José Maurício Nunes Garcia

José Maurício Nunes Garcia

Êste grande maestro brasileiro, a mais brilhante glória musi­cal do Brasil, nasceu no Rio de Janeiro a 22 de setembro de 1767. Era muito novo ainda, quando perdeu seu pai, mas sua mãe e uma tia, vendo o gôsto extraordinário que o pequeno tinha pela música, mandsram-lhs ensinar essa formosa arte, assim como o fizeram frec üentar aulas de humanidades, em que deu provas também de grande talento. Desejando seguir a vida eclesiástica, tomou ordens de diácono, disse missa solene em 1792, e em 1797 teve licença pa­ra pregar, mas a sua vocação fôra sempre a música. Cedo adqui­riu a fama de bom compositor, e tal era a sua paixão pela arte que, apesar-de ser pobríssimo, abriu uma aula gratuita em que a ensina­va. Em 1798 o bispo do Rio ds Janeiro, que o protegia muito, no­meou-o mestre da capela da Sé, lugar que vagara nessa ocasião.

Em 1808 chegou com a côrte o grande maestro Marco Por­tugal 3), que ficou surpreendido, como o príncipe D. Pedro e os

que o acompanhavam, com as obras-primas que se executavam no Rio de Janeiro, onde se não supunha que tivesse chegado a tal per­feição a arte musical; O talento de José Maurício, se fêz admira­dores, também grangeou invejosos, e muitos músicos portuguêses o encheram de amarguras, tratando-o com desprezo por êle ser mulato; o príncipe regente é que sempre o estimou, protegeu e fa­voreceu, mostranao-se muito entusiasta pelas suas obras, e recompensando-o largamente. Queria até trazê-lo para Portugal, é, co­mo José Maurício recusou ir, D. João VI escreveu-lhe de Lisboa, manifestando-lhe o sentimento que tivera pela sua recusa.

O Brasil na primeira quadra da sua independência não era um país onde as artes pudessem florescer. O país todo obedecia a preocupações muito diversas. José Maurício viu-se absndonado e caiu em profunda melancolia, que pouco a pouco o foi minando;

até que o matou no dia 18 de abril de 1831.

Era José Maurício um grande músico de igreja, são admirá­veis as suas peças sacras, mas sobretudo tinha José Maurício uma qualidade notável e especialíssima — era grande improvisa dor. Uma vez, ouvindo uma banda marcial que lhe agradou muito, com­pôs quase sôbre o joelho doze divertimentos para ela tocar. A es­cola por que José Maurício mais se apaixonara, foi a escola do classicismo puro e tocante de Haydn e de Mozart, que eram os

grandes modelos do ilustre maestro brasileiro.

Pinheiro Chagas.

Foi em 1811 e não em 1808, que desembarcou no Rio de Ja­neiro o famigerado Marcos Portugal, cujo nome, conseguindo trans­por as raias da pátria, era com aplauso repetido de tôda a Itália e repercutira até na longínqua Rússia, onde foram, de 1793 a 1796 representadas, depois de traduzido o libreto, 3 das suas 58 óperas.

Apenas de chegada, correu Marcos Portugal à quinta da Boa Vista a beijar as mãos da augusta família e dela teve tal recebi­mento de agrados e amabilidades, que aos desafetos de José Mau­rício pareceu irremediável a sua desgraça, como então se chama­va o retraimento do favor dos príncipes.

— Há aqui um homem de côr, disse a princesa Dona Carlota para o famoso maestro, que é notável na música.

— Já ouvi contar, respondeu Marcos Portugal.

— Mas quero o seu juízo. . .

— Obedecerei a Vossa Alteza Real. . . Creio que domingo. . .

— Não esperarei por domingo. Venha cá amanhã, que man­darei chamar o José Maurício. Traga algum trecho novo para piano. . . Veja bem que o regente costuma chamá-lo o novo Marcos.

Empalideceu de despeito o autor do Demofonte, inclinou-se e despediu-se.

No dia seguinte, com efeito, encontraram-se à tarde em São

Cristóvão, os dois artistas: um, todo cheio de seus triunfos e gló­rias, naturalmente arrogante, cercado do imenso prestígio que lhe haviam dado as ovações das platéias de todo o mundo civilizado, possuído do seu papel de autoridade incontrastável, e árbitro su­premo; o outro, José Maurício, mulato, pobre, tímido, personalida­de totalmente desconhecida fora de limitado círculo, alheio à influi­ção dos grandes centros da Europa, desajudado do exemplo e da audição dos mestres, sem nunca ter saído da colônia e até da cidade natal, entregue às suas próprias inspirações e havendo ganho o pouco que era, a poder de muita vocação natural, aturado estudo e penosas lucubrações, dispondo só de apoucados recursos em todos os sentidos, a bem da expansão da sua índole artística.

Dirigiram-se êles para os aposentos particulares da princesa dona Carlota; Marcos Portugal adiante com a compostura de so­branceiro juiz; “tão grande a sua impostura’’ – escrevia pouco tempo depois Santos Marrocos em carta pará Lisboa, — “que os mesmos que o obsequiaram, contra êle se levantam — olhos car­regados, cortejos de superioridade, enfim, aparências ridículas e de charlatão.” Atrás seguia José Maurício, todo perturbado, fu­lo de comoção e tão inquieto do que lhe ia suceder, que as mãos lhe tremiam, muito embora todo o esforço por se dominar.

Já estavam os príncipes sentados em uma sala, em que se ostentava, não um modesto cravo, mas soberbo piano de fabrica­ção inglêsa, rodeado de pessoas da côrte especialmente convidadas para aquela inesperada exibição dos méritos do organista da Sé an­tigo, com exercício também na capela real.

Depois de obtida vênia, desenrolou Marcos Portugal, com cal­culada solenidade, uma peça de música que trazia, e passou-a a José Maurício, perguntando-lhe se já ouvira falar naquele autor.

Era uma das mais difíceis sonatas de Francisco José Haydn *).

Com voz sumida e a gaguejar, respondeu o padre que, há mui­to, conhecia grande parte do repertório do exímio mestre, a quem dedicava culto especial. E, com efeito, José Maurício, nas suas

palestras sôbre arte colocava Haydn acima de Haendel 2), a par de

Mozart 3) e só abaixo de Beethoven 4), que costumava denominar divino.

Mostrou-se Marcos Portugal não pouco admirado.

— Então por cá já sabem disso? exclamou com enfado. Na Itália é nome quase desconhecido.

— Pois, senhor José Maurício, ordenou a princesa Dona Car­lota, faça-nos ouvir tão grande novidade.

— Nunca toquei esta sonata, objetou o padre, e Vossa Alteza…

—• Mas dizem que você tira música, como quem lê letra re­

donda. . . Sente-se ao piano.

Não havia recuar.

Obedeceu o artista, e, aos primeiros acordes, fêz-se completo silêncio.

Começou a sonata.

A princípio José Maurício, se não claudicou, pelo menos mos­trou tibieza na execução.

A pouco e pouco, porém, foi-lhe voltando a salvadora calma [1]). Concentrou-se, chamou a si tôda a sua energia e, reagindo contra o abalo que lhe escurecia a vista e lhe prendia as mãos, foi levando de vencida tôdas as dificuldades da primorosa obra, já esquecido do local em que se achava, e de corpo e alma entregue às mara­vilhosas deduções harmônicas do insigne alemão, cujas páginas interpretava com expressão e facilidade cada vez mais acentuadas.

Daí a instantes também pertencia ele exclusivamente à gran­deza da concepção que ia vivificando por modo todo seu, fazendo dos seus dedos, já firmes e de novo escravos da inteligência e do sentimento, jorrar belezas sem conta, que em todos os ouvintes infundiam pasmo e indizível enleio.

Muitos, voltados para Marcos Portugal, liam na fisionomia do orgulhoso mestre a sucessão das impressões que gradualmente o estavam avassalando, fisionomia no comêço fria, desdenhosa, irô­nica, logo depois, atenta, surprêsa, e por fim cheia dêsse entusias­mo expansivo, que a alma verdadeiramente artística não pode re­primir nem ocultar e irrompe com fôrça incoercível na lealdade do seu arrebatamento.

José Maurício, porêm, nada via; estava todo com Haydn.

No andante deu tal melancolia ao tema dominante, fêz por tal fôrça realçar a frase melódica, que nas composições de Haydn perpassa insistente, como indecisa chama por sôbre torrentes de harmonias encadeadas, arrancou do piano tais vozes, tão tes e novas — as lágrimas de que fala Mozart — que por sala e contra as regras da etiqueta circulou um sentido Bravo!

Continha-se, porém, o árbitro de quem tudo dependia; quando José Maurício atacou o presto final e, sem discrepância uma nota, com a nitidez de magistral interpretação, destrinçou os motivos que, aos quatro e cinco intimamente se travam naquele estilo fugado de pasmosa riqueza e exuberância, Marcos Portugal não teve mais mão em si, pôs-se, talvez mau grado seu, de pé e ao morrerem os últimos e vigorosos sons da sonata, precipitou-se para aquêle que, de repente, se constituíra seu igual e, o meio de calorosos aplausos dos príncipes e da côrte, apertou-o nos braços com imensa efusão.

— Belíssimo, bradou êle, belíssimo! És meu irmão na arte;

com certeza para mim serás um amigo!

Voto sincero, partido do fundo do coração, mas que se não realizou senão muitos anos depois, separados aqueles dois robustos talentos, dignos da estima e do respeito recíproco, por baixas intri­gas e violentos ódios, de que foi vítima nobre e resignada o glorio­so compositor brasileiro.

Visconde de Taunay.

Nos domínios da música sacra são conhecidos dois Josés Maurícios, a saber:

a) José Maurício, músico português, natural de Coimbra, — autor, entre ou­tras composições, de um Miserere notável. Êste autor viveu de 1752 a

1815. \

b) José Maurício (Nunes Garcia), padre; notável compositor brasileiro de música sacra, — natural do Rio de Janeiro; entre as suas principais

composições destacam-se Sinfonia fúnebre e uma Missa de Requiem. Vi­veu de 1762 a 1831.


[1] calma, no sentido de serenidade, tranqüilidade de ânimo, não é abo­nada pelos melhores escritores.

Fonte: Seleta em Prosa e Verso dos melhores autores brasileiros e portugueses por Alfredo Clemente Pinto. (1883) 53ª edição. Livraria Selbach.

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