VOLTAIRE – O século de Luís XIV
CAPÍTULO XXIX
(Início)
Governo interno — Justiça — Comércio — Polícia — Leis — Disciplina militar — Marinha, etc.
Deve-se esta justiça aos homens públicos que beneficiaram seu século: olhar para o ponto de onde eles partiram, a fim de melhor apreciar as transformações que realizaram na sua pátria. A posteridade deve-lhes eterno reconhecimento pelos exemplos que ofereceram, mesmo que tenham sido superados: essa glória merecida é a sua única recompensa. Certamente, o amor a essa glória animou Luís XIV, quando, começando a governar por si mesmo, procurou reformar o reino, embelezar a corte e aperfeiçoar as artes.
Não somente impôs a si próprio a lei de trabalhar regularmente com cada um dos ministros, como concedia a qualquer pessoa conhecida uma audiência particular; e todo cidadão tinha liberdade de apresentar-lhe requerimentos e projectos. As petições eram recebidas primeiramente pelo director de serviço, que as informava, e depois enviadas aos gabinetes dos ministros. Os projectos eram examinados em conselho, quando mereciam sê-lo, e os seus autores foram por mais de uma vez admitidos à discussão das propostas com os ministros, na presença do rei. Assim verificou-se entre o trono e a nação uma correspondência que subsistiu, a despeito do poder absoluto.
Luís XIV adaptou-se e acostumou-se ao trabalho, e esse trabalho lhe era tanto mais penoso quanto mais estranho lhe devia parecer e mais facilmente poderia a sedução dos prazeres distraí-lo. Ele próprio escreveu os primeiros despachos aos embaixadores; as cartas mais importantes foram frequentemente minutadas de próprio punho, e não houve escrito em seu nome que não mandasse 1er, antes de enviá-lo.
Logo que Colbert, depois da queda de Fouquet, reorganizou as finanças, o soberano restituiu ao povo tudo que lhe era devido de impostos, desde 1647 até 1656 10, e também três milhões de talhas 20. Aboliu quinhentos mil escudos por ano de direitos onerosos. Assim, o abade de Choisy parece ou muito mal informado ou bem injusto quando diz que não se diminuiu absolutamente a receita. É certo que ela foi diminuída por essas restituições e aumentada pela boa organização. #
Os cuidados do primeiro presidente Bellièvre, juntamente com as liberalidades da duquesa d’Aiguillon e de vários cidadãos tinham erguido o Hospital Geral; o soberano ampliou-o e mandou construir outros nas principais cidades do reino.
As grandes estradas, até então impraticáveis, não foram negligenciadas, e pouco a pouco tornaram-se o que são hoje, sob Luís XV: a admiração dos estrangeiros. De qualquer lado que se saia de Paris com destino a lugares pouco distantes da capital, atravessa-se presentemente aleias bem traçadas e ladeadas de árvores frondosas, numa distância de cinquenta a sessenta léguas. As vias construídas pelos antigos romanos eram mais duráveis, mas não mais espaçosas nem tão belas.
O génio empreendedor de Colbert voltou-se principalmente para o comércio, mal cultivado ainda e cujos grandes princípios não eram conhecidos. Os Ingleses, e mais ainda os Holandeses, faziam com seus navios quase todo o comércio da França. Os Holandeses, sobretudo, abasteciam-se, em nossos portos, de nossas mercadorias, e as distribuíam pela Europa. O rei decidiu, a partir de 1662, isentar seus súbditos de um imposto denominado "direito de frete", pago por todos os navios estrangeiros, e concedeu aos Franceses todas as facilidades para transportarem eles próprios suas mercadorias com menores despesas. Então, nasceu o comércio marítimo; o Conselho de Comércio, que ainda hoje subsiste, foi estabelecido, e o rei o presidia sempre, de quinze em quinze dias.
Os portos de Dunquerque e Marselha foram declarados francos, e logo essa vantagem atraiu o comércio do Levante para Marselha e o do Norte para Dunquerque.
Formou-se uma companhia das índias Ocidentais, em 1664 21, surgindo no mesmo ano a das Grandes índias. Antes desse tempo, a França tinha de pagar pesado tributo à indústria holandesa pelo luxo que exibia. Os partidários da antiga economia, tímida, atrasada e fechada, clamaram em vão contra um comércio no qual se cambiava sem cessar dinheiro que não pereceria 22, por artigos que se consumiam. Não viam que essas mercadorias da índia, tornando-se necessárias, seriam pagas por preços mais altos no estrangeiro. Na verdade, temos levado para as índias Orientais mais géneros do que os que dela retiramos, e por esse caminho a Europa se empobrece. Mas esses géneros vêm do Peru e do México; são o preço de nossas mercadorias levadas para Cádis. Por conseguinte, fica na França maior parte desse dinheiro do que a absorvida pelas índias Orientais.
O rei forneceu à mencionada companhia mais de seis milhões em nossa moeda actual. Convidou as pessoas ricas a se interessarem pelo empreendimento; as rainhas, os príncipes e toda a corte forneceram dois milhões em moeda corrente; as cortes superiores deram um milhão e duzentas mil libras. Toda a nação secundava o seu chefe.
Essa companhia subsistiu sempre; pois que, embora os Holandeses tivessem tomado Pondichéry, em 1694, o comércio das Índias, enfraquecido desde essa época, ganhou novo impulso sob a regência do duque de Orléans. Pondichéry tornou-se, então, rival de Batávia, e a companhia das índias, fundada com esforços extremos pelo grande Colbert, reconstituída em nossos dias por contribuições particulares, foi, durante alguns anos, uma das maiores fontes de renda do reino. Luís XIV organizou ainda uma companhia do Norte, em 1669, e nela inverteu grandes capitais, como na das índias. Pareceu então que o comércio não desapontava, pois as maiores casas se interessaram por essas organizações, a exemplo do monarca.
A companhia das índias Ocidentais não foi menos encorajada do que as outras.* O rei forneceu-lhe uma décima parte dos fundos disponíveis, concedendo trinta francos por tonelada de exportação e quarenta de importação. Todos os que mandaram construir navios nos portos do reino receberam cinco libras por tonelada que o navio comportasse.
Não se pode, apesar disso, estranhar muito de haver o abade de Choisy censurado essas iniciativas nas suas Memórias, que devem ser lidas com desconfiança. Sentimos hoje tudo que o ministro Colbert fez em benefício do reino; mas naquela época não o sentiam; ele trabalhava para ingratos. A supressão de algumas rendas sobre o "Hotel de Ville", obtidas a preço vil desde 1656, e o descrédito em que caíram os títulos da Caixa Económica, emitidos no ministério precedente, foram vistos em Paris com má vontade bem maior do que a simpatia despertada pelo bem geral causado pelo ministro. Havia ali mais burgueses do que cidadãos. Poucas pessoas erguiam suas vistas para o interesse público. Sabe-se bem o quanto o interesse particular fascina os olhos e embota o espírito; não digo somente o interesse de um comerciante, mas de uma companhia, de uma cidade. A resposta grosseira de um negociante chamado Hazon, que, consultado pelo ministro, lhe disse: "O senhor encontrou o carro virado de um lado e virou-o do outro", era ainda citada com complacência na minha mocidade, e essa anedota se encontra em Moréri23. Foi preciso o espírito filosófico, introduzido muito mais tarde na França, reformar os juízos preconcebidos do povo, para que se fizesse afinal justiça completa à memória desse grande homem.
Possuía Colbert a mesma firmeza de atitude do duque de Sully, mas dotado de visão bem mais ampla. Um, não sabia senão conduzir os negócios; o outro, sabia realizar grandes empreendimentos. Sully, depois da paz de Vervins, não teve outras dificuldades senão a de manter uma economia exacta e severa; e foi preciso que Colbert encontrasse recursos prontos e imensos para a guerra de 1667 e a de 1672. Henrique IV apoiava a política económica de Sully; as magnificências de Luís XIV contrariaram sempre o sistema de Colbert. Entretanto, quase tudo foi reparado e criado no tempo deste último. A redução da taxa de juros para 1/20, ou 5 por cento, sobre os empréstimos do soberano e de particulares foi a prova sensível, em 1665, de uma abundante circulação. Colbert queria enriquecer a França e povoá-la. Os casamentos no campo foram estimulados por uma isenção de talhas durante cinco anos para os que contraíssem matrimónio à idade de vinte anos, enquanto os pais de família possuidores de dez filhos eram isentados por toda a vida, pois que davam mais ao Estado pelo trabalho dos filhos, do que poderiam dar pagando a talha. Esse regulamento foi mantido em vigor, zelando-se pelo seu cumprimento.
De 1663 a 1672, cada ano desse ministério foi marcado pelo estabelecimento de alguma manufactura. Os tecidos finos, antes importados da Inglaterra e da Holanda, começaram a ser fabricados em Abbeville. O soberano adiantava ao fabricante duas mil libras por tear em funcionamento, além de gratificações consideráveis.
Era preciso ainda muito para que a cidade de Paris se tornasse o que é hoje; não havia luz suficiente, nem segurança, nem asseio. Era preciso prover a limpeza das ruas, a iluminação que cinco mil faróis forneciam todas as noites, pavimentar a cidade inteira e construir duas novas pontes, restabelecer as antigas, manter alerta uma guarda contínua, a pé e a cavalo, para a segurança dos cidadãos. O rei encarregou-se de tudo, conseguindo fundos para essas despesas necessárias. Criou, em 1667, um magistrado unicamente para dirigir a polícia. A maioria das grandes cidades da Europa imitou esses exemplos, mas só muito tempo depois, e nenhuma os igualou. Não há, absolutamente, cidade tão bem calçada como Paris, e mesmo Roma não é tão bem iluminada.
Tudo começava a tender de tal maneira para a perfeição, que o segundo tenente de polícia que teve Paris adquiriu, nesse posto, uma reputação que o situava entre os que mais honraram o século. Era um homem capaz e resoluto. Chegou a fazer parte do ministério e tornou-se um bom general de exército. O lugar de tenente de polícia estava abaixo da nobreza e do mérito desse homem, e, entretanto, nesse cargo adquiriu ele maior reputação do que no ministério forçado e passageiro que ocupou no fim da vida. . .
O soberano não cessou de construir no Louvre, em Saint–Germain, em Versalhes, desde 1661. Os particulares, seguin-do-lhe o exemplo, ergueram em Paris mil edifícios soberbos e dotados de toda comodidade. O número de construções cresceu de tal forma que, das imediações do Palais-Royal às de Saint-Sulpice formaram-se em Paris duas cidades novas, muito superiores à antiga. Foi nesse tempo que se inventou a comodidade magnífica das carruagens guarnecidas de espelhos e suspensas por molas; de maneira que um cidadão de Paris passeava nessa grande cidade com mais luxo do que os primeiros triunfadores romanos quando se dirigiam ao Capitólio. Esse costume, que começou em Paris, foi logo implantado em toda a Europa, tornando-se comum e vulgar.
Luís XIV tinha gosto pela arquitectura, pelos jardins,
pela escultura, e esse gosto se manifestava em tudo que era grande e nobre. Quando o inspector-geral Colbert assumiu, em 1664, a direcção das construções, que constituem propriamente o Ministério das Artes, empenhou-se em secundar os projectos de seu chefe. Fazia-se necessário, antes de tudo, concluir as obras do Louvre. François Mansard, um dos maiores arquitectos que a França já tivera, foi escolhido para cotístruir os vastos edifícios que se projectavam. Não quis aceitar o encargo sem que lhe fosse concedida liberdade plena para refazer o que lhe parecesse defeituoso na execução. Essa desconfiança em si próprio acarretou muitas despesas e fez com que o demitissem. Chamaram de Roma o arquitecto Bernini, cujo nome se tornara famoso pela colunata que circunda o adro de São Pedro, pela estátua equestre de Constantino e pela fonte de Navonne. Forneceram-lhe todo o necessário para a viagem, sendo conduzido a Paris como um homem que vinha honrar a França. Bernini recebeu mais de cinco luíses por dia durante os oito meses que ali permaneceu, além de um presente de cinquenta mil escudos e uma pensão de dois mil e outra de quinhentos para o filho. Esta generosidade de Luís XIV para com Bernini foi maior ainda do que a de Francisco I para com Rafael. Bernini, em reconhecimento, fez depois em Roma a estátua equestre do soberano, que hoje pode ser vista em Versalhes. Mas quando ele chegou a Paris com tanto aparato, como o único homem digno de trabalhar para Luís XIV, ficou surpreendido ao ver o desenho da fachada do Louvre, do lado de Saint-Germain 1’Auxerrois, que se tornou, quanto à execução, um dos mais soberbos monumentos arquitectónicos de todo o mundo. Claude Perrault fora o autor desse desenho, executado por Luís Levau e Dorbay. Ele próprio inventara as máquinas com que se transportaram as pedras de cinquenta e dois pés de comprimento que formam a frente desse majestoso edifício. Costumamos procurar, muito longe às vezes, o que temos em casa. Nenhum palácio de Roma possui uma entrada comparável à do Louvre, devida a esse Perrault, que Boileau quis tornar ridículo. Essas galerias tão afamadas, são, no depoimento dos viajantes, muito inferiores ao castelo de Maisons, construído por François Mansard com tão pouca despesa. Bernini foi magnificamente recompensado e não merecia tais recompensas: traçou apenas desenhos que não chegaram a ser executados.
O soberano, ao fazer construir o Louvre, cujo acabamento era tão almejado, ao erguer uma cidade em Versalhes, perto do castelo e cujo custo subiu a milhões, ao construir o Trianon e Marly, e ao promover o embelezamento de tantos edifícios, construiu também o Observatório, iniciado em 1666, desde o tempo em que se instalou a Academia de Ciências. Mas o monumento mais glorioso, pela sua utilidade, pela sua grandeza e por suas dificuldades, foi o canal do Languedoc, que uniu dois mares e se estende até o porto de Cette, preparado para receber-lhe as águas.
Todo esse trabalho, iniciado em 1663, prosseguiu sem interrupção até 1684. A fundação dos Inválidos e a capela desse edifício, a mais bela de Paris, os estabelecimentos de Saint-Cyr, a última de tantas obras empreendidas por esse monarca, já seriam suficientes para levar-nos a bendizer-lhe a memória. Quatro mil soldados e grande número de oficiais que encontram num desses grandes asilos um consolo para a velhice e socorros para os seus ferimentos e suas necessidades, e as duzentas e cinquenta moças de origem nobre que recebem no outro uma educação digna delas, constituem outras tantas vozes a celebrar Luís XIV.
19 Essa medida foi tomada por Colbert, por ocasião do nascimento do Delfim.
20 De 1662 a 1663 o imposto da talha caiu de quarenta e cinco milhões de libras para trinta e sete milhões.
21 Na Carta Régia de 28 de Maio de 1664, o soberano concedia a essa companhia o direito de explorar o comércio das Antilhas, da ilha de Caiena, da França Equinocial, do Orenoco ao Amazonas, da Nova França ou Canadá e das costas ocidentais da África.
22 Isto é (no entender dos partidários da economia antiga), que não se perderia se permanecesse no reino.
23 Autor de um Dictionnaire historique et géographique, publicado em 1673.
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