O carteiro – crônica de Latino Coelho
Quando vemos passar junto de nós um homem fardado de casaco azul, gola vermelha debruada de ouro, sobraçando um saco de pele, um turbilhão de sentimentos diversos nos acodem 2) à mente.
Êste homem de aspecto plácido e gélido é o fiel mensageiro da vida e da morte. Uns o esperam com alvoroço, outros com receio. Tôdas as portas se lhe abrem, tôdas as mãos àvidamente se lhe estendem, todos o desejam com as comoções 3) mais fortes, e com as mesmas o seguem.
O carteiro é uma esperança ambulante. Êste homem de fisionomia serena espalha nas famílias, com a mesma insensibilidade, a tristeza e a alegria, os lutos e as galas. As donzelas, umas com as lágrimas nos olhos, suspiram pela sua vinda, outras com o sorriso nos lábios e rubor nas faces! Quantas mães aflitas com ânsia lhe 4) arrancam das mãos a carta d.o filho ou do marido ausente, único lenitivo das saudades que as consomem.
à maneira da fortuna, o correio é cego, porque distribue, com a mesma desigualdade os prêmios e os castigos, as prosperidades e as ruínas. Impassível, convida com igual indiferença tanto para o baile, como para o cemitério; e entrega com a mesma imperturbabilidade a inocente missiva afetuosa como a infame carta anônima.
Tôdas as coisas para êle têm igual pêso; tão leve consid3ra o singelo bilhete de visita ou a participação funeral, como a carta de ordens em que um banqueiro envia a outro uma avultadíssima soma.
Na mala misteriosa do correio não se conhecem categorias sociais, nem ódios nem rivalidades; ali não há lugares distintos para os sexos nem para as idades; ali tôdas as línguas se falam e tôdas se entendem. Freqüente é ver naquela bôlsa irem na maior intimidade os mais irreconciliáveis inimigos; o plebeu colocado por cima do nobre, ou formando dêle estrado; damas rivais, pacificamente recostadas umas sôbre as outras; a espôsa ciumenta vê indiferentemente o espôso junto de outra dama sua rival sem gemer o menor queixume.
Quem há, enfim, que, prestando ouvidos da alma àquele grosseiro e veloso surrão conduzido com tanta frieza e indiferença, não ouça lá dentro gemidos de saudades, gritos de dor, ou sorrisos de contentamento, ou exclamações de entusiasmo?
Oh! aquela bôlsa simboliza o caso da vida: alegrias! tristezas! amores! ódios! esperanças! incertezas! desenganos! interesses! ruínas tudo ali se acha envolvido, e aglomerado na mais absoluta e inextricável confusão!
Latino Coelho.

1) mainel — corrimão, parapeito.
2) Vida a nota 4) à pág. 30.
3) Vide a nota 2) à pág. 93.
4) Vide a nota 4) à pág. 75.
Fonte: Seleta em Prosa e Verso dos melhores autores brasileiros e portugueses por Alfredo Clemente Pinto. (1883) 53ª edição. Livraria Selbach.
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