimento da fé e o da razão, já a Sagrada
Escritura no-lo indica com elementos de uma clareza surpreendente.
Comprovam-no sobretudo os Livros Sapienciais. O que impressiona na
leitura, feita sem preconceitos, dessas páginas da Sagrada
Escritura é o facto de estes textos conterem não apenas a fé
de Israel, mas também o tesouro de civilizações e
culturas já desaparecidas. Como se de um desígnio particular
se tratasse, o Egipto e a Mesopotâmia fazem ouvir novamente a sua
voz, e alguns traços comuns das culturas do Antigo Oriente
ressurgem nestas páginas ricas de intuições
singularmente profundas.
Não é por acaso que o autor sagrado, ao querer descrever o
homem sábio, o apresenta como aquele que ama e busca a verdade: «
Feliz o homem que é constante na sabedoria, e que discorre com a
sua inteligência; que repassa no seu coração os
caminhos da sabedoria, e que penetra no conhecimento dos seus segredos;
vai atrás dela como quem lhe segue o rasto, e permanece nos seus
caminhos; olha pelas suas janelas, e escuta às suas portas; repousa
junto da sua morada, e fixa um pilar nas suas paredes; levanta a sua tenda
junto dela, e estabelece ali agradável morada; coloca os seus
filhos debaixo da sua protecção, e ele mesmo morará
debaixo dos seus ramos; à sua sombra estará defendido do
calor, e repousará na sua glória » (Sir 14,
20-27).
Para o autor inspirado, como se vê, o desejo de conhecer é
uma característica comum a todos os homens. Graças à
inteligência, é dada a todos, crentes e descrentes, a
possibilidade de « saciarem-se nas águas profundas » do
conhecimento (cf. Prov 20, 5). Seguramente, no Antigo Israel, o
conhecimento do mundo e dos seus fenómenos não se realizava
pela via da abstracção, como já o fazia o filósofo
jónico ou o sábio egípcio. E menos ainda podia o bom
israelita conceber o conhecimento nos parâmetros próprios da época
moderna, mais propensa à subdivisão do saber. Apesar disso,
o mundo bíblico fez confluir, para o grande mar da teoria do
conhecimento, o seu contributo original.
Qual? O carácter peculiar do texto bíblico reside na
convicção de que existe uma unidade profunda e indivisível
entre o conhecimento da razão e o da fé. O mundo e o que
nele acontece, assim como a história e as diversas vicissitudes da
nação são realidades observadas, analisadas e
julgadas com os meios próprios da razão, mas sem deixar a fé
alheia a este processo. Esta não intervém para humilhar a
autonomia da razão, nem para reduzir o seu espaço de acção,
mas apenas para fazer compreender ao homem que, em tais acontecimentos, Se
torna visível e actua o Deus de Israel. Assim, não é
possível conhecer profundamente o mundo e os factos da história,
sem ao mesmo tempo professar a fé em Deus que neles actua. A fé
aperfeiçoa o olhar interior, abrindo a mente para descobrir, no
curso dos acontecimentos, a presença operante da Providência.
A tal propósito, é significativa uma expressão do
livro dos Provérbios: « A mente do homem dispõe o seu
caminho, mas é o Senhor quem dirige os seus passos » (16, 9). É
como se dissesse que o homem, pela luz da razão, pode reconhecer a
sua estrada, mas percorrê-la de maneira decidida, sem obstáculos
e até ao fim, ele só o consegue se, de ânimo recto,
integrar a sua pesquisa no horizonte da fé. Por isso, a razão
e a fé não podem ser separadas, sem fazer com que o homem
perca a possibilidade de conhecer de modo adequado a si mesmo, o mundo e
Deus.
17. Não há motivo para existir concorrência entre a
razão e a fé: uma implica a outra, e cada qual tem o seu
espaço próprio de realização. Aponta nesta
direcção o livro dos Provérbios, quando exclama: «
A glória de Deus é encobrir as coisas, e a glória dos
reis é investigá-las » (25, 2). Deus e o homem estão
colocados, em seu respectivo mundo, numa relação única.
Em Deus reside a origem de tudo, n’Ele se encerra a plenitude do mistério,
e isto constitui a sua glória; ao homem, pelo contrário,
compete o dever de investigar a verdade com a razão, e nisto está
a sua nobreza. Um novo ladrilho é colocado neste mosaico pelo
Salmista, quando diz: « Quão insondáveis para mim, ó
Deus, vossos pensamentos! Quão imenso o seu número! Quisera
contá-los, são mais que as areias; se pudesse chegar ao fim,
estaria ainda convosco » (139/ 138, 17-18). O desejo de conhecer é
tão grande e comporta tal dinamismo que o coração do
homem, ao tocar o limite intransponível, suspira pela riqueza
infinita que se encontra para além deste, por intuir que nela está
contida a resposta cabal para toda a questão ainda sem resposta.
18. Podemos, pois, dizer que Israel, com a sua reflexão, soube
abrir à razão o caminho para o mistério. Na revelação
de Deus, pôde sondar em profundidade aquilo que a razão
estava procurando alcançar sem o conseguir. A partir desta forma
mais profunda de conhecimento, o Povo Eleito compreendeu que a razão
deve respeitar algumas regras fundamentais, para manifestar do melhor modo
possível a própria natureza. A primeira regra é ter
em conta que o conhecimento do homem é um caminho que não
permite descanso; a segunda nasce da consciência de que não
se pode percorrer tal caminho com o orgulho de quem pensa que tudo seja
fruto de conquista pessoal; a terceira regra funda-se no « temor de
Deus », de quem a razão deve reconhecer tanto a transcendência
soberana como o amor solícito no governo do mundo.
Quando o homem se afasta destas regras, corre o risco de falimento e
acaba por encontrar-se na condição do « insensato ».
Segundo a Bíblia, nesta insensatez encerra-se uma ameaça à
vida. É que o insensato ilude-se pensando que conhece muitas
coisas, mas, de facto, não é capaz de fixar o olhar nas
realidades essenciais. E isto impede-lhe de pôr ordem na sua mente
(cf. Prov 1, 7) e de assumir uma atitude correcta para consigo
mesmo e o ambiente circundante. Quando, depois, chega a afirmar que «
Deus não existe » (cf. Sal 1413, 1), isso revela, com
absoluta clareza, quanto seja deficiente o seu conhecimento e quão
distante esteja ele da verdade plena a respeito das coisas, da sua origem
e do seu destino.
19. Encontramos, no livro da Sabedoria, alguns textos importantes, que
iluminam ainda melhor este assunto. Lá, o autor sagrado fala de
Deus que Se dá a conhecer também através da natureza.
Para os antigos, o estudo das ciências naturais coincidia, em grande
parte, com o saber filosófico. Depois de ter afirmado que o homem,
com a sua inteligência, é capaz de « conhecer a
constituição do universo e a força dos elementos
(…), o ciclo dos anos e a posição dos astros, a natureza
dos animais mansos e os instintos dos animais ferozes » (Sab 7,
17.19-20), por outras palavras, que o homem é capaz de filosofar, o
texto sagrado dá um passo em frente muito significativo. Retomando
o pensamento da filosofia grega, à qual parece referir-se neste
contexto, o autor afirma que, raciocinando precisamente sobre a natureza,
pode-se chegar ao Criador: « Pela grandeza e beleza das criaturas,
pode-se, por analogia, chegar ao conhecimento do seu Autor » (Sab
13, 5). Reconhece-se, assim, um primeiro nível da revelação
divina, constituído pelo maravilhoso « livro da natureza »;
lendo-o com os meios próprios da razão humana, pode-se
chegar ao conhecimento do Criador. Se o homem, com a sua inteligência,
não chega a reconhecer Deus como criador de tudo, isso fica-se a
dever não tanto à falta de um meio adequado, como sobretudo
ao obstáculo interposto pela sua vontade livre e pelo seu pecado.
20. Nesta perspectiva, a razão é valorizada, mas não
superexaltada. O que ela alcança pode ser verdade, mas só
adquire pleno significado se o seu conteúdo for situado num
horizonte mais amplo, o da fé: « O Senhor é quem dirige
os passos do homem; como poderá o homem compreender o seu próprio
destino? » (Prov 20, 24). A fé, segundo o Antigo
Testamento, liberta a razão, na medida em que lhe permite alcançar
coerentemente o seu objecto de conhecimento e situá-lo naquela
ordem suprema onde tudo adquire sentido. Em resumo, pela razão o
homem alcança a verdade, porque, iluminado pela fé, descobre
o sentido profundo de tudo e, particularmente, da própria existência.
Justamente, pois, o autor sagrado coloca o início do verdadeiro
conhecimento no temor de Deus: « O temor do Senhor é o princípio
da sabedoria » (Prov 1, 7; cf. Sir 1, 14).
2. « Adquire a sabedoria, adquire a inteligência »
(Prov 4, 5)
21. Segundo o Antigo Testamento, o conhecimento não se baseia
apenas numa atenta observação do homem, do mundo e da história,
mas supõe como indispensável também uma relação
com a fé e os conteúdos da Revelação. Aqui se
concentram os desafios que o Povo Eleito teve de enfrentar e a que deu
resposta. Ao reflectir sobre esta sua condição, o homem bíblico
descobriu que não se podia compreender senão como « ser
em relação »: relação consigo mesmo, com
o povo, com o mundo e com Deus. Esta abertura ao mistério, que
provinha da Revelação, acabou por ser, para ele, a fonte dum
verdadeiro conhecimento, que permitiu à sua razão
aventurar-se em espaços infinitos, recebendo inesperadas
possibilidades de compreensão.
Segundo o autor sagrado, o esforço da investigação
não estava isento da fadiga causada pelo embate nas limitações
da razão. Sente-se isso mesmo, por exemplo, nas palavras com que o
livro dos Provérbios denuncia o cansaço provado ao tentar
compreender os misteriosos desígnios de Deus (cf. 30, 1-6).
Todavia, apesar da fadiga, o crente não desiste. E a força
para continuar o seu caminho rumo à verdade provém da
certeza de que Deus o criou como um « explorador » (cf. Coel
1, 13), cuja missão é não deixar nada sem tentar,
não obstante a contínua chantagem da dúvida.
Apoiando-se em Deus, o crente permanece, em todo o lado e sempre,
inclinado para o que é belo, bom e verdadeiro.
22. S. Paulo, no primeiro capítulo da carta aos Romanos,
ajuda-nos a avaliar melhor quanto seja incisiva a reflexão dos
Livros Sapienciais. Desenvolvendo com linguagem popular uma argumentação
filosófica, o Apóstolo exprime uma verdade profunda: através
da criação, os « olhos da mente » podem chegar ao
conhecimento de Deus. Efectivamente, através das criaturas, Ele faz
intuir à razão o seu « poder » e a sua «
divindade » (cf. Rom 1, 20). Deste modo, é atribuída
à razão humana uma capacidade tal que parece quase superar
os seus próprios limites naturais: não só ultrapassa
o âmbito do conhecimento sensorial, visto que lhe é possível
reflectir criticamente sobre o mesmo, mas, raciocinando a partir dos dados
dos sentidos, pode chegar também à causa que está na
origem de toda a realidade sensível. Em terminologia filosófica,
podemos dizer que, neste significativo texto paulino, está afirmada
a capacidade metafísica do homem.
Segundo o Apóstolo, no projecto originário da criação
estava prevista a capacidade de a razão ultrapassar comodamente o
dado sensível para alcançar a origem mesma de tudo: o
Criador. Como resultado da desobediência com que o homem escolheu
colocar-se em plena e absoluta autonomia relativamente Àquele que o
tinha criado, perdeu tal facilidade de acesso a Deus criador.
O livro do Génesis descreve de maneira figurada esta condição
do homem, quando narra que Deus o colocou no jardim do Éden, tendo
no centro « a árvore da ciência do bem e do mal »
(2, 17). O símbolo é claro: o homem não era capaz de
discernir e decidir, por si só, aquilo que era bem e o que era mal,
mas devia apelar-se a um princípio superior. A cegueira do orgulho
iludiu os nossos primeiros pais de que eram soberanos e autónomos,
podendo prescindir do conhecimento vindo de Deus. Nesta desobediência
original, eles implicaram todo o homem e mulher, causando à razão
traumas sérios que haveriam de dificultar-lhe, daí em
diante, o caminho para a verdade plena. Agora a capacidade humana de
conhecer a verdade aparece ofuscada pela aversão contra Aquele que é
fonte e origem da verdade. O próprio apóstolo S. Paulo nos
revela como, por causa do pecado, os pensamentos dos homens se tornaram «
vãos » e os seus arrazoados tortuosos e falsos (cf. Rom
1, 21-22). Os olhos da mente deixaram de ser capazes de ver
claramente: a razão foi progressivamente ficando prisioneira de si
mesma. A vinda de Cristo foi o acontecimento de salvação que
redimiu a razão da sua fraqueza, libertando-a dos grilhões
onde ela mesma se tinha algemado.
23. Deste modo, a relação do cristão com a
filosofia requer um discernimento radical. No Novo Testamento,
especialmente nas cartas de S. Paulo, aparece claramente este dado: a
contraposição entre « a sabedoria deste mundo » e
a sabedoria de Deus revelada em Jesus Cristo. A profundidade da sabedoria
revelada rompe o círculo dos nossos esquemas de reflexão
habituais, que não são minimamente capazes de exprimi-la de
forma adequada.
O início da primeira carta aos Coríntios apresenta
radicalmente este dilema. O Filho de Deus crucificado é o
acontecimento histórico contra o qual se desfaz toda a tentativa da
mente para construir, sobre razões puramente humanas, uma justificação
suficiente do sentido da existência. O verdadeiro ponto nodal, que
desafia qualquer filosofia, é a morte de Jesus Cristo na cruz.
Aqui, de facto, qualquer tentativa de reduzir o plano salvífico do
Pai a mera lógica humana está destinada à falência.
« Onde está o sábio? Onde está o erudito? Onde
está o investigador deste século? Porventura, Deus não
considerou louca a sabedoria deste mundo? » (1 Cor 1, 20) —
interroga-se enfaticamente o Apóstolo. Para aquilo que Deus quer
realizar, não basta a simples sabedoria do homem sábio,
requer-se um passo decisivo que leve ao acolhimento duma novidade radical:
« O que é louco segundo o mundo é que Deus escolheu
para confundir os sábios (…). O que é vil e desprezível
no mundo, é que Deus escolheu, como também aquelas coisas
que nada são, para destruir as que são » (1 Cor
1, 27-28). A sabedoria do homem recusa ver na própria
fragilidade o pressuposto da sua força; mas S. Paulo não
hesita em afirmar: « Quando me sinto fraco, então é que
sou forte » (2 Cor 12, 10). O homem não consegue
compreender como possa a morte ser fonte de vida e de amor, mas Deus, para
revelar o mistério do seu desígnio salvador, escolheu
precisamente o que a razão considera « loucura » e «
escândalo ». Usando a linguagem dos filósofos do seu
tempo, Paulo chega ao clímax da sua doutrina e do paradoxo que quer
exprimir: « Deus escolheu, no mundo, aquelas coisas que nada são,
para destruir as que são » (cf. 1 Cor 1, 28). Para
exprimir o carácter gratuito do amor revelado na cruz de Cristo, o
Apóstolo não tem medo de usar a linguagem mais radical que
os filósofos empregavam nas suas reflexões a respeito de
Deus. A razão não pode esgotar o mistério de amor que
a Cruz representa, mas a Cruz pode dar à razão a resposta última
que esta procura. S. Paulo coloca, não a sabedoria das palavras,
mas a Palavra da Sabedoria como critério, simultaneamente, de
verdade e de salvação.
Por conseguinte, a sabedoria da Cruz supera qualquer limite cultural que
se lhe queira impor, obrigando a abrir-se à universalidade da
verdade de que é portadora. Como é grande o desafio lançado
à nossa razão e como são enormes as vantagens que terá,
se ela se render! A filosofia, que por si mesma já é capaz
de reconhecer a necessidade do homem se transcender continuamente na busca
da verdade, pode, ajudada pela fé, abrir-se para, na « loucura
» da Cruz, acolher como genuína a crítica a quantos se
iludem de possuir a verdade, encalhando-a nas sirtes dum sistema próprio.
A relação entre a fé e a filosofia encontra, na pregação
de Cristo crucificado e ressuscitado, o escolho contra o qual pode
naufragar, mas também para além do qual pode desembocar no
oceano ilimitado da verdade. Aqui é evidente a fronteira entre a
razão e a fé, mas torna-se claro também o espaço
onde as duas se podem encontrar.
CAPÍTULO III
INTELLEGO UT CREDAM
1. Caminhar à procura da verdade
24. Nos Actos dos Apóstolos, o evangelista Lucas narra a chegada
de Paulo a Atenas, numa das suas viagens missionárias. A cidade dos
filósofos estava cheia de estátuas, que representavam vários
ídolos; e chamou-lhe a atenção um altar, que Paulo
prontamente aproveitou como motivo e base comum para iniciar o anúncio
do querigma: « Atenienses — disse ele —, vejo que sois, em
tudo, os mais religiosos dos homens. Percorrendo a vossa cidade e
examinando os vossos monumentos sagrados, até encontrei um altar
com esta inscrição: "Ao Deus desconhecido". Pois
bem! O que venerais sem conhecer, é que eu vos anuncio » (Act
17, 22-23). Partindo daqui, S. Paulo fala-lhes de Deus enquanto criador,
como Aquele que tudo transcende e a tudo dá vida. Depois continua o
seu discurso, dizendo: « Fez a partir de um só homem, todo o género
humano, para habitar em toda a face da Terra; e fixou a sequência
dos tempos e os limites para a sua habitação, a fim de que
os homens procurem a Deus e se esforcem por encontrá-Lo, mesmo
tacteando, embora não Se encontre longe de cada um de nós »
(Act 17, 26-27).
O Apóstolo põe em destaque uma verdade que a Igreja sempre
guardou no seu tesouro: no mais fundo do coração do homem,
foi semeado o desejo e a nostalgia de Deus. Recorda-o a liturgia de
Sexta-feira Santa, quando, convidando a rezar pelos que não crêem,
diz: « Deus eterno e omnipotente, criastes os homens para que Vos
procurem, de modo que só em Vós descansa o seu coração
». (22) Existe, portanto, um caminho que o homem, se quiser, pode
percorrer; o seu ponto de partida está na capacidade de a razão
superar o contingente para se estender até ao infinito.
De vários modos e em tempos diversos, o homem demonstrou que
conseguia dar voz a este seu desejo íntimo. A literatura, a música,
a pintura, a escultura, a arquitectura e outras realizações
da sua inteligência criadora tornaram-se canais de que ele se serviu
para exprimir esta sua ansiosa procura. Mas foi sobretudo a filosofia que,
de modo peculiar, recolheu este movimento, exprimindo, com os meios e
segundo as modalidades científicas que lhe são próprias,
este desejo universal do homem.
25. « Todos os homens desejam saber », (23) e o objecto próprio
deste desejo é a verdade. A própria vida quotidiana
demonstra o interesse que tem cada um em descobrir, para além do
que ouve, a realidade das coisas. Em toda a criação visível,
o homem é o único ser que é capaz não só
de saber, mas também de saber que sabe, e por isso se interessa
pela verdade real daquilo que vê. Ninguém pode sinceramente
ficar indiferente quanto à verdade do seu saber. Se descobre que é
falso, rejeita-o; se, pelo contrário, consegue certificar-se da sua
verdade, sente-se satisfeito. É a lição que nos dá
Santo Agostinho, quando escreve: « Encontrei muitos com desejos de
enganar outros, mas não encontrei ninguém que quisesse ser
enganado ». (24) Considera-se, justamente, que uma pessoa alcançou
a idade adulta, quando consegue discernir, por seus próprios meios,
entre aquilo que é verdadeiro e o que é falso, formando um
juízo pessoal sobre a realidade objectiva das coisas. Está
aqui o motivo de muitas pesquisas, particularmente no campo das ciências,
que levaram, nos últimos séculos, a resultados tão
significativos, favorecendo realmente o progresso da humanidade inteira.
E a pesquisa é tão importante no campo teórico,
como no âmbito prático: ao referir-me a este, desejo aludir à
procura da verdade a respeito do bem que se deve realizar. Com efeito, graças
precisamente ao agir ético, a pessoa, se actuar segundo a sua livre
e recta vontade, entra pela estrada da felicidade e encaminha-se para a
perfeição. Também neste caso, está em questão
a verdade. Reafirmei esta convicção na carta encíclica
Veritatis splendor: « Não há moral sem
liberdade (…). Se existe o direito de ser respeitado no próprio
caminho em busca da verdade, há ainda antes a obrigação
moral grave para cada um de procurar a verdade e de aderir a ela, uma vez
conhecida ». (25)
Por isso, é necessário que os valores escolhidos e
procurados na vida sejam verdadeiros, porque só estes é que
podem aperfeiçoar a pessoa, realizando a sua natureza. Não é
fechando-se em si mesmo que o homem encontra esta verdade dos valores, mas
abrindo-se para a receber mesmo de dimensões que o transcendem.
Esta é uma condição necessária para que cada
um se torne ele mesmo e cresça como pessoa adulta e madura.
26. Ao princípio, a verdade apresenta-se ao homem sob forma
interrogativa: A vida tem um sentido? Para onde se dirige? À
primeira vista, a existência pessoal poderia aparecer radicalmente
sem sentido. Não é preciso recorrer aos filósofos do
absurdo, nem às perguntas provocatórias que se encontram no
livro de Job para duvidar do sentido da vida. A experiência
quotidiana do sofrimento, pessoal e alheio, e a observação
de muitos factos, que à luz da razão se revelam inexplicáveis,
bastam para tornar iniludível um problema tão dramático
como é a questão do sentido da vida. (26) A isto se deve
acrescentar que a primeira verdade absolutamente certa da nossa existência,
para além do facto de existirmos, é a inevitabilidade da
morte. Perante um dado tão desconcertante como este, impõe-se
a busca de uma resposta exaustiva. Cada um quer, e deve, conhecer a
verdade sobre o seu fim. Quer saber se a morte será o termo
definitivo da sua existência, ou se algo permanece para além
da morte; se pode esperar uma vida posterior, ou não. É
significativo que o pensamento filosófico tenha recebido, da morte
de Sócrates, uma orientação decisiva que o marcou
durante mais de dois milénios. Certamente não é por
acaso que os filósofos, perante a realidade da morte, sempre voltam
a pôr-se este problema, associado à questão do sentido
da vida e da imortalidade.
27. A tais questões, não pode esquivar-se ninguém —
nem o filósofo, nem o homem comum. E, da resposta que se lhes der,
deriva uma orientação decisiva da investigação:
a possibilidade, ou não, de alcançar uma verdade universal.
Por si mesma qualquer verdade, mesmo parcial, se realmente é
verdade, apresenta-se como universal e absoluta. Aquilo que é
verdadeiro deve ser verdadeiro sempre e para todos. Contudo, para além
desta universalidade, o homem procura um absoluto que seja capaz de dar
resposta e sentido a toda a sua pesquisa: algo de definitivo, que sirva de
fundamento a tudo o mais. Por outras palavras, procura uma explicação
definitiva, um valor supremo, para além do qual não existam,
nem possam existir, ulteriores perguntas ou apelos. As hipóteses
podem seduzir, mas não saciam. Para todos, chega o momento em que,
admitam-no ou não, há necessidade de ancorar a existência
a uma verdade reconhecida como definitiva, que forneça uma certeza
livre de qualquer dúvida.
Os filósofos procuraram, ao longo dos séculos, descobrir e
exprimir tal verdade, criando um sistema ou uma escola de pensamento. Mas,
para além dos sistemas filosóficos, existem outras expressões
nas quais o homem procura formular a sua « filosofia »: trata-se
de convicções ou experiências pessoais, tradições
familiares e culturais, ou itinerários existenciais vividos sob a
autoridade de um mestre. A cada uma destas manifestações,
subjaz sempre vivo o desejo de alcançar a certeza da verdade e do
seu valor absoluto.
2. Os diferentes rostos da verdade do homem
28. Há que reconhecer que a busca da verdade nem sempre se
desenrola com a referida transparência e coerência de raciocínio.
Muitas vezes, as limitações naturais da razão e a
inconstância do coração ofuscam e desviam a pesquisa
pessoal. Outros interesses de vária ordem podem sobrepor-se à
verdade. Acontece também que o próprio homem a evite, quando
começa a entrevê-la, porque teme as suas exigências.
Apesar disto, mesmo quando a evita, é sempre a verdade que preside à
sua existência. Com efeito, nunca poderia fundar a sua vida sobre a
dúvida, a incerteza ou a mentira; tal existência estaria
constantemente ameaçada pelo medo e a angústia. Assim,
pode-se definir o homem como aquele que procura a verdade.
29. É impensável que uma busca, tão profundamente
radicada na natureza humana, possa ser completamente inútil e vã.
A própria capacidade de procurar a verdade e fazer perguntas
implica já uma primeira resposta. O homem não começaria
a procurar uma coisa que ignorasse totalmente ou considerasse
absolutamente inatingível. Só a previsão de poder
chegar a uma resposta é que consegue induzi-lo a dar o primeiro
passo. De facto, assim sucede normalmente na pesquisa científica.
Quando o cientista, depois de ter uma intuição, se lança
à procura da explicação lógica e empírica
dum certo fenómeno, fá-lo porque tem a esperança,
desde o início, de encontrar uma resposta, e não se dá
por vencido com os insucessos. Nem considera inútil a intuição
inicial, só porque não alcançou o seu objectivo; dirá
antes, e justamente, que não encontrou ainda a resposta adequada.
O mesmo deve valer também para a busca da verdade no âmbito
das questões últimas. A sede de verdade está tão
radicada no coração do homem que, se tivesse de prescindir
dela, a sua existência ficaria comprometida. Basta observar a vida
de todos os dias para constatar como dentro de cada um de nós se
sente o tormento de algumas questões essenciais e, ao mesmo tempo,
se guarda na alma, pelo menos, o esboço das respectivas respostas.
São respostas de cuja verdade estamos convencidos, até
porque notamos que não diferem substancialmente das respostas a que
muitos outros chegaram. Por certo, nem toda a verdade adquirida possui o
mesmo valor; todavia, o conjunto dos resultados alcançados confirma
a capacidade que o ser humano, em princípio, tem de chegar à
verdade.
30. Convém, agora, fazer uma rápida menção
das diversas formas de verdade. As mais numerosas são as verdades
que assentam em evidências imediatas ou recebem confirmação
da experiência: esta é a ordem própria da vida
quotidiana e da pesquisa científica. Nível diverso ocupam as
verdades de carácter filosófico, que o homem alcança
através da capacidade especulativa do seu intelecto. Por último,
existem as verdades religiosas, que de algum modo têm as suas raízes
também na filosofia; estão contidas nas respostas que as
diversas religiões oferecem, nas suas tradições, às
questões últimas. (27)
Quanto às verdades filosóficas, é necessário
especificar que não se limitam só às doutrinas, por
vezes efémeras, dos filósofos profissionais. Como já
disse, todo o homem é, de certa forma, um filósofo e possui
as suas próprias concepções filosóficas, pelas
quais orienta a sua vida. De diversos modos, consegue formar uma visão
global e uma resposta sobre o sentido da própria existência:
e, à luz disso, interpreta a própria vida pessoal e regula o
seu comportamento. É aqui que deveria colocar-se a questão
da relação entre as verdades filosófico-religiosas e
a verdade revelada em Jesus Cristo. Antes de responder a tal questão,
é preciso ter em conta outro dado da filosofia.
31. O homem não foi criado para viver sozinho. Nasce e cresce
numa família, para depois se inserir, pelo seu trabalho, na
sociedade. Assim a pessoa aparece integrada, desde o seu nascimento, em várias
tradições; delas recebe não apenas a linguagem e a
formação cultural, mas também muitas verdades nas
quais acredita quase instintivamente. Entretanto, o crescimento e a maturação
pessoal implicam que tais verdades possam ser postas em dúvida e
avaliadas através da actividade crítica própria do
pensamento. Isto não impede que, uma vez passada esta fase, aquelas
mesmas verdades sejam « recuperadas » com base na experiência
feita ou em virtude de sucessiva ponderação. Apesar disso,
na vida duma pessoa, são muito mais numerosas as verdades
simplesmente acreditadas que aquelas adquiridas por verificação
pessoal. Na realidade, quem seria capaz de avaliar criticamente os inumeráveis
resultados das ciências, sobre os quais se fundamenta a vida
moderna? Quem poderia, por conta própria, controlar o fluxo de
informações, recebidas diariamente de todas as partes do
mundo e que, por princípio, são aceites como verdadeiras?
Enfim, quem poderia percorrer novamente todos os caminhos de experiência
e pensamento, pelos quais se foram acumulando os tesouros de sabedoria e
religiosidade da humanidade? Portanto, o homem, ser que busca a verdade, é
também aquele que vive de crenças.
32. Cada um, quando crê, confia nos conhecimentos adquiridos por
outras pessoas. Neste acto, pode-se individuar uma significativa tensão:
por um lado, o conhecimento por crença apresenta-se como uma forma
imperfeita de conhecimento, que precisa de se aperfeiçoar
progressivamente por meio da evidência alcançada pela própria
pessoa; por outro lado, a crença é muitas vezes mais rica,
humanamente, do que a simples evidência, porque inclui a relação
interpessoal, pondo em jogo não apenas as capacidades cognoscitivas
do próprio sujeito, mas também a sua capacidade mais radical
de confiar noutras pessoas, iniciando com elas um relacionamento mais estável
e íntimo.
Importa sublinhar que as verdades procuradas nesta relação
interpessoal não são primariamente de ordem empírica
ou de ordem filosófica. O que se busca é sobretudo a verdade
da própria pessoa: aquilo que ela é e o que manifesta do seu
próprio íntimo. De facto, a perfeição do homem
não se reduz apenas à aquisição do
conhecimento abstracto da verdade, mas consiste também numa relação
viva de doação e fidelidade ao outro. Nesta fidelidade que
leva à doação, o homem encontra plena certeza e
segurança. Ao mesmo tempo, porém, o conhecimento por crença,
que se fundamenta na confiança interpessoal, tem a ver também
com a verdade: de facto, acreditando, o homem confia na verdade que o
outro lhe manifesta.
Quantos exemplos se poderiam aduzir para ilustrar este dado! O primeiro
que me vem ao pensamento é o testemunho dos mártires. Com
efeito, o mártir é a testemunha mais genuína da
verdade da existência. Ele sabe que, no seu encontro com Jesus
Cristo, alcançou a verdade a respeito da sua vida, e nada nem ninguém
poderá jamais arrancar-lhe esta certeza. Nem o sofrimento, nem a
morte violenta poderão fazê-lo retroceder da adesão à
verdade que descobriu no encontro com Cristo. Por isso mesmo é que,
até agora, o testemunho dos mártires atrai, gera consenso, é
escutado e seguido. Esta é a razão pela qual se tem confiança
na sua palavra: descobre-se neles a evidência dum amor que não
precisa de longas demonstrações para ser convincente, porque
fala daquilo que cada um, no mais fundo de si mesmo, já sente como
verdadeiro e que há tanto tempo procurava. Em resumo, o mártir
provoca em nós uma profunda confiança, porque diz aquilo que
já sentimos e torna evidente aquilo que nós mesmos queríamos
ter a força de dizer.
33. Deste modo, foi possível completar progressivamente os dados
do problema. O homem, por sua natureza, procura a verdade. Esta busca não
se destina apenas à conquista de verdades parciais, físicas
ou científicas; não busca só o verdadeiro bem em cada
um das suas decisões. Mas a sua pesquisa aponta para uma verdade
superior, que seja capaz de explicar o sentido da vida; trata-se, por
conseguinte, de algo que não pode desembocar senão no
absoluto. (28) Graças às capacidades de que está
dotado o seu pensamento, o homem pode encontrar e reconhecer uma tal
verdade. Sendo esta vital e essencial para a sua existência,
chega-se a ela não só por via racional, mas também
através de um abandono fiducial a outras pessoas que possam
garantir a certeza e autenticidade da verdade. A capacidade e a decisão
de confiar o próprio ser e existência a outra pessoa
constituem, sem dúvida, um dos actos antropologicamente mais
significativos e expressivos.
É bom não esquecer que também a razão, na
sua busca, tem necessidade de ser apoiada por um diálogo confiante
e uma amizade sincera. O clima de suspeita e desconfiança, que por
vezes envolve a pesquisa especulativa, ignora o ensinamento dos filósofos
antigos, que punham a amizade como um dos contextos mais adequados para o
recto filosofar.
Do que ficou dito conclui-se que o homem se encontra num caminho de
busca, humanamente infindável: busca da verdade e busca duma pessoa
em quem poder confiar. A fé cristã vem em sua ajuda,
dando-lhe a possibilidade concreta de ver realizado o objectivo dessa
busca. De facto, superando o nível da simples crença, ela
introduz o homem naquela ordem da graça que lhe consente participar
no mistério de Cristo, onde lhe é oferecido o conhecimento
verdadeiro e coerente de Deus Uno e Trino. Deste modo, em Jesus Cristo,
que é a Verdade, a fé reconhece o apelo último
dirigido à humanidade, para que possa tornar realidade o que
experimenta como desejo e nostalgia.
34. Esta verdade, que Deus nos revela em Jesus Cristo, não está
em contraste com as verdades que se alcançam filosofando. Pelo
contrário, as duas ordens de conhecimento conduzem à verdade
na sua plenitude. A unidade da verdade já é um postulado
fundamental da razão humana, expresso no princípio de não-contradição.
A Revelação dá a certeza desta unidade, ao mostrar
que Deus criador é também o Deus da história da salvação.
Deus que fundamenta e garante o carácter inteligível e
racional da ordem natural das coisas, sobre o qual os cientistas se apoiam
confiadamente, (29) é o mesmo que Se revela como Pai de nosso
Senhor Jesus Cristo. Esta unidade da verdade, natural e revelada, encontra
a sua identificação viva e pessoal em Cristo, como recorda o
apóstolo Paulo: « A verdade que existe em Jesus » (Ef
4, 21; cf. Col 1, 15-20). Ele é a Palavra eterna,
na qual tudo foi criado, e ao mesmo tempo é a Palavra encarnada
que, com toda a sua pessoa,30 revela o Pai (cf. Jo 1, 14.18).
Aquilo que a razão humana procura « sem o conhecer » (cf.
Act 17, 23), só pode ser encontrado por meio de Cristo: de
facto, o que n’Ele se revela é a « verdade plena » (cf.
Jo 1, 14-16) de todo o ser que, n’Ele e por Ele, foi criado e, por
isso mesmo, n’Ele encontra a sua realização (cf. Col
1, 17).
35. Tendo estas considerações gerais como pano de fundo, é
necessário agora examinar, de maneira mais directa, a relação
entre a verdade revelada e a filosofia. Tal relação requer
uma dupla consideração, visto que a verdade que nos vem da
Revelação tem de ser, simultaneamente, compreendida pela luz
da razão. Só nesta dupla acepção é que
será possível especificar a justa relação da
verdade revelada com o saber filosófico. Por isso, vamos
considerar, em primeiro lugar, as relações entre a fé
e a filosofia ao longo da história, donde será possível
individuar alguns princípios, que constituem os pontos de referência
aos quais recorrer para estabelecer a correcta relação entre
as duas ordens de conhecimento.
CAPÍTULO IV
A RELAÇÃO ENTRE A FÉ E A RAZÃO
1. As etapas significativas do encontro entre a fé e a
razão
36. Os Actos dos Apóstolos testemunham que o anúncio cristão
se encontrou, desde os seus primórdios, com as correntes filosóficas
do tempo. Lá se refere a discussão que S. Paulo teve com «
alguns filósofos epicuristas e estóicos » (17, 18). A
análise exegética do discurso no Areópago evidenciou
repetidas alusões a ideias populares, predominantemente de origem
estóica. Certamente isso não se deu por acaso; os primeiros
cristãos, para se fazerem compreender pelos pagãos, não
podiam citar apenas « Moisés e os profetas » nos seus
discursos, mas tinham de servir-se também do conhecimento natural
de Deus e da voz da consciência moral de cada homem (cf. Rom 1,
19-21; 2, 14-15; Act 14, 16-17). Como, porém, na religião
pagã, esse conhecimento natural tinha degenerado em idolatria (cf.
Rom 1, 21-32), o Apóstolo considerou mais prudente ligar o
seu discurso ao pensamento dos filósofos, que desde o início
tinham contraposto, aos mitos e cultos mistéricos, conceitos mais
respeitosos da transcendência divina.
De facto, um dos cuidados que mais a peito tiveram os filósofos
do pensamento clássico, foi purificar de formas mitológicas
a concepção que os homens tinham de Deus. Bem sabemos que a
religião grega, como grande parte das religiões cósmicas,
era politeísta, chegando a divinizar até coisas e fenómenos
da natureza. As tentativas do homem para compreender a origem dos deuses
e, nestes, a do universo tiveram a sua primeira expressão na
poesia. As teogonias permanecem, até hoje, o primeiro testemunho
desta investigação do homem. Os pais da filosofia tiveram
por missão mostrar a ligação entre a razão e a
religião. Estendendo o olhar para os princípios universais,
deixaram de contentar-se com os mitos antigos e procuraram dar fundamento
racional à sua crença na divindade. Embocou-se assim uma
estrada que, saindo das antigas tradições particulares,
levava a um desenvolvimento que correspondia às exigências da
razão universal. O fim que tal desenvolvimento tinha em vista era a
verificação crítica daquilo em que se acreditava. A
primeira a ganhar com esse caminho feito foi a concepção da
divindade. As superstições acabaram por ser reconhecidas
como tais, e a religião, pelo menos em parte, foi purificada pela
análise racional. Foi nesta base que os Padres da Igreja instituíram
um diálogo fecundo com os filósofos antigos, abrindo a
estrada ao anúncio e à compreensão do Deus de Jesus
Cristo.
37. Quando se menciona este movimento de aproximação dos
cristãos à filosofia, é obrigatório recordar
também a cautela com que eles olhavam outros elementos do mundo
cultural pagão, como, por exemplo, a gnose. A filosofia, enquanto
sabedoria prática e escola de vida, podia facilmente ser confundida
com um conhecimento de tipo superior, esotérico, reservado a poucos
iluminados. É, sem dúvida, a especulações esotéricas
deste género que pensa S. Paulo, quando adverte os Colossenses: «
Vede que ninguém vos engane com falsas e vãs filosofias,
fundadas nas tradições humanas, nos elementos do mundo, e não
em Cristo » (2, 8). Como são actuais estas palavras do Apóstolo,
quando as referimos às diversas formas de esoterismo que hoje se
difundem mesmo entre alguns crentes, privados do necessário sentido
crítico! Seguindo as pegadas de S. Paulo, outros escritores dos
primeiros séculos, particularmente Santo Ireneu e Tertuliano,
puseram reservas a uma orientação cultural que pretendia
subordinar a verdade da Revelação à interpretação
dos filósofos.
38. Como vemos, o encontro do cristianismo com a filosofia não
foi fácil nem imediato. A exercitação desta e a frequência
das respectivas escolas foi vista mais vezes pelos primeiros cristãos
como transtorno, do que como uma oportunidade. Para eles, a primeira e
mais urgente missão era o anúncio de Cristo ressuscitado,
que havia de ser proposto num encontro pessoal, capaz de levar o
interlocutor à conversão do coração e ao
pedido do Baptismo. De qualquer modo, isso não significa que
ignorassem a obrigação de aprofundar a compreensão da
fé e suas motivações; antes pelo contrário. É
injusta e pretextuosa a crítica de Celso, quando acusa os cristãos
de serem gente « iletrada e rude ». (31) A explicação
deste seu desinteresse inicial tem de ser procurada noutro lado. Na
realidade, o encontro com o Evangelho oferecia uma resposta tão
satisfatória à questão do sentido da vida, até
então insolúvel, que frequentar os filósofos
parecia-lhes uma coisa sem interesse e, em certos aspectos, superada.
Isto é, hoje, ainda mais claro, se se pensa ao contributo dado
pelo cristianismo, quando defende o acesso à verdade como um
direito universal. Derrubadas as barreiras raciais, sociais e sexuais, o
cristianismo tinha anunciado, desde as suas origens, a igualdade de todos
os homens diante de Deus. A primeira consequência deste conceito
registou-se no tema da verdade, ficando decididamente superado o carácter
elitista que a sua busca tinha no pensamento dos antigos: se o acesso à
verdade é um bem que permite chegar a Deus, todos devem estar em
condições de poder percorrer esta estrada. As vias para
chegar à verdade continuam a ser muitas; mas, dado que a verdade
cristã tem valor salvífico, cada uma delas só pode
ser percorrida se conduzir à meta final, ou seja, à revelação
de Jesus Cristo.
Como pioneiro dum encontro positivo com o pensamento filosófico,
sempre marcado por um prudente discernimento, há que recordar S.
Justino. Apesar da grande estima que continuava a ter pela filosofia grega
depois da sua conversão, afirmava decidida e claramente que tinha
encontrado, no cristianismo, « a única filosofia segura e
vantajosa ». (32) De forma semelhante, Clemente de Alexandria chamava
ao Evangelho « a verdadeira filosofia », (33) e, em analogia com
a lei mosaica, via a filosofia como uma instrução propedêutica
à fé cristã (34) e uma preparação ao
Evangelho. (35) Uma vez que « a filosofia anela por aquela sabedoria
que consiste na rectidão da alma e da palavra e na pureza da vida,
está aberta à sabedoria e tudo faz para a alcançar.
No nosso meio, designam-se por filósofos os que amam a sabedoria
que é criadora e mestra de tudo, isto é, o conhecimento do
Filho de Deus ».(36) Segundo este pensador alexandrino, a filosofia
grega não tem como primeiro objectivo completar ou corroborar a
verdade cristã; a sua função é, sobretudo, a
defesa da fé: « A doutrina do Salvador é perfeita em si
mesma e não precisa de apoio, porque é a força e a
sabedoria de Deus. A filosofia grega não torna mais forte a verdade
com o seu contributo, mas, porque torna impotente o ataque da sofística
e desarma os assaltos traiçoeiros contra a verdade, foi justamente
chamada sebe e muro de vedação da vinha ».(37)
39. Entretanto, na história deste desenvolvimento, é possível
constatar a assunção crítica do pensamento filosófico
por parte dos pensadores cristãos. No meio dos primeiros exemplos
encontrados, sobressai, sem dúvida, Orígenes. Contra os
ataques lançados pelo filósofo Celso, ele recorre à
filosofia platónica para argumentar e responder-lhe. Citando vários
elementos do pensamento platónico, começa a elaborar uma
primeira forma de teologia cristã. Naquele tempo, a designação
mesma de teologia e a sua concepção como discurso racional
sobre Deus ainda estavam ligadas à sua origem grega. Na filosofia
aristotélica, por exemplo, o termo designava a parte mais nobre e o
verdadeiro apogeu do discurso filosófico. Mas, à luz da
revelação cristã, o que anteriormente indicava uma
doutrina genérica sobre a divindade, passou a assumir um
significado totalmente novo, ou seja, a reflexão que o crente
realiza para exprimir a verdadeira doutrina acerca de Deus. Este
pensamento cristão novo, que estava a desenvolver-se, servia-se da
filosofia, mas ao mesmo tempo tendia a distinguir-se nitidamente dela. A
história revela que o próprio pensamento platónico,
quando foi assumido pela teologia, sofreu profundas transformações,
especialmente em conceitos como a imortalidade da alma, a divinização
do homem e a origem do mal.
40. Nesta obra de cristianização do pensamento platónico
e neoplatónico, merecem menção particular os Padres
Capadócios, Dionísio chamado o Areopagita e sobretudo Santo
Agostinho. O grande Doutor ocidental contactara diversas escolas filosóficas,
mas todas o tinham desiludido. Quando se lhe deparou a verdade da fé
cristã, então teve a força de realizar aquela conversão
radical a que os filósofos anteriormente contactados não
tinham conseguido induzi-lo. Ele mesmo refere o motivo: « Preferindo
a doutrina católica, já sentia, então, que era mais
razoável e menos enganoso sermos obrigados a crer o que não
demonstrava, quer houvesse prova, mesmo que esta não estivesse ao
alcance de qualquer pessoa, quer a não houvesse. Seria isto mais
sensato do que zombarem da crença os maniqueístas, apoiados
em temerária promessa de ciência, para depois nos mandarem
acreditar em inúmeras fábulas tão absurdas que as não
podiam provar ». (38) Quanto aos platónicos, que ocupavam
lugar privilegiado nos pontos de referimento de Agostinho, este
censurava-os porque, embora conhecessem o fim para onde se devia tender,
tinham, porém, ignorado o caminho que lá conduzia: o Verbo
encarnado. (39) O Bispo de Hipona conseguiu elaborar a primeira grande síntese
do pensamento filosófico e teológico, nela confluindo
correntes do pensamento grego e latino. Também nele a grande
unidade do saber, que tinha o seu fundamento no pensamento bíblico,
acabou por ser confirmada e sustentada pela profundidade do pensamento
especulativo. A síntese feita por Santo Agostinho permanecerá
como a forma mais elevada de reflexão filosófica e teológica
que o Ocidente, durante séculos, conheceu. Com uma história
pessoal intensa e ajudado por uma admirável santidade de vida, ele
foi capaz de introduzir, nas suas obras, muitos dados que, apelando-se à
experiência, antecipavam já futuros desenvolvimentos de
algumas correntes filosóficas.
41. De diversas formas, pois, os Padres do Oriente e do Ocidente
entraram em relação com as escolas filosóficas. Isto
não significa que tenham identificado o conteúdo da sua
mensagem com os sistemas a que faziam referência. A pergunta de
Tertuliano: « Que têm em comum Atenas e Jerusalém? Ou, a
Academia e a Igreja? », (40) é um sintoma claro da consciência
crítica com que os pensadores cristãos encararam, desde as
origens, o problema da relação entre a fé e a
filosofia, vendo-o globalmente, tanto nos seus aspectos positivos como nas
suas limitações. Não eram pensadores ingénuos.
Precisamente porque viviam de forma intensa o conteúdo da fé,
eles conseguiam chegar às formas mais profundas da reflexão.
Por isso, é injusto e redutivo limitar o seu trabalho a mera
transposição das verdades de fé para categorias filosóficas.
Eles fizeram muito mais; conseguiram explicitar plenamente aquilo que
resultava ainda implícito e preliminar no pensamento dos grandes
filósofos antigos. (41) Estes, conforme já disse, tiveram a
função de mostrar o modo como a razão, livre dos vínculos
externos, podia escapar do beco sem saída dos mitos, para melhor se
abrir à transcendência. Uma razão purificada e recta
era capaz de se elevar aos níveis mais elevados da reflexão,
dando fundamento sólido à percepção do ser, do
transcendente e do absoluto.
Aqui mesmo se insere a novidade operada pelos Padres. Acolheram a razão
na sua plena abertura ao absoluto e, nela, enxertaram a riqueza vinda da
Revelação. O encontro não foi apenas questão
de culturas, uma das quais talvez seduzida pelo fascínio da outra;
mas verificou-se no íntimo da alma, e foi um encontro entre a
criatura e o seu Criador. Ultrapassando o fim mesmo para o qual
inconscientemente tendia por força da sua natureza, a razão
pôde alcançar o sumo bem e a suma verdade na pessoa do Verbo
encarnado. Ao encararem as filosofias, os Padres não tiveram medo
de reconhecer tanto os elementos comuns como as diferenças que
aquelas apresentavam relativamente à Revelação. A
percepção das convergências não ofuscava neles
o reconhecimento das diferenças.
42. Na teologia escolástica, o papel da razão educada
filosoficamente torna-se ainda mais notável sob o impulso da
interpretação anselmiana do intelectus fidei.
Segundo o santo Arcebispo de Cantuária, a prioridade da fé não
faz concorrência à investigação própria
da razão. De facto, esta não é chamada a exprimir um
juízo sobre os conteúdos da fé; seria incapaz disso,
porque não é idónea. A sua tarefa é, antes,
saber encontrar um sentido, descobrir razões que a todos permitam
alcançar algum entendimento dos conteúdos da fé.
Santo Anselmo sublinha o facto de que o intelecto deve pôr-se à
procura daquilo que ama: quanto mais ama, mais deseja conhecer. Quem vive
para a verdade, tende para uma forma de conhecimento que se inflama num
amor sempre maior por aquilo que conhece, embora admita que ainda não
fizera tudo aquilo que estaria no seu desejo: « Ad te videndum
factus sum; et nondum feci propter quod factus sum ». (42) Assim,
o desejo da verdade impele a razão a ir sempre mais além;
esta fica como que embevecida pela constatação de que a sua
capacidade é sempre maior do que aquilo que alcança. Chegada
aqui, porém, a razão é capaz de descobrir onde está
o termo do seu caminho: « Penso efectivamente que, quem investiga uma
coisa incompreensível, se deve contentar de chegar, pela razão,
a reconhecer com a máxima certeza a sua existência real,
embora não seja capaz de penetrar, pela inteligência, o seu
modo de ser (…). Aliás, que há de tão incompreensível
e inefável como aquilo que está acima de tudo? Portanto, se
aquilo de cuja essência suprema discutimos até agora, ficou
estabelecido sobre razões necessárias, ainda que a inteligência
não o possa penetrar de forma a conseguir traduzi-lo em palavras
claras, nem por isso vacila minimamente o fundamento da sua certeza. Com
efeito, se uma reflexão anterior compreendeu de maneira racional
que é incompreensível (rationabiliter comprehendit
incomprehensibile esse) o modo como a sabedoria suprema sabe aquilo
que fez (…) , quem explicará como ela mesma se conhece e exprime,
dado que sobre ela o homem nada ou quase nada pode saber? ». (43)
Confirma-se assim, uma vez mais, a harmonia fundamental entre o
conhecimento filosófico e o conhecimento da fé: a fé
requer que o seu objecto seja compreendido com a ajuda da razão;
por sua vez a razão, no apogeu da sua indagação,
admite como necessário aquilo que a fé apresenta.
2. A novidade perene do pensamento de S. Tomás de Aquino
43. Neste longo caminho, ocupa um lugar absolutamente especial S. Tomás,
não só pelo conteúdo da sua doutrina, mas também
pelo diálogo que soube instaurar com o pensamento árabe e
hebreu do seu tempo. Numa época em que os pensadores cristãos
voltavam a descobrir os tesouros da filosofia antiga, e mais directamente
da filosofia aristotélica, ele teve o grande mérito de
colocar em primeiro lugar a harmonia que existe entre a razão e a fé.
A luz da razão e a luz da fé provêm ambas de Deus:
argumentava ele; por isso, não se podem contradizer entre si. (44)
Indo mais longe, S. Tomás reconhece que a natureza, objecto próprio
da filosofia, pode contribuir para a compreensão da revelação
divina. Deste modo, a fé não teme a razão, mas
solicita-a e confia nela. Como a graça supõe a natureza e
leva-a à perfeição, (45) assim também a fé
supõe e aperfeiçoa a razão. Esta, iluminada pela fé,
fica liberta das fraquezas e limitações causadas pela
desobediência do pecado, e recebe a força necessária
para elevar-se até ao conhecimento do mistério de Deus Uno e
Trino. Embora sublinhando o carácter sobrenatural da fé, o
Doutor Angélico não esqueceu o valor da racionabilidade da
mesma; antes, conseguiu penetrar profundamente e especificar o sentido de
tal racionabilidade. Efectivamente, a fé é de algum modo «
exercitação do pensamento »; a razão do homem não
é anulada nem humilhada, quando presta assentimento aos conteúdos
de fé; é que estes são alcançados por decisão
livre e consciente. (46)
Precisamente por este motivo é que S. Tomás foi sempre
proposto pela Igreja como mestre de pensamento e modelo quanto ao recto
modo de fazer teologia. Neste contexto, apraz-me recordar o que escreveu o
meu Predecessor, o Servo de Deus Paulo VI, por ocasião do sétimo
centenário da morte do Doutor Angélico: « Sem dúvida,
S. Tomás possuiu, no máximo grau, a coragem da verdade, a
liberdade de espírito quando enfrentava os novos problemas, a
honestidade intelectual de quem não admite a contaminação
do cristianismo pela filosofia profana, mas tão pouco defende a
rejeição apriorística desta. Por isso, passou à
história do pensamento cristão como um pioneiro no novo
caminho da filosofia e da cultura universal. O ponto central e como que a
essência da solução que ele deu ao problema novamente
posto da contraposição entre razão e fé, com a
genialidade do seu intuito profético, foi o da conciliação
entre a secularidade do mundo e a radicalidade do Evangelho, evitando, por
um lado, aquela tendência anti-natural que nega o mundo e seus
valores, mas, por outro, sem faltar às exigências supremas e
inabaláveis da ordem sobrenatural ». (47)
44. Entre as grandes intuições de S. Tomás,
conta-se a de atribuir ao Espírito Santo o papel de fazer
amadurecer, como sapiência, a ciência humana. Desde as
primeiras páginas da Summa theologiæ, (48) o Aquinate quis
mostrar o primado daquela sapiência que é dom do Espírito
Santo e que introduz no conhecimento das realidades divinas. A sua
teologia permite compreender a peculiaridade da sapiência na sua
ligação íntima com a fé e o conhecimento de
Deus: conhece por conaturalidade, pressupõe a fé e chega a
formular rectamente o seu juízo a partir da verdade da própria
fé: « A sapiência elencada entre os dons do Espírito
Santo é distinta da mencionada entre as virtudes intelectuais. De
facto, esta segunda adquire-se pelo estudo; aquela, pelo contrário,
"provém do alto", como diz S. Tiago. Mas é também
distinta da fé, porque esta aceita a verdade divina tal como é,
enquanto é próprio do dom da sapiência julgar segundo
a verdade divina ». (49)
Mas, ao reconhecer a prioridade desta sapiência, o Doutor Angélico
não esquece a existência de mais duas formas complementares
de sabedoria: a filosófica, que se baseia sobre a
capacidade que tem o intelecto, dentro dos próprios limites
naturais, de investigar a realidade; e a sabedoria teológica,
que se fundamenta na Revelação e examina os conteúdos
da fé, alcançando o próprio mistério de Deus.
Intimamente convencido de que « omne verum a quocumque dicatur
a Spiritu Sancto est », (50) S. Tomás amou
desinteressadamente a verdade. Procurou-a por todo o lado onde pudesse
manifestar-se, colocando em relevo a sua universalidade. Nele, o Magistério
da Igreja viu e apreciou a paixão pela verdade; o seu pensamento,
precisamente porque se mantém sempre no horizonte da verdade
universal, objectiva e transcendente, atingiu « alturas que a inteligência
humana jamais poderia ter pensado ».(51) É, pois, com razão
que S. Tomás pode ser definido « apóstolo da verdade ».(52)
Porque se consagrou sem reservas à verdade, no seu realismo soube
reconhecer a sua objectividade. A sua filosofia é verdadeiramente
uma filosofia do ser, e não do simples aparecer.
3. O drama da separação da fé e da razão
45. Quando surgiram as primeiras universidades, a teologia começou
a relacionar-se mais directamente com outras formas da pesquisa e do saber
científico. Santo Alberto Magno e S. Tomás, embora admitindo
uma ligação orgânica entre a filosofia e a teologia,
foram os primeiros a reconhecer à filosofia e às ciências
a autonomia de que precisavam para se debruçar eficazmente sobre os
respectivos campos de investigação. Todavia, a partir da
baixa Idade Média, essa distinção legítima
entre os dois conhecimentos transformou-se progressivamente em nefasta
separação. Devido ao espírito excessivamente
racionalista de alguns pensadores, radicalizaram-se as posições,
chegando-se, de facto, a uma filosofia separada e absolutamente autónoma
dos conteúdos da fé. Entre as várias consequências
de tal separação, sobressai a difidência cada vez mais
forte contra a própria razão. Alguns começaram a
professar uma desconfiança geral, céptica ou agnóstica,
quer para reservar mais espaço à fé, quer para
desacreditar qualquer possível referência racional à
mesma.
Em resumo, tudo o que o pensamento patrístico e medieval tinha
concebido e actuado como uma unidade profunda, geradora dum conhecimento
capaz de chegar às formas mais altas da especulação,
foi realmente destruído pelos sistemas que abraçaram a causa
de um conhecimento racional, separado e alternativo da fé.
46. As radicalizações mais influentes são bem
conhecidas e visíveis, sobretudo na história do Ocidente. Não
é exagerado afirmar que boa parte do pensamento filosófico
moderno se desenvolveu num progressivo afastamento da revelação
cristã até chegar explicitamente à contraposição.
No século passado, este movimento tocou o seu apogeu. Alguns
representantes do idealismo procuraram, de diversos modos, transformar a fé
e os seus conteúdos, inclusive o mistério da morte e
ressurreição de Jesus Cristo, em estruturas dialécticas
racionalmente compreensíveis. Mas a esta concepção,
opuseram-se diversas formas de humanismo ateu, elaboradas filosoficamente,
que apontaram a fé como prejudicial e alienante para o
desenvolvimento pleno do uso da razão. Não tiveram medo de
se apresentar como novas religiões, dando base a projectos que
desembocaram, no plano político e social, em sistemas totalitários
traumáticos para a humanidade.
No âmbito da investigação científica, foi-se
impondo uma mentalidade positivista, que não apenas se afastou de
toda a referência à visão cristã do mundo, mas
sobretudo deixou cair qualquer alusão à visão metafísica
e moral. Por causa disso, certos cientistas, privados de qualquer
referimento ético, correm o risco de não manterem, ao centro
do seu interesse, a pessoa e a globalidade da sua vida. Mais, alguns
deles, cientes das potencialidades contidas no progresso tecnológico,
parecem ceder à lógica do mercado e ainda à tentação
dum poder demiúrgico sobre a natureza e o próprio ser
humano.
Como consequência da crise do racionalismo, apareceu o niilismo.
Enquanto filosofia do nada, consegue exercer um certo fascínio
sobre os nossos contemporâneos. Os seus seguidores defendem a
pesquisa como fim em si mesma, sem esperança nem possibilidade
alguma de alcançar a meta da verdade. Na interpretação
niilista, a existência é somente uma oportunidade para sensações
e experiências onde o efémero detém o primado. O
niilismo está na origem duma mentalidade difusa, segundo a qual não
se deve assumir qualquer compromisso definitivo, porque tudo é
fugaz e provisório.
47. Por outro lado, é preciso não esquecer que, na cultura
moderna, foi alterada a própria função da filosofia.
De sabedoria e saber universal que era, foi-se progressivamente reduzindo
a uma das muitas áreas do saber humano; mais, sob alguns dos seus
aspectos, ficou reduzida a um papel completamente marginal. Entretanto,
foram-se consolidando sempre mais outras formas de racionalidade, pondo
assim em evidência o carácter marginal do saber filosófico.
Em vez de apontarem para a contemplação da verdade e a busca
do fim último e do sentido da vida, essas formas de racionalidade são
orientadas, ou pelo menos orientáveis, como « razão
instrumental » ao serviço de fins utilitaristas, de prazer ou
de poder.
Quanto seja perigoso absolutizar esta estrada, fi-lo notar já na
minha primeira carta encíclica, ao escrever: « O homem de hoje
parece estar sempre ameaçado por aquilo mesmo que produz, ou seja,
pelo resultado do trabalho das suas mãos e, ainda mais, pelo
resultado do trabalho da sua inteligência e das tendências da
sua vontade. Os frutos desta multiforme actividade do homem, com grande
rapidez e de modo muitas vezes imprevisível, passam a ser não
tanto objecto de "alienação", no sentido de que são
simplesmente tirados àqueles que os produzem, como sobretudo, pelo
menos parcialmente, num círculo consequente e indirecto dos seus
efeitos, tais frutos voltam-se contra o próprio homem. Eles são
de facto dirigidos, ou podem sê-lo, contra o homem. Nisto parece
consistir o acto principal do drama da existência humana contemporânea,
na sua dimensão mais ampla e universal. Assim, o homem vive
mergulhado cada vez mais no medo. Teme que os seus produtos, naturalmente
não todos nem a maior parte, mas alguns e precisamente aqueles que
encerram uma especial porção da sua genialidade e da sua
iniciativa, possam ser voltados de maneira radical contra si mesmo ».
(53)
Na sequência destas transformações culturais, alguns
filósofos, abandonando a busca da verdade por si mesma, assumiram
como único objectivo a obtenção da certeza subjectiva
ou da utilidade prática. Em consequência, deu-se o
obscurecimento da verdadeira dignidade da razão, impossibilitada de
conhecer a verdade e de procurar o absoluto.
48. Assim, o dado saliente desta última parte da história
da filosofia é a constatação duma progressiva separação
entre a fé e a razão filosófica. É verdade
que, observando bem, mesmo na reflexão filosófica daqueles
que contribuíram para ampliar a distância entre fé e
razão, se manifestam às vezes gérmenes preciosos de
pensamento que, se aprofundados e desenvolvidos com mente e coração
recto, podem fazer descobrir o caminho da verdade. Estes gérmenes
de pensamento podem-se encontrar, por exemplo, nas profundas análises
sobre a percepção e a experiência, a imaginação
e o inconsciente, sobre a personalidade e a intersubjectividade, a
liberdade e os valores, o tempo e a história. Inclusive o tema da
morte pode tornar-se, para todo o pensador, um severo apelo a procurar
dentro de si mesmo o sentido autêntico da própria existência.
Todavia isto não pode fazer esquecer a necessidade que a actual
relação entre fé e razão tem de um cuidadoso
esforço de discernimento, porque tanto a razão como a fé
ficaram reciprocamente mais pobres e débeis. A razão,
privada do contributo da Revelação, percorreu sendas
marginais com o risco de perder de vista a sua meta final. A fé,
privada da razão, pôs em maior evidência o sentimento e
a experiência, correndo o risco de deixar de ser uma proposta
universal. É ilusório pensar que, tendo pela frente uma razão
débil, a fé goze de maior incidência; pelo contrário,
cai no grave perigo de ser reduzida a um mito ou superstição.
Da mesma maneira, uma razão que não tenha pela frente uma fé
adulta não é estimulada a fixar o olhar sobre a novidade e
radicalidade do ser.
À luz disto, creio justificado o meu apelo veemente e incisivo
para que a fé e a filosofia recuperem aquela unidade profunda que
as torna capazes de serem coerentes com a sua natureza, no respeito da recíproca
autonomia. Ao desassombro (parresia) da fé deve
corresponder a audácia da razão.
CAPÍTULO V
INTERVENÇÕES DO MAGISTÉRIO
EM MATÉRIA FILOSÓFICA
1. O discernimento do Magistério como diaconia da verdade
49. A Igreja não propõe uma filosofia própria, nem
canoniza uma das correntes filosóficas em detrimento de outras.
(54) A razão profunda desta reserva está no facto de que a
filosofia, mesmo quando entra em relação com a teologia,
deve proceder segundo os seus métodos e regras; caso contrário,
não haveria garantia de permanecer orientada para a verdade,
tendendo para a mesma através dum processo racionalmente controlável.
Pouca ajuda daria uma filosofia que não agisse à luz da razão,
segundo princípios próprios e específicas
metodologias. Fundamentalmente, a raiz da autonomia de que goza a
filosofia, há que individuá-la no facto de a razão
estar orientada, por sua natureza, para a verdade e dotada em si mesma dos
meios necessários para a alcançar. Uma filosofia, ciente
deste seu « estatuto constitutivo », não pode deixar de
respeitar as exigências e evidências próprias da
verdade revelada.
E, todavia, vimos, na história, os extravios e erros em que várias
vezes incorreu o pensamento filosófico, sobretudo moderno. Não
é função nem competência do Magistério
intervir para colmar as lacunas dum discurso filosófico carente.
Mas, já é sua obrigação reagir, de forma clara
e vigorosa, quando teses filosóficas discutíveis ameaçam
a recta compreensão do dado revelado e quando se difundem teorias
falsas e sectárias que semeiam erros graves, perturbando a
simplicidade e a pureza da fé do povo de Deus.
50. Por conseguinte, o Magistério eclesiástico pode, e
deve, exercer com autoridade, à luz da fé, o discernimento
crítico sobre filosofias e afirmações que contradigam
a doutrina cristã. (55) Ao Magistério compete, antes de
mais, indicar os pressupostos e as conclusões filosóficas
que são incompatíveis com a verdade revelada, formulando
assim as exigências que, do ponto de vista da fé, se impõem
à filosofia. Além disso, no desenvolvimento do saber filosófico,
surgiram diversas escolas de pensamento; ora, este pluralismo impõe
ao Magistério a responsabilidade de exprimir o seu juízo
sobre a compatibilidade ou incompatibilidade das concepções
de base, defendidas por essas escolas, com as exigências próprias
da palavra de Deus e da reflexão teológica.
A Igreja tem o dever de indicar aquilo que pode existir, num sistema
filosófico, de incompatível com a sua fé. Na verdade,
muitos conteúdos filosóficos — relativos, por exemplo,
a Deus, ao homem, à sua liberdade e ao seu comportamento ético
—, têm a ver directamente com a Igreja, porque tocam na verdade
revelada que ela guarda. Quando nós, Bispos, realizamos o referido
discernimento, temos a obrigação de ser « testemunhas
da verdade », no cumprimento dum serviço humilde, mas firme,
que todo o filósofo devia prezar, em benefício da recta
ratio, ou seja, da razão que reflecte correctamente sobre a
verdade.
51. Em todo o caso, tal discernimento não deve ser visto
primariamente de forma negativa, como se a intenção do
Magistério fosse eliminar ou reduzir qualquer possibilidade de
mediação; ao contrário, as suas intervenções
visam em primeiro lugar suscitar, promover e encorajar o pensamento filosófico.
Os filósofos são, aliás, os primeiros a compreender a
exigência de autocrítica, de correcção de
eventuais erros, e a necessidade de ultrapassar os limites demasiado
estreitos em que a sua reflexão foi concebida. De modo particular,
deve-se considerar que a verdade é uma só, embora as suas
expressões acusem os vestígios da história e sejam,
além disso, obra duma razão humana ferida e enfraquecida
pelo pecado. Daqui se conclui que nenhuma forma histórica da
filosofia pode, legitimamente, ter a pretensão de abraçar a
totalidade da verdade ou de possuir a explicação cabal do
ser humano, do mundo e da relação do homem com Deus.
E hoje, com esta multiplicação de sistemas, métodos,
conceitos e argumentos filosóficos, muitas vezes extremamente
fragmentários, impõe-se ainda com maior urgência um
discernimento crítico à luz da fé. Este discernimento
não é fácil, porque, se já é custoso
reconhecer as capacidades naturais e inalienáveis da razão
com as suas limitações constitutivas e históricas,
mais problemático ainda se pode tornar às vezes o
discernimento de cada uma das propostas filosóficas para verificar,
do ponto de vista da fé, o que apresentam de válido e
fecundo e o que existe nelas de errado ou perigoso. De qualquer modo, a
Igreja sabe que os « tesouros da sabedoria e da ciência »
estão escondidos em Cristo (Col 2, 3); por isso, ela intervém,
estimulando a reflexão filosófica, para que não se
obstrua a estrada que leva ao conhecimento do mistério.
52. Não foi só recentemente que o Magistério da
Igreja interveio para manifestar o seu pensamento a respeito de
determinadas doutrinas filosóficas. A título de exemplo,
basta recordar, no decurso dos séculos, as tomadas de posição
acerca das teorias que defendiam a preexistência das almas, (56) e
ainda sobre as diversas formas de idolatria e esoterismo supersticioso,
contidas em teses astrológicas; (57) sem esquecer os textos mais
sistemáticos contra algumas teses do averroísmo latino,
incompatíveis com a fé cristã. (58)
Se a palavra do Magistério se fez ouvir mais frequentemente a
partir da segunda metade do século passado, foi porque, naquele período,
numerosos católicos sentiram o dever de contrapor uma filosofia própria
às várias correntes do pensamento moderno. Daqui resultou,
para o Magistério da Igreja, a obrigação de vigiar a
fim de que tais filosofias não degenerassem, por sua vez, em formas
erróneas e negativas. Acabaram assim censurados os dois extremos:
dum lado, o fideísmo (59) e o tradicionalismo radical,(60)
pela sua falta de confiança nas capacidades naturais da razão;
e, do outro, o racionalismo (61) e o ontologismo, (62)
porque atribuíam à razão natural aquilo que apenas se
pode conhecer pela luz da fé. Os conteúdos positivos deste
debate foram formalizados na constituição dogmática
Dei Filius, por meio da qual um concílio ecuménico —
o Vaticano I — intervinha, pela primeira vez e de forma solene, sobre
as relações entre razão e fé. A doutrina
contida neste texto marcou, intensa e positivamente, a investigação
filosófica de muitos crentes e constitui ainda hoje um ponto
normativo de referência para uma correcta e coerente reflexão
cristã neste âmbito particular.
53. Mais do que teses filosóficas isoladas, as tomadas de posição
do Magistério ocuparam-se da necessidade do conhecimento racional —
e por conseguinte, em última análise, do conhecimento filosófico
— para a compreensão da fé. O Concílio Vaticano
I, sintetizando e confirmando solenemente os ensinamentos que o Magistério
pontifício tinha proposto aos fiéis de maneira ordinária
e constante, pôs em evidência como são inseparáveis
e ao mesmo tempo irredutíveis entre si o conhecimento natural de
Deus e a Revelação, a razão e a fé. O Concílio
partia da exigência fundamental — pressuposta também
pela Revelação — da cognoscibilidade natural da existência
de Deus, princípio e fim de todas as coisas, (63) para concluir com
a solene afirmação já citada: « Existem duas
ordens de conhecimento, distintas não apenas pelo seu princípio,
mas também pelo seu objecto ». (64) É que era preciso
afirmar, contra qualquer forma de racionalismo, a distinção
entre os mistérios da fé e as conclusões filosóficas,
e ainda a transcendência e precedência daqueles sobre estas;
por outro lado, contra as tentações fideístas,
tornava-se necessário corroborar a unidade da verdade e também
o contributo positivo que o conhecimento racional pode, e deve, dar para o
conhecimento da fé: « Mas, embora a fé esteja acima da
razão, não poderá existir nunca uma verdadeira divergência
entre fé e razão, porque o mesmo Deus que revela os mistérios
e comunica a fé, foi quem colocou também, no espírito
humano, a luz da razão. E Deus não poderia negar-Se a Si
mesmo, pondo a verdade em contradição com a verdade ».(65)
54. Neste século, o Magistério voltou várias vezes
ao mesmo assunto, alertando contra a tentação racionalista. É
neste horizonte que se devem colocar as intervenções do Papa
S. Pio X, pondo em relevo como, na base do modernismo, havia posições
filosóficas de linha fenomenista, agnóstica e
imanentista.(66) E não se pode esquecer a importância que
teve a rejeição católica da filosofia marxista e do
comunismo ateu.(67)
Sucessivamente, o Papa Pio XII fez ouvir a sua voz quando, na carta encíclica
Humani generis, preveniu contra interpretações erróneas
que andavam ligadas com as teses do evolucionismo, do existencialismo e do
historicismo. Explicava ele que estas teses não foram elaboradas
nem eram propostas por teólogos, mas tinham a sua origem «
fora do redil de Cristo »; (68) acrescentava, porém, que tais
extravios não deviam ser liminarmente rejeitados, mas examinados
criticamente: « Ora, estas tendências, que se afastam em medida
desigual da recta via, não podem ser ignoradas ou transcuradas
pelos filósofos e teólogos católicos, que têm o
grave dever de defender a verdade divina e humana, e de fazê-la
penetrar na mente dos homens. Pelo contrário, devem conhecer bem
estas opiniões, quer porque as doenças não podem ser
curadas, se primeiro não são bem conhecidas, quer porque
algumas vezes mesmo nas afirmações falsas se esconde um
pouco de verdade, quer finalmente porque os próprios erros forçam
a nossa mente a investigar e a perscrutar, com maior diligência,
certas verdades filosóficas e teológicas ».(69)
Por último, também a Congregação da Doutrina
da Fé, no cumprimento do seu múnus específico ao
serviço do magistério universal do Romano Pontífice,
(70) teve de intervir para sublinhar o perigo que comportava a assunção
acrítica, feita por alguns teólogos da libertação,
de teses e metodologias provenientes do marxismo. (71)
Vemos assim que, no passado, o Magistério exerceu reiteradamente
e sob diversas modalidades o discernimento em matéria filosófica.
Aquilo que os meus Venerados Predecessores enunciaram, constitui um
contributo precioso que não pode ser esquecido.
55. Se observarmos a situação actual, constatamos que os
problemas retornam, mas com peculiaridades novas. Já não se
trata de questões que interessam apenas a indivíduos ou
grupos, mas de convicções tão generalizadas no
ambiente que se tornam, em certa medida, mentalidade comum. Tal é,
por exemplo, a desconfiança radical na razão, que evidenciam
as conclusões mais recentes de muitos estudos filosóficos.
De várias partes ouviu-se falar, a este respeito, de « fim da
metafísica »: querem que a filosofia se contente com tarefas
mais modestas, tais como a mera interpretação dos factos ou
apenas a investigação sobre determinados campos do saber
humano ou das suas estruturas.
Também, na teologia, voltam a assomar as tentações
de outrora. Por exemplo, em algumas teologias contemporâneas
comparece novamente um certo racionalismo, principalmente quando
asserções, consideradas filosoficamente fundadas, são
tomadas como normativas para a investigação teológica.
Isto sucede sobretudo quando o teólogo, por falta de competência
filosófica, se deixa condicionar de modo acrítico por afirmações
que já entraram na linguagem e cultura corrente, mas carecem de
suficiente base racional. (72)
Não faltam também perigosas recaídas no fideísmo,
que não reconhece a importância do conhecimento racional e do
discurso filosófico para a compreensão da fé, melhor,
para a própria possibilidade de acreditar em Deus. Uma expressão,
hoje generalizada, desta tendência fideísta é o «
biblicismo », que tende a fazer da leitura da Sagrada Escritura, ou
da sua exegese, o único referencial da verdade. Assim, acaba-se por
identificar a palavra de Deus só com a Sagrada Escritura, anulando
deste modo a doutrina da Igreja que o Concílio Ecuménico
Vaticano II expressamente reafirmou. Com efeito, a constituição
Dei Verbum, depois de recordar que a palavra de Deus está
presente tanto nos textos sagrados como na Tradição, (73)
afirma sem rodeios: « A Sagrada Tradição e a Sagrada
Escritura constituem um só depósito sagrado da palavra de
Deus, confiado à Igreja; aderindo a este, todo o Povo santo
persevera unido aos seus Pastores na doutrina dos Apóstolos ».(74)
Portanto, a Sagrada Escritura não constitui, para a Igreja, a sua única
referência; a « regra suprema da sua fé » (75) provém
efectivamente da unidade que o Espírito estabeleceu entre a Sagrada
Tradição, a Sagrada Escritura e o Magistério da
Igreja, numa reciprocidade tal que os três não podem
subsistir de maneira independente.(76)
Além disso, não se deve subestimar o perigo que existe
quando se quer individuar a verdade da Sagrada Escritura com a aplicação
de uma única metodologia, esquecendo a necessidade de uma exegese
mais ampla que permita o acesso, em união com toda a Igreja, ao
sentido pleno dos textos. Os que se dedicam ao estudo da Sagrada Escritura
nunca devem esquecer que as diversas metodologias hermenêuticas têm
também na sua base uma concepção filosófica: é
preciso examiná-las com grande discernimento, antes de as aplicar
aos textos sagrados.
Outras formas de fideísmo latente podem-se identificar na pouca
consideração que é reservada à teologia
especulativa, e ainda no desprezo pela filosofia clássica, de cujas
noções provieram os termos para exprimir tanto a compreensão
da fé como as próprias formulações dogmáticas.
O Papa Pio XII, de veneranda memória, alertou contra este
esquecimento da tradição filosófica e abandono das
terminologias tradicionais. (77)
56. Constata-se, enfim, uma generalizada desconfiança
relativamente a asserções globais e absolutas sobretudo da
parte de quem pensa que a verdade resulte do consenso, e não da
conformidade do intelecto com a realidade objectiva. Compreende-se que,
num mundo subdividido em tantos campos de especializações,
se torne difícil reconhecer aquele sentido total e último da
vida que tradicionalmente a filosofia procurava. Mas nem por isso posso, à
luz da fé que reconhece em Jesus Cristo tal sentido último,
deixar de encorajar os filósofos, cristãos ou não, a
terem confiança nas capacidades da razão humana e a não
prefixarem metas demasiado modestas à sua investigação
filosófica. A lição da história deste milénio,
quase a terminar, testemunha que a estrada a seguir é esta: não
perder a paixão pela verdade última, nem o anseio de
pesquisa, unidos à audácia de descobrir novos percursos. É
a fé que incita a razão a sair de qualquer isolamento e a
abraçar de bom grado qualquer risco por tudo o que é belo,
bom e verdadeiro. Deste modo, a fé torna-se advogada convicta e
convincente da razão.
2. Solicitude da Igreja pela filosofia
57. O Magistério, porém, não se limitou a pôr
em destaque os erros e desvios das doutrinas filosóficas. Mas, com
igual cuidado, quis confirmar os princípios fundamentais para uma
genuína renovação do pensamento filosófico,
indicando mesmo percursos concretos a seguir. Nesta linha, o Papa Leão
XIII, com a carta encíclica Æterni Patris, realizou
um passo de alcance verdadeiramente histórico na vida da Igreja.
Efectivamente aquela constitui, até ao dia de hoje, o único
documento pontifício dedicado, a esse nível, inteiramente à
filosofia. O grande Pontífice retomou e desenvolveu a doutrina do
Concílio Vaticano I sobre a relação entre fé e
razão, mostrando como o pensamento filosófico é um
contributo fundamental para a fé e para a ciência teológica.
(78) Passado mais de um século, muitas indicações, lá
contidas, nada perderam do seu interesse tanto do ponto de vista prático
como pedagógico; a primeira de todas é a que diz respeito ao
valor incomparável da filosofia de S. Tomás. A reposição
do pensamento do Doutor Angélico era vista pelo Papa Leão
XIII como a melhor estrada para se recuperar um uso da filosofia conforme
às exigências da fé. S. Tomás, escrevia ele, «
ao mesmo tempo que, como é devido, distingue perfeitamente a fé
da razão, une-as a ambas com laços de amizade recíproca:
conserva os direitos próprios de cada uma e salvaguarda a sua
dignidade ».(79)
58. São conhecidas as felizes consequências que teve este
convite pontifício. Os estudos sobre o pensamento de S. Tomás
e doutros autores escolásticos receberam novo incentivo. Foi dado
um forte impulso aos estudos históricos, de que resultou uma nova
descoberta das riquezas do pensamento medieval, até então
amplamente desconhecidas, e constituíram-se novas escolas tomistas.
Com a aplicação da metodologia histórica, fizeram-se
grandes progressos no conhecimento da obra de S. Tomás, e muitos
foram os estudiosos que corajosamente introduziram a tradição
tomista nas discussões dos problemas filosóficos e teológicos
daquele tempo. Os teólogos católicos mais influentes deste século,
a cuja reflexão e pesquisa muito deve o Concílio Vaticano
II, são filhos de tal renovação da filosofia tomista.
E assim a Igreja pôde, no decurso do século XX, dispor dum
vigoroso grupo de pensadores, formados na escola do Doutor Angélico.
59. Contudo, a renovação tomista e neotomista não
foi o único sinal de retoma do pensamento filosófico na
cultura de inspiração cristã. Já antes, e
contemporâneamente ao convite do Papa Leão XIII, tinham
surgido vários filósofos católicos que, valendo-se de
correntes de pensamento mais recentes e com uma metodologia própria,
geraram obras filosóficas de grande influência e valor
duradouro. Houve quem tivesse organizado sínteses de nível tão
alto que nada tinham a invejar aos grandes sistemas do idealismo, e quem
pusesse as bases epistemológicas para uma nova exposição
da fé, à luz de uma renovada compreensão da consciência
moral; houve quem tivesse elaborado uma filosofia que, partindo da análise
da imanência, abria o caminho para o transcendente, e quem tentasse
traduzir as exigências da fé no horizonte da metodologia
fenomenológica. Em suma, partindo de diversas perspectivas,
continuou-se a elaborar formas de reflexão filosófica, que
visavam manter viva a grande tradição do pensamento cristão
na unidade de fé e razão.
60. O Concílio Ecuménico Vaticano II, por sua vez,
apresenta uma doutrina muito rica e fecunda a propósito da
filosofia. Não posso esquecer, sobretudo no contexto desta carta
encíclica, que um capítulo inteiro da constituição
Gaudium et spes constitui uma espécie de compêndio de
antropologia bíblica, fonte de inspiração também
para a filosofia. Naquelas páginas, trata-se do valor da pessoa
humana criada à imagem de Deus, indicam-se os motivos da sua
dignidade e superioridade relativamente ao resto da criação,
e mostra-se a capacidade transcendente da sua razão. (80) Na
referida Constituição conciliar, considera-se também
o problema do ateísmo e denunciam-se, juntamente com suas causas,
os erros desta visão filosófica, sobretudo no que diz
respeito à dignidade inalienável da pessoa e da sua
liberdade. (81) E um profundo significado filosófico reveste também
o ponto culminante daquelas páginas, que transcrevia já na
minha primeira carta encíclica, a Redemptor hominis, e
mantive como um dos pontos de referência constante no meu magistério:
« Na realidade, o mistério do homem só no mistério
do Verbo encarnado se esclarece verdadeiramente. Adão, o primeiro
homem, era efectivamente figura do futuro, isto é, de Cristo
Senhor. Cristo, novo Adão, na própria revelação
do mistério do Pai e do seu amor, revela o homem a si mesmo e
descobre-lhe a sua vocação sublime ». (82)
O Concílio ocupou-se também do estudo da filosofia, ao
qual se devem dedicar os candidatos ao sacerdócio; são
recomendações que se podem generalizar a todo o ensino cristão.
Afirma-se num dos documentos conciliares: « As disciplinas filosóficas
sejam ensinadas de forma que os alunos possam adquirir, antes de mais, um
conhecimento sólido e coerente do homem, do mundo e de Deus,
apoiados num património filosófico perenemente válido,
tendo em conta as investigações filosóficas dos
tempos actuais »(83)
Estas directrizes foram depois retomadas e especificadas noutros
documentos do Magistério, com o intuito de garantir uma sólida
formação filosófica sobretudo àqueles que se
preparam para os estudos teológicos. Também eu sublinhei, em
várias ocasiões, a importância desta formação
filosófica para todos os que, um dia, terão de enfrentar, na
vida pastoral, as questões do mundo actual e individuar as causas
de determinados comportamentos, a fim de lhes dar pronta resposta. (84)
61. Se foi necessário intervir, em diversas circunstâncias,
sobre este tema, reiterando o valor das intuições do Doutor
Angélico e insistindo a favor da aquisição do seu
pensamento, isso ficou a dever-se também ao facto de não
terem sido sempre observadas as directrizes do Magistério, com a
solicitude desejada. De facto, nos anos posteriores ao Concílio
Vaticano II, pôde observar-se, em muitas escolas católicas,
um certo declínio nesta matéria, devido à menor
estima sentida não apenas pela filosofia escolástica, mas
pelo estudo da filosofia em geral. Com surpresa e mágoa, tenho de
constatar que vários teólogos compartilham este desinteresse
pelo estudo da filosofia.
Na base desta indiferença, há diversas razões. Em
primeiro lugar, aquela falta de confiança na razão que se
manifesta em grande parte da filosofia contemporânea, abandonando em
larga escala a investigação metafísica das questões
últimas do homem para concentrar a sua atenção sobre
problemas particulares e regionais, às vezes puramente formais.
Depois, há que acrescentar o equívoco que se gerou sobretudo
a respeito das « ciências humanas ». O Concílio
Vaticano II afirmou, várias vezes, o valor positivo da pesquisa
científica para um conhecimento mais profundo do mistério do
homem. (85) Mas, o convite dirigido aos teólogos para conhecerem
estas ciências e, se vier a propósito, aplicá-las
correctamente nos seus estudos, não deve ser interpretado como uma
implícita autorização para marginalizar a filosofia,
pondo-a de parte na formação pastoral e na præparatio
fidei. E, finalmente, não se pode esquecer o interesse
novamente sentido pela inculturação da fé. Em
particular, a vida das jovens Igrejas permitiu descobrir, ao lado de
formas elevadas de pensamento, a presença de múltiplas
expressões de sabedoria popular. Isto constitui um autêntico
património de cultura e de tradições. Todavia, o
estudo dos costumes tradicionais deve ser acompanhado simultaneamente pela
pesquisa filosófica. Será esta que possibilitará
fazer sobressair os traços positivos da sabedoria popular, criando
a necessária ligação com o anúncio do
Evangelho.(86)
62. Desejo insistir novamente que o estudo da filosofia reveste um carácter
fundamental e indispensável na estrutura dos estudos teológicos
e na formação dos candidatos ao sacerdócio. Não
é por acaso que o currículo dos estudos teológicos é
antecedido por um período de tempo especialmente consagrado ao
estudo da filosofia. Esta decisão, confirmada pelo Concílio
Ecuménico Lateranense V, (87) tem as suas raízes na experiência
maturada durante a Idade Média, quando foi posta em relevo a importância
de uma harmonia construtiva entre o saber filosófico e o teológico.
Esta organização dos estudos influenciou, facilitou e
promoveu, embora de forma indirecta, uma boa parte do progresso da
filosofia moderna. Temos um exemplo significativo na influência
exercida pelas Disputationes metaphysicæ de Francisco Suárez,
que eram seguidas até mesmo nas universidades luteranas da
Alemanha. Pelo contrário, o abandono desta metodologia foi causa de
graves carências, tanto na formação sacerdotal como na
investigação teológica. Basta considerar, por
exemplo, como a sua negligência no âmbito do pensamento e da
cultura moderna levou ao encerramento de toda a forma de diálogo ou
à recepção indiscriminada de qualquer filosofia.
Nutro profunda esperança de que estas dificuldades serão
superadas mercê de uma sábia formação filosófica
e teológica, que nunca deve faltar na Igreja.
63. Em virtude das razões aduzidas, senti a urgência de
confirmar, por meio desta carta encíclica, o grande interesse que a
Igreja tem pela filosofia; ou melhor, a ligação íntima
do trabalho teológico com a investigação filosófica
da verdade. Daqui nasce o dever que o Magistério tem de discernir e
estimular um pensamento filosófico que não esteja em dissonância
com a fé. A minha missão é propor alguns princípios
e pontos de referência, que considero necessários para se
poder instaurar uma relação harmoniosa e eficaz entre a
teologia e a filosofia. À luz deles, será possível
discernir com maior clareza se e como deve a teologia relacionar-se com os
diversos sistemas ou asserções filosóficas que o
mundo actual apresenta.
CAPÍTULO VI
INTERACÇÃO DA TEOLOGIA
COM A FILOSOFIA
1. A ciência da fé e as exigências da razão
filosófica
64. A palavra de Deus destina-se a todo o homem, de qualquer época
e lugar da terra; e o homem, por natureza, é filósofo. Por
sua vez, a teologia, enquanto elaboração reflexiva e científica
da compreensão da palavra divina à luz da fé, não
pode deixar de recorrer às filosofias que vão surgindo ao
longo da história, tanto para algumas das suas formas de proceder
como para realizar funções mais específicas. Sem
pretender indicar aos teólogos metodologias particulares —
porque tal não compete ao Magistério —, desejo, porém,
lembrar algumas funções próprias da teologia, onde,
por causa da própria natureza da Palavra revelada, se exige o
recurso ao pensamento filosófico.
65. A teologia está organizada, enquanto ciência da fé,
à luz dum duplo princípio metodológico: auditus fidei
e intellectus fidei. Com o primeiro, recolhe os conteúdos
da Revelação tal como se foram explicitando progressivamente
na Sagrada Tradição, na Sagrada Escritura e no Magistério
vivo da Igreja. (88) Pelo segundo, a teologia quer responder às
exigências próprias do pensamento, através da reflexão
especulativa.
Quanto à preparação para um correcto auditus
fidei, a filosofia proporciona à teologia a sua ajuda peculiar,
quando examina a estrutura do conhecimento e da comunicação
pessoal, e sobretudo as várias formas e funções da
linguagem. Igualmente importante é a contribuição da
filosofia para uma compreensão mais coerente da Tradição
eclesial, das intervenções do Magistério e das sentenças
dos grandes mestres da teologia: estes, de facto, exprimem-se
frequentemente por conceitos e formas de pensamento conotados com
determinada tradição filosófica. Neste caso, pede-se
ao teólogo não só que exponha conceitos e termos
através dos quais a Igreja possa reflectir e elaborar a sua
doutrina, mas que conheça profundamente também os sistemas
filosóficos que tenham, porventura, influenciado as noções
e a terminologia, a fim de se chegar a interpretações
correctas e coerentes.
66. Relativamente ao intellectus fidei, importa considerar,
antes de mais, que a Verdade divina, « que nos é proposta nas
Sagradas Escrituras, interpretadas correctamente pela doutrina da Igreja »,
(89) goza de uma inteligibilidade própria, logicamente tão
coerente que se deve propor como um autêntico saber. O intellectus
fidei explicita esta verdade, não só quando investiga as
estruturas lógicas e conceptuais das proposições em
que se articula a doutrina da Igreja, mas também e sobretudo quando
põe em realce o significado salvífico de tais proposições
para o indivíduo e para a humanidade. É pelo conjunto destas
proposições que o crente chega a conhecer a história
da salvação, que culmina na pessoa de Jesus Cristo e no seu
mistério pascal; ele participa deste mistério, com a sua
adesão de fé.
A teologia dogmática deve ser capaz de articular o
sentido universal do mistério de Deus, Uno e Trino, e da economia
da salvação, quer de modo narrativo, quer sobretudo de forma
argumentativa. Por outras palavras, deve fazê-lo mediante expressões
conceptuais, formuladas de modo crítico e universalmente acessível.
De facto, sem o contributo da filosofia não seria possível
ilustrar certos conteúdos teológicos como, por exemplo, a
linguagem sobre Deus, as relações pessoais no seio da Santíssima
Trindade, a acção criadora de Deus no mundo, a relação
entre Deus e o homem, a identidade de Cristo que é verdadeiro Deus
e verdadeiro homem. E o mesmo se diga de diversos temas da teologia moral,
onde é preciso recorrer, de imediato, a conceitos como lei moral,
consciência, liberdade, responsabilidade pessoal, culpa, etc., cuja
definição provém da ética filosófica.
Por isso, é necessário que a razão do crente tenha
um conhecimento natural, verdadeiro e coerente das coisas criadas, do
mundo e do homem, que são também objecto da revelação
divina; mais ainda, ela deve ser capaz de articular este conhecimento de
maneira conceptual e argumentativa. Assim, a teologia dogmática
especulativa pressupõe e implica uma filosofia do homem, do mundo
e, mais radicalmente, do próprio ser, fundada sobre a verdade
objectiva.
67. A teologia fundamental, pelo seu próprio carácter
de disciplina que tem por função dar razão da fé
(cf. 1 Ped 3, 15), deverá procurar justificar e explicitar
a relação entre a fé e a reflexão filosófica.
Já o Concílio Vaticano I, reafirmando o ensinamento paulino
(cf. Rom 1, 19-20), chamara a atenção para o facto
de existirem verdades que se podem conhecer de modo natural e,
consequentemente, filosófico. O seu conhecimento constitui um
pressuposto necessário para acolher a revelação de
Deus. Quando a teologia fundamental estuda a Revelação e a
sua credibilidade com o relativo acto de fé, deverá mostrar
como emergem, à luz do conhecimento pela fé, algumas
verdades que a razão, autonomamente, já encontra ao longo do
seu caminho de pesquisa. A essas verdades, a Revelação
confere-lhes plenitude de sentido, orientando-as para a riqueza do mistério
revelado, onde encontram o seu fim último. Basta pensar, por
exemplo, ao conhecimento natural de Deus, à possibilidade de
distinguir a revelação divina de outros fenómenos, ou
ao conhecimento da sua credibilidade, à capacidade que tem a
linguagem humana de falar, de modo significativo e verdadeiro, mesmo do
que ultrapassa a experiência humana. Por todas estas verdades, a
mente é levada a reconhecer a existência duma via realmente
propedêutica à fé, que pode desembocar no acolhimento
da Revelação, sem faltar minimamente aos seus próprios
princípios e autonomia. (90)
Da mesma forma, a teologia fundamental deverá manifestar a
compatibilidade intrínseca entre a fé e a sua exigência
essencial de se explicitar através de uma razão capaz de dar
com plena liberdade o seu consentimento. Assim, a fé saberá «
mostrar plenamente o caminho a uma razão em busca sincera da
verdade. Deste modo a fé, dom de Deus, apesar de não se
basear na razão, decerto não pode existir sem ela; ao mesmo
tempo, surge a necessidade de que a razão se fortifique na fé,
para descobrir os horizontes aos quais, sozinha, não poderia chegar
». (91)
68. A teologia moral tem, possivelmente, uma necessidade ainda
maior do contributo filosófico. Na Nova Aliança, a vida
humana está efectivamente muito menos regulada por prescrições
do que na Antiga. A vida no Espírito conduz os crentes a uma
liberdade e responsabilidade que ultrapassam a própria Lei. No
entanto, o Evangelho e os escritos apostólicos não deixam de
propor ora princípios gerais de conduta cristã, ora
ensinamentos e preceitos específicos; para aplicá-los às
circunstâncias concretas da vida individual e social, o cristão
tem necessidade de valer-se plenamente da sua consciência e da força
do seu raciocínio. Por outras palavras, a teologia moral deve
recorrer a uma visão filosófica correcta tanto da natureza
humana e da sociedade, como dos princípios gerais duma decisão
ética.
69. Talvez se possa objectar que, na situação actual, o teólogo,
mais do que à filosofia, deveria recorrer à ajuda de outras
formas do saber humano, concretamente à história e sobretudo
às ciências, de que todos admiram os progressos extraordinários
recentemente alcançados. Outros, impelidos por uma maior
sensibilidade à relação entre fé e culturas,
defendem que a teologia deveria dar preferência às sabedorias
tradicionais, em vez de uma filosofia de origem grega e eurocêntrica.
Outros ainda, partindo duma concepção errada do pluralismo
de culturas, negam simplesmente o valor universal do património
filosófico abraçado pela Igreja.
Os aspectos sublinhados, já presentes aliás na doutrina
conciliar, (92) contêm uma parte de verdade. O referimento às
ciências, útil em muitos casos porque permite um conhecimento
mais completo do objecto de estudo, não deve, porém, fazer
esquecer a necessidade que há da mediação duma reflexão
tipicamente filosófica, crítica e aberta ao universal,
solicitada também por um fecundo intercâmbio entre as
culturas. A minha preocupação é pôr em destaque
o dever de não se ficar pelo caso isolado e concreto, descuidando
assim a tarefa primária que é manifestar o carácter
universal do conteúdo de fé. Além disso, não
se deve esquecer que a peculiar contribuição do pensamento
filosófico permite discernir, tanto nas diversas concepções
da vida como nas culturas, « não o que os homens pensam, mas
qual é a verdade objectiva ». (93) Não as diversas
opiniões humanas, mas somente a verdade pode servir de ajuda à
filosofia.
70. Além do mais, o tema da relação com as culturas
merece uma reflexão específica, apesar de necessariamente não
exaustiva, pelas implicações que daí derivam para as
vertentes filosófica e teológica. O processo de encontro e
comparação com as culturas é uma experiência
que a Igreja viveu desde os começos da pregação do
Evangelho. O mandato de Cristo aos discípulos para irem, a toda a
parte « até aos confins do mundo » (Act 1, 8),
transmitir a verdade revelada por Ele, fez com que a comunidade cristã
pudesse bem cedo dar-se conta da universalidade do anúncio e dos
obstáculos resultantes da diversidade das culturas. Um trecho da
carta de S. Paulo aos cristãos de Éfeso oferece uma válida
ajuda para compreender como a Comunidade Primitiva enfrentou este
problema. Escreve o Apóstolo: « Agora porém, vós,
que outrora estáveis longe, pelo Sangue de Cristo vos aproximastes.
Ele é a nossa paz, Ele que de dois povos fez um só,
destruindo o muro de inimizade que os separava » (2, 13-14).
Iluminada por este texto, a nossa reflexão pode debruçar-se
sobre a transformação que se operou nos gentios quando abraçaram
a fé. As barreiras que separam as diversas culturas caem diante da
riqueza da salvação, realizada por Cristo. Agora, em Cristo,
a promessa de Deus torna-se uma oferta universal: não limitada já
à dimensão particular de um povo, da sua língua ou
dos seus costumes, mas alargada a todos, como um património ao qual
cada um pode livremente ter acesso. Dos mais diversos lugares e tradições,
todos são chamados, em Cristo, a participar na unidade da família
dos filhos de Deus. Cristo faz com que dois povos se tornem « um só
». Os que « estavam longe » ficaram « próximo »,
graças à novidade gerada pelo mistério pascal. Jesus
abate os muros de divisão e realiza a unificação, de
um modo original e supremo, por meio da participação no seu
mistério. Esta unidade é tão profunda que a Igreja
pode dizer com S. Paulo: « Já não sois hóspedes
nem peregrinos, mas sois concidadãos dos santos e membros da família
de Deus » (Ef 2, 19).
Nesta asserção tão simples, está contida uma
grande verdade: o encontro da fé com as diversas culturas deu vida
a uma nova realidade. Na verdade, quando as culturas estão
profundamente radicadas na natureza humana, contêm em si mesmas o
testemunho da abertura, própria do homem, ao universal e à
transcendência. É por isso que elas apresentam perspectivas
distintas da verdade, que são de evidente utilidade para o homem,
porque lhe fazem vislumbrar valores capazes de tornar a sua existência
sempre mais humana. (94) Por outro lado, na medida em que evocam os
valores das tradições antigas, as culturas trazem consigo —
embora de modo implícito, mas nem por isso menos real — a
referência à manifestação de Deus na natureza,
como se viu antes nos textos sapienciais e no ensinamento de S. Paulo.
71. Uma vez que as culturas estão intimamente relacionadas com os
homens e a sua história, partilham das mesmas dinâmicas do
tempo humano. E, consequentemente, registam transformações e
progressos com os encontros que os homens promovem e com as recíprocas
transmissões dos seus modelos de vida. As culturas alimentam-se com
a comunicação de valores, e a sua vitalidade e subsistência
dependem da sua capacidade de permanecerem abertas para acolher a
novidade. Como se explicam tais dinâmicas? Todo o homem está
integrado numa cultura; depende dela, e sobre ela influi. É
simultaneamente filho e pai da cultura onde está inserido. Em cada
manifestação da sua vida, o homem traz consigo algo que o
caracteriza no meio da criação: a sua constante abertura ao
mistério e o seu desejo inexaurível de conhecimento. Em
consequência, cada cultura traz gravada em si mesma e deixa
transparecer a tensão para uma plenitude. Pode-se, portanto, dizer
que a cultura contém em si própria a possibilidade de
acolher a revelação divina.
Também o modo como os cristãos vivem a fé, está
imbuído da cultura do ambiente circundante, e vai progressivamente
contribuindo, por sua vez, para modelar as características do
mesmo. Os cristãos transmitem, a cada cultura, a verdade imutável
que Deus revelou na história e na cultura dum povo. Ao longo dos séculos,
continua a reproduzir-se o mesmo fenómeno testemunhado pelos
peregrinos presentes em Jerusalém, no dia de Pentecostes. Ao
escutarem os Apóstolos, perguntavam-se: « Mas quê! Essa
gente que está a falar não é da Galileia? Que se
passa, então, para que cada um de nós os oiça falar
na nossa língua materna? Partos, medos, elamitas, habitantes da
Mesopotâmia, da Judeia e da Capadócia, do Ponto e da Ásia,
da Frígia e da Panfília, do Egipto e das regiões da Líbia,
vizinha de Cirene, colonos de Roma, judeus e prosélitos, cretenses
e árabes, ouvimo-los anunciar nas nossas línguas as
maravilhas de Deus! » (Act 2, 7-11). O anúncio do
Evangelho nas diversas culturas, ao exigir de cada um dos destinatários
a adesão da fé, não os impede de conservar a própria
identidade cultural. Isto não provoca qualquer divisão, pois
o povo dos baptizados distingue-se por uma universalidade que é
capaz de acolher todas as culturas, fazendo com que aquilo que nelas está
implícito se desenvolva até à sua explanação
plena na verdade.
Em consequência disto, uma cultura nunca pode servir de critério
de juízo e, menos ainda, de critério último de
verdade a respeito da revelação de Deus. O Evangelho não
é contrário a esta ou àquela cultura, como se
quisesse, ao encontrar-se com ela, privá-la daquilo que lhe
pertence, e a obrigasse a assumir formas extrínsecas que lhe são
estranhas. Pelo contrário, o anúncio que o crente leva ao
mundo e às culturas é uma forma real de libertação
de toda a desordem introduzida pelo pecado e, simultaneamente, uma chamada
à verdade plena. Neste encontro, as culturas não são
privadas de nada, antes são estimuladas a abrirem-se à
novidade da verdade evangélica, de que recebem impulso para novos
progressos.
72. O facto da missão evangelizadora ter encontrado em primeiro
lugar no seu caminho a filosofia grega, não constitui de forma
alguma impedimento para outros relacionamentos. Hoje, à medida que
o Evangelho entra em contacto com áreas culturais que estiveram até
agora fora do âmbito de irradiação do cristianismo,
novas tarefas se abrem à inculturação. Colocam-se à
nossa geração problemas análogos aos que a Igreja
teve de enfrentar nos primeiros séculos.
O meu pensamento vai espontaneamente até às terras do
Oriente, tão ricas de tradições religiosas e filosóficas
muito antigas. Entre elas, ocupa um lugar especial a Índia. Um
grande ímpeto espiritual leva o pensamento indiano a procurar uma
experiência que, libertando o espírito dos condicionamentos
de tempo e espaço, tenha valor de absoluto. No dinamismo desta
busca de libertação, situam-se grandes sistemas metafísicos.
Compete aos cristãos de hoje, sobretudo aos da Índia, a
tarefa de extrair deste rico património os elementos compatíveis
com a sua fé, para se obter um enriquecimento do pensamento cristão.
Nesta obra de discernimento, que tem a sua fonte de inspiração
na declaração conciliar Nostra aetate, deverão
ter em consideração um certo número de critérios.
O primeiro é a universalidade do espírito humano, cujas exigências
fundamentais são idênticas nas mais distintas culturas. O
segundo, derivado do anterior, consiste no seguinte: quando a Igreja entra
em contacto com grandes culturas que nunca tinha encontrado antes, não
pode pôr de parte o que adquiriu pela inculturação no
pensamento greco-latino. Rejeitar uma tal herança seria contrariar
o desígnio providencial de Deus, que conduz a sua Igreja pelos
caminhos do tempo e da história. Aliás, este critério
é válido para a Igreja de todos os tempos — também
para a Igreja de amanhã, que se sentirá enriquecida com as
aquisições resultantes do encontro em nossos dias com as
culturas orientais, e desta herança há-de tirar, por sua
vez, indicações novas para entrar frutuosamente em diálogo
com as culturas que a humanidade fizer florir no seu caminho rumo ao
futuro. Em terceiro lugar, há-de precaver-se por não
confundir a legítima reivindicação de especificidade
e originalidade do pensamento indiano, com a ideia de que uma tradição
cultural deve enclausurar-se na sua diferença e afirmar-se pela sua
oposição às outras tradições —
ideia essa que seria contrária precisamente à natureza do
espírito humano.
O que fica dito para a Índia, vale também para a herança
das grandes culturas da China, do Japão e demais países da Ásia,
bem como das riquezas das culturas tradicionais da África,
transmitidas sobretudo por via oral.
73. À luz destas considerações, a justa relação
que se deve instaurar entre a teologia e a filosofia há-de ser
pautada por uma reciprocidade circular. Quanto à teologia, o seu
ponto de partida e fonte primeira terá de ser sempre a palavra de
Deus revelada na história, ao passo que o objectivo final só
poderá ser uma compreensão cada vez mais profunda dessa
mesma palavra por parte das sucessivas gerações. Visto que a
palavra de Deus é Verdade (cf. Jo 17, 17), uma melhor
compreensão dela só tem a beneficiar com a busca humana da
verdade, ou seja, o filosofar, no respeito das leis que lhe são próprias.
Não se trata simplesmente de utilizar, no raciocínio teológico,
qualquer conceito ou parcela dum sistema filosófico; o facto
decisivo é que a razão do crente exerce as suas capacidades
de reflexão na busca da verdade, dentro dum movimento que, partindo
da palavra de Deus, procura alcançar uma melhor compreensão
da mesma. É claro, de resto, que a razão, movendo-se dentro
destes dois pólos — palavra de Deus e melhor conhecimento
desta —, encontra-se prevenida, e de algum modo guiada, para evitar
percursos que poderiam conduzi-la fora da Verdade revelada e, em última
análise, fora pura e simplesmente da verdade; mais ainda, ela
sente-se estimulada a explorar caminhos que, sozinha, nem sequer
suspeitaria de poder percorrer. Esta relação de
reciprocidade circular com a Palavra de Deus enriquece a filosofia, porque
a razão descobre horizontes novos e inesperados.
74. A prova da fecundidade de tal relação é
oferecida pela própria vida de grandes teólogos cristãos
que se distinguiram também como grandes filósofos, deixando
escritos de tamanho valor especulativo que justificam ser colocados ao
lado dos grandes mestres da filosofia antiga. Isto é válido
tanto para os Padres da Igreja, de entre os quais há que citar pelo
menos os nomes de S. Gregório Nazianzeno e S. Agostinho, como para
os Doutores medievais entre os quais sobressai a grande tríade
formada por S. Anselmo, S. Boaventura e S. Tomás de Aquino. A relação
entre a filosofia e a palavra de Deus manifesta-se fecunda também
na investigação corajosa realizada por pensadores mais
recentes, de entre os quais me apraz mencionar, no âmbito ocidental,
personagens como John Henry Newman, António Rosmini, Jacques
Maritain, Étienne Gilson, Edith Stein, e, no âmbito oriental,
estudiosos com a estatura de Vladimir S. Solov’ev, Pavel A. Florenskij,
Petr J. Caadaev, Vladimir N. Losskij. Ao referir estes autores, ao lado
dos quais outros nomes poderiam ser citados, não tenciono
obviamente dar aval a todos os aspectos do seu pensamento, mas apenas propô-los
como exemplos significativos dum caminho de pesquisa filosófica que
tirou notáveis vantagens da sua confrontação com os
dados da fé. Uma coisa é certa: a consideração
do itinerário espiritual destes mestres não poderá
deixar de contribuir para o avanço na busca da verdade e na utilização
dos resultados conseguidos para o serviço do homem. Espera-se que
esta grande tradição filosófico-teológica
encontre, hoje e no futuro, os seus continuadores e estudiosos para bem da
Igreja e da humanidade.
2. Diferentes estádios da filosofia
75. Como consta da história das relações entre a fé
e a filosofia, apontada acima brevemente, podem distinguir-se diversos estádios
da filosofia relativamente à fé cristã. O primeiro é
a filosofia totalmente independente da revelação evangélica:
é o estádio da filosofia, existente historicamente nas épocas
que precederam o nascimento do Redentor, e, mesmo depois dele, nas regiões
onde o Evangelho ainda não chegou. Nesta situação, a
filosofia apresenta a legítima aspiração de ser um
empreendimento autónomo, ou seja, que procede segundo as
suas próprias leis, valendo-se simplesmente das forças da
razão. Embora cientes dos graves limites devidos à
debilidade congénita da razão humana, uma tal aspiração
deve ser apoiada e fortalecida. De facto, o trabalho filosófico,
como busca da verdade no âmbito natural, pelo menos implicitamente
permanece aberto ao sobrenatural.
E, mesmo quando é o próprio discurso teológico que
se serve de conceitos e argumentações filosóficas, a
exigência de correcta autonomia do pensamento há-de ser
respeitada. Com efeito, a argumentação conduzida segundo
rigorosos critérios racionais é garantia para a obtenção
de resultados universalmente válidos. Também aqui se
verifica o princípio segundo o qual a graça não destrói,
mas aperfeiçoa a natureza: a anuência de fé, que
envolve a inteligência e a vontade, não destrói mas
aperfeiçoa o livre arbítrio do crente, que acolhe em si próprio
o dado revelado.
Desta exigência em si mesma correcta, afasta-se nitidamente a
teoria da chamada filosofia « separada », sustentada por vários
filósofos modernos. Mais do que afirmação da justa
autonomia do filosofar, ela constitui a reivindicação duma
auto-suficiência do pensamento que é claramente ilegítima:
rejeitar as contribuições de verdade vindas da revelação
divina significa efectivamente impedir o acesso a um conhecimento mais
profundo da verdade, danificando precisamente a filosofia.
76. Um segundo estádio da filosofia é aquilo que muitos
designam com a expressão filosofia cristã. A
denominação, em si mesma, é legítima, mas não
deve dar margem a equívocos: com ela, não se pretende aludir
a uma filosofia oficial da Igreja, já que a fé enquanto tal
não é uma filosofia. Com aquela designação,
deseja-se sobretudo indicar um modo cristão de filosofar, uma
reflexão filosófica concebida em união vital com a fé.
Por conseguinte, não se refere simplesmente a uma filosofia
elaborada por filósofos cristãos que, na sua pesquisa,
quiseram não contradizer a fé. Quando se fala de filosofia
cristã, pretende-se abraçar todos aqueles importantes avanços
do pensamento filosófico que não seriam alcançados
sem a contribuição, directa ou indirecta, da fé cristã.
Assim, a filosofia cristã contém dois aspectos: um
subjectivo, que consiste na purificação da razão por
parte da fé. Esta, enquanto virtude teologal, liberta a razão
da presunção — uma típica tentação
a que os filósofos facilmente estão sujeitos. Já S.
Paulo e os Padres da Igreja, e mais recentemente filósofos, como
Pascal e Kierkegaard, a estigmatizaram. Com a humildade, o filósofo
adquire também a coragem para enfrentar algumas questões que
dificilmente poderia resolver sem ter em consideração os
dados recebidos da Revelação. Basta pensar, por exemplo, aos
problemas do mal e do sofrimento, à identidade pessoal de Deus e à
questão acerca do sentido da vida, ou, mais diretamente, à
pergunta metafísica radical: « Porque existe o ser? ».
Temos, depois, o aspecto objectivo, que diz respeito aos conteúdos:
a Revelação propõe claramente algumas verdades que,
embora sejam acessíveis à razão por via natural,
possivelmente nunca seriam descobertas por ela, se tivesse sido abandonada
a si própria. Colocam-se, neste horizonte, questões como o
conceito de um Deus pessoal, livre e criador, que tanta importância
teve para o progresso do pensamento filosófico e, de modo
particular, para a filosofia do ser. Pertence ao mesmo âmbito a
realidade do pecado, tal como é vista pela luz da fé, e que
ajuda a filosofia a enquadrar adequadamente o problema do mal. Também
a concepção da pessoa como ser espiritual é uma
originalidade peculiar da fé: o anúncio cristão da
dignidade, igualdade e liberdade dos homens influiu seguramente sobre a
reflexão filosófica, realizada pelos filósofos
modernos. Nos tempos mais recentes, pode-se mencionar a descoberta da
importância que tem, também para a filosofia, o acontecimento
histórico, centro da revelação cristã. Não
foi por acaso que aquele se tornou perne de uma filosofia da história,
que se apresenta como um novo capítulo da busca humana da verdade.
Entre os elementos objectivos da filosofia cristã, inclui-se também
a necessidade de explorar a racionalidade de algumas verdades expressas
pela Sagrada Escritura, tais como a possibilidade de uma vocação
sobrenatural do homem, e também o próprio pecado original. São
tarefas que induzem a razão a reconhecer que existe a verdade e o
racional, muito para além dos limites estreitos onde ela seria
tentada a encerrar-se. Estas temáticas ampliam, de facto, o âmbito
do racional.
Ao reflectirem sobre estes conteúdos, os filósofos não
se tornaram teólogos, já que não procuraram
compreender e ilustrar as verdades da fé a partir da Revelação;
continuaram a trabalhar no seu próprio terreno e com a sua
metodologia puramente racional, mas alargando a sua investigação
a novos âmbitos da verdade. Pode-se dizer que, sem este influxo
estimulante da palavra de Deus, boa parte da filosofia moderna e contemporânea
não existiria. O dado mantém toda a sua relevância,
mesmo diante da constatação decepcionante de não
poucos pensadores destes últimos séculos que abandonaram a
ortodoxia cristã.
77. Outro estádio significativo da filosofia verifica-se quando é
a própria teologia que chama em causa a filosofia.
Na verdade, a teologia sempre teve, e continua a ter, necessidade da
contribuição filosófica. Realizado pela razão
crítica à luz da fé, o trabalho teológico
pressupõe e exige, ao longo de toda a sua pesquisa, uma razão
conceptual e argumentativamente educada e formada. Além disso, a
teologia precisa da filosofia como interlocutora, para verificar a
inteligibilidade e a verdade universal das suas afirmações.
Não foi por acaso que os Padres da Igreja e os teólogos
medievais assumiram, para tal função explicativa, filosofias
não cristãs. Este facto histórico indica o valor da
autonomia que a filosofia conserva mesmo neste terceiro estádio,
mas mostra igualmente as transformações necessárias e
profundas que ela deve sofrer.
É precisamente no sentido de uma contribuição
indispensável e nobre que a filosofia foi chamada, desde a Idade
Patrística, ancilla theologiæ. De facto, o título
não foi atribuído para indicar uma submissão servil
ou um papel puramente funcional da filosofia relativamente à
teologia; mas no mesmo sentido em que Aristóteles falava das ciências
experimentais como « servas » da « filosofia primeira ».
A expressão, hoje dificilmente utilizável devido aos princípios
de autonomia antes mencionados, foi usada ao longo da história para
indicar a necessidade da relação entre as duas ciências
e a impossibilidade de uma sua separação.
Se o teólogo se recusasse a utilizar a filosofia, arriscar-se-ia
a fazer filosofia sem o saber e a fechar-se em estruturas de pensamento
pouco idóneas à compreensão da fé. Se o filósofo,
por sua vez, excluísse todo o contacto com a teologia, ver-se-ia na
obrigação de apoderar-se por conta própria dos conteúdos
da fé cristã, como aconteceu com alguns filósofos
modernos. Tanto num caso como noutro, surgiria o perigo da destruição
dos princípios básicos de autonomia que cada ciência
justamente quer ver garantidos.
O estádio da filosofia agora considerado, devido às
implicações que comporta na compreensão da Revelação,
está, como acontece com a teologia, mais directamente colocado sob
a autoridade do Magistério e do seu discernimento, como expus mais
acima. Das verdades de fé derivam, efectivamente, determinadas exigências
que a filosofia deve respeitar, quando entra em relação com
a teologia.
78. À luz destas reflexões, é fácil
compreender porque tenha o Magistério louvado reiteradamente os méritos
do pensamento de S. Tomás, e o tenha proposto como guia e modelo
dos estudos teológicos. O que interessava não era tomar posição
sobre questões propriamente filosóficas, nem impor a adesão
a teses particulares; o objectivo do Magistério era, e continua a
ser, mostrar como S. Tomás é um autêntico modelo para
quantos buscam a verdade. De facto, na sua reflexão, a exigência
da razão e a força da fé encontraram a síntese
mais elevada que o pensamento jamais alcançou, enquanto soube
defender a novidade radical trazida pela Revelação, sem
nunca humilhar o caminho próprio da razão.
79. Ao explicitar melhor os conteúdos do Magistério
precedente, é minha intenção, nesta última
parte, indicar algumas exigências que a teologia — e, ainda
antes, a palavra de Deus — coloca, hoje, ao pensamento filosófico
e às filosofias actuais. Como já assinalei, o filósofo
deve proceder segundo as próprias regras e basear-se sobre os próprios
princípios; todavia, a verdade é uma só. A Revelação,
com os seus conteúdos, não poderá nunca humilhar a
razão nas suas descobertas e na sua legítima autonomia; a
razão, por sua vez, não deverá perder nunca a sua
capacidade de interrogar-se e de interrogar, consciente de não
poder arvorar-se em valor absoluto e exclusivo. A verdade revelada,
projectando plena luz sobre o ser a partir do esplendor que lhe vem do próprio
Ser subsistente, iluminará o caminho da reflexão filosófica.
Em resumo, a revelação cristã torna-se o verdadeiro
ponto de enlace e confronto entre o pensar filosófico e o teológico,
no seu recíproco intercâmbio. Espera-se, pois, que teólogos
e filósofos se deixem guiar unicamente pela autoridade da verdade,
para que seja elaborada uma filosofia de harmonia com a palavra de Deus.
Esta filosofia será o terreno de encontro entre as culturas e a fé
cristã, o espaço de entendimento entre crentes e não
crentes. Ajudará os crentes a convencerem-se mais intimamente de
que a profundidade e a autenticidade da fé saem favorecidas quando
esta se une ao pensamento e não renuncia a ele. Mais uma vez,
encontramos nos Padres a lição que nos guia nesta convicção:
« Crer, nada mais é senão pensar consentindo […].
Todo o que crê, pensa; crendo pensa, e pensando crê […]. A fé,
se não for pensada, nada é ». (95) Mais: « Se se
tira o assentimento, tira-se a fé, pois, sem o assentimento,
realmente não se crê ». (96)
CAPÍTULO VII
EXIGÊNCIAS E TAREFAS ACTUAIS
1. As exigências irrenunciáveis da palavra de Deus
80. A Sagrada Escritura contém, de forma explícita ou implícita,
toda uma série de elementos que permite alcançar uma
perspectiva de notável densidade filosófica acerca do homem
e do mundo. Os cristãos foram gradualmente tomando consciência
da riqueza contida naquelas páginas sagradas. Delas se conclui que
a realidade que experimentamos, não é o absoluto: não
é incriada, nem se autogerou. Só Deus é o Absoluto.
Nas páginas da Bíblia, o homem é visto como imago
Dei, que contém indicações precisas sobre o seu
ser, a sua liberdade e a imortalidade do seu espírito. Uma vez que
o mundo criado não é autosuficiente, qualquer ilusão
de autonomia que ignore a essencial dependência de Deus de toda
criatura — incluindo o homem — leva a dramas que destroem a
busca racional da harmonia e do sentido da existência humana.
Também o problema do mal moral — a forma mais trágica
do mal — é considerado na Bíblia, dizendo-nos que este
não pode ser reduzido a uma mera deficiência devida à
matéria, mas é uma ferida que provém de uma manifestação
desordenada da liberdade humana. Finalmente, a palavra de Deus apresenta o
problema do sentido da existência e revela a resposta para o mesmo,
encaminhando o homem para Jesus Cristo, o Verbo de Deus encarnado, que
realiza em plenitude a existência humana. Poder-se-iam ainda
explicitar outros aspectos da leitura do texto sagrado; de qualquer modo,
o que sobressai é a rejeição de toda a forma de
relativismo, materialismo, panteísmo.
A convicção fundamental desta « filosofia »
presente na Bíblia é que a vida humana e o mundo têm
um sentido e caminham para a sua plenitude, que se verifica em Jesus
Cristo. O mistério da Encarnação permanecerá
sempre o centro de referência para se poder compreender o enigma da
existência humana, do mundo criado, e mesmo de Deus. A filosofia
encontra, neste mistério, os desafios extremos, porque a razão
é chamada a assumir uma lógica que destrói as
barreiras onde ela mesma corre o risco de se fechar. Somente aqui, porém,
o sentido da existência alcança o seu ponto culminante. Com
efeito, torna-se inteligível a essência íntima de Deus
e do homem: no mistério do Verbo encarnado, são
salvaguardadas a natureza divina e a natureza humana, com sua respectiva
autonomia, e simultaneamente manifesta-se aquele vínculo único
que as coloca em mútuo relacionamento, sem confusão. (97)
81. Deve ter-se em conta que um dos dados mais salientes da nossa situação
actual consiste na « crise de sentido ». Os pontos de vista,
muitas vezes de carácter científico, sobre a vida e o mundo
multiplicaram-se tanto que estamos efectivamente assistindo à
afirmação crescente do fenómeno da fragmentação
do saber. É precisamente isto que torna difícil e
frequentemente vã a procura de um sentido. E, mais dramático
ainda, neste emaranhado de dados e de factos, em que se vive e que parece
constituir a própria trama da existência, tantos se
interrogam se ainda tem sentido pôr-se a questão do sentido.
A pluralidade das teorias que se disputam a resposta, ou os diversos modos
de ver e interpretar o mundo e a vida do homem não fazem senão
agravar esta dúvida radical, que facilmente desemboca num estado de
cepticismo e indiferença ou nas diversas expressões do
niilismo.
Em consequência disto, o espírito humano fica muitas vezes
ocupado por uma forma de pensamento ambíguo, que o leva a
encerrar-se ainda mais em si próprio, dentro dos limites da própria
imanência, sem qualquer referência ao transcendente. Privada
da questão do sentido da existência, uma filosofia incorreria
no grave perigo de relegar a razão para funções
meramente instrumentais, sem uma autêntica paixão pela busca
da verdade.
Para estar em consonância com a palavra de Deus ocorre, antes de
mais, que a filosofia volte a encontrar a sua dimensão
sapiencial de procura do sentido último e global da vida. Esta
primeira exigência, por sinal, constitui um estímulo utilíssimo
para a filosofia se conformar com a sua própria natureza. Deste
modo, ela não será apenas aquela instância crítica
decisiva que indica, às várias partes do saber científico,
o seu fundamento e os seus limites, mas representará também
a instância última de unificação do saber e do
agir humano, levando-os a convergirem para um fim e um sentido
definitivos. Esta dimensão sapiencial é ainda mais indispensável
hoje, uma vez que o imenso crescimento do poder técnico da
humanidade requer uma renovada e viva consciência dos valores últimos.
Se viesse a faltar a estes meios técnicos a sua orientação
para um fim não meramente utilitarista, poderiam rapidamente
revelar-se desumanos e transformar-se mesmo em potenciais destrutores do género
humano. (98)
A palavra de Deus revela o fim último do homem, e dá um
sentido global à sua acção no mundo. Por isso, ela
convida a filosofia a empenhar-se na busca do fundamento natural desse
sentido, que é a religiosidade constitutiva de cada pessoa. Uma
filosofia que quisesse negar a possibilidade de um sentido último e
global, seria não apenas imprópria, mas errónea.
82. De resto, este papel sapiencial não poderia ser desempenhado
por uma filosofia que não fosse, ela própria, um autêntico
e verdadeiro saber, isto é, debruçado não só
sobre os aspectos particulares e relativos — sejam eles funcionais,
formais ou úteis — da realidade, mas sobre a verdade total e
definitiva desta, ou seja, sobre o próprio ser do objecto de
conhecimento. Daqui, uma segunda exigência: verificar a capacidade
do homem chegar ao conhecimento da verdade; mais, um conhecimento
que alcance a verdade objectiva por meio daquela adæquatio rei
et intellectus, a que se referem os Doutores da Escolástica.
(99) Esta exigência, própria da fé, foi explicitamente
reafirmada pelo Concílio Vaticano II: « A inteligência,
de facto, não se limita ao domínio dos fenómenos;
embora, em consequência do pecado, esteja parcialmente obscurecida e
debilitada, ela é capaz de atingir com certeza a realidade inteligível
». (100)
Uma filosofia, radicalmente fenomenista ou relativista, revelar-se-ia
inadequada para ajudar no aprofundamento da riqueza contida na palavra de
Deus. De facto, a Sagrada Escritura sempre pressupõe que o homem,
mesmo quando culpável de duplicidade e mentira, é capaz de
conhecer e captar a verdade clara e simples. Nos Livros Sagrados, e de
modo particular no Novo Testamento, encontram-se textos e afirmações
de alcance propriamente ontológico. Os autores inspirados, com
efeito, quiseram formular afirmações verdadeiras, isto é,
capazes de exprimir a realidade objectiva. Não se pode dizer que a
tradição católica tenha cometido um erro, quando
entendeu alguns textos de S. João e de S. Paulo como afirmações
sobre o ser mesmo de Cristo. Ora, quando a teologia procura compreender e
explicar estas afirmações, tem necessidade do auxílio
duma filosofia que não renegue a possibilidade de um conhecimento
objectivamente verdadeiro, embora sempre passível de aperfeiçoamento.
Isto vale também para os juízos da consciência moral,
que a Sagrada Escritura supõe ser objectivamente verdadeiros. (101)
83. As duas exigências, já referidas, implicam uma
terceira: ocorre uma filosofia de alcance autenticamente metafísico,
isto é, capaz de transcender os dados empíricos para chegar,
na sua busca da verdade, a algo de absoluto, definitivo, básico.
Trata-se duma exigência implícita tanto no conhecimento de
tipo sapiencial, como de carácter analítico; de modo
particular, é uma exigência própria do conhecimento do
bem moral, cujo fundamento último é o sumo Bem, o próprio
Deus. Não é minha intenção falar aqui da metafísica
enquanto escola específica ou particular corrente histórica;
desejo somente afirmar que a realidade e a verdade transcendem o elemento
factível e empírico, e quero reivindicar a capacidade que o
homem possui de conhecer esta dimensão transcendente e metafísica
de forma verdadeira e certa, mesmo se imperfeita e analógica. Neste
sentido, a metafísica não deve ser vista como alternativa à
antropologia, pois é precisamente ela que permite dar fundamento ao
conceito da dignidade da pessoa, assente na sua condição
espiritual. De modo particular, a pessoa constitui um âmbito
privilegiado para o encontro com o ser e, consequentemente, com a reflexão
metafísica.
Em toda a parte onde o homem descobre a presença dum apelo ao
absoluto e ao transcendente, lá se abre uma fresta para a dimensão
metafísica do real: na verdade, na beleza, nos valores morais, na
pessoa do outro, no ser, em Deus. Um grande desafio, que nos espera no
final deste milénio, é saber realizar a passagem, tão
necessária como urgente, do fenómeno ao fundamento.
Não é possível deter-se simplesmente na experiência;
mesmo quando esta exprime e manifesta a interioridade do homem e a sua
espiritualidade, é necessário que a reflexão
especulativa alcance a substância espiritual e o fundamento que a
sustenta. Portanto, um pensamento filosófico que rejeitasse
qualquer abertura metafísica, seria radicalmente inadequado para
desempenhar um papel de mediação na compreensão da
Revelação.
A palavra de Deus alude continuamente a realidades que ultrapassam a
experiência e até mesmo o pensamento do homem; mas, este «
mistério » não poderia ser revelado, nem a teologia
poderia de modo algum torná-lo inteligível, (102) se o
conhecimento humano se limitasse exclusivamente ao mundo da experiência
sensível. Por isso, a metafísica constitui uma intermediária
privilegiada na pesquisa teológica. Uma teologia, privada do
horizonte metafísico, não conseguiria chegar além da
análise da experiência religiosa, não permitindo ao
intellectus fidei exprimir coerentemente o valor universal e
transcendente da verdade revelada.
Se insisto tanto na componente metafísica, é porque estou
convencido de que este é o caminho obrigatório para superar
a situação de crise que aflige actualmente grandes sectores
da filosofia e, desta forma, corrigir alguns comportamentos errados,
difusos na nossa sociedade.
84. A importância da instância metafísica torna-se
ainda mais evidente, quando se considera o progresso actual das ciências
hermenêuticas e das diferentes análises da linguagem. Os
resultados alcançados por estes estudos podem ser muito úteis
para a compreensão da fé, enquanto manifestam a estrutura do
nosso pensar e falar, e o sentido presente na linguagem. Existem, porém,
especialistas destas ciências que tendem, nas suas pesquisas, a
deter-se no modo como se compreende e exprime a realidade, prescindindo de
verificar a possibilidade de a razão descobrir a essência da
mesma. Como não individuar neste comportamento uma confirmação
da crise de confiança, que a nossa época está a
atravessar, acerca das capacidades da razão? Além disso,
quando estas teses, baseando-se em convicções apriorísticas,
tendem a ofuscar os conteúdos da fé ou a negar a sua
validade universal, então não só humilham a razão,
mas colocam-se por si mesmas fora de jogo. De facto, a fé pressupõe
claramente que a linguagem humana seja capaz de exprimir de modo universal
— embora em termos analógicos, mas nem por isso menos
significativos — a realidade divina e transcendente. (103) Se assim não
fosse, a palavra de Deus, que é sempre palavra divina em linguagem
humana, não seria capaz de exprimir nada sobre Deus. A interpretação
desta Palavra não pode remeter-nos apenas de uma interpretação
para outra, sem nunca nos fazer chegar a uma afirmação
absolutamente verdadeira; caso contrário, não haveria revelação
de Deus, mas só a expressão de noções humanas
sobre Ele e sobre aquilo que presumivelmente Ele pensa de nós.
85. Bem sei que, aos olhos de muitos dos que actualmente se entregam à
pesquisa filosófica, podem parecer árduas estas exigências
postas pela palavra de Deus à filosofia. Por isso mesmo, retomando
aquilo que, já há algumas gerações, os Sumos
Pontífices não cessam de ensinar e que o próprio Concílio
Vaticano II confirmou, quero exprimir vigorosamente a convicção
de que o homem é capaz de alcançar uma visão unitária
e orgânica do saber. Esta é uma das tarefas que o pensamento
cristão deverá assumir durante o próximo milénio
da era cristã. A subdivisão do saber, enquanto comporta uma
visão parcial da verdade com a consequente fragmentação
do seu sentido, impede a unidade interior do homem de hoje. Como poderia a
Igreja deixar de preocupar-se? Os Pastores recebem esta função
sapiencial directamente do Evangelho, e não podem eximir-se do
dever de concretizá-la.
Considero que todos os que actualmente desejam responder, como filósofos,
às exigências que a palavra de Deus põe ao pensamento
humano, deveriam elaborar o seu raciocínio sobre a base destes
postulados, numa coerente continuidade com aquela grande tradição
que, partindo dos antigos, passa pelos Padres da Igreja e os mestres da
escolástica até chegar a englobar as conquistas fundamentais
do pensamento moderno e contemporâneo. Se conseguir recorrer a esta
tradição e inspirar-se nela, o filósofo não
deixará de se mostrar fiel à exigência de autonomia do
pensamento filosófico.
Neste sentido, é muito importante que, no contexto actual, alguns
filósofos se façam promotores da descoberta do papel
determinante que tem a tradição para uma forma correcta de
conhecimento. De facto, o recurso à tradição não
é uma mera lembrança do passado; mas constitui sobretudo o
reconhecimento dum património cultural que pertence a toda a
humanidade. Poder-se-ia mesmo dizer que somos nós que pertencemos à
tradição, e por isso não podemos dispor dela a nosso
bel-prazer. É precisamente este enraizamento na tradição
que hoje nos permite poder exprimir um pensamento original, novo e aberto
para o futuro. Esta observação é ainda mais
pertinente para a teologia, não só porque ela possui a Tradição
viva da Igreja como fonte originária, (104) mas também
porque ela, em virtude disso mesmo, deve ser capaz de recuperar quer a
profunda tradição teológica que marcou as épocas
precedentes, quer a tradição perene daquela filosofia que,
pela sua real sabedoria, conseguiu superar as fronteiras do espaço
e do tempo.
86. A insistência sobre a necessidade duma estreita relação
de continuidade entre a reflexão filosófica actual e a
reflexão elaborada na tradição cristã visa
prevenir do perigo que se esconde em algumas correntes de pensamento, hoje
particularmente difusas. Embora brevemente, considero oportuno deter-me
sobre elas, para pôr em relevo os seus erros e consequentes riscos
para a actividade filosófica.
A primeira aparece sob o nome de ecletismo, termo com o qual se
designa o comportamento de quem, na pesquisa, na doutrina e na argumentação,
mesmo teológica, costuma assumir ideias tomadas isoladamente de
distintas filosofias, sem se preocupar com a sua coerência e conexão
sistemática, nem com o seu contexto histórico. Deste modo, a
pessoa fica impossibilitada de discernir entre a parte de verdade dum
pensamento e aquilo que nele pode ser errado ou inadequado. Também é
possível individuar uma forma extrema de ecletismo no abuso retórico
dos termos filosóficos, às vezes praticado por alguns teólogos.
Este género de instrumentalização não favorece
a busca da verdade, nem educa a razão — tanto teológica,
como filosófica — a argumentar de forma séria e científica.
O estudo rigoroso e profundo das doutrinas filosóficas, da
linguagem que lhes é peculiar, e do contexto onde surgiram, ajuda a
superar os riscos do ecletismo e permite uma adequada integração
daquelas na argumentação teológica.
87. O ecletismo é um erro de método, mas poderia também
ocultar em si as teses próprias do historicismo. Para
compreender correctamente uma doutrina do passado, é necessário
que esteja inserida no seu contexto histórico e cultural.
Diversamente, o historicismo toma como sua tese fundamental estabelecer a
verdade duma filosofia com base na sua adequação a um
determinado período e função histórica. Deste
modo nega-se, pelo menos implicitamente, a validade perene da verdade. O
que era verdade numa época, afirma o historicista, pode já não
sê-lo noutra. Em resumo, a história do pensamento, para ele,
reduz-se a uma espécie de achado arqueológico, a que recorre
a fim de pôr em evidência posições do passado,
em grande parte já superadas e sem significado para o tempo
presente. Ora, apesar de a formulação estar de certo modo
ligada ao tempo e à cultura, deve-se considerar que a verdade ou o
erro nela expressos podem ser, não obstante a distância espácio-temporal,
reconhecidos e avaliados como tais.
Na reflexão teológica, o historicismo tende a maior parte
das vezes a apresentar-se sob uma forma de « modernismo ». Com a
justa preocupação de tornar o discurso teológico
actual e assimilável para o homem contemporâneo, faz-se
apenas uso das asserções e termos filosóficos mais
recentes, descuidando exigências críticas que, à luz
da tradição, dever-se-iam eventualmente colocar. Esta forma
de modernismo, pelo simples facto de trocar a actualidade pela verdade,
revela-se incapaz de satisfazer as exigências de verdade a que a
teologia é chamada a dar resposta.
88. Outro perigo a ser considerado é o cientificismo.
Esta concepção filosófica recusa-se a admitir, como válidas,
formas de conhecimento distintas daquelas que são próprias
das ciências positivas, relegando para o âmbito da pura
imaginação tanto o conhecimento religioso e teológico,
como o saber ético e estético. No passado, a mesma ideia
aparecia expressa no positivismo e no neopositivismo, que consideravam
destituídas de sentido as afirmações de carácter
metafísico. A crítica epistemológica desacreditou
esta posição; mas, vemo-las agora renascer sob as novas
vestes do cientificismo. Na sua perspectiva, os valores são
reduzidos a simples produtos da emotividade, e a noção de
ser é posta de lado para dar lugar ao facto puro e simples. A ciência,
prepara-se assim para dominar todos os aspectos da existência
humana, através do progresso tecnológico. Os sucessos inegáveis
no âmbito da pesquisa científica e da tecnologia contemporânea
contribuíram para a difusão da mentalidade cientificista,
que parece não conhecer fronteiras, quando vemos como penetrou nas
diversas culturas e as mudanças radicais que aí provocou.
Infelizmente, deve-se constatar que o cientificismo considera tudo o que
se refere à questão do sentido da vida como fazendo parte do
domínio do irracional ou da fantasia. Ainda mais decepcionante é
a perspectiva apresentada por esta corrente de pensamento a respeito dos
outros grandes problemas da filosofia que, quando não passam
simplesmente ignorados, são analisados com base em analogias
superficiais, destituídas de fundamentação racional.
Isto leva ao empobrecimento da reflexão humana, subtraindo-lhe
aqueles problemas fundamentais que o animal rationale se tem
colocado constantemente, desde o início da sua existência
sobre a terra. Na mesma linha, ao pôr de lado a crítica que
nasce da avaliação ética, a mentalidade cientificista
conseguiu fazer com que muitos aceitassem a ideia de que aquilo que se
pode realizar tecnicamente, torna-se por isso mesmo também
moralmente admissível.
89. Portador de perigos não menores é o pragmatismo,
atitude mental própria de quem, ao fazer as suas opções,
exclui o recurso a reflexões abstractas ou a avaliações
fundadas sobre princípios éticos. As consequências práticas,
que derivam desta linha de pensamento, são notáveis. De modo
particular, tem vindo a ganhar terreno uma concepção da
democracia que não contempla o referimento a fundamentos de ordem
axiológica e, por isso mesmo, imutáveis: a admissibilidade,
ou não, de determinado comportamento é decidida com base no
voto da maioria parlamentar. (105) A consequência de semelhante posição
é clara: as grandes decisões morais do homem ficam
efectivamente subordinadas às deliberações que os órgãos
institucionais vão assumindo pouco a pouco. Mais, a própria
antropologia fica fortemente condicionada com a proposta duma visão
unidimensional do ser humano, da qual se excluem os grandes dilemas éticos
e as análises existenciais sobre o sentido do sofrimento e do
sacrifício, da vida e da morte.
90. As teses examinadas até aqui conduzem, por sua vez, a uma
concepção mais geral, que parece constituir, hoje, o
horizonte comum de muitas filosofias que não querem saber do
sentido do ser. Estou a referir-me à leitura niilista, que é
a rejeição de qualquer fundamento e simultaneamente a negação
de toda a verdade objectiva. O niilismo, antes mesmo de estar em
contraste com as exigências e os conteúdos próprios da
palavra de Deus, é negação da humanidade do homem e
também da sua identidade. De facto, é preciso ter em conta
que o olvido do ser implica inevitavelmente a perda de contacto com a
verdade objectiva e, consequentemente, com o fundamento sobre o qual se
apoia a dignidade do homem. Deste modo, abre-se espaço à
possibilidade de apagar, da face do homem, os traços que revelam a
sua semelhança com Deus, conduzindo-o progressivamente a uma
destrutiva ambição de poder ou ao desespero da solidão.
Uma vez que se privou o homem da verdade, é pura ilusão
pretender torná-lo livre. Verdade e liberdade, com efeito, ou
caminham juntas, ou juntas miseravelmente perecem. (106)
91. Ao comentar as correntes de pensamento acima lembradas, não
foi minha intenção apresentar um quadro completo da situação
actual da filosofia: aliás, esta dificilmente poderia ser integrada
numa visão unitária. Faço questão de assinalar
que a herança do saber e da sabedoria se enriqueceu efectivamente
em diversos campos. Basta citar a lógica, a filosofia da linguagem,
a epistemologia, a filosofia da natureza, a antropologia, a análise
profunda das vias afectivas do conhecimento, a perspectiva existencial
aplicada à análise da liberdade. Por outro lado, a afirmação
do princípio de imanência, que está no âmago da
pretensão racionalista, suscitou, a partir do século
passado, reacções que levaram a pôr radicalmente em
questão postulados considerados indiscutíveis. Nasceram
assim correntes irracionalistas, ao mesmo tempo que a crítica punha
em evidência a inutilidade da exigência de auto-fundamentação
absoluta da razão.
A nossa época foi definida por certos pensadores como a época
da « pós-modernidade ». Este termo, não raramente
usado em contextos muito distanciados entre si, designa a aparição
de um conjunto de factores novos, que, pela sua extensão e eficácia,
se revelaram capazes de determinar mudanças significativas e
duradouras. Assim, o termo foi primeiramente usado no campo de fenómenos
de ordem estética, social, tecnológica. Depois, estendeu-se
ao âmbito filosófico, permanecendo, porém, marcado por
certa ambiguidade, quer porque a avaliação do que se define
como « pós-moderno » é umas vezes positivo e
outras negativo, quer porque não existe consenso sobre o delicado
problema da delimitação das várias épocas históricas.
Uma coisa, todavia, é certa: as correntes de pensamento que fazem
referência à pós-modernidade merecem adequada atenção.
Segundo algumas delas, de facto, o tempo das certezas teria
irremediavelmente passado, o homem deveria finalmente aprender a viver num
horizonte de ausência total de sentido, sob o signo do provisório
e do efémero. Muitos autores, na sua crítica demolidora de
toda a certeza e ignorando as devidas distinções, contestam
inclusivamente as certezas da fé.
De algum modo, este niilismo encontra confirmação na terrível
experiência do mal que caracterizou a nossa época. O
optimismo racionalista que via na história o avanço
vitorioso da razão, fonte de felicidade e de liberdade, não
pôde resistir face à dramaticidade de tal experiência,
a ponto de uma das maiores ameaças, neste final de século,
ser a tentação do desespero.
Verdade é que uma certa mentalidade positivista continua a
defender a ilusão de que, graças às conquistas científicas
e técnicas, o homem, como se fosse um demiurgo, poderá
chegar por si mesmo a garantir o domínio total do seu destino.
2. Tarefas actuais da teologia
92. Enquanto compreensão da Revelação, a teologia,
nas sucessivas épocas históricas, sempre sentiu como próprio
dever escutar as solicitações das várias culturas,
para permeá-las depois, através duma coerente conceptualização,
com o conteúdo da fé. Também hoje lhe compete uma
dupla tarefa. Por um lado, deve cumprir a missão que o Concílio
Vaticano II lhe confiou: renovar as suas metodologias, tendo em vista um
serviço mais eficaz à evangelização. Nesta
perspectiva, como não pensar às palavras pronunciadas pelo
Sumo Pontífice João XXIII, na abertura do Concílio?
Dizia ele: « Correspondendo à viva expectativa de quantos amam
sinceramente a religião cristã, católica e apostólica,
é necessário que esta doutrina seja conhecida mais ampla e
profundamente e que nela sejam instruídas e formadas mais
plenamente as consciências; é preciso que esta doutrina certa
e imutável, que deve ser fielmente respeitada, seja aprofundada e
apresentada segundo as exigências do nosso tempo ». (107)
Mas, por outro lado, a teologia deve manter o olhar fixo sobre a verdade
última que lhe foi confiada por meio da Revelação, não
se contentando nem se detendo em etapas intermédias. O teólogo
recorde-se de que o seu trabalho corresponde « ao dinamismo interior
próprio da fé » e que o objecto específico da
sua indagação é « a Verdade, o Deus vivo e o seu
desígnio de salvação revelado em Jesus Cristo ».
(108) Esta tarefa, que diz respeito em primeiro lugar à teologia,
interpela também a filosofia. De facto, a quantidade imensa de
problemas, que hoje aparece, requer um trabalho comum, embora desenvolvido
com metodologias diversas, para que a verdade possa novamente ser
conhecida e anunciada. A Verdade, que é Cristo, impõe-se
como autoridade universal que rege, estimula e faz crescer (cf. Ef
4, 15) tanto a teologia como a filosofia.
O facto de acreditar na possibilidade de se conhecer uma verdade
universalmente válida não é de forma alguma fonte de
intolerância; pelo contrário, é condição
necessária para um diálogo sincero e autêntico entre
as pessoas. Só com esta condição será possível
superar as divisões e percorrer juntos o caminho que conduz à
verdade total, seguindo por sendas que só Espírito do Senhor
ressuscitado conhece. (109) O modo como se configura hoje concretamente a
exigência de unidade, tendo em vista as tarefas actuais da teologia,
é o que desejo agora indicar.
93. O objectivo fundamental, que a teologia persegue, é apresentar
a compreensão da Revelação e o conteúdo da fé.
Assim, o verdadeiro centro da sua reflexão há-de ser a
contemplação do próprio mistério de Deus Uno e
Trino. E a este chega-se reflectindo sobre o mistério da encarnação
do Filho de Deus: sobre o facto de Ele Se fazer homem e, depois, caminhar
até à paixão e à morte, mistério este
que desembocará na sua gloriosa ressurreição e ascensão
à direita do Pai, donde enviará o Espírito de verdade
para constituir e animar a sua Igreja. Neste horizonte, a obrigação
primeira da teologia é a compreensão da kenosi de
Deus, mistério verdadeiramente grande para a mente humana, porque
lhe parece insustentável que o sofrimento e a morte possam exprimir
o amor que se dá sem pedir nada em troca. Nesta perspectiva, impõe-se
como exigência fundamental e urgente uma análise atenta dos
textos: os textos bíblicos primeiro, e depois os que exprimem a
Tradição viva da Igreja. A este respeito, surgem hoje alguns
problemas, novos só em parte, cuja solução coerente não
poderá ser encontrada sem o contributo da filosofia.
94. Um primeiro aspecto problemático refere-se à relação
entre o significado e a verdade. Como qualquer outro texto, também
as fontes que o teólogo interpreta transmitem, antes de mais, um
significado, que tem de ser individuado e exposto. Ora, este significado
apresenta-se como a verdade acerca de Deus, que é comunicada pelo
próprio Deus por meio do texto sagrado. Assim, a linguagem de Deus
toma corpo na linguagem humana, comunicando a verdade sobre Ele mesmo com
aquela « condescendência » admirável que reflecte a
lógica da Encarnação. (110) Por isso, ao interpretar
as fontes da Revelação, é necessário que o teólogo
se interrogue sobre qual seja a verdade profunda e genuína que os
textos querem comunicar, embora dentro dos limites da linguagem.
Quanto aos textos bíblicos, e em particular os Evangelhos, a sua
verdade não se reduz seguramente à narração de
simples acontecimentos históricos ou à revelação
de factos neutros, como pretendia o positivismo historicista. (111) Pelo
contrário, esses textos expõem acontecimentos, cuja verdade
está para além da mera ocorrência histórica:
está no seu significado para e dentro da história
da salvação. Esta verdade adquire a sua plena explicitação
na leitura perene que a Igreja faz dos referidos textos ao longo dos séculos,
mantendo inalterado o seu significado originário. Portanto, é
urgente que se interroguem, filosoficamente também, sobre a relação
que há entre o facto e o seu significado; relação
essa que constitui o sentido específico da história.
95. A palavra de Deus não se destina apenas a um povo ou só
a uma época. De igual modo, também os enunciados dogmáticos
formulam uma verdade permanente e definitiva, ainda que às vezes se
possa notar neles a cultura do período em que foram definidos.
Surge, assim, a pergunta sobre como seja possível conciliar o carácter
absoluto e universal da verdade com o inevitável condicionamento
histórico e cultural das fórmulas que a exprimem. Como disse
anteriormente, as teses do historicismo não são defendíveis.
Pelo contrário, a aplicação duma hermenêutica
aberta à questão metafísica é capaz de mostrar
como se passa das circunstâncias históricas e contingentes,
onde maturaram os textos, à verdade por eles expressa que está
para além desses condicionalismos.
Com a sua linguagem histórica e limitada, o homem pode exprimir
verdades que transcendem o fenómeno linguístico. De facto, a
verdade nunca pode estar limitada a um tempo, nem a uma cultura; é
conhecida na história, mas supera a própria história.
96. Esta consideração permite vislumbrar a solução
de outro problema: o da perene validade dos conceitos usados nas definições
conciliares. Já o meu venerado Predecessor Pio XII enfrentara a
questão, na carta encíclica Humani generis. (112)
A reflexão sobre este assunto não é fácil,
porque tem-se de atender cuidadosamente ao sentido que as palavras
adquirem nas diversas culturas e nas diferentes épocas. Entretanto,
a história do pensamento mostra que certos conceitos básicos
mantêm, através da evolução e da variedade das
culturas, o seu valor cognoscitivo universal e, consequentemente, a
verdade das proposições que os exprimem. (113) Se assim não
fosse, a filosofia e as ciências não poderiam comunicar entre
si, nem ser recebidas por culturas diferentes daquelas onde foram pensadas
e elaboradas. O problema hermenêutico é real, mas tem solução.
O valor objectivo de muitos conceitos não exclui, aliás, que
o seu significado frequentemente seja imperfeito. A reflexão filosófica
poderia ser de grande ajuda neste campo. Possa ela prestar o seu
contributo particular no aprofundamento da relação entre
linguagem conceptual e verdade, e na proposta de caminhos adequados para
uma sua correcta compreensão.
97. Se uma tarefa importante da teologia é a interpretação
das fontes, mais delicado e exigente ainda é o trabalho seguinte: a
compreensão da verdade revelada, ou seja, a elaboração
do intellectus fidei. Como já aludi, o intellectus
fidei requer o contributo duma filosofia do ser que, antes de mais,
permita à teologia dogmática realizar adequadamente
as suas funções. O pragmatismo dogmático dos inícios
deste século, segundo o qual as verdades da fé nada mais
seriam do que regras de comportamento, foi já refutado e rejeitado;
(114) apesar disso, persiste sempre a tentação de
compreender estas verdades de forma puramente funcional. Neste caso,
cair-se-ia num esquema inadequado, redutivo e desprovido da necessária
incisividade especulativa. Por exemplo, uma cristologia que partisse
unilateralmente « de baixo », como hoje se costuma dizer, ou uma
eclesiologia elaborada unicamente a partir do modelo das sociedades civis
dificilmente poderiam evitar o perigo de tal reducionismo.
Se o intellectus fidei quer integrar toda a riqueza da tradição
teológica, tem de recorrer à filosofia do ser. Esta deverá
ser capaz de propor o problema do ser segundo as exigências e as
contribuições de toda a tradição filosófica,
incluindo a mais recente, evitando cair em estéreis repetições
de esquemas antiquados. No quadro da tradição metafísica
cristã, a filosofia do ser é uma filosofia dinâmica
que vê a realidade nas suas estruturas ontológicas, causais e
inter-relacionais. A sua força e perenidade derivam do facto de se
basear precisamente sobre o acto do ser, o que lhe permite uma abertura
plena e global a toda a realidade, superando todo e qualquer limite até
alcançar Aquele que tudo leva à perfeição.
(115) Na teologia, que recebe os seus princípios da Revelação
como nova fonte de conhecimento, esta perspectiva é confirmada
através da relação íntima entre fé e
racionalidade metafísica.
98. Idênticas considerações podem ser feitas a propósito
da teologia moral. A recuperação da filosofia é
urgente também para a compreensão da fé que diz
respeito ao agir dos crentes. Diante dos desafios que se levantam
actualmente no campo social, económico, político e científico,
a consciência ética do homem desorientou-se. Na carta encíclica
Veritatis splendor, pus em evidência que muitos problemas do
mundo contemporâneo derivam de uma « crise em torno da verdade.
Perdida a ideia duma verdade universal sobre o bem, cognoscível
pela razão humana, mudou também inevitavelmente a concepção
de consciência: esta deixa de ser considerada na sua realidade
original, ou seja, como um acto da inteligência da pessoa, a quem
cabe aplicar o conhecimento universal do bem a uma determinada situação
e exprimir assim um juízo sobre a conduta justa a ter aqui e agora;
tende-se a conceder à consciência do indivíduo o
privilégio de estabelecer autonomamente os critérios do bem
e do mal, e de agir em consequência. Esta visão identifica-se
com uma ética individualista, na qual cada um se vê
confrontado com a sua verdade, diferente da verdade dos outros ».
(116)
Ao longo de toda a encíclica agora citada, sublinhei claramente o
papel fundamental que compete à verdade no campo da moral. Ora esta
verdade, na maior parte dos problemas éticos mais urgentes, requer,
da teologia moral, uma cuidadosa reflexão que saiba pôr em
evidência as suas raízes na palavra de Deus. Para poder
desempenhar esta sua missão, a teologia moral deve recorrer a uma ética
filosófica que tenha em vista a verdade do bem, isto é, uma ética
que não seja subjectivista nem utilitarista. Tal ética
implica e pressupõe uma antropologia filosófica e uma metafísica
do bem. A teologia moral, valendo-se desta visão unitária
que está necessariamente ligada à santidade cristã e à
prática das virtudes humanas e sobrenaturais, será capaz de
enfrentar os vários problemas que lhe dizem respeito — tais
como a paz, a justiça social, a família, a defesa da vida e
do ambiente natural — de forma mais adequada e eficaz.
99. Na Igreja, o trabalho teológico está, primariamente,
ao serviço do anúncio da fé e da catequese. (117) O
anúncio, ou querigma, chama à conversão, propondo a
verdade de Cristo que tem o seu ponto culminante no Mistério
Pascal: na verdade, só em Cristo é possível conhecer
a plenitude da verdade que salva (cf. Act 4, 12; 1 Tim 2,
4-6).
Neste contexto, é fácil compreender a razão por
que, além da teologia, assuma também grande relevo a referência
à catequese: é que esta possui implicações
filosóficas que têm de ser aprofundadas à luz da fé.
A doutrina ensinada na catequese pretende formar a pessoa. Por isso a
catequese, que é também comunicação linguística,
deve apresentar a doutrina da Igreja na sua integridade, (118) mostrando a
ligação que ela tem com a vida dos crentes. (119)
Realiza-se, assim, uma singular união entre doutrina e vida, que é
impossível conseguir de outro modo. De facto, aquilo que se
comunica na catequese não é um corpo de verdades
conceptuais, mas o mistério do Deus vivo. (120)
A reflexão filosófica muito pode contribuir para
esclarecer a relação entre verdade e vida, entre
acontecimento e verdade doutrinal, e sobretudo a relação
entre verdade transcendente e linguagem humanamente inteligível.
(121) A reciprocidade que se cria entre as disciplinas teológicas e
os resultados alcançados pelas diversas correntes filosóficas,
pode traduzir-se numa real fecundidade para a comunicação da
fé e para uma sua compreensão mais profunda.
CONCLUSÃO
100. Passados mais de cem anos da publicação da encíclica
Æterni Patris de Leão XIII, à qual me
referi várias vezes nestas páginas, pareceu-me necessário
abordar novamente e de forma mais sistemática o discurso sobre o
tema da relação entre a fé e a filosofia. É óbvia
a importância que o pensamento filosófico tem no progresso
das culturas e na orientação dos comportamentos pessoais e
sociais. Embora isso nem sempre se note de forma explícita, ele
exerce também uma grande influência sobre a teologia e suas
diversas disciplinas. Por estes motivos, considerei justo e necessário
sublinhar o valor que a filosofia tem para a compreensão da fé,
e as limitações em que aquela se vê, quando esquece ou
rejeita as verdades da Revelação. De facto, a Igreja
continua profundamente convencida de que fé e razão «
se ajudam mutuamente », (122) exercendo, uma em prol da outra, a função
tanto de discernimento crítico e purificador, como de estímulo
para progredir na investigação e no aprofundamento.
101. Se detivermos o nosso olhar sobre a história do pensamento,
sobretudo no Ocidente, é fácil constatar a riqueza que
sobreveio, para o progresso da humanidade, do encontro da filosofia com a
teologia e do intercâmbio das suas respectivas conquistas. A
teologia, que recebeu o dom duma abertura e originalidade que lhe permite
existir como ciência da fé, fez seguramente com que a razão
permanecesse aberta diante da novidade radical que a revelação
de Deus traz consigo. E isto foi, sem dúvida alguma, uma vantagem
para a filosofia, que, assim, viu abrirem-se novos horizontes apontando
para sucessivos significados que a razão está chamada a
aprofundar.
Precisamente à luz desta constatação, tal como
reafirmei o dever que tem a teologia de recuperar a sua genuína
relação com a filosofia, da mesma forma sinto a obrigação
de sublinhar que é conveniente para o bem e o progresso do
pensamento que também a filosofia recupere a sua relação
com a teologia. Nesta, encontrará não a reflexão dum
mero indivíduo, que, embora profunda e rica, sempre traz consigo as
limitações de perspectiva próprias do pensamento de
um só, mas a riqueza duma reflexão comum. De facto, quando
indaga sobre a verdade, a teologia, por sua natureza, é sustentada
pela nota da eclesialidade (123) e pela tradição do
Povo de Deus, com sua riqueza multiforme de conhecimentos e de culturas na
unidade da fé.
102. Com tal insistência sobre a importância e as autênticas
dimensões do pensamento filosófico, a Igreja promove a
defesa da dignidade humana e, simultaneamente, o anúncio da
mensagem evangélica. Ora, para estas tarefas, não existe,
hoje, preparação mais urgente do que esta: levar os homens à
descoberta da sua capacidade de conhecer a verdade (124) e do seu anseio
pelo sentido último e definitivo da existência. À luz
destas exigências profundas, inscritas por Deus na natureza humana,
aparece mais claro também o significado humano e humanizante da
palavra de Deus. Graças à mediação de uma
filosofia que se tornou também verdadeira sabedoria, o homem
contemporâneo chegará a reconhecer que será tanto mais
homem quanto mais se abrir a Cristo, acreditando no Evangelho.
103. Além disso, a filosofia é como que o espelho onde se
reflecte a cultura dos povos. Uma filosofia que se desenvolve de harmonia
com a fé aceitando o estímulo das exigências teológicas,
faz parte daquela « evangelização da cultura » que
Paulo VI propôs como um dos objectivos fundamentais da evangelização.
(125) Pensando na nova evangelização, cuja urgência
não me canso de recordar, faço apelo aos filósofos
para que saibam aprofundar aquelas dimensões de verdade, bem e
beleza, a que dá acesso a palavra de Deus. Isto torna-se ainda mais
urgente, ao considerar os desafios que o novo milénio parece trazer
consigo: eles tocam de modo particular as regiões e as culturas de
antiga tradição cristã. Este cuidado deve
considerar-se também um contributo fundamental e original para o
avanço da nova evangelização.
104. O pensamento filosófico é frequentemente o único
terreno comum de entendimento e diálogo com quem não
partilha a nossa fé. O movimento filosófico contemporâneo
exige o empenhamento solícito e competente de filósofos
crentes que sejam capazes de individuar as expectativas, possibilidades e
problemáticas deste momento histórico. Discorrendo à
luz da razão e segundo as suas regras, o filósofo cristão,
sempre guiado naturalmente pela leitura superior que lhe vem da palavra de
Deus, pode criar uma reflexão que seja compreensível e
sensata mesmo para quem ainda não possua a verdade plena que a
revelação divina manifesta. Este terreno comum de
entendimento e diálogo é ainda mais importante hoje, se se
pensa que os problemas mais urgentes da humanidade — como, por
exemplo, o problema ecológico, o problema da paz ou da convivência
das raças e das culturas — podem ter solução à
luz duma colaboração clara e honesta dos cristãos com
os fiéis doutras religiões e com todos os que, mesmo não
aderindo a qualquer crença religiosa, têm a peito a renovação
da humanidade. Afirmou-o o Concílio Vaticano II: « Por nossa
parte, o desejo de um tal diálogo, guiado apenas pelo amor pela
verdade e com a necessária prudência, não exclui ninguém:
nem aqueles que cultivam os altos valores do espírito humano, sem
ainda conhecerem o seu Autor, nem aqueles que se opõem à
Igreja e, de várias maneiras, a perseguem ». (126) Uma
filosofia, na qual já resplandeça algo da verdade de Cristo,
única resposta definitiva aos problemas do homem, (127) será
um apoio eficaz para aquela ética verdadeira e simultaneamente
universal de que, hoje, a humanidade tem necessidade.
105. Não posso concluir esta carta encíclica sem dirigir
um último apelo, em primeiro lugar aos teólogos,
para que prestem particular atenção às implicações
filosóficas da palavra de Deus e realizem uma reflexão onde
sobressaia a densidade especulativa e prática da ciência teológica.
Desejo agradecer-lhes o seu serviço eclesial. A estrita conexão
entre a sabedoria teológica e o saber filosófico é
uma das riquezas mais originais da tradição cristã no
aprofundamento da verdade revelada. Por isso, exorto-os a recuperarem e a
porem em evidência o melhor possível a dimensão metafísica
da verdade, para desse modo entrarem num diálogo crítico e
exigente quer com o pensamento filosófico contemporâneo, quer
com toda a tradição filosófica, esteja esta em
sintonia ou contradição com a palavra de Deus. Tenham sempre
presente a indicação dum grande mestre do pensamento e da
espiritualidade, S. Boaventura, que, ao introduzir o leitor na sua obra
Itinerarium mentis in Deum, convidava-o a ter consciência de
que « a leitura não é suficiente sem a compunção,
o conhecimento sem a devoção, a investigação
sem o arrebatamento do enlevo, a prudência sem a capacidade de
abandonar-se à alegria, a actividade separada da religiosidade, o
saber separado da caridade, a inteligência sem a humildade, o estudo
sem o suporte da graça divina, a reflexão sem a sabedoria
inspirada por Deus ». (128)
Dirijo o meu apelo também a quantos têm a responsabilidade
da formação sacerdotal, tanto académica como
pastoral, para que cuidem, com particular atenção, da
preparação filosófica daquele que deverá
anunciar o Evangelho ao homem de hoje, e mais ainda se se vai dedicar à
investigação e ao ensino da teologia. Procurem organizar o
seu trabalho à luz das prescrições do Concílio
Vaticano II (129) e sucessivas determinações, que mostram a
tarefa indeclinável e urgente, que cabe a todos nós, de
contribuir para uma genuína e profunda comunicação
das verdades da fé. Não se esqueça a grave
responsabilidade de uma preparação prévia e condigna
do corpo docente, destinado ao ensino da filosofia nos Seminários e
nas Faculdades Eclesiásticas. (130) É necessário que
uma tal docência possua a conveniente preparação científica,
proponha de maneira sistemática o grande património da tradição
cristã, e seja efectuada com o devido discernimento face às
exigências actuais da Igreja e do mundo.
106. O meu apelo dirige-se ainda aos filósofos e a quantos
ensinam a filosofia, para que, na esteira duma tradição
filosófica perenemente válida, tenham a coragem de recuperar
as dimensões de autêntica sabedoria e de verdade, inclusive
metafísica, do pensamento filosófico. Deixem-se interpelar
pelas exigências que nascem da palavra de Deus, e tenham a força
de elaborar o seu discurso racional e argumentativo de resposta a tal
interpelação. Vivam em permanente tensão para a
verdade e atentos ao bem que existe em tudo o que é verdadeiro.
Poderão, assim, formular aquela ética genuína de que
a humanidade tem urgente necessidade, sobretudo nestes anos. A Igreja
acompanha com atenção e simpatia as suas investigações;
podem, pois, estar seguros do respeito que ela nutre pela justa autonomia
da sua ciência. De modo particular, quero encorajar os crentes
empenhados no campo da filosofia para que iluminem os diversos âmbitos
da actividade humana, graças ao exercício de uma razão
que se torna mais segura e perspicaz com o apoio que recebe da fé.
Não posso, enfim, deixar de dirigir uma palavra também aos
cientistas, que nos proporcionam, com as suas pesquisas, um
conhecimento sempre maior do universo inteiro e da variedade
extraordinariamente rica dos seus componentes, animados e inanimados, com
suas complexas estruturas de átomos e moléculas. O caminho
por eles realizado atingiu, especialmente neste século, metas que não
cessam de nos maravilhar. Ao exprimir a minha admiração e o
meu encorajamento a estes valorosos pioneiros da pesquisa científica,
a quem a humanidade muito deve do seu progresso actual, sinto o dever de
exortá-los a prosseguir nos seus esforços, permanecendo
sempre naquele horizonte sapiencial onde aos resultados científicos
e tecnológicos se unem os valores filosóficos e éticos,
que são manifestação característica e
imprescindível da pessoa humana. O cientista está bem cônscio
de que « a busca da verdade, mesmo quando se refere a uma realidade
limitada do mundo ou do homem, jamais termina; remete sempre para alguma
coisa que está acima do objecto imediato dos estudos, para os
interrogativos que abrem o acesso ao Mistério ». (131)
107. A todos peço para se debruçarem profundamente
sobre o homem, que Cristo salvou no mistério do seu amor, e sobre a
sua busca constante de verdade e de sentido. Iludindo-o, vários
sistemas filosóficos convenceram-no de que ele é senhor
absoluto de si mesmo, que pode decidir autonomamente sobre o seu destino e
o seu futuro, confiando apenas em si próprio e nas suas forças.
Ora, esta nunca poderá ser a grandeza do homem. Para a sua realização,
será determinante apenas a opção de viver na verdade,
construindo a própria casa à sombra da Sabedoria e nela
habitando. Só neste horizonte da verdade poderá compreender,
com toda a clareza, a sua liberdade e o seu chamamento ao amor e ao
conhecimento de Deus como suprema realização de si mesmo.
108. Por último, o meu pensamento dirige-se para Aquela que a oração
da Igreja invoca como Sede da Sabedoria. A sua vida é uma
verdadeira parábola, capaz de iluminar a reflexão que
desenvolvi. De facto, pode-se entrever uma profunda analogia entre a vocação
da bem-aventurada Virgem Maria e a vocação da filosofia genuína.
Como a Virgem foi chamada a oferecer toda a sua humanidade e feminilidade
para que o Verbo de Deus pudesse encarnar e fazer-Se um de nós,
também a filosofia é chamada a dar o seu contributo racional
e crítico para que a teologia, enquanto compreensão da fé,
seja fecunda e eficaz. E como Maria, ao prestar o seu consentimento ao anúncio
de Gabriel, nada perdeu da sua verdadeira humanidade e liberdade, assim
também o pensamento filosófico, quando acolhe a interpelação
que recebe da verdade do Evangelho, nada perde da sua autonomia, antes vê
toda a sua indagação elevada à mais alta realização.
Os santos monges da antiguidade cristã tinham compreendido bem esta
verdade, quando designavam Maria como « a mesa intelectual da fé
». (132) N’Ela, viam a imagem coerente da verdadeira filosofia, e
estavam convencidos de que deviam philosophari in Maria.
Que a Sede da Sabedoria seja o porto seguro para quantos consagram a sua
vida à procura da sabedoria! O caminho para a sabedoria, fim último
e autêntico de todo o verdadeiro saber, possa ver-se livre de
qualquer obstáculo por intercessão d’Aquela que, depois de
gerar a Verdade e tê-La conservado no seu coração,
comunicou-A para sempre à humanidade inteira.
Dado em Roma, junto de S. Pedro, no dia 14 de Setembro — Festa
da Exaltação da Santa Cruz — de 1998, vigésimo
ano de Pontificado.
(1) Na minha primeira encíclica, a Redemptor hominis, já
tinha escrito: « Tornámo-nos participantes de tal missão
de Cristo profeta, e, em virtude desta mesma missão e juntamente
com Ele, servimos a verdade divina na Igreja. A responsabilidade por esta
verdade implica também amá-la e procurar obter a sua mais
exacta compreensão, a fim de a tornarmos mais próxima de nós
mesmos e dos outros, com toda a sua força salvífica, com o
seu esplendor, com a sua profundidade e simultaneamente a sua simplicidade
» [N. 19: AAS 71 (1979), 306].
(2) Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo
contemporâneo Gaudium et spes, 16.
(3) Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, 25.
(4) N. 4: AAS 85 (1993), 1136.
(5) Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a revelação
divina Dei Verbum, 2.
(6) Cf. Const. dogm. sobre a fé católica Dei Filius,
III: DS 3008.
(7) Ibid., IV: DS 3015; citado também em Conc.
Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo
Gaudium et spes, 59.
(8) Const. dogm. sobre a revelação divina Dei Verbum,
2.
(9) João Paulo II, Carta ap. Tertio millennio adveniente (10
de Novembro de 1994), 10: AAS 87 (1995), 11.
(10) N. 4.
(11) N. 8.
(12) N. 22.
(13) Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a revelação
divina Dei Verbum, 4.
(14) Ibid., 5.
(15) O Concílio Vaticano I, ao qual se refere a sentença
anteriormente citada, ensina que a obediência da fé exige o
empenhamento da inteligência e da vontade: « Dado que o homem
depende totalmente de Deus, enquanto seu Criador e Senhor, e a razão
criada está submetida completamente à verdade incriada,
somos obrigados, quando Deus Se revela, a prestar-Lhe, mediante a fé,
a plena submissão da nossa inteligência e da nossa vontade »
[Const. dogm. sobre a fé católica Dei Filius, III:
DS 3008].
(16) Sequência, na Solenidade do Santíssimo Corpo e
Sangue de Cristo.
(17) Pensées (ed. L. Brunschvicg), 789.
(18) Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo
Gaudium et spes, 22.
(19) Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a revelação
divina Dei Verbum, 2.
(20) Proémio e nn. 1 e 15: PL 158, 223-224.226.235.
(21) De vera religione, XXXIX, 72: CCL 32, 234.
(22) « Ut te semper desiderando quærerent et inveniendo
quiescerent »: Missale Romanum.
(23) Aristóteles, Metafísica, I, 1.
(24) Confessiones, X, 23, 33: CCL 27,173.
(25) N. 34: AAS 85 (1993), 1161.
(26) Cf. João Paulo II, Carta ap. Salvifici doloris (11
de Fevereiro de 1984), 9: AAS 76 (1984), 209-210.
(27) Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Decl. sobre a relação da
Igreja com as religiões não-cristãs Nostra ætate,
2.
(28) Desenvolvo, há muito tempo, esta argumentação,
tendo-a expresso em diversas ocasiões: « "Quem é o
homem, e para que serve? E que bem ou que mal pode ele fazer?" (Sir
18, 8) (…) Estas perguntas estão no coração de
cada homem, como bem demonstra o génio poético de todos os
tempos e de todos os povos, que, quase como profecia da humanidade, repropõe
continuamente a séria pergunta que torna o homem
verdadeiramente tal. Exprimem a urgência de encontrar um porquê
da existência, de todos os seus instantes, tanto das suas etapas
salientes e decisivas como dos seus momentos mais comuns. Em tais
perguntas, é testemunhada a razão profunda da existência
humana, pois nelas a inteligência e a vontade do homem são
solicitadas a procurar livremente a solução capaz de
oferecer um sentido pleno à vida. Estes interrogativos, portanto,
constituem a expressão mais elevada da natureza do homem; por
conseguinte, a resposta a eles mede a profundidade do seu empenho na própria
existência. Em particular, quando o porquê das coisas é
procurado a fundo em busca da resposta última e mais exauriente,
então a razão humana atinge o seu vértice e abre-se à
religiosidade. De facto, a religiosidade representa a expressão
mais elevada da pessoa humana, porque é o ápice da sua
natureza racional. Brota da profunda aspiração do homem à
verdade, e está na base da busca livre e pessoal que ele faz do
divino » [Alocução da Audiência Geral de
quarta-feira, 19 de Outubro de 1983, 1-2: L’Osservatore Romano (ed.
portuguesa, de 23 de Outubro de 1983), 12].
(29) « [Galileu] declarou explicitamente que as duas verdades, de fé
e de ciência, não podem nunca contradizer-se, "procedendo
igualmente do Verbo divino a Escritura santa e a natureza, a primeira como
ditada pelo Espírito Santo, a segunda como executora fidelíssima
das ordens de Deus", segundo ele escreveu na sua carta ao Padre
Benedetto Castelli, a 21 de Dezembro de 1613. O Concílio Vaticano
II não se exprime diferentemente; retoma mesmo expressões
semelhantes, quando ensina: "A investigação metódica
em todos os campos do saber, quando levada a cabo (…) segundo as normas
morais, nunca será realmente
oposta à fé, já que as realidades profanas e as da
fé têm origem no mesmo Deus" (Gaudium et spes,
36). Galileu manifesta, na sua investigação científica,
a presença do Criador que o estimula, que Se antecipa às
suas intuições e as ajuda, operando no mais profundo do seu
espírito » [João Paulo II, Discurso à Pontifícia
Academia das Ciências, a 10 de Novembro de 1979: L’Osservatore
Romano (ed. portuguesa, de 25 de Novembro de 1979), 6].
(30) Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a revelação
divina Dei Verbum, 4.
(31) Orígenes, Contra Celso 3, 55: SC 136, 130.
(32) Diálogo com Trifão, 8, 1: PG 6, 492.
(33) Stromata I, 18, 90, 1: SC 30, 115.
(34) Cf. ibid. I, 16, 80, 5: SC 30, 108.
(35) Cf. ibid. I, 5, 28, 1: SC 30, 65.
(36) Ibid., VI, 7, 55, 1-2: PG 9, 277.
(37) Ibid., I, 20, 100, 1: SC 30, 124.
(38) Santo Agostinho, Confessiones VI, 5, 7: CCL 27,
77-78.
(39) Cf. ibid. VII, 9, 13-14: CCL 27, 101-102.
(40) « Quid ergo Athenis et Hierosolymis? Quid academiæ et
ecclesiæ? » [De præscriptione hereticorum, VII,
9: SC 46, 98].
(41) Cf. Congr. da Educação Católica, Instr. sobre
o estudo dos Padres da Igreja na formação sacerdotal (10 de
Novembro de 1989), 25: AAS 82 (1990), 617-618.
(42) Santo Anselmo, Proslogion, 1: PL 158, 226.
(43) Idem, Monologion, 64: PL 158, 210.
(44) Cf. S. Tomás de Aquino, Summa contra gentiles, I,
VII.
(45) « Cum enim gratia non tollat naturam, sed perficiat »
[Idem, Summa theologiæ, I, 1, 8 ad 2].
(46) Cf. João Paulo II, Discurso aos participantes no IX
Congresso Tomista Internacional (29 de Setembro de 1990): L’Osservatore
Romano (ed. portuguesa de 28 de Outubro de 1990), 9.
(47) Carta ap. Lumen Ecclesiæ (20 de Novembro de 1974), 8:
AAS 66 (1974), 680.
(48) « Præterea, hæc doctrina per studium acquiritur.
Sapientia autem per infusionem habetur, unde inter septem dona Spiritus
Sancti connumeratur » [Summa theologiæ, I, 1, 6].
(49) Ibid., II, II, 45, 1 ad 2; cf. também II, II, 45, 2.
(50) Ibid., I, II, 109, 1 ad 1, que cita a conhecida frase do
Ambrosiaster, In prima Cor 12,3: PL 17, 258.
(51) Leão XIII, Carta enc. ÆTERNI PATRIS (4 de
Agosto de 1879): ASS 11 (1878-1879), 109.
(52) Paulo VI, Carta ap. Lumen Ecclesiæ (20 de Novembro de
1974), 8: AAS 66 (1974), 683.
(53) Carta enc. Redemptor hominis (4 de Março de 1979),
15: AAS 71 (1979), 286.
(54) Cf. Pio XII, Carta enc. Humani generis (12 de Agosto de
1950): AAS 42 (1950), 566.
(55) Cf. Conc. Ecum. Vat. I, Primeira const. dogm. sobre a Igreja de
Cristo Pastor TERNUS: DS 3070; Conc. Ecum. Vat. II, Const.
dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, 25c.
(56) Cf. Sínodo de Constantinopla, DS 403.
(57) Cf. Concílio de Toledo I, DS 205; Concílio de
Braga I, DS 459-460; Sisto V, Bula Cœli et terræ
Creator (5 de Janeiro de 1586): Bullarium Romanum 44 (Roma,
1747), 176-179; Urbano VIII, Inscrutabilis iudiciorum (1 de Abril
de 1631): Bullarium Romanum 61 (Roma, 1758), 268-270.
(58) Cf. Conc. Ecum. de Viena, Decr. Fidei catholicæ: DS
902; Conc. Ecum. Lateranense V, Bula Apostolici regiminis: DS
1440.
(59) Cf. Theses a Ludovico Eugenio Bautain iussu sui Episcopi
subscriptæ (8 de Setembro de 1840): DS 2751-2756; Theses
a Ludovico Eugenio Bautain ex mandato S. Congr. Episcoporum et
Religiosorum subscriptæ (26 de Abril de 1844): DS 2765-2769.
(60) Cf. S. Congr. Indicis, Decr. Theses contra traditionalismum
Augustini Bonnety (11 de Junho de 1855): DS 2811-2814.
(61) Cf. Pio IX, Breve Eximiam tuam (15 de Junho de 1857): DS
2828-2831; Breve Gravissimas inter (11 de Dezembro de 1862):
DS 2850-2861.
(62) Cf. S. Congr. do Santo Ofício, Decr. Errores
ontologistarum (18 de Setembro de 1861): DS 2841-2847.
(63) Cf. Conc. Ecum. Vat. I, Const. dogm. sobre a fé católica
Dei Filius, II: DS 3004; e cân. 2-§1: DS
3026.
(64) Ibid., IV: DS 3015, citado em Conc. Ecum. Vat. II,
Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et
spes, 59.
(65) Conc. Ecum. Vat. I, Const. dogm. sobre a fé católica
Dei Filius, IV: DS 3017.
(66) Cf. Carta enc. Pascendi dominici gregis (8 de Setembro de
1907): ASS 40 (1907), 596-597.
(67) Cf. Pio XI, Carta enc. Divini Redemptoris (19 de Março
de 1937): AAS 29 (1937), 65-106.
(68) Carta enc. Humani generis (12 de Agosto de 1950): AAS
42 (1950), 562-563.
(69) Ibid.: o.c., 563-564.
(70) Cf. João Paulo II, Const. ap. Pastor Bonus (28 de
Junho de 1988) arts. 48-49: AAS 80 (1988), 873; Congr. da Doutrina
da Fé, Instr. sobre a vocação eclesial do teólogo
Donum veritatis (24 de Maio de 1990), 18: AAS 82 (1990),
1558.
(71) Cf. Instr. sobre alguns aspectos da « teologia da libertação
» Libertatis nuntius (6 de Agosto de 1984), VII-X: AAS
76 (1984), 890-903.
(72) Com sua palavra clara e de grande autoridade, o Concílio
Vaticano I tinha já condenado este erro, ao afirmar, por um lado,
que, « relativamente à fé (…), a Igreja Católica
preconiza que é uma virtude sobrenatural pela qual, sob a inspiração
divina e com a ajuda da graça, acreditamos que são
verdadeiras as coisas por Ele reveladas, não por causa da verdade
intrínseca das coisas percebida pela luz natural da razão,
mas por causa da autoridade do próprio Deus que as revela, o qual não
pode enganar-Se nem enganar » [Const. dogm. sobre a doutrina católica
Dei Filius, III: DS 3008; e cân. 3-§ 2: DS
3032]. E, por outro lado, o Concílio declarava que a razão
nunca « chega a ser capaz de penetrar [tais mistérios], nem as
verdades que formam o seu objecto específico » [ibid.,
IV: DS 3016]. Daqui tirava a seguinte conclusão prática:
« Os fiéis cristãos não só não têm
o direito de defender, como legítimas conclusões da ciência,
as opiniões reconhecidas contrárias à doutrina da fé,
especialmente quando estão condenadas pela Igreja, mas são
estritamente obrigados a considerá-las como erros, que apenas têm
uma ilusória aparência de verdade » [ibid., IV:
DS 3018].
(73) Cf. nn. 9-10.
(74) Const. dogm. sobre a revelação divina Dei Verbum,
10.
(75) Ibid., 21.
(76) Cf. ibid., 10.
(77) Cf. Carta enc. Humani generis (12 de Agosto de 1950): AAS
42 (1950), 565-567.571-573.
(78) Cf. Carta enc. ÆTERNI PATRIS (4 de Agosto de 1879):
ASS 11 (1878-1879), 97-115.
(79) Ibid.: o.c., 109.
(80) Cf. nn. 14-15.
(81) Cf. ibid., 20-21.
(82) Ibid., 22; cf. João Paulo II, Carta enc. Redemptor
hominis (4 de Março de 1979), 8: AAS 71 (1979),
271-272.
(83) Decr. sobre a formação sacerdotal Optatam totius,
15.
(84) Cf. João Paulo II, Const. ap. Sapientia christiana (15
de Abril de 1979), arts. 79-80: AAS 71 (1979), 495-496; Exort. ap.
pós-sinodal Pastores dabo vobis (25 de Março de
1992), 52: AAS 84 (1992), 750-751. Vejam-se também algumas
reflexões sobre a filosofia de S. Tomás: Discurso na Pontifícia
Universidade de S. Tomás (17 de Novembro de 1979): L’Osservatore
Romano (ed. portuguesa de 25 de Novembro de 1979), 1; Discurso aos
participantes no VIII Congresso Tomista Internacional (13 de Setembro de
1980): L’Osservatore Romano (ed. portuguesa de 28 de Setembro de
1980), 4; Discurso aos participantes no Congresso Internacional da
Sociedade S. Tomás de Aquino sobre « A doutrina tomista da
alma » (4 de Janeiro de 1986): L’Osservatore Romano (ed.
portuguesa de 12 de Janeiro de 1986), 9. E ainda: S. Congr. da Educação
Católica, Ratio fundamentalis institutionis sacerdotalis (6
de Janeiro de 1970), 70-75: AAS 62 (1970), 366-368; Decr. Sacra
theologia (20 de Janeiro de 1972): AAS 64 (1972), 583-586.
(85) Cf. Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium
et spes, 57.62.
(86) Cf. ibid., 44.
(87) Cf. Bula Apostolici regimini sollicitudo, Sessão
VIII: Conc. Rcum. Decreta (1991), 605-606.
(88) Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a revelação
divina Dei Verbum, 10.
(89) S. Tomás de Aquino, Summa theologiæ, II-II, 5,
3 ad 2.
(90) « A busca das condições, nas quais o homem faz
por si próprio as primeiras perguntas fundamentais acerca do
sentido da vida, do fim que lhe deseja dar e daquilo que o espera depois
da morte, constitui para a Teologia Fundamental o preâmbulo necessário,
para que, também hoje, a fé possa mostrar plenamente o
caminho a uma razão em busca sincera da verdade » [João
Paulo II, Carta aos participantes no Congresso Internacional de Teologia
Fundamental por ocasião do 125o aniversário da promulgação
da Const. dogm. « Dei Filius » (30 de Setembro de 1995), 4: L’Osservatore
Romano, (ed. portuguesa de 7 de Outubro de 1995), 10].
(91) Ibid., 4: o.c., 10.
(92) Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo
contemporâneo Gaudium et spes, 15; Decr. sobre a actividade
missionária da Igreja Ad gentes, 22.
(93) S. Tomás de Aquino, De Cœlo 1, 22.
(94) Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo
contemporâneo Gaudium et spes, 53-59.
(95) S. Agostinho, De prædestinatione Sanctorum 2, 5: PL
44, 963.
(96) Idem, De fide, spe et caritate, 7: CCL 64, 61.
(97) Cf. Conc. Ecum. de Calcedónia, Symbolum, definitio:
DS 302.
(98) Cf. João Paulo II, Carta enc. Redemptor hominis (4
de Março de 1979), 15: AAS 71 (1979), 286-289.
(99) Veja-se, por exemplo, S. Tomás de Aquino, Summa theologiæ,
I, 16, 1; S. Boaventura, Coll. in Hex., 3, 8, 1.
(100) Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium
et spes, 15.
(101) Cf. João Paulo II, Carta enc. Veritatis splendor (6
de Agosto de 1993), 57-61: AAS 85 (1993), 1179-1182.
(102) Cf. Conc. Ecum. Vat. I, Const. dogm. sobre a fé católica
Dei Filius, IV: DS 3016.
(103) Cf. Conc. Ecum. Lateranense IV, De errore abbatis Ioachim,
II: DS 806.
(104) Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a revelação
divina Dei Verbum, 24; Decr. sobre a formação
sacerdotal Optatam totius, 16.
(105) Cf. João Paulo II, Carta enc. Evangelium vitæ
(25 de Março de 1995), 69: AAS 87 (1995), 481.
(106) Neste mesmo sentido, escrevi na minha primeira encíclica,
comentando a frase « conhecereis a verdade, e a verdade tornar-vos-á
livres » do Evangelho de S. João (8, 32): « Estas
palavras encerram em si uma exigência fundamental e, ao mesmo tempo,
uma advertência: a exigência de uma relação
honesta para com a verdade, como condição de uma autêntica
liberdade; e a advertência, ademais, para que seja evitada qualquer
verdade aparente, toda a liberdade superficial e unilateral, toda a
liberdade que não compreenda cabalmente a verdade sobre o homem e
sobre o mundo. Ainda hoje, depois de dois mil anos, Cristo continua a
aparecer-nos como Aquele que traz ao homem a liberdade baseada na verdade,
como Aquele que liberta o homem daquilo que limita, diminui e como que
despedaça pelas próprias raízes essa liberdade, na
alma do homem, no seu coração e na sua consciência »
[Carta enc. Redemptor hominis (4 de Março de 1979), 12:
AAS 71 (1979), 280-281].
(107) Discurso de abertura do Concílio (11 de Outubro de 1962):
AAS 54 (1962), 792.
(108) Congr. da Doutrina da Fé, Instr. sobre a vocação
eclesial do teólogo Donum veritatis (24 de Maio de 1990),
7-8: AAS 82 (1990), 1552-1553.
(109) Escrevi na encíclica Dominum et vivificantem,
comentando Jo 16, 12-13: « Jesus apresenta o Consolador, o
Espírito da Verdade, como Aquele que "ensinará e
recordará", como Aquele que "dará testemunho"
d’Ele; agora diz: "Ele vos guiará para a verdade total".
Este "guiar para a verdade total", em relação com
aquilo que "os Apóstolos por agora não estão em
condições de compreender", está necessariamente
em ligação com o despojamento de Cristo, por meio da sua
paixão e morte de cruz, que então, quando Ele pronunciava
estas palavras, já estava iminente. Mas, em seguida, torna-se bem
claro que aquele "guiar para a verdade total" tem a ver não
apenas com o scandalum crucis, mas também com tudo o que
Cristo "fez e ensinou" (Act 1, 1). Com efeito, o mysterium
Christi na sua globalidade exige a fé, porquanto é ela
que introduz o homem oportunamente na realidade do mistério
revelado. O "guiar para a verdade total" realiza-se, pois, na fé
e mediante a fé: é obra do Espírito da verdade e é
fruto da sua acção no homem. O Espírito Santo deve
ser em tudo isso o guia supremo do homem, a luz do espírito humano »
[n. 6: AAS 78 (1986), 815-816].
(110) Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a revelação
divina Dei Verbum, 13.
(111) Cf. Pontifícia Comissão Bíblica, Instr. sobre
a verdade histórica dos Evangelhos (21 de Abril de 1964): AAS
56 (1964), 713.
(112) « É claro que a Igreja não pode estar ligada a
qualquer sistema filosófico efémero; aquelas noções
e termos que, segundo o consenso geral, foram compostos ao longo de vários
séculos pelos doutores católicos para se chegar a um certo
conhecimento e compreensão do dogma, sem dúvida que não
se apoiam sobre fundamento tão caduco. Apoiam-se, ao contrário,
em princípios e noções ditadas por um verdadeiro
conhecimento da criação; e, para deduzirem estes
conhecimentos, a verdade revelada, como se fosse uma estrela, iluminou a
mente humana por meio da Igreja. Por isso, não há de que
maravilhar-se se alguma destas noções acabou não
apenas por ser usada em Concílios Ecuménicos, mas foi aí
de tal modo ratificada que não é lícito abandoná-la
» [Carta enc. Humani generis (12 de Agosto de 1950): AAS
42 (1950), 566-567; cf. Comissão Teológica
Internacional, Doc. Interpretationis problema (Outubro de 1989):
Enchiridion Vaticanum, XI, nn. 2717-2811].
(113) « Quanto ao próprio significado das fórmulas
dogmáticas, este permanece, na Igreja, sempre verdadeiro e
coerente, mesmo quando se torna mais claro e melhor compreendido. Por
isso, os fiéis devem rejeitar a opinião segundo a qual as fórmulas
dogmáticas (ou uma parte delas) não podem manifestar
exactamente a verdade, mas apenas aproximações variáveis
que, de certa forma, não passam de deformações e
alterações da mesma » [S. Congr. da Doutrina da Fé,
Decl. sobre a defesa da doutrina católica acerca da Igreja Mysterium
Ecclesiæ (24 de Junho de 1973), 5: AAS 65 (1973), 403].
(114) Cf. Congr. S. Officii, Decr. Lamentabili (3 de Julho de
1907), 26: ASS 40 (1907), 473.
(115) Cf. João Paulo II, Discurso na Pontifícia
Universidade de S. Tomás (17 de Novembro de 1979), 6: L’Osservatore
Romano (ed. portuguesa de 25 de Novembro de 1979), 8.
(116) N. 32: AAS 85 (1993), 1159-1160.
(117) Cf. João Paulo II, Exort. ap. Catechesi tradendæ
(16 de Outubro de 1979), 30: AAS 71 (1979), 1302-1303; Congr.
da Doutrina da Fé, Instr. sobre a vocação eclesial do
teólogo Donum veritatis (24 de Maio de 1990), 7: AAS
82 (1990), 1552-1553.
(118) Cf. João Paulo II, Exort. ap. Catechesi tradendæ
(16 de Outubro de 1979), 30: AAS 71 (1979), 1302-1303.
(119) Cf. ibid., 22: o.c., 1295-1296.
(120) Cf. ibid., 7: o.c., 1282.
(121) Cf. ibid., 59: o.c., 1325.
(122) Conc. Ecum. Vat. I, Const. dogm. sobre a fé católica
Dei Filius, IV: DS 3019.
(123) « Ninguém pode tratar a teologia como se fosse uma
simples colectânea dos próprios conceitos pessoais; mas cada
um deve ter a consciência de permanecer em íntima união
com aquela missão de ensinar a verdade, de que é responsável
a Igreja » [João Paulo II, Carta enc. Redemptor hominis
(4 de Março de 1979), 19: AAS 71 (1979), 308].
(124) Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Decl. sobre a liberdade religiosa Dignitatis
humanæ, 1-3.
(125) Cf. Exort. ap. Evangelii nuntiandi (8 de Dezembro de
1975), 20: AAS 68 (1976), 18-19.
(126) Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium
et spes, 92.
(127) Cf. ibid., 10.
(128) Prólogo, 4: Opera omnia, t. V (Florença
1891), 296.
(129) Cf. Decr. sobre a formação sacerdotal Optatam
totius, 15.
(130) Cf. João Paulo II, Const. ap. Sapientia christiana (15
de Abril de 1979), arts. 67-68: AAS 71 (1979), 491-492.
(131) João Paulo II, Discurso na Universidade de Cracóvia,
por ocasião dos 600 anos da Alma Mater Jaghelónica (8 de
Junho de 1997), 4: L’Osservatore Romano (ed. portuguesa de 21 de
Junho de 1997), 6.
(132) « ‘e noerà tes pìsteos tràpeza »
[Pseudo-Epifânio, Homilia em louvor de Santa Maria Mãe de
Deus: PG 43, 493] .
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