O CONGRESSO MUSICAL DE VIENA

Oliveira Lima

O CONGRESSO MUSICAL DE VIENA

A reunião este ano em Viena do terceiro congresso internacional de música coincidiu com a celebração do centenário da morte do grande compositor austríaco Joseph Haydn, ocorrida quando entravam na capital do império, depois cie Wagram, as tropas de Napoleão. Apenas esta circunstância forneceu ao maestro a sua última consolação em vida: o imperador dos franceses, que sabia prestar quando queria, e então como ninguém, homenagens tocantes ao gênio, mandou colocar uma guarda de honra à porta da casa de Mariahilfstrasse, onde agonizava o artista. Nesta casa, hoje transformada em Museu Ilaydn e perto da qual se levanta seu monumento, se congregaram numa manhã os congressistas em recordação daquele que a habitara.

O congresso revestiu-se certamente de um maior interesse, c uma mais intensa simpatia lhe adveio de uma tal associação de datas que encerrava uma tocante homenagem mundial ao criador da moderna sinfonia e portanto fundador do estilo musical contemporâneo. A linda cidade imperial do Danúbio já por si é um templo da música: os deuses da arte nela se chamam Beethoven, Mozart, Gluck, Schubert, Haydn, Bach, Haendel, Brahms. Não há aqui grandes pintores nem grandes escultores que possam rivalizar com esses "mestres do tom", como os denomina a linguagem alemã: suas tintas empalidecem e seus contornos deixam de sobressair ao lado de tantas e tão sublimes harmonias de sons.

No discurso em que deu as boas-vindas da cidade aos congressistas, o conhecido agitador anti-semita e veemente político Dr. Lueger, que como democrata cristão tem granjeado universal notoriedade e como burgomestre de Viena alcançou entre os seus concidadãos e administrados a mais invejável popularidade, disse com muito a propósito que a música é o único idioma em que se entendem perfeitamente as diferentes seções e porções deste império de nacionalidades distintas e de raças opostas.

O Dr. Lueger não faz aliás questão da espécie de música, que êle assim converte num novo e mais agradável Esperanto, chegando mesmo a espantar-se o seu ecletismo de que Strauss, o famoso autor das valsas, não esteja colocado, e não como um semideus, antes como a divindade integral, no Olimpo das harmonias a que Joseph Haydn pertencia desde muito, independente da derradeira e grandiosa comemoração com que foi honrada a sua memória.

As inconseqüências dos políticos são tais, que no decorrer mesmo do Congresso o Dr. Lueger esqueceu e até infligiu um solene desmentido à sua bela concepção da conciliação ou melhor reconciliação nacional pela música. Apesar de se mover com bastante dificuldade, o burgomestre foi em pessoa a Eisenstadt, na Hungria, onde se acha sepultado Haydn, na igreja paroquial perto da mansão senhoril dos príncipes Esterhazy, um dos quais foi o seu Mecenas, no mesmo dia em que ali se reuniram em piedosa romaria os congressistas, a fim de ostentosamente depor uma coroa e não menos ostentosamente recusar o convite para almoço do atual castelão de Kis-Marton, declarando ter somente querido prestar homenagem vienense ao fiel austríaco que compusera o hino do povo, tão maltratado na Hungria onde agora descansava esse glorioso artista, cujos restos um dos Esterha/.y tinha feito transportar da sua tumba na capital.

O Congresso Musical de Viena subdividiu-se, logo depois de oficialmente inaugurado, numa porção de seções e estas seções, que eram as de história da música antiga e moderna, folclore e música exótica, teórica, estética e didática, bibliografia, organização e geografia musical, música eclesiástica e construção de órgãos, trabalharam, ouvindo cada uma as memórias anunciadas pelos participantes.

A parte artística, melhor dito, a execução de músicas sobrelevou, porém, qualquer outra feição, e aquela parte coube quase exclusivamente a Haydn: digo quase porque exceção fora feita para a audição de músicas de Michael Haydn, irmão de Joseph, e de compositores dos séculos XVII e XVIII de que Joseph Haydn foi o continuador emérito. Da mesma forma, as excursões prendiam-se todas com a vida e personalidade do artista comemorado.

Logo no primeiro dia, o presidente honorário da comissão executiva do Congresso (cuja presidência efetiva foi depois outorgada a Sir Alexander Mac-Kenzic. diretor do Instituto de Música de Londres, cidade onde cm 1911 se verificará o futuro Congresso), que era o Reverendo Bispo Lourenço Mayer, oficiou na capela do palácio imperial, sendo executada perante os congressistas uma das mais belas dentre as missas instrumentais de Haydn. Esta execução foi admirável, além de profundamente sugestiva pelo cenário e condições em que se realizou, assistindo à cerimônia os portadores de alguns dos maiores títulos da aristocracia austríaca, sem sombra de aparato contudo, com toda aquela des-pretensão no vestuário e nas exterioridades no geral, combinada muito embora com um sentimento irredutível de casta, natural e espontâneo, porém, que é, aquela singeleza, um dos atrativos superiores da Viena amável — gemüthlich como dizem e proclamam seus cidadãos — e sedutora.

Os que, como eu, preferiram à excursão a Eisenstadt a audição em Viena na Igreja dos Agostinhos, decorada de um dos mais belos monumentos de Canova, da missa Papoe Marcelli de Palestrina, puderam bem medir toda a distância musical que separa o século XVI do século XVIII e perceber toda a evolução que vai do organizador da música religiosa oficial ao grande sin-fonista profano a quem o Príncipe Nicolau Esterhazy confiou durante mais de vinte anos, que foram os melhores da vida de Haydn, a direção das pompas musicais do seu pequeno Versailles.

Haydn apenas visitou do estrangeiro, com alguma demora. Londres, onde o seu gênio musical foi tão devidamente apreciado quanto o fora no século anterior o gênio de pintor de Van Dyck:

nem foi tal circunstância alheia à homenagem prestada ao primeiro delegado da Inglaterra. Durante a vida do seu protetor, o com positor permaneceu-lhe fiel, não tendo que se preocupar por seu lado das dificuldades da existência material. Se foi socialmente um dependente, o fato era na sua época vulgar entre os artistas carecidos de um Mecenas para terem garantida a tranqüilidade do trabalho intelectual. No remanso de Eisenstadt compôs Haydn as melhores das suas obras, as que lhe valeram nomeada universal, sendo assim justo que, não obstante o sentimento violentamente nacionalista do Dr. Lueger, seus restos ali repousem, na modesta cripta, e não no monumento levantado no magnífico cemitério central de Viena, um dos mais suntuosos do mundo e no qual se nos depara "um canto dos músicos", como na abadia de Westminster o "canto dos poetas", onde grande número de congressistas se reuniu uma tarde a colher amôres-pcrfeitos nos canteiros que guarnecem os túmulos dos grandes mestres da harmonia.

Nada foi poupado cm Viena pelos organizadores das festas que acompanharam a reunião cosmopolita, para evocar, ou antes, tornar bem viva a lembrança de um dos mais afamados artistas musicais, honrando o fervor da homenagem os que com tamanho zelo a promoveram. É de esperar que tratemos por nossa vez de associar a reunião dêsse congresso internacional com a celebração do centenário de um artista como o Padre José Maurício, de quem tive o grande prazer de fazer executar, no decorrer de uma pequena conferência, dois trechos, um da sua missa" de Réquiem composta para as exéquias da Rainha Dona Maria I, e o já famoso Et incarnatus est da missa em si bemol.

Não é exagerado escrever que superior unção religiosa, ao mesmo tempo que não inferior melodia, se nos depara nestas composições sacras do que na missa de Haydn que a orquestra e solistas da imperial capela vienense executaram por ocasião do congresso. O sentimento melancólico e penetrante do maestro brasileiro, que o fino espírito de Escragnolle Taunay compreendeu admiravelmente c livrou de um imperdoável esquecimento, vale mais neste caso do que o tom festivo da maneira religioso-musical de Haydn de quem o Professor Guido Adler, aproveitando certa as-sonância idiomática, disse no seu discurso inaugural que transformara o Deus do temor (Furcht) no Deus do júbilo (Freude).

Crescido número de congressistas se encontrou em Viena por motivo das festas de Haydn, cujo único defeito foi o já apontado, de colocar na penumbra os trabalhos de tantos musicógrafos vindos de quase todos os países da Europa e de vários da América. Entre esses trabalhos, e para dar uma idéia da sua natureza variada, podem citar-se ao acaso: "A Vida Musical em Bremen no Século XVII", da Sra. Amália Arnheim; "O Ensino do Canto nas Escolas", do Sr. Franz Habõck, de Viena; "A Geografia Musical da Dinamarca", de W. Bchrend; "A Vida Musical na América do Norte", do diretor Sonneck; "Hcterofonia", do Professor Guido Adler; "A Inspiração Musical", do Sr. Lionel Dauriac; "A Música de Haydn na Dinamarca", de Lcvisohn; "A Base Racional do Sistema Musical", do Sr. Mauricc Gandillot; "As Alterações Cromáticas no Século XVI", de um delegado italiano; "A Dramaturgia Histórica na História da Ópera", de um delegado francês; "A Evolução Musical Russa", de um professor do Conservatório de Pe-tersburgo; "A Música no Brasil do Ponto-de-Vista Histórico", do delegado brasileiro.*

Viena, junho de 1909

Fonte: Oliveira Lima – Obra Seleta – Conselho Federal de Cultura, 1971.

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