O VELHO CURSO SUPERIOR DE LETRAS DE LISBOA
Oliveira Lima
EU HÁ pouco numa correspondência de Lisboa a notícia do faleci-mento de Guilherme Vasconcelos Abreu, meu lente c meu amigo,
e esta notícia dolorosa transportou-me a vinte anos atrás, quando sob a sua direção indulgente aprendia a decifrar os caracteres sâns-urltos e a travar conhecimento com os épicos c moralistas hindus. Porrque, Vasconcelos Abreu dera-se à originalidade, em Portugal, melhor seria dito à singularidade, de estudar e tornar-se mestre da grande língua ariana de que Bournouf foi o primeirofsm França a devassar os segredos e cuja penetração tanta e tão legítima curio-sidade científica despertou, como se desse estudo estivesse depen-dente a solução dos mais difíceis problemas filológicos e etnogê-micos da nossa raça.
Não creio que a cadeira possa ter novo ocupador: o professor não deixou substituto. Vasconcelos Abreu, contudo, desejaria muito ter tido continuadores. Cada turma de estudantes lhe parecia dever trazer o discípulo dileto, o depositário futuro dessa ciência quase esotérica, pois fora dali não havia onde nem como adquiri-la. Antes de mim, foi D. José Pessanha o objeto do seu generoso engano, e levou tempo a verificar e admitir que o estudante era apenas aplica*do em todas as matérias, não sentindo especial predileção ou vocação pelas letras brâmanes.
Na minha turma, apesar de contar ela um filho da índia e dos mais distintos e estudiosos, que é hoje o ministro de Portugal na República Argentina, eu fui na sua mente o destinado à iniciação. Vasconcelos Abreu achara-me jeitos de sanscritólogo, mas a confiança durou menos desta vez e cedo lhe veio a decepção que nos não separou, pois continuamos tão bons amigos que o mestre celebrou com o antigo discípulo a proclamação da República Brasileira num jantar que foi falado em Lisboa c em que se partiram as taças com que se fizera o brinde à ilustre dama que se apossara do Brasil.
O que se não disse então foi que, com o seu temperamento sempre entusiástico e por isso sempre juvenil, Vasconcelos Abreu dera o exemplo e primeiro sacudira o copo por sobre a cabeça do criado do Bragança, muito espantado daquele gesto demolidor e earo, e também pouco familiar nas salas da aristocrática pousada.
Também, não sei porque, nunca mais falamos de política, como nunca mais tratáramos de línguas orientais. O excelente homem ficara algum tanto envergonhado da sua expansão como algum tanto vexado da sua desilusão. A Constituição de 1891 tornou-se, por este fato, tão alheia às nossas palestras quanto o Maabarata. Vasconcelos Abreu nunca me disse se com a República, a minha pelo menos, se repetira o desapontamento do sânscrito. Que faria se êle soubesse que dos caracteres penosamente explicados pelo orientalista português me não ficou um só de memória, e que da república implantada com tanta fé logo entraram a descrer os seus próprios propagandistas!
Até o dia da quebra das taças, eu ignorava as preferências democráticas de Vasconcelos Abreu: julgava-o até incapaz de imolar um copo à divindade de barrete frígio. No Curso, valha a verdade, fazíamos literatura muito mais do que política, e entre o seu corpo docente figuravam republicanos irreconciliáveis como Teófilo Braga e Consiglieri Pedroso ao lado de monarquistas confessos como Jaime Moniz e Pinheiro Chagas. Se o acordo não era perfeito na congregação, a culpa era dos ciúmes intelectuais e não dos partidários.
Quantas recordações sugerem esses nomes, dos mais ilustres do seu país! De Teófilo Braga já aqui disse uma vez todo o bem que penso. Pinheiro Chagas é morto há doze anos e com êle desapareceu uma das figuras verdadeiramente brilhantes da literatura portuguesa: alguém que, acossado pela necessidade, nunca teve tempo nem vagar para ser grande numa especialidade, mas que se vingou sendo grande em muitos campos; que foi o dramaturgo comovido da Morgadinha, que foi o polemista político, fértil e incansável, do Diário da Manhã, que foi o folhetinista gracioso de tantos rodapés, que foi o historiador popular e interessante da sua terra, que foi novelista, poeta, sociólogo, até enciclopedista, que foi um ministro das colônias, cm que se combinavam o sentimento do passado heróico e a impressão do futuro esperançoso, que foi sobretudo o orador mais comunicativo, mais arrebatador, mais vibrante que me tem sido dado ouvir, com sua voz flexível, de modulações infinitas e que nunca raspava os ouvidos, sua dicção clara, sua gesticulação nobre, seu poder de simpatia único que eletrizava o auditório.
Admirei-o, bem criança, no Congresso Literário de Lisboa, defendendo em francês a propriedade literária, seu único bem, e arrancando aplausos de todos os estrangeiros; numa porção de banquetes, em brindes sempre espirituosos; numa quantidade de discursos políticos, sempre veementes e não raro sarcásticos. Admirei-o sobretudo mais de perto a comentar-nos todo um ano, com mais arte talvez do que ciência, mas com quanta arte! os autores cômicos latinos, Plauto e Terêncio, c a sua exposição concisa, clara, atraente, ainda me acaricia os ouvidos.
Creio que pela última vez o ouvi falar no teatro de S. Carlos, numa festa de caridade, quando mal se levantava da cama depois da séria doença, de que lhe resultou por fim a morte, provocada pela cacetada na cabeça com que um pseudo-anarquista português pretendeu vingar uns inofensivos remoques a Luísa Michel, a caridosa e pouco asseada virgem vermelha, com que à falta de melhor assunto Pinheiro Chagas fêz um dia sorrir os seus leitores do Repórter.
A congregação contava outros dois oradores eminentes: Jaime Moniz e Consiglieri Pedroso. O primeiro, que nunca quis ser um orador político, esquivando-se às interpelações quando foi ministro e evitando as discussões quando foi par do reino, reunia, no encanto, todas as condições, sem lhe faltar uma só, para que fosse a sua palavra parlamentar uma das mais escutadas e prestigiosas do país. A natureza como qué»o fadara para esse gênero de luta. Como orador forense, a sua defesa de Vieira de Castro ficou memorável, mas também penso que não voltou a fazer outra. Confinou-se por gosto intelectual, por distinção de espírito, por efeito de um retraimento da multidão que quase chegava a ser uma doença, no professorado e nos assuntos pedagógicos, aos quais buscou emprestar as grandes linhas da sua orientação germânica; pois o mérito maior das lições de filosofia da história de Jaime Moniz estava em que a sua inteligência foi senão formada, desenvolvida num alto grau no convívio dos mestres alemães. Cedo compreendeu que os franceses tinham sobretudo por si a forma; que desta, porém, não carecia tanto já que a possuía primorosa, e que melhor lhe assentaria ir procurar além do Reno o fundo, a invenção original, a pesquisa exaustiva das fontes, o preparo assombroso das teses que caracteriza a ciência histórica na terra de Curtius e de Gregorovius.
Consiglieri Pedroso, outro orador fluente, correto porque é ilustradíssimo e sedutor porque é artista, é igualmente especialista em matérias "históricas, cuja cadeira rege. Delas derivou um vasto saber e a elas dedicou uma preocupação cosmopolita como a natureza dessa ciência, que o levou a aprender até o russo. Durante anos deputado republicano por Lisboa e zeloso cumpridor dos seus deveres para com o eleitorado, sacrificou à política os seus estudos favoritos, mas a-política, inconstante e pérfida qual é, acabou por lhe ser infiel, e a história reconquistou todo o seu perdido ascendente. Com isto ganharam as letras portuguesas e o magistério superior, como também lucraram no caso de Jaime Moniz, que para tornar-se político ativo teria certamente deixado de ser um forte pensador.
Não são tanto pensadores os que destacam dos seus livros as frases mais ou menos literárias que encerram pensamentos mais ou menos pretensiosos, dando-se cada qual ares de Pascal rejuvenescido, como os que são dotados de um espírito assaz compreensivo e superior para darem a expressão lapidar aos sentimentos e impressões que flutuam inconsistentes ou incompletos na consciência geral. Quem uma vez acompanhou as preleções de Jaime Moniz não achará excessiva a designação com que o galardoaram seus ouvintes, não com que êle imodestamente se apresentasse.
O corpo docente do Curso completava-se no meu tempo com Francisco Adolfo Coelho, um filólogo que mereceria lecionar em Bonn ou em Heidelberg, tanta era a exuberância capilar e pilosa que o distinguia, tanto o seu conhecimento das línguas românicas em suas origens e evolução, e tanta a sua paixão pelos assuntos glotológicos, e com Sousa Lobo, um cavalheiro muito asseado, muito barbeado, muito delicado, muito bondoso e muito janota, que professava o criticismo de Renouvier e ensinava filosofia invariavelmente de luvas, como se fosse casa para êle de visita de cerimônia. .. a menos que não fosse coisa muito cristã que se não pudesse destrinçar com as mãos nuas.
Os estudantes têm o humor picaresco e seus chistes não poupavam estes, como se exercitavam sobre os outros professores. De Adolfo Coelho se criara a lenda de que tinha horror aos banhos; de Sousa Lobo era pelo contrário a fama de que amava em extremo a água fria, atribuindo-se aos seus banhos cotidianos e matinais o rosto fresco e corado que êle à noite exibia na superior de S. Carlos, com os bigodes mais brancos que louros muito tratadi-nhos, metido numa casaca irrepreensível e com a botoeira discretamente florida, a devassar de binóculo em riste os camarotes, com aquela mesma bonomia elegante com que tentava explicar a lógica de Hegel e a metafísica de Kant, combatendo à surdina o positivismo do colega Teófilo, o qual afetava desconhecer-lhe a competência para tanto.
Ah! birras de filósofos tão acerbas e contudo tão ingênuas, ao lado das sábias teias da malevolência e da inveja que o mundo guarda de reserva para os que o invadem com tanta confiança e tanta generosidade nas almas. ..
Pernambuco, abril de 1907
Fonte: Oliveira Lima – Obra Seleta – Conselho Federal de Cultura, 1971.
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