História de Natal – A lenda da casa nº 15

A lenda da casa n.° 15

Ida Fürst

"A lenda da casa nº 15" é um belo conto assinado por esta escritora de língua croata e que pela primeira vez é apresentada ao público brasileiro.

Ida Fürst tem demonstrado, em toda a sua obra, tendencias excepcionais para o cultivo da novela, sendo os seus enredos entremeados de grande conteúdo emocional, pondo à mostra em certos detalhes, a esquisitice da sensibilidade da sua autora.

Com relação à novela-curta aqui incluída, assim se manifestou um crítico: "Dir-se-ia que a novelista se deleita em todos os pormenores da crueldade, o que não exclui na sua sensibilidade de artista, os tons de delicadeza mais sugestivos".

Realmente, "A lenda da casa n° 15" é uma novela de um sentimento profundamente humano e onde a realidade encontra formas de se adornar com todas as galas da fantasia, e onde há primorosas qualidades de observação postas em relevo na apresentação dos mais diversos tipos e caracteres.

Ida Fürst é uma das figuras mais representativas da literatura de língua croata.


noite de natal

O dia 24 de dezembro, o sr. Casimiro Sukaljevié não costumava ir para a repartição, antes das dez. Há muitos anos qué tinha por hábito ir na manhã daquele dia à praça Jelacié, à rua Bakac e depois à praça da Catedral, passear por entre os açougues e as tendas de peixes. Não que em tal ocasião costumasse comprar alguma coisa ou fosse com essa intenção que se metia na balbúrdia dos compradores e vendedores.

Gostava apenas de poder contemplar, mais de perto, os belos produtos da Natureza, com a abundância com que aparecem no mercado na época do Natal; gostava daquele fervilhar de cores berrantes, divertia-o aquela boa gente que olhava cobiçosa, para o bosque dos pinheiros de Krainia, alinhados, e que volteava em torno das barracas de tortas, das tendas dos vendedores de frutas e dos quinquilheiros.

Ao ver os bons-bocados e os enfeites para a árvore de Natal, a boca se lhe enchia de água; à direita havia magníficos salmões, carpas e outros bons peixes, e, à esquerda, nos açougues, gordos porcos dependurados, uns inteiros, outros abertos pelo meio; presuntos adornados com ramos verdes, que era um gosto olhar para eles; filas de salchichas, etc., etc. E, como êle, apesar dos seus cinqüenta anos, trinta dos quais ao serviço do Estado, tinha ainda muita imaginação, via-se com os bolsos recheados de moedas, a fazer compras.

A primeira coisa que comprava era o mais alto daqueles pinheiros, depois, ia às lojas dos enfeites e aos quinquilheiros comprar enfeites para a árvore de Natal; fios de ouro, velas de muitas cores, brilhantes estrelas de cauda. A seguir, tudo o que era necessário para o Presépio, que sua filha mais velha, a Drágica, faria com as suas mãos de fada para distrair os irmãozinhos mais novos … E eram seis ao todo!. . .

Debaixo da árvore de Natal, colocaria os presentes para a família, próprios para tão grande festa. Para sua mulher, Clara, . destinava um agasalho e, além disso, um objeto de luxo para que o presente não fosse demasiadamente prosaico.

Para Drágica calhariam bem as poesias de Predovic ou de Zmaj, muito bem encadernadas e ainda qualquer coisa para embelezar. . . a menina era bonita; êle próprio, seu pai, podia dizer, e, portanto, convinha que estivesse galante.

O pequeno Juro receberia um livro de viagens através da África e um álbum de desenho — o garoto gostava tanto de desenhar. . .; — e à Anita daria uma boneca igual àquela que êle tinha visto nas mãos da filha do comerciante do primeiro andar, na qual a pequena pensava constantemente e com a qual até sonhava; e Bogdan que tanto desejava carros e pistolas. . .

Na casa do alfaiate e na do sapateiro também havia umas compras a fazer.

Oh! que alegria haverá esta noite em casa, ou, para melhor dizer, que alegria haveria se tudo isso fosse verdade, Santo Deus! E o senhor Casimiro despertava dos seus sonhos, lembrava-se de que tinha o bolso vazio, muito vazio, e via que o melhor que tinha a fazer era ir para a repartição.

Era isto o que êle costumava fazer nos outros anos. Porém, daquela vez, o ano em que se passa esta história, o senhor Casimiro seguiu o seu caminho e, em vez de ir ao mercado, dirigiu-se diretamente à repartição. É que levava umas botas de legítimo couro da Rússia, novinhas, e tinha medo de sujá-las no mercado; além disso, estava também impaciente por se apresentar diante dos chefes da repartição com as botas novas. Estava contentíssimo com elas, primeiro porque havia muitos anos que não tinha calçado novo, e além disso, ou melhor, e principalmente porque eram um presente de Natal de sua mulher e de sua filha Drágica. Deixou também de ir ao mercado porque teria sofrido ao ver que os seus presentes de Natal não existiam senão na sua imaginação; e que lhe era impossível fazê-los baixar daquela elevada esfera à terra poeirenta.

Ah!, êle teria deixado cortar pedaços de carne do seu corpo para poder aplicar em presentes de Natal um par de moedas que fosse; mas, infelizmente, agora já não há Shylocks — lamentava-se êle! E pelo espírito passava-lhe toda a história das suas botas.

Há alguns meses já, desde o inverno passado, quando teve de ficar de cama por causa de fortes dores reumáticas, observava que sua mulher falava às escondidas com Drágica, sem que êle pudesse saber de que se tratava.

Umas dez vezes, pelo menos, teve o sapateiro Jordi, seu vizinho, de subir ao andar em que habitava, e quando o senhor Casimiro tlhe perguntava o que queria, o bom sapateiro, a quem as duas mulheres faziam sinais, ficava embaraçado, sem saber o que dizer. Lembrava-se então de que sua mulher economizara em tudo para juntar o mais possível, e que Drágica quase não saía ao anoitecer, o que êle atribuía ao fato de não ter ela nenhum vestido de que gostasse. Uma vez conseguiu apanhar meia dúzia de palavras misteriosas, ditas por Drágica na cozinha: "Mãe, agora, sim, que é certo; já podemos comprar o couro. A modista deu-me muito trabalho; poderei ganhar dez florins. E tu já tens bastante?"

De outra vez, ao anoitecer, quando saía da repartição, ficou muito admirado ao ver numa loja de couros na rua Larga, a mulher e a filha. Encaminhou-se para o estabelecimento. Ao verem-no, as duas mulheres se espantaram tanto que deixaram o. comerciante, dizendo-lhe apressadamente algumas palavras, e, sem dar tempo ao senhor Casimiro de fazer qualquer pergunta, arrastaram-no dali. Só agora compreendia tudo. Durante a noite tinha feito muito frio; chovera e nevara abundantemente. Ao acordar, encontrara diante da cama um par de botas de couro, novas e luzidias.

— Que é isto? — perguntou admirado.

— Isto o que? — disse a mulher, fingindo-se desentendida.

E Drágica correu a esconder-se na cozinha.

— Olha, deve ser um presente do Papai Noel por teres sido bom rapaz. . .

— O quê! O quê! repetiu êle, enternecido; e por fim abraçou a mulher e a filha.

— Que pena que esteja tão mau tempo!. . . Queríamos esperar anoitecer para te fazer a surpresa; mas podias resfriar-te. . . e. . . de resto não temos árvore de Natal disse a mulher, entristecida.

— É verdade. . . Infelizmente. . . .— acrescentou êle. E começou a lamentar de que tivessem pensado só nele, e não nas crianças. . . Êle bem poderia passar o inverno com as botas velhas.

Dirigiu-se para o alto da cidade e durante todo o caminho foi pensando naquela cena e remoendo-a; de vez em quando tinha de se conter para evitar que as lágrimas lhe corressem pela cara pálida e engelhada. O amor da mulher e da filha, que se refletia claramente na história daquelas botas, fazia-o sentir-se tão feliz que lhe atenuava a mágoa sentida por não lhes poder dar nada naquele santo dia. Nem a elas, nem ao pequeno. E. . . com que imenso prazer não daria tudo às pobres criancinhas, que passavam a seu lado uma vida tão triste! Dir-se-ia que tinha rejuvenescido; o seu ar e andar eram outros.

Já não pisava a terra com aquela amargura de quando levava as botas velhas e gastas, sempre atento a não tropeçar em nenhuma pedra e a não meter o pé nas poças de água e dar cabo das solas, já bastante usadas. Agora já não tinha de ir olhando o céu e não tinha de que se envergonhar, como dantes, ao cumprimentar os conhecidos.

Quando chegou à porta do edifício da repartição, de-teve-se e, com uma calma nele extraordinária, lançou um olhar às botas para ver se ainda estavam bem limpas. Depois olhou de soslaio para o grupo dos porteiros: que diriam eles? Mas os porteiros não lhe davam grande importância; sabiam que não era muito bem visto pelos chefes e andava tão pobremente vestido como o mais ínfimo deles. Não lhe dedicaram um só olhar; nem a êle, nem às botas. Mas Sukaljevié sentia-se demasiado feliz para se considerar ferido com tal ninharia.

À medida que ia lentamente subindo a escadaria, contemplava com amor cada uma das pregas das botas, esforçava-se como uma criança para que elas chiassem e aspirava com delícia o forte odor que se desprendia do couro novo.

Ao chegar à porta da sala, sentiu como que uma certa vergonha. . . aquela sensação desagradável de pouca segurança experimentada pelas pessoas que quase nunca estreiam nada e julgam toda a gente com olhos cravados nelas. Por casualidade não havia ninguém na sala, e alegrou-se de poder chegar até à sua mesa sem ser visto. Mas não pôde ficar quieto um momento; impossível resistir ao desejo de experimentar as botas naquele chão tão liso, para ver se o seu andar era como o dos altos funcionários.

— Não há dúvida nenhuma; agora é que eu pareço um senhor da ,sétima classe da Dieta. Talvez isto seja um bom sinal. Trar-me-á o dia de Natal alguma surpresa?. . . A minha promoção! Se assim fosse, meu Deus! que bela noite de Natal! Não seriam poucas as coisas que eu compraria!… Até a crédito… porque é claro, o aumento não o receberia antes do Ano-Novo.

Um pesado ruído de passos lá fora, fê-lo voltar a si. Correu para a mesa e agarrou um montão de documentos, envergonhando-se, inteiramente, de ter sido tão criança a ponto de ter alimentado, por um momento, tais esperanças. Com que freqüência elas o enganavam! Deixou cair tristemente sobre o peito a cabeça, onde já branqueavam os cabelos.

A porta abriu-se, e apareceu o novo diretor, um homem ainda jovem, um pouco gordo, com a cara sem um pêlo, que lhe dava a expressão de um Conselheiro da Corte. Com muito custo, dignou-se a responder ao cumprimento de Sukaljevié. E logo se pôs a cheirar o ar como se nele houvesse algum odor estranho.

Sukaljevié não se apercebeu disso. Lamentava não se ter aproximado do diretor sob qualquer pretexto para que êle lhe visse as botas, tanto mais que o repreendia amiúde, dizendo-lhe que devia andar melhor vestido e chegando até uma vez a ameaçá-lo. "E hoje creio que nem êle mesmo tem botas melhores que as minhas", — disse para consigo, enquanto furtivamente olhava por debaixo da mesa para as grandes botas, pensando há quanto tempo já não trazia umas como aquelas. Não podia lembrar-se, êle, dono de tão boa memória, que na repartição o consideravam um arquivo vivo.

É verdade que as suas anteriores botas-de-cano se perdiam no remoto dos tempos. . . quando êle ainda era novo, cheio de ânimo e de justificadas esperanças de triunfar na vida. Sim, era muito jovem, então. Recém-casado. Drá-gica ainda não tinha vindo ao mundo, e êle contava vinte e três anos! Outros tempos, sim, outros tempos!. . . Toda a gente dava parabéns à sua mulher por ter se casado com um homem bom, trabalhador, de grandes conhecimentos e excelente caráter. O seu chefe e todos o consideravam um dos melhores funcionários. Todo o mundo lhe profetizava uma brilhante carreira. Apenas um velho judeu, muito vivo, assegurou, como se fosse o profeta Elias, que êle nunca passaria de amanuense, e não titubeou em lho dizer.

— Mas, por que razão? — perguntaram-lhe várias pessoas e o próprio Sukaljevié.

— Hum!… o senhor tem bastante instrução e é fiel aos seus princípios. Isso o prejudica mais do que o favorece. O senhor é dos que não se curvam quando convém nem se endireita quando é necessário. Para o senhor, a lei é uma coisa sagrada e, o que é pior. . . o senhor é incapaz de mentir. E afirmou-lhe: o seu colega, que não sabe fazer nada e até aquele empregado que ali está, que é o mais novo de todos. . . todos serão promovidos antes e subirão de posto, pela simples razão de não serem como o senhor. Em compensação o senhor há-de trabalhar sempre, e eles não. Tenho certeza de que os trabalhos mais pesados irão para sua mesa. Nesse capítulo não o esquecerão.

Quantas vezes se lembrou das palavras daquele velho judeu! Havia já trinta anos que estava ao serviço do Estado e ainda se encontrava no último degrau da escala. Por que?

Quantas vezes teve de vergar a espinha! Acostumara–se a ouvir e calar, saudava os próprios contínuos antes que estes o fizessem; da nação só se atrevia a falar em casa, diante da família; tinha perdido completamente a sua antiga firmeza, e. . . de que lhe valera? Continuava a ser, apesar disso, como lhe tinha profetizado o velho judeu, um funcionário de categoria inferior, de quem os chefes só se lembravam quando apareciam trabalhos difíceis, e que era sempre esquecido no momento das promoções; e a verdade é que lhe passavam à frente certos homens… e que homens!…

— Não! Não estraguemos um dia tão sagrado!

Enganando-se a si próprio, tratou de desvanecer aqueles tristes pensamentos. Mas, por que não o tentar? Quem sabe se não conseguiria qualquer coisa! Ia informar o diretor e esclarecê-lo naquela questão tão embrulhada. Êle bem sabia que só o "velho Sukaljevié" seria capaz de desfazer aquela dificuldade e realmente conseguiu pôr tudo claro. Mas, para chegar a isso, teve de pegar num montão de documentos escritos e de cadernos, para orientar o diretor sobre cada detalhe da questão. E dirigiu-se para a sua mesa.

Estava no melhor das suas explicações, quando o chefe, de repente, deu um salto na cadeira, e pôs-se a olhar para Sukaljevié, de alto a baixo:

— Mas que espécie de botas tem você? Julga por acaso que encontrei meu nariz na rua, ou que tenho nariz de cão? Posso lá consentir que tome a liberdade de se apresentar no meu gabinete com umas botas que exalam um cheiro que se sente a dez metros de distância? Toda esta sala parece agora uma oficina de peleiro. . . Que imagina o senhor? .— gritou o chefe, levando ao gordo nariz um lencinho perfumado com água-de-colônia.

— Perdão, senhor diretor! — balbuciou o pobre Sukaljevié, muito confuso, ao ver a irritação do chefe.

E êle que o julgava bem disposto!

— Cale-se! Cale-se! Não admito que me contradiga! Lá isso, não! O senhor já é conhecido. . . muito conhecido. . . e por várias coisas. Até tenho os meus motivos para supor que o fêz intencionalmente.

— Perdão, senhor diretor! Longe de mim qualquer intenção… Só hoje estreei estas botas… Não tenho outras. . . E, reparando bem, parece-me que não são de todo más. . . São de couro da Rússia legítimo.

— Ah!. . . Bem! Bem! De couro da Rússia, hein?. . . Muito bem! Quanto ao resto. . . estamos despachados. E fique sabendo que não estou disposto a suportar por mais tempo este mau cheiro. Os cheiros violentos fazem-me mal aos nervos. O médico me fêz uma proibição rigorosa.

E o senhor diretor talvez se tivesse prolongado em mais considerações, se o contínuo não chegasse avisando-o de que estava ali, à sua espera, o deputado Brix, pessoa muito considerada e influente, pois havia como prova o fato de ter posto no Congresso cinco ou seis cunhados e" dois ou três parentes mais; que era presidente de algumas instituições financeiras e, além de tudo, gozava fama de grande jogador de cartas, o que lhe dava o ensejo de ter algumas dúzias de amigos íntimos no Cassino húngaro e no Parlamento. . . Todos eles homens de categoria e de influência.

— Mande-o entrar! E, você, Sukaljevié, faça o trabalho que lhe disse. . . e não torne a se apresentar diante de mim com essas botas. Logo, ao entrar na repartição senti um cheiro estranho. . . Ah! de que me servem médicos e farmacêuticos se nem no meu gabinete posso estar seguro!

Entretanto, o deputado entrava no gabinete do diretor.

— Perdão! Não lhe parece que está na casa de um peleiro? A culpa é desse homem — disse o diretor, enquanto estendia a mão ao deputado, a quem saudou amistosamente.

— Venho pedir-lhe um favor — começou por dizer o sr. Brix, que ria interiormente, ao perceber a exaltação do diretor, e sem olhar para Sukaljevié, que já estava na porta.

— Em que posso servi-lo?

— Recorda-se, não é verdade, da carta que lhe escrevi acerca de. . . do rapaz que vai ser meu genro? O diretor mostrou-se surpreendido.

— De seu genro?

— Acaso não recebeu a minha carta, nobre amigo?

— Ah,… sim já me lembro… Escreveu-me a propósito de um rapaz… que se chamava, creio eu… sim… Gavrilovic.

-— Exatamente. Já resolveu alguma coisa?

— Sim. Evidentemente. O que não farei eu para lhe ser agradável?. . . O decreto já está assinado. Já foi a despacho e a nomeação está feita.

— Fico-lhe muito agradecido. Mas agora se trata de outra coisa. Gostaria que minha filha não tivesse de deixar-nos para ir viver num povoado. Bem vê!… E’ a única filha que temos. Por isso desejaria que Gavrilovicfosse transferido para aqui, para a sua repartição.

— Para a minha repartição? Hum! Conhecerá suficientemente o serviço?. . . Terá prática necessária destes assuntos? O meu prezado amigo bem sabe que numa repartição como esta há trabalhos difíceis a fazer. . . Aqui não se trata de futilidades, como acontece na repartição do Conselheiro X ou Y. . . É preciso ter muitos conhecimentos.

— Bem. Uma vez que êle está nomeado, pode ser que. . .

— Sim, sim. . . Para a nomeação também houve dificuldades. . . Estava em último lugar. . . Para o salvar, tivemos de dar um salto mortal, passando por cima de. . . palavra que não exagero nada. . . de uns sessenta! A sua recomendação, entretanto valeu. De resto, estamos num país Constitucional. É natural, muito natural, que tenhamos algumas considerações com os senhores deputados.

— Pois bem, se assim é, e tratando-se de uma coisa minha, espero que o senhor arranjará as coisas de forma que êle possa vir para cá.

— Diabo!… O pior é que já tenho muito gente aqui; é pelo menos, o que sempre dizem e carregam-me com trabalhos como se eu tivesse um batalhão de subordinados.

— Mas talvez seja possível. Nas altas esferas disseram-me que, se o senhor quisesse, a coisa se arranjaria.

— Sim? Disseram-lhe isso. Sim… Sim… Tenho aqui na repartição um homem que não é muito bem visto pelos seus superiores. Ainda hoje me aborreceu bastante!. . . Adoecerei por culpa sua. Conservo-o no lugar porque conhece bem o serviço; de cutra maneira. . . Não sente um forte cheiro de couro? Como não havia de sentir. Todo o gabinete está empesteado! Pobre dos meus nervos! Sim; a coisa pode arranjar-se. . .

-— Julga que. . .?

— Poremos Gavrilovicno lugar de Sukaljevié. Naturalmente que há-de ser no lugar de Sukaljevié. Vou propor a sua aposentadoria. . . Imagine! traz umas botas que são o meu desespero. Sim, sim, tem de ser êle!. . . E desta maneira, Gavrilovicfica servido. É verdade que Sukaljevié me fará falta. Esse velho conhece o serviço como a palma das mãos. É uma inteligência muito clara e uma pessoa muito instruída; sem êle não sei como me arranjaria. . . Em suma, eu darei um jeito. Tudo se há de fazer.

— Agradeço-lhe de todo o coração. Mas, como sabe, quando começo uma coisa levo-a até o fim. Não poderia arrumar hoje o assunto? Que alegria não daria eu à minha Danica, na véspera do Natal se lhe pudesse ir dizer que estava tudo arranjado!

— Isso não é coisa difícil! Vou-me ocupar disso e fique descansado. Quando se quer uma coisa, nada é impossível. Não são mais que dez horas. . . à uma os decretos estarão prontos e poderão ser publicados no Diário Oficial.

O senhor diretor vestiu o sobretudo, ajudado pelo senhor deputado e os dois saíram juntos. O diretor dirigiu-se à sala, onde trabalhava Sukaljevié; cheirou ostensivamente e lançou um olhar de raiva ao pobre funcionário, que estava todo absorto no seu trabalho.

— Por que é que não abriu a janela? Aqui ninguém pode parar!… E’ tal e qual a oficina de um peleiro. Bem! Logo falaremos.

Sukaljevié tremeu todo e levantou a cabeça da mesa. Ainda viu o diretor sair com o deputado, acenando com a mão, como se fizesse uma ameaça.

— Que belo presente de Natal! Bom presente, não há dúvida! Está furioso. Talvez nem se lembre da santidade do dia de hoje! Mas que me importa isso, se recebi o presente das pessoas que me são queridas? E se eu o fiz zangar-se deveras, meu Deus!. . .

Já tinha dado uma hora e o diretor ainda não voltara. Sukaljevié continuava sentado à sua escrivaninha. Não tinha pressa de regressar a casa. Como bom cristão que era, jejuava naquele dia e preferia estar mais tempo na repartição, para poder passar toda a tarde com os seus. Mas, não tinha cabeça para o serviço. A cada momento, vinham-lhe à memória as duras palavras do diretor por causa das botas.

Durante a sua vida, tinha tido motivos de sobra para ser supersticioso e para recear uma desgraça a cada momento. E era essa a razão por que o atormentava a idéia

de que talvez lhe trouxesse má sorte o ter estado tão alegre e tão esperançado naquela manhã. »

Ao ouvir o ruído dos passos do diretor perto da porta, todo êle estremeceu. E ainda ficou mais assustado quando reparou no seu olhar tôrvo.

— Faça o favor de vir ao meu gabinete — disse o diretor, com uma expressão mais severa que a do costume.

A seguir, mediu o pobre Sukaljevié dos pés à cabeça e por trás do vidro das suas lentes de ouro luzia uma evidente má vontade. Lançou em volta um olhar exasperado e tapou o nariz com o lenço.

Uma vez no seu gabinete, deu uns passos entre o aquecedor e a janela antes de dirigir a palavra ao seu subordinado.

— Tenho a dizer-lhe que foi aposentado. Em breve lhe será entregue o decreto. Deverá apresentar a sua documentação para lhe ser fixada a pensão a que tem direito.

— Aposentado? — exclamou o pobre funcionário, estupefato.

— Sim, senhor, aposentado. E já era tempo. Eu era a única pessoa que ainda o suportava e o senhor hoje me mostrou que não merecia.

— Mas por que? Por que motivo? E minha família? Que vou fazer agora? Sou já muito velho para começar outra carreira. Como viver, com uma pensão tão reduzida?

-— Era antes que devia ter pensado nisso. Mas, é claro, o senhor preferiu empregar o seu tempo em coisas com que um funcionário. . . um bom funcionário. . . não devia preocupar-se. E, finalmente, para acabar de mostrar bem o que é, procurou um meio especial de me aborrecer; chegou mesmo a dar-me cabo da saúde.

— Como. . . Não é possível!

— É possível, sim. A coisa agora já não tem remédio. Para o seu lugar virá Gavrilovic, pessoa de grandes aptidões… E tudo correrá bem. . . Mas para que veja que não sou seu inimigo, vou-lhe provar que não me esqueci do senhor. Poderá ficar na repartição como escriturário, começando por ganhar um florim diário!

— Ah! — foi a única palavra que saiu dos lábios do> infeliz Sukaljevié.

E sem fazer caso do diretor, saiu da sala, cambaleando.

— Este é o meu presente de Natal!. . . Ah, meu Deus! Como contar a minha mulher esta desgraça? Ainda que me dêem um florim pelo trabalho de escriturário, mesmo assim serão trinta florins a menos. E agora, na época de pagar o aluguel da casa! Sim; para trabalhar, sou bom. . . Tiram-me o-pão, e ainda por cima me obrigam a continuar a trabalhar, porque têm necessidade de mim. Forçam-me a ceder o lugar a outro e tenho de continuar a trabalhar. E se não quiser, serão capazes de me prejudicar na aposentadoria. Meu Deus!. . . E tenho de continuar a viver?. . . É este o meu Natal!

O infeliz deu voltas pela cidade até o anoitecer, sem se resolver a ir para casa. Tinha medo de que a mulher adivinhasse pela sua cara a desgraça. Conhecia-o tão bem que lia no seu rosto, como num livro aberto, tudo que se passava no seu coração, bem como todos os seus pensamentos, fossem tristes ou alegres. Êle não sabia dissimular diante de ninguém e muito menos de sua mulher. Ah!. . . Mas se viesse a saber antes da ceia!… Seria tornar-lhe ainda mais triste a noite de Natal, que já não era muito alegre para ela. Como poder dar à cara engelhada e amarelecida por largos anos de sofrimento, uma expressão serena, quando penas e angústias lhe despedaçavam a alma e ao ouvido lhe soava a fatídica pergunta: "De que vamos viver agora?"

Algumas vezes passou-lhe, como um relâmpago pela cabeça, ir à taberna buscar coragem; mas sempre repelia essa idéia terrível. Contudo, talvez houvesse seguido aquele caminho de tantos desesperados, se tivesse alguma moeda nas algibeiras. No meio de sua angústia, lembrou–se de ir à loja de um comprador de coisas usadas, trocar suas botas novas por outra velha; entrar na taberna com o dinheiro que isso lhe rendesse e depois. . . levaria o resto para casa para que os seus festejassem o Natal. A casa? Mas, que diriam mulher e filha, quando o vissem sem as botas novas? Não, não. . . Afastou de si aquele pensamento.

Ao bater cinco horas, quando se acendiam os lampiões de gás, lembrou-se de que era a hora que os seus costuma-

vam sair para percorrer as magníficas lojas da Ilica e da rua Larga. Bogdan, que sabia bem em que confeitaria se encontravam as árvores de Natal com luzes, era quem guiava os outros.

Sukaljevié não os acompanhava nunca; dava-lhe muita pena ouvir as exclamações de admiração e de desejo dos seus sem lhes poder dar a menor alegria. . . Era de prever que àquela hora não tivesse ninguém em casa, e, por isso, encaminhou-se para lá.

Morava numa daquelas vielas estreitas e escuras que rodeavam Santa Maria. No pátio de uma casa velha e negra, que então tinha o número 15, levantava-se uma casinha ainda mais velha e mais negra. Tinha ali a sua morada, num andar formado por uma pequena sala, quarto e cozinha, que repartia com um vizinho seu, o sapateiro Jordi. Não encontrou ninguém em casa, e assim pôde passar sozinho aquele primeiro momento, o mais doloroso. Saltaram-lhe as lágrimas aos olhos ao pensar quão feliz havia saído daquela casa, pela manhã, e a triste sorte que ali agora os esperava a todos.

A família não voltou antes das sete. Os pequenos não deixaram de falar com admiração de tudo que haviam visto; e naquela atmosfera, pouco quente, muito pesada do fumo do carvão, misturavam-se as súplicas do Menino Jesus para que se lembrasse deles e lhes trouxesse, como presente de Natal, algumas daquelas coisas boas e tão bonitas, que haviam visto nas lojas.

— Como é que Êle só traz coisas para os ricos? — perguntava a si próprio, sem poder compreender, a pequena Mina, enquanto o outro pequeno, como se adivinhasse o segredo do Menino Jesus, dizia:

— Um dia, quando papá fôr um homem importante, também virá à nossa casa.

Sukaljevié, fazendo esforços sobre-humanos, conseguiu dominar-se; mas, a sua comoção era tão grande, que, para poder ocultar, teve de sair do quarto e ir para a alcova escura. Felizmente, a mulher estava na cozinha ocupada com a ceia de Natal. Ninguém como ela para fazer milagres, tirando partido de tudo; e, confirmando mais uma vez os seus méritos, tinha conseguido preparar um prato de peixe. E’ certo que era um peixe seco, do rio Save. Tinha feito também uma torta para a festa, que não saiu demasiadamente tostada. As nozes do recheio haviam sido dadas pela mulher do sapateiro em troca de um velho lenço de cabeça.

Drágica também estava ocupada com os pequenos. Bogdan, que nos seus momentos livres, fazia de comandante dos rapazinhos do pátio, descobrira num canto uns ramos, que o comerciante do primeiro andar tinha cortado do seu enoFme pinheiro e a meninada apanhara para que a irmã enfeitasse a parede para eles.

A coisa não era fácil; mas Drágica, como seu pai dizia, era uma pequena fada e pôs em jogo toda a sua arte de magia, adornando os ramos com retalhos de pano da casa da modista, recortando botõezinhos e fazendo fitas de papéis de várias cores. Acendeu, depois, as luzes da árvore — não eram velas inteiras, mas cotos das velas que o pai trazia da repartição; mas que importava isso? — à sua claridade podia ver as caras satisfeitas dos irmãozinhos e ouvir-lhes as fortes risadas e o alegre bater das palmas. A menina estava contente, mas era preciso que o seu olhar não fosse mais longe; não ver pela janela as janelas do primeiro andar, onde havia claridade deslumbrante, e, no meio, uma árvore de Natal muito grande e muito enfeitada. Tampouco devia prestar muita atenção ao que dizia a meninada porque, na sua inocência, estava sempre a fazer perguntas e comparações entre a sua pequena árvore/ e as lindas coisas que se vendiam nas lojas.

Não contente de ter imitado, para os divertir, e fazer esquecer a sua pobreza, uma árvore de Natal, esquadrinhara, à semelhança dos outros anos, todos os cantos da casa para encontrar alguns brinquedos. Eram brinquedos velhos, dados pelo defunto padrinho, a ela e a seu irmão, em diferentes ocasiões, e que, guardados cuidadosamente, serviam todos os anos para representar a inocente comédia dos presentes de Natal.

Os pequenos só tinham licença de brincar com eles na véspera e no dia de Natal; Drágica depois tornava a guardá-los, metendo-os no canto mais fundo do baú. Imediatamente a garotada saudou os brinquedos com grandes gritos de alegria.

— Mas ouça, Drágica. . . por que é que o Menino Jesus não compra os brinquedos na loja da Ilica, onde há tantas coisas bonitas? — perguntou Mirko, o mais novo da família, que não tinha mais que cinco anos.

— Por quê? Homessa? Não sabes que o Menino Jesus traz tudo do céu?

Sim? E no céu não há coisas tão bonitas como na loja da Ilica? Veja: já no ano passado o Menino Jesus nos trouxe as mesmas coisas. . . Sim, senhor! São as mesmas coisas, e não…

Drágica ficou muito corada, e, para evitar mais perguntas, pôs-se a beijar os pequenos. Passou-lhe uma sombra negra pelo espírito e teve de fazer um grande esforço para não desatar a chorar, tanto mais que lhe parecia ter ouvido seu pai soluçar na alcova.

Apesar disso, a noite ia decorrendo bem. A senhora Clara, embora isso lhe custasse muito, teve de se fingir zangada algumas vezes, para evitar que os meninos, sempre a traquinar, comessem toda a torta. . . Naquela noite, não se podia comer senão a crosta, pois tinha de chegar para o dia seguinte, e para os outros. . . Em vão os pequenos se comprometeram a jejuar depois. . . A mãe não se rendeu, nem mesmo quando Sukaljevié e Drágica renunciaram à sua parte. Repartiu pelos pequenos as sobras da sopa de feijão, e como eles continuassem a dizer que ainda tinham fome, prometeu contar-lhes uma história de Natal! E que bonitas histórias ela sabia!

Com esta promessa, a petizada sossegou.

— Mas, antes de começar, meninos, temos de cantar uma canção — disse a mãe.

— Sim, sim, mamãe — gritou a uma voz a pequenada, muito contente, juntando-se em volta de Drágica que iria reger o coro.

— Por que não acendemos novamente as luzes da árvore? Assim, cantaremos melhor — disse Anita.

— Não, não, pois não ficaria nada para amanhã — observou a mãe.

Enquanto isso Drágica escolhia a canção.

Daí a pouco, ressoava no quarto, baixo de teto e mal iluminado, o canto harmônico das crianças… E, com a canção, alguma coisa de santo e de sublime entrou ali, como se lá não reinasse a miséria e a desgraça.

Até Sukaljevié esqueceu as suas mágoas e saiu do quarto para vir para o meio dos pequenos cantores.

Que Deus nos dê saúde E que nos mantenha a alegria e faça com que Ano Novo tenhamos todos os dias

Com entusiasmo, subiam as vozes débeis dos pequenos e as de Bogdan e Drágica, mais fortes. . . Sukaljevié, com as pernas tremendo teve de voltar para a alcova escura, dizendo, por entre gemidos: "Oh! Se soubessem que alegria os espera amanhã!" E torcia as mãos e fincava a cabeça dolorida na parede fria.

Entretanto, a mãe depois de lavar os pratos, voltou da cozinha, enquanto a mulher do sapateiro que naquela noite tinha ajudado as crianças do primeiro andar, lhe falava das riquezas e dos preciosos presentes do andar de cima.

— Então, mãezinha, não começas a história? — gritaram os pequenos, impacientes, pondo-se em volta dela.

— Sim; hoje é noite de Natal e podemos deitar-nos mais tarde. Onde está o paizinho?

Estou aqui, no quarto. Sinto muito frio. Aqui está mais quente e vou já deitar-me.

— Também nós temos frio — disseram Anita e Mirko,

— Mas eu é que não posso pôr mais carvão, senão não ficaria nenhum para amanhã. Olha lá, Casimiro, vê se ainda há carvão no fogão. Quando estiver apagado, fecha.o registro e assim dará mais calor.

— Já o fechei; o fogão está todo negro por dentro — disse Sukaljevié, passando um instante.

— Está bem. Realmente, faz um pouco de frio. Escutem, meninos:

UM CONTO DE NATAL

Era uma vez um menino e uma menina; irmão e irmã. O irmão tinha oito anos; ela, sete. E eram muito infelizes e muito pobres, porque já não tinham pai nem mãe. Algumas semanas antes, o pai que era guarda florestal de um conde muito poderoso, tinha saído de casa para ir ao bosque. No meio do bosque havia um lago e, como nesse inverno fazia muito frio, a ponto de ter gelado a água, o gelo, que nesse lugar era mais delgado, partiu-se. O pobre guarda foi para o fundo e morreu afogado.

Ao cabo de alguns dias, encontraram, mesmo ao lado do lugar onde êle se afogara, o cão do guarda sentado em cima do chapéu e da espingarda do dono. Quando a mulher do guarda soube da desgraça que tinha acontecido, partiu-se-lhe o coração de desespero e morreu. Ficaram, pois, as crianças sozinhas no mundo, vivendo unicamente das esmolas que lhe davam na aldeia. E continuaram a viver na casa deserta e fria do guarda, juntamente com o cão. Mas, ao chegar a véspera de Natal, sentiram-se demasiado sós naquela casa escura e fria, e, acompanhadas do cão, saíram para a rua, apesar do grande frio e da neve, que caía tão abundantemente, que lhes chegava até o peito. Tinham esperanças de encontrar o Menino Jesus, de quem sua mãe lhes falava e contava tantas coisas, todos os anos. O menino recordava-se de, no ano anterior, e naquela mesma noite, ter ido com o pai ao castelo do conde e de ter sonhado com o que lá vira, durante muito tempo. E assim se dirigiram para o castelo, ambos a tremer de frio. A irmãzinha quase não podia andar de tão cansada que estava, e as lágrimas não a deixavam ver nada. O irmão, embora fosse menor e fraco, tinha de ajudá-la a levantar-se a cada momento; aquecia-lhe as mãozinhas com o hálito prometendo-lhe muitos brinquedos, que encontrariam no castelo. Mas, por fim, também se cansou e de boa vontade se teria sentado na neve para descansar um pouco. Mas, então, o velho cão começou a saltar alegremente em volta dele, ladrando e agitando a cauda, como se quisesse dizer: "Já não estamos longe; coragem, vamos!" e como as crianças, apesar disso, não se punham a caminho, começou a ladrar com mais força e chegou até a arreganhar os dentes. Porém, mais adiante, as crianças não puderam realmente continuar mais. E eis que, de repente, encontraram um outro menino.

Era tão pequeno e tão fraquinho como a pequerrucha; ainda estava mais pobremente vestido, e apesar do intenso frio que fazia, ia descalço e sem nada na cabeça, que era muito linda e com uns belos cabelos longos e encaracolados.

Para onde vais? — perguntou o menino com uma voz débil e a medo.

— Ah! E até estás descalço! — disse a menina.

— Pois estou — respondeu, chorando, o outro.

— Sabes o que vamos fazer? — disse o irmão à irmã. — Já que não podes andar, dá-lhe as tuas botas e nós te levaremos ao colo. Queres?

Ficou assim combinado, e desta maneira puderam ir mais depressa. Chegaram diante do castelo. De fora via-se, através das janelas, todas iluminadas, a grande árvore de Natal, com magníficos presentes, toda enfeitada dc ouro e prata e cheia de frutas cristalizadas. As crianças conseguiram entrar às escondidas, no castelo; através dos corredores, bem aquecidos, e sem que ninguém os tivesse visto, puderam chegar até à sala onde estava a árvore de Natal. Em volta estavam o conde, a condessa, os filhos e muitos convidados, todos elegantemente vestidos. A princípio ninguém deu pela presença das pobres crianças, que ficaram deslumbradas perante a magnificência da árvore e dos brinquedos. Só estranharam que os filhos do conde não estivessem alegres, nem rissem de satisfação ao receber tais presentes.

— Oh! Que contentes ficaríamos, eu e a minha irmã, se tivéssemos a décima parte de tudo isto — disse em voz baixa o filho do guarda florestal ao outro menino. Este sorriu, mas, não pôde responder, porque precisamente nesse momento, os donos da casa deram pela presença das crianças. Ao vê-las tão mal vestidas, toda a gente se afastava com repugnância.

— De onde vieram vocês, seus ciganos? — berrou o conde, furioso; e ordenou aos criados que os pusessem na rua.

— Calma, marido, calma! — disse a condessa. — Vão já. Mas repare como estão rotos! Talvez tenham fome!… E hoje é noite de Natal. Podemos dar-lhes umas roupas. . . Ainda há algumas, trazidas pela comissão da árvore de Natal para crianças pobres. . . E Jancsi que os acompanhe ao quarto dos criados para comerem qualquer coisa.

Sem esperar resposta do conde, a condessa dirigiu-se a um canto da sala, onde havia montes de roupas e calçados para as crianças, e deu alguns aos pequenos. . . isto é, ela não — porque não queria aproximar-se deles — mas um criado, a quem ordenou que levasse as crianças para fora da sala.

— Muito obrigado! — disse o menino dos cabelos encaracolados •— mas os meus companheiros e eu queríamos também alguns desses lindos brinquedos e alguns doces.

— Como! O que? — exclamaram, surpreendidos, o conde, a condessa e todos os convidados. E os filhos do conde puseram-se a gritar:

— Não. . . não! Isso, não! É nosso! não faltava mais nada! São nossos. Contentem-se com os vestidos que lhes deram e com a comida em vez de estarem pedindo outras coisas!. . . Tivessem tido mais juízo nos pais que escolheram!

Muito aborrecidos o conde e os convidados puseram as crianças fora da sala, enquanto a condessa mandava abrir a janela para sair o cheiro de miséria que elas haviam deixado ali. Os pequenos choravam, mas ninguém se compadeceu, e então, cheios de fome, tiveram de deixar o castelo.

O cão esperava-os no pátio, e as crianças, sempre chorando, confiaram nele mais uma vez para que os guiasse. Dirigiram-se para o bosque.

A princípio o irmão e a irmã tinham muito medo, ao verem-se no meio de tamanha escuridão, entre os pinheiros e os abetos. O menino desconhecido tranqüilizou-os. E enquanto êle falava, apareceu a lua no céu; o luar brilhava, por entre os ramos das árvores, e que belo espetáculo se ofereceu aos seus olhos! Não era uma árvore de Natal como a do castelo do conde, mas centenas delas as que tinham diante dos olhos, recamadas de pérolas e diamantes resplandescentes. Chegaram ao lago. Aí tornaram a ver milhares de estrelas, nas águas azuis e cristalinas. . . Que lindo! O cão sentou-se na margem, olhando o espelho das águas e as crianças, cansadas, foram sentar-se ao seu lado.

— Ah! Se agora o Menino Jesus viesse ao nosso encontro! — disse, baixinho, a menina ao irmão.

Naquele istante, o outro pequeno se levantou e, oh! milagre! — já não estava pobremente vestido, nem tinha aspecto de miséria. Vestia uma túnica bordada a prata, como a dos anjinhos. Em torno da formosa cabecinha luzia-lhe uma coroa de luz. Das mãozinhas, irradiava um esplendor como o das estrelas. . . E, em lugar do bosque, apareceu, de repente, um palácio real todo iluminado, de mármore branco e ouro, prata e pedras preciosas; e das portas, abertas de par em par, vinha um calor suave e aromas de incenso. Do palácio saíram anjos, voando; por ordem do menino, pegaram nos dois irmãos e levaram-nos para o meio das preciosas naves. Uma vez ali calçaram os pezinhos nus da menina com sapatos de ouro. Depois, vestiram os dois com vestidos resplandescentes, que se assemelhavam à túnica do menino desconhecido.

— Então, és o Menino Jesus?

‘— Sim, eu sou Cristo. Porque vos compadecestes do menino pobre e esfarrapado, e partilhastes com êle a vossa pobreza; porque sois órfãos e passais fome e frio, entrais no reino dos céus e nele celebrareis o Natal.

Depois, levaram os meninos para o pé da árvore de Natal do céu, tão bela e tão resplandescente como só no céu podia haver. Ao lado dela, a árvore do conde não era nada. Das mãos do Menino Jesus receberam vários presentes, cada qual mais bonito e S. Pedro deu-lhes de comer e de beber. E, depois. . . depois vieram os seus pais que não estavam vestidos como os criados do conde, mas como anjos, porque eram bem-aventurados. As crianças ficaram para sempre no céu com seus pais e os outros santos e brincavam amiúde com o Menino Jesus. . . Mas no bosque, no lugar onde tinham parado para descansar encontraram apenas as roupas deles, e espalhou-se a notícia de que os lobos os tinham comido. Ao fim de algum tempo, apareceu ali uma capelinha, sem que ninguém soubesse quem a tinha feito, e no altar, entre os anjos, que cantavam o Glória in Excelsis, viam-se duas caras, que se pareciam muito com as dos filhos do guarda florestal.

botas papai noel

 

Querem saber, agora, que foi feito do conde, da condessa e de seus filhos? Deus os castigou por terem expulsado de casa as pobres crianças e o Menino Jesus. O coração converteu-se-lhes em pedra e toda a vida sofreram muito; e os doces, que não quiseram dar aos pequeninos pobres, causaram-lhes distúrbios no estômago de tal maneira que nunca estavam fartos, sem, contudo, nunca terem vontade de comer. Doentes e abatidos, deixaram o castelo, que ficou deserto e abandonado, passando a ser ninho de corujas.

Assim acabou a mãe a história. Os pequenos, que até então tinham estado quietos e sem despregar òs lábios, começaram a fazer comentários sobre o que acabavam de ouvir, até que, pouco a pouco, foram emudecendo, meteram–se na cama e caíram num sono profundo, embalados pelo toque dos sinos da torre de Santa Maria. Mas, Sukaljevié não podia dormir. A história que sua mulher contara, as suas angústias e a sua amarga dor, tudo lhe tirava o sono. Mas não estava completamente acordado, porque, como num sonho, ouvia, por entre o repique dos sinos, coros de anjos; sim, via as figuras celestiais, voando em longas filas. Por último, despertou completamente, ao ver um grande clarão do pátio. De repente, a porta abriu-se e viu entrar um menino igual ao que sua mulher havia descrito. "Então, não era história!", pensou êle, e levantou-se da cama para saudar o Santo Menino, que, de longe, lhe sorria, com um sorriso doce e consolador, dizendo consigo: "Este é o Menino do Céu, e com que bondade e com que doçura me saúda! Enquanto que os meus chefes, de quem apenas me separa meia classe da Dieta, só se dignam olhar para mim por favor. Poderiam tomar este Menino como modelo. Afinal de contas, nenhum daqueles personagens vale tanto como este!"

Sentiu então uma felicidade indescritível. Esquecera todas as penas. Via o Menino Jesus tirar de uma grande cesta, presentes e mais presentes. . . E, de súbito, apareceram-lhes montões de todas aquelas coisas que, durante anos, tanto desejara dar aos seus queridos filhos no Natal. E o Menino Jesus pôs-se a derramar ouro, muito ouro, dentro das suas botas. "Este é o dote de Drágica!", pensou Sukaljevié, sem se atrever a falar nem a dirigir a palavra ao Menino-Deus. Olhava-o fixamente, encantado com a sua divina formosura. Estranhava, porém, que, além da pequenina cruz, trouxesse ao peito um singular adorno. . . — uma cabeça de morto. Mas, oh! espanto!… a cabeça desprendeu-se da túnica divina transformando-se num rosto de anjo. E esta cabeça não infundia medo. . .; em torno do seu rosto, havia tal expressão de paz que Sukaljevié não pôde deixar de lhes estender a mão cordialmente.

"E’ o companheiro de Jesus Cristo, que desce propositadamente do céu e amavelmente me aperta a mão. Ah! soubesse disto o senhor diretor que nunca me concedeu tal honra!" — pensou Sukaljevié.

— Posso ir acordar minha mulher e os pequenos?i— ousou perguntar por fim. Que belo Natal!… Gostaria que eles também vissem que o Menino Jesus veio à nossa casa — acrescentou como que gracejando, tendo perdido toda a timidez de um pobre diabo da nona classe da Dieta, ao ver que o Menino Jesus e o anjo da cabeça de morto trocavam entre si olhares cheios de expressão de bondade e de amizade.

— Vai acordá-los, justo e mártir! — disse o Menino Jesus.

E enquanto despertava a mulher e os filhos, o quarto ia-se enchendo de um delicioso fumo de incenso e de mirra; a chaminé parecia transformada num altar do templo de Salomão, sobre o qual o anjo de cabeça de morto depunha oferendas, erguendo-se uma maravilhosa coluna de fogo, que esparzia pelo quarto aquele delicioso aroma. Quando a família acordou, tudo era diferente. Já não havia paredes úmidas; nada, absolutamente nada do que era antes. Tudo estava engrandecido, sublimado, tudo brilhava de esplendor, tal como sua mulher tinha explicado à pequenada. E aquela sala maravilhosa, que lembrava a de um palácio ou a de uma catedral, encheu-se, de súbito, de anjos, arcanjos e serafins, que beijavam Drágica, a enfeitavam com flores do céu e lhe cobriam a cabeça de pérolas.

— Mas, onde é que nós estamos? >— perguntou a senhora Clara, que nunca perdia a serenidade. — Onde está o sofá que herdei de meu pai? Donde vem esta claridade, esta árvore de Natal tão rica? Estes belos presentes, quem os trouxe? Sukaljevié, que quer dizer isto?

Mas êle se sentia tão feliz, que não podia articular palavra. Limitou-se a mostrar com o dedo o lugar onde estava o sofá no qual se via sentado S. José, o prometido da Mãe de Deus.

— Mas afinal onde é que estamos? — tornou a perguntar a senhora Clara, surpreendida a mais não poder.

Então os anjos começaram a cantar, e longe, muito longe, repicavam os sinos da catedral, enquanto a petizada pulava de alegria, a Mira dizia que o pai já era rico, e o pequeno Mirko garantia que nem na loja da Ilica havia coisas tão bonitas.

Sukaljevié nadava em gozo e felicidade.

— Estamos no Paraíso, com os filhos do guarda florestal! . . . Vês como não era uma história? Estamos no Paraíso! — disse baixinho à mulher. — Estais no Paraíso, estais, porque bem-aventurados os perseguidos da terra, porque os espera o reino dos céus .— responderam os anjos, e o Menino Jesus abriu-lhe os braços e apertou-o de encontro ao coração.

"Mas estamos muito longe de Agram. Como voltar para lá? Depois de amanhã tenho de despachar um assunto pendente entre o conde Pistany e a aldeia de Marja-novci", pensou Sukaljevié, que era muito escrupuloso em tudo.

E ao mesmo tempo, lá do fundo, muito lá do fundo chegou-lhe ao ouvido um som de palavras. . . Era, decerto, a voz do seu diretor, que lhe gritava: "Mas é você, Sukaljevié? A que vem todo este luxo? Que significa isto? E’ isto próprio de um homem da nona classe da Dieta, e com o seu soldo? Julga talvez que eu teria dado uma bela árvore de Natal aos meus filhos, que teria convidado tanta gente para cear, se não tivesse o meu ordenado de diretor e o dote de minha mulher? Teria dado a meus filhos bolos de farinha e peixes secos. . . — quando é que pensa voltar? Bem sabes que as atas de Pistany, de Capitel e de Mirosevci têm de estar prontas antes do Ano-Bom. Que pensa, afinal? Que hei de sofrer as conseqüências do seu desleixo? E se tudo isso não estiver despachado a tempo, perderei a minha promoção à quinta classe da Dieta! Você bem sabe que Sua Excelência o senhor Ministro, se interessa pessoalmente pela ata Pistany! E só você pode preparar o processo, porque Gavrilovic. . . verdade seja que, por causa dele, vai ser aposentado. . . mas êle. . . destas coisas não sabe nada… Lembre-se dos cuidados que nos deram os processos que êle preparou para a primeira instância, por não terem pés nem cabeça. . . Não posso fazer nada dele… foi por isso que lhe dei o cargo de escriturário, e. . . creia. . . por minha parte, foi um gesto nobre e desinteressado; com isso, apaguei em parte, a boa impressão que deixei ao propor a sua aposentadoria. Deve saber muito bem que ainda não se desfizeram completamente as suspeitas de ter sido você o autor daquele livrinho de 1833, que tinha por lema: Regnum regnon non praescribit leges… Decida-se, portanto, a voltar, Sukaljevié! Perdoar-lhe-ei tudo, mesmo as botas. . . Contanto que volte! Com o tempo lhe aumentarão o salário até florim e meio. Volte depressa!"

natal família

 

Mas Sukaljevié encolheu os ombros. Tão elevado se sentia êle e os seus que nada lhe importava o resmungar do diretor e de todos os diretores e ministros, bem como todas as classes da Dieta… Gozava da Eternidade e do seu divino resplendor e a mesquinha e pequena bola do mundo não era nada a seus olhos; só via o pico das montanhas; e dos "grandes senhores" das repartições de Agram nem falemos.

Três dias depois do Natal, os jornais de Agram publicavam, entre algumas notas locais, a triste ou — como diziam os jornalistas a horrível notícia de que, na noite do Natal, se dera uma tremenda desgraça no prédio número 15. Na casa do funcionário Sukaljevié tinha sido encontrada morta toda a família, asfixiada pelo gás da combustão do carvão, em virtude de alguém ter fechado o registro da chaminé.

As más línguas falaram de suicídio. Só a vizinha, a respeitável mulher do sapateiro Jordi, não acreditou nem em suicídio, nem em envenenamento produzido pelo óxido de carbono, explicando a todos que Deus se tinha compadecido da pobre família e a levara para o céu para que festejassem o Natal na sua companhia, pois, o pai, a* mãe e os filhos eram bons demais para uma vida tão miserável. Para dar mais força à sua explicação, contava que estivera muito tempo sem poder dormir e que ouvira como falavam e cantavam em casa de Sukaljevié…, não como pessoas mas como verdadeiros anjos. E disso ninguém a conseguiu demover nem mesmo quando se veio a saber que." precisamente na véspera do Natal, Sukaljevié havia sido aposentado.

casa noite de natal

Fonte: Livro de Natal – Livraria Martins Editora. Ilustrações de R. Zamboni. Seleção e Notas de Araújo Nabuco, 1955.

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