Íon de Platão – Download em Pdf
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ÍON
[ou sobre a Ilíada, gênero probatório]
Tradução e cópia do texto original de Humberto Zanardo Petrelli petrelli(arroba)usp.br |
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SÓCRATES, ÍON
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St. I | |
p. 530 | |
Sócrates: Saudações, Íon. De onde nos vens agora, de tua | a |
casa, em Éfeso? | |
Íon: De nenhum desses lugares, Sócrates, mas de Epidauro, das festas de | 5 |
Asclépio. | |
Sóc.: Então também os epidáurios ofertam ao seu Deus disputas de | |
rapsodos? | |
Íon: Exatamente, e também de outras músicas. | |
Sóc.: O quê? Competiste com os nossos? E o que ganhaste? | |
Íon: Ganhamos os primeiros prêmios, Sócrates. | b |
Sóc.: Falas bem; vamos, então, que venceremos as Panate- | |
néias. | |
Íon: Assim será, se Deus quiser. | |
Sóc.: Muitas vezes invejei vós, os rapsodos, | 5 |
Íon, por vossa técnica; pois estão sempre convenientemente com o corpo | |
enfeitado, por causa de vossa técnica, mostrando-se como os mais be- | |
los; ao mesmo tempo que é necessário passar o tempo com outros | |
muitos e bons poetas, sobretudo com Homero, | |
o melhor e mais divino dos poetas, e apreender o seu pensa- | 10 |
mento, não só os versos épicos; isto é de se invejar. Pois | c |
não se tornaria bom rapsodo, se não compreendesse os | |
dizeres do poeta. Ao rapsodo é necessário se tornar intérprete | |
do pensamento do poeta aos ouvintes. E será incapaz | |
de fazer isso de maneira bela se não conhecer o que o poeta diz. | 5 |
E todas essas coisas são dignas de se invejar. | |
Íon: Dizes a verdade, Sócrates. Em todo caso, este aspecto | |
da técnica forneceu-me o maior trabalho e penso dizer melhor dentre | |
os homens a respeito de Homero; visto que, nem Metrodoro | |
de Lâmpsaco nem Estesímbroto de Tasos nem Glauco | d |
nem nenhum outro dos que existiram até hoje foram capazes de falar assim | |
tantos e tão belos pensamentos sobre Homero quanto eu. | |
Sóc.: Falas bem, Íon. Evidente que não me recusarás | |
demonstrar. | 5 |
Íon: Certamente é digno de se escutar, Sócrates, como enfeitei | |
tão bem Homero que penso que sou digno de ser cingido com | |
coroa de ouro pelos Homéridas. | |
Sóc.: Ainda eu hei de te escutar atentamente estando desocupado, | |
agora tão só me responda: és perito apenas sobre Homero | 531 |
ou também sobre Hesíodo e Arquíloco? | |
Íon: De maneira alguma! Mas apenas sobre Homero; pois me parece | |
ser o suficiente. | |
Sóc.: E há algo de que ambos, Homero e Hesíodo, falam as mesmas | 5 |
coisas? –Íon: De minha parte penso que sim, e muitas. –Sóc. : Então | |
explicarias a respeito das coisas que diz Homero melhor | |
do que Hesíodo? –Íon: De modo semelhante explicaria sobre estas coisas, | |
Sócrates, sobre aquilo que ambos disseram as mesmas coisas. –Sóc.: E sobre aquilo | b |
que eles não discorrem as mesmas coisas? Como, por exemplo, o que falam a respei- | |
to da adivinhação Homero e Hesíodo. –Íon: De todo. –Sóc.: O que | |
então? Sobre tudo quanto esses dois poetas dizem de maneira semelhante e diferente | |
sobre a adivinhação, tu explicarias melhor | 5 |
do que um dos bons adivinhos? –Íon: Um dos | |
adivinhos. –Sóc.: Se, então, tu fosses adivinho e estivesses em condição de explicar sobre os | |
dizeres semelhantes, não saberias explicar sobre os dizeres que são diferentes? –Íon: | |
É evidente que sim. | 10 |
Sóc.: Então o que é isso? Tu és perito sobre Homero e não és sobre | c |
Hesíodo nem sobre os outros poetas? Será que Homero fala a respeito de | |
temas diferentes daqueles abordados por todos os outros poetas juntos? | |
Ele não discorre muitas vezes sobre a guerra, sobre as relações | |
dos homens uns com os outros, de homens bons, de maus, de comuns, | 5 |
de artesãos, e dos deuses em relação uns com os outros, e na companhia | |
dos homens, e como são essas relações; sobre os acontecimentos | |
dos céus e daqueles no Hades, e a gênese dos deuses | |
e heróis? Não são com estes mesmos temas que Homero fez | d |
sua poesia? | |
Íon: Dizes a verdade, Sócrates. | |
Sóc.: E os outros poetas? Não tratam dos mesmos | |
temas? | 5 |
Íon: Sim, Sócrates, mas não o fizeram semelhantemente | |
a Homero. | |
Sóc.: Como assim? Pior? | |
Íon: E muito. | |
Sóc.: E Homero? Ele o fez melhor? | 10 |
Íon: Melhor, certamente, por Zeus! | |
Sóc.: Portanto, querido amigo Íon, quando muitas pessoas falam a respeito da aritmética | |
e alguém diz algo melhor, é evidente que se reconhecerá aquele que | |
discorre bem? –Íon: É o que eu digo. –Sóc.: Então essa pessoa será a mesma | e |
que reconhecerá os que falam mal ou será uma outra? –Íon: Evidente que a | |
mesma pessoa. –Sóc.: Então essa pessoa é aquela que possui a técnica da | |
aritmética? –Íon: Sim. –Sóc.: O quê? E quando muitos falam a respeito | |
dos alimentos saudáveis e alguém diz algo melhor; | 5 |
haverá alguém que reconhecerá quem fala bem que | |
fala bem e outra que fala mal que fala mal, ou uma mesma pessoa? –Íon: | |
Evidente que uma mesma. –Sóc.: E quem é ela? Qual o nome que damos | |
a ela? –Íon: Médico. –Sóc.: Portanto, para ser breve, dizemos | |
que a mesma pessoa reconhecerá sempre, quando muitas pessoas falam a respeito das | 10 |
mesmas coisas, quem diz bem e quem diz mal; ou então, se ela não reconhecer quem | 532 |
fala mal é evidente que não reconhecerá quem fala bem, ao menos sobre o mesmo | |
tema. –Íon: Isso mesmo. –Sóc.: Portanto uma mesma pessoa será perita | |
para reconhecer ambos os casos? –Íon: Sim. –Sóc.: Tu dizes também que | |
Homero e os outros poetas, dentre eles Hesíodo e | 5 |
Arquíloco, dizem a respeito das mesmas coisas, mas não | |
de modo semelhante: aquele diz bem, enquanto os outros são inferiores? –Íon: E | |
digo a verdade. –Sóc.: Portanto, se tu reconheces quem fala | |
bem, também reconhecerias os que falam de modo inferior, que falam de modo | b |
inferior. –Íon: É o que parece. –Sóc.: Então, querido, | |
de modo semelhante ao afirmarmos que Íon é perito sobre Homero e | |
sobre os outros poetas não estaremos errando, já que | |
tu mesmo concordas que uma pessoa será juiz de todos | 5 |
quantos por ventura falam sobre o mesmo assunto. E os poetas, quase todos, | |
fazem as mesmas coisas. | |
Íon: E qual é a causa então, Sócrates, por que eu não consigo | |
prestar atenção quando alguém dialoga a respeito de outro poeta e sou | |
incapaz de conjecturar algo digno de discurso, | c |
e simplesmente cochilo; mas, quando alguém se recorda de Homero, | |
imediatamente desperto, presto atenção e bem transito no que | |
falo? | |
Sóc.: Não é difícil imaginar isso, companheiro, mas a todos | 5 |
é evidente, que com técnica e ciência és incapaz de falar sobre Homero. | |
Pois se tu fosses capaz de falar por técnica, serias capaz de falar também | |
de todos os outros poetas, pois que há uma arte poética como | |
um todo, não há? | |
Íon: Sim. | 10 |
Sóc. : Então, quando se compreende uma outra técnica qualquer em | d |
seu todo, o modo de exame será o mesmo em torno de todas | |
as técnicas? E o que eu quero dizer com isso? É o que tu necessitas me escutar, Íon. | |
Íon: Sim, por Zeus, Sócrates. Eu, de minha parte, alegro-me vos | |
escutando, vós, os sábios. | 5 |
Sóc. : Desejaria que tu estivesses dizendo verdade, Íon. Mas sábios, | |
de algum modo sois vós, os rapsodos e atores e aqueles cujos | |
poemas vós cantais. Eu não digo outra coisa senão a verdade, | |
como convém a um homem comum. E sobre o que eu te perguntei agora, | e |
observa como é medíocre e comum e todo | |
homem compreender o que eu disse: que o exame é o mesmo quando | |
alguém domina uma técnica em seu todo. Tomemos um raciocínio: a pintura | |
é uma técnica em seu todo? –Íon: Sim. –Sóc.: Portanto, | 5 |
também na pintura há e houve muitos pintores bons e muitos medío- | |
cres? –Íon: Perfeitamente. –Sóc.: Então já viste alguém que é capaz de discorrer sobre | |
Polignoto, filho de Aglaofonte, demonstrando ser perito sobre | |
o que ele desenha bem e sobre o que não desenha e seja incapaz de fazer o mesmo sobre | |
os outros pintores? E quando alguém aponta para as obras dos outros | 533 |
pintores, ele adormece, fica embaraçado, e não tem o que | |
se conjecturar, mas quando é sobre Polignoto ou algum outro que | |
queiras, havendo necessidade de demonstrar conhecimento de apenas um dos desenhos, | |
desperta e presta atenção e bem transita no que diz? | 5 |
–Íon: Não, por Zeus, não vi por certo. –Sóc.: E então? E na escultu- | |
ra, já viste alguém que a respeito de Dédalo, filho de Metion | |
ou de Epeio, filho de Panopeu, ou de Theodoro de Samos, ou a respeito de algum outro | b |
escultor, e sobre um só deles é perito para explicar sobre o que de | |
bom ele fez, e em relação às obras dos outros escultores | |
se embaraça e adormece, não tendo o que dizer? –Íon: Não por | |
Zeus, nunca encontrei ninguém assim. –Sóc.: E nem tampouco, ao menos como eu | 5 |
penso, na técnica do flautista nem na do citarista nem na dos que cantam acompanhado da | |
cítara nem na rapsódia, jamais viste homem que sobre | |
Olimpo fosse perito para explicar, ou sobre Tamiras, ou sobre | |
Orfeu, ou sobre Fêmio, o rapsodo de Ítaca; e a respeito | c |
de Íon [o rapsodo] de Éfeso se embaraça e não tem o que conjec- | |
turar a respeito daquilo que ele rapsodeia bem e daquilo que não. | |
Íon: Não tenho para ti um contra-argumento a respeito disto, Sócrates; | |
mas disso eu tenho consciência: que a respeito de Homero digo o melhor dentre | 5 |
os homens e bem transito, e todos os outros me falam que | |
falo bem. Mas a respeito dos outros poetas, não. Vê o que | |
é isso. | |
Sóc.: Vejo, Íon, e vou te demonstrar o que | |
me parece ser isso. Há isso a técnica não sendo junto de ti | d |
para bem discorrer sobre Homero, como dizia a pouco, | |
mas uma potência divina que te movimenta, como na pedra que Eurí- | |
pides nomeou Magnética, e que muitos a chamam de Hércules. | |
Essa pedra não só atrai os anéis mesmo | 5 |
de ferro, como os infunde poder, | |
de modo a novamente fazê-los ter o mesmo poder que a pedra, isto é, atrair | |
outros anéis, de maneira que às vezes se forma uma cadeia extremamente longa de anéis | e |
de ferro dependente uns dos outros; e é daquela pedra que pende | |
a potência para todos esses anéis. Assim, a | |
Musa mesma faz os inspirados; e através desses inspirados, | |
outros se entusiasmando, formam uma cadeia dependurada. Com efeito, todos os | 5 |
poetas épicos, os bons, não por técnica, mas sendo inspirados | |
e possuídos, dizem todos esses belos poe- | |
mas. Os poetas líricos, os bons, igualmente; como os cori- | |
bantes não estando conscientes dançam, assim também os poetas | 534 |
líricos não estando conscientes fazem esses belos versos líricos; | |
e quando entram em harmonia e no ritmo, | |
comportam-se como bacas e ficam possuídos; tal como as bacas retiram | |
mel e leite dos rios ficam possuídas e não estando conscientes; | 5 |
e também a alma dos poetas líricos elabora isso, que eles mesmos | |
afirmam. Dizem-nos os poetas, é evidente, que | |
das fontes que vertem mel de certos jardins e bosques das Musas | b |
que eles nos trazem seus versos líricos. Como as abelhas, eles | |
assim voam; e dizem verdade. Leve | |
é coisa do poeta, alada e sagrada; e inicialmente não | |
consegue compor, antes de se tornar inspirado, de ficar fora de si e o pensamento não | 5 |
habita mais nele; até que tenha essa aquisição, | |
todo homem é incapaz de compor e de proferir oráculos. Então, | |
já que não é por técnica que eles fazem e dizem muitas e belas coisas sobre | |
os acontecimentos, como tu sobre Homero, mas por parte divina; | c |
cada qual é capaz de compor de maneira bela só naquele gênero para o qual a Musa | |
o precipitou: este para os ditirambos, o outro para os encômios, aquele para os | |
hiporquemas, um outro para os épicos, o outro para os jambos, e cada um deles é medíocre | |
nos outros gêneros. Pois não dizem essas coisas por técnica, mas | 5 |
pelo poder divino portanto, dize: porque se eles soubessem falar bem a respeito de uma | |
delas por técnica, também saberiam falar bem de todas as outras: por isso, o Deus | |
extraindo o pensamento desses usa-os como auxiliares, | |
profetas e adivinhos divinos, a fim de que nós, os | d |
ouvintes, saibamos que não são estes os que falam as mesmas coisas | |
assim muito dignas, pois o seu pensamento não está presente, mas é o próprio Deus | |
o comunicante, através deles se comunica conosco. Maior | |
indício deste discurso é Tínico de Cálcis, que | 5 |
nunca compôs nenhum outro poema que fosse digno de ser | |
recordado, a não ser o peão que todos cantam, talvez | |
o mais belo de todos os versos líricos; e o fez simplesmente, como ele mesmo diz: | |
"um achado das Musas". Neste dizer sobretudo, parece-me, | e |
o Deus nos apontou, a fim de que não duvidássemos, que não são huma- | |
nos estes belos poemas, nem dos homens, mas | |
divinos e dos deuses; e que os poetas nada mais são que intérpretes | |
dos deuses, e cada um é possuído pelo deus que o possuir. | 5 |
O Deus mostrando essas coisas de propósito, através do mais medíocre | |
poeta cantou o mais belo verso lírico: ou não te pareço dizer a | 535 |
verdade, Íon? | |
Íon: Sim, por Zeus, ao menos para mim! Tocas de algum modo minha | |
alma com esses discursos, Sócrates, parece-me que é por parte divina | |
que os bons poetas interpretam para nós as coisas que estão juntas dos deuses. | 5 |
Sóc.: Portanto, vós, os rapsodos, por vossa parte interpretais as coisas dos | |
poetas? | |
Íon: É verdade o que dizes. | |
Sóc.: Portanto, vós vos tornais intérprete dos intérpretes? | |
Íon: Perfeitamente. | 10 |
Sóc.: Pois bem! Dize-me, Íon, e não ocultes nada do | b |
que eu te perguntar: quer quando dizes bem os versos épicos e sobretudo deixas | |
estarrecidos os espectadores, quer quando cantas sobre Odisseu se lançando na soleira e | |
vindo a ser visível aos pretendentes e atiran – | |
do dardos diante dos pés, quer quando Aquiles se precipita contra | 5 |
Heitor ou alguma das passagens de lamento a respeito de Andrômaca ou | |
de Hécuba ou de Príamo; então, tu mesmo estás lúcido ou fora de si e | |
tua alma acredita estar junta aos acontecimentos que ela recita, | c |
estando entusiasmada, quer eles se passem em Ítaca ou em | |
Tróia ou como também tens os versos épicos? | |
Íon: Como é distinto para mim, Sócrates, este indício que | |
relatas: vou falar sem te ocultar nada. Eu, quando digo algo | 5 |
de lamento, meus olhos se enchem de lágrimas e | |
quando se trata de passagem temerosa ou terrível, meus lisos cabelos se eriçam | |
de medo e o coração dispara. | |
Sóc.: O quê? Diríamos, Íon, que está lúcido este | d |
homem que, enfeitado com vestes coloridas e | |
coroas de ouro chora nos sacrifícios e festas, não | |
tendo perdido nenhum desses enfeites; ou que tema estando na presença de mais | |
de vinte mil homens amigos, não tendo sido nem espoliado nem sido injustiçado? | 5 |
Íon: Não, por Zeus! Certamente que não, Sócrates, se é para | |
dizer a verdade. | |
Sóc.: Sabes que vós elaborais esses mesmos efeitos na maioria | |
dos espectadores? | |
Íon: Sei, e muito bem: vejo-os cada vez, | e |
do alto do estrado, chorando e olhando de maneira | |
terrível e ficando assombrados com as coisas ditas. É necessário | |
veementemente voltar a atenção neles: porque se eu | |
os coloco chorando eu próprio rirei recebendo dinhei- | 5 |
ro; se os coloco rindo, eu que chorarei perdendo dinheiro. | |
Sóc.: Sabes então que o próprio espectador é o último dos | |
anéis de que eu falava, a receber o poder que, sob o efeito da pedra de Hércules, | |
passa de um para o outro? O do meio és tu, | |
rapsodo e o ator, e o primeiro é o próprio poeta. O | 536 |
Deus, através de todos eles, dirige a alma dos homens para onde | |
quiser, fazendo passar o poder de uns para os outros. | |
E da mesma maneira como daquela pedra dependura-se uma longa cadeia | |
de coreutas, de mestres, e de submestres | 5 |
dependurados lateralmente dos anéis que suspendem da | |
Musa. E um dos poetas dependura-se de uma Musa e um | |
outro de outra – nós chamamos isso ‘estar possuído’, o que é | |
quase o mesmo: pois ‘está tomado’ – e a partir desses primeiros | b |
anéis, dos poetas, uns se encontram pendurados por este poeta, outros por outros | |
e estão entusiasmados: uns a partir de Orfeu, outros de Museu, | |
e a maioria é possuída e tida por Homero. Tu és | |
um desses, Íon, e és possuído por um, por Homero, e quando alguém | 5 |
canta algo de outro poeta, dormes e te embaraças no que | |
falas; mas quando alguém declama desse poeta algum verso lírico, | |
imediatamente tua alma permanece desperta, se exalta e bem transita no que | |
falas. Com efeito, não é por técnica nem por ciência que dizes quando recitas sobre | c |
Homero, mas parte e possessão divina, tal como os cori- | |
bantes que só sentem intensamente aquela parte do verso lírico pela qual são possuídos | |
pelo Deus; e para esse verso lírico bem transitam | |
com gestos e com palavras, não se preocupando com | 5 |
os demais: assim também tu és, Íon, quando alguém recorda algo a respeito | |
de Homero, bem transitas, e a respeito dos outros te embaraças. | |
E tu me perguntas: qual a causa disso? Por que tu bem transitas sobre | d |
Homero e não sobre os outros? Porque não é por técnica, mas por | |
parte divina que és terrível panegirista de Homero. | |
Íon: Tu falas bem a propósito, Sócrates. Eu me espantaria certamente | |
se tu falasses tão bem de modo a me persuadir de que eu estando possuído | 5 |
e em delírio elogio Homero. Penso que não | |
opinarias assim se me escutasse declamando a respeito de Homero. | |
Sóc. : Desejo escutar certamente; no entanto, não me responderias | |
primeiro isso: do que Homero diz, a respeito do que tu | e |
dizes bem? Não, certamente, a respeito de todas as coisas. | |
Íon: Sabe bem, Sócrates, que não há tema sobre o qual eu não trate. | |
Sóc.: Menos, certamente, aqueles que tu | |
não sabe, mas que Homero diz. | 5 |
Íon: E quais são essas coisas que Homero diz e que eu | |
não sei? | |
Sóc.: Homero não diz muitas vezes e muito sobre | 537 |
as técnicas? Por exemplo, sobre a técnica do auriga -se me recordares o verso, | |
eu te direi. | |
Íon: Mas eu recitarei pois eu me recordo. | |
Sóc.: Dize-me, então, o que diz Nestor ao seu filho Antíloco, | 5 |
quando o aconselha ficar atento a respeito da baliza, na corrida de cavalos | |
em honra a Pátroclo. | |
Íon: Inclina-te, diz , no carro bem polido | |
docemente para a esquerda dos dois: o cavalo da direita | b |
estimula com a voz, cede-lhe as rédeas com as mãos. | |
Na meta, certo, o cavalo da esquerda se lance, | |
a fim de que o cubo da roda bem feito | |
pareça tocar a meta: mas evita tocar na pedra. | 5 |
Sóc.: Basta! Esses versos épicos, Íon, se Homero diz corretamente | c |
ou não, quem conheceria melhor, um médico ou um auri- | |
ga? –Íon: Um auriga certamente. –Sóc.: E é porque ele possui essa técnica | |
ou por algum outro motivo qualquer? –Íon: Não, mas porque ele possui essa técnica. | |
–Sóc.: Então a cada uma das técnicas foi dada por | 5 |
Deus uma função de ser capaz de conhecer? Pois não conhecemos pela técnica do piloto o | |
que conheceremos pela técnica médica. –Íon: Não, certamente. | |
–Sóc.: E nem conhecemos com a técnica médica essas também que conheceremos na arquitetura. –Íon: | |
Não, certamente. –Sóc. : Portanto é assim também segundo todas as técnicas, | d |
aquilo que conhecemos através de uma técnica, não conheceremos através de outra? | |
Mas, responda-me isso primeiro: afirmas que as técnicas diferem | |
umas das outras? –Íon: Sim. –Sóc.: Ah, assim | |
como eu estou conjecturando, quando uma ciência trata de umas coisas e | 5 |
outra trata de outras, assim eu chamo uma técnica de uma maneira, a outra de outra; e tu | |
também fazes o mesmo? –Íon: Sim. –Sóc.: Se houvesse uma ciência das | e |
mesmas coisas, por que haveríamos de dizer de uma maneira diferente | |
da outra, cada vez seria possível saber as mesmas coisas através de | |
ambas? Por exemplo: eu conheço que esses dedos são | |
cinco, tu também sabes, e, como eu, tu conheces as mesmas coisas a respeito | 5 |
deles. E se eu te perguntasse se é pela mesma técnica que nós conhecemos isso, isto é, pela | |
aritmética que eu e tu conhecemos as mesmas coisas ou por outra técnica, tu dirias | |
certamente que é pela mesma. –Íon: Sim. | |
Sóc.: Dize-me agora, então, o que a pouco eu estava a ponto de te perguntar: se | 538 |
te parece que ocorre assim em todas as técnicas, isto é, que conhecemos uma mesma coisa | |
necessariamente com uma técnica, porém nunca essa mesma coisa por outra técnica; uma vez | |
que se trate de uma técnica diferente, é necessário que seja outro o objeto do seu conhecimento. –Íon: | |
Assim me parece, Sócrates. –Sóc.: Portanto, aquele que | 5 |
não possui uma técnica não será capaz de conhecer bem nem o que se diz | |
nem o que se faz dessa técnica? –Íon: | |
Dizes a verdade. –Sóc.: E a respeito dos versos épicos que declamaste, | b |
se Homero diz belamente ou não, tu conhecerás melhor que | |
um auriga? –Íon: Um auriga. –Sóc.: De fato és um rapsodo, mas | |
não um auriga. –Íon: Sim. –Sóc.: A técnica do rapsodo é | |
diferente da técnica do auriga? –Íon: Sim. –Sóc.: Ah, se é diferente | 5 |
é ciência também de diferentes acontecimentos. –Íon: Sim. | |
Sóc.: E quando Homero diz como Hecamede, | |
concubina de Nestor, dá uma poção para Macaon beber quando estava | |
ferido? E diz mais ou menos assim – | c |
sobre o vinho de Pramno, diz, ela raspa o queijo caprino | |
com ralador de bronze, além de cebola, condimento de bebida. | |
Essas palavras, se Homero as diz corretamente ou não, a quem cabe distinguir | |
belamente: à técnica do médico ou à técnica do rapsodo? | 5 |
Íon: À do médico. | |
Sóc.: E quando Homero diz – | |
ela semelhante à chumbada ao fundo chegou, | d |
que furiosa no corno de boi | |
vai levando desgraça entre os peixes carnívoros. | |
Essas palavras dizemos que cabe mais à técnica da pescaria do que à do rapsodo julgar me- | |
lhor o que ele diz e se diz bem ou não? | 5 |
Íon: Evidente, Sócrates, que cabe à técnica da pescaria. | |
Sóc.: Examina então no caso de seres tu o interrogador, e se me perguntasses: "Sócrates, | |
já que tu encontras em Homero aquilo que convém a cada uma dessas | e |
técnicas discernir, vai encontra-me as passagens que se relacionam com | |
o adivinho e a técnica da adivinhação, e quais as coisas que lhe convém para se tornar capaz | |
de distinguir se o poema está bem ou mal feito" – examina | |
como eu te respondo facilmente e de modo verdadeiro. | 5 |
Em várias passagens diz e na Odisséia, como, por exemplo, | |
das coisas que o adivinho Theoclimeno, um dos descendentes de Melampo, | |
diz aos pretendentes – | |
Infelizes, por que padeceis desse mal? De noite, vossas |
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cabeças, vossos rostos, os membros inferiores se envolvem, | |
os lamentos ressoam, as faces se enchem de lágrimas: | |
o pórtico está cheio de espectros, cheio também o pátio | |
eles vão ao Érebo, às trevas: e o sol | 5 |
do céu desapareceu, névoa má se espalha. | b |
E em muitas passagens na Ilíada; por exemplo, no assalto às muralhas: diz ele | |
também ali – | |
O pássaro sobreveio-lhes aos que se esforçaram a ultrapassar, | |
a águia, de alto vôo, bloqueando a tropa pela esquerda, | 5 |
uma serpente rubra trazendo nas garras enormes, | c |
viva, ainda se debatendo; ainda não esqueceu do combate. | |
Golpeou-a enquanto segurava no peito perto do pescoço | |
E tendo curvado a cabeça, a águia soltou de si para o chão, | |
sofrendo com as dores, e jogou no meio da multidão: | 5 |
e ela mesmo gritando alçou-se com o sopro do vento. | d |
Essas palavras eu diria que são convenientes ao adivinho exa- | |
miná-las e julgar. | |
Íon: E tu estarias dizendo a verdade, Sócrates. | |
Sóc.: Tu também, Íon, dizes essas coisas verdadeiras. Vai agora tu para mim, pois | 5 |
do mesmo modo que eu te escolhi algumas passagens tanto da Odisséia quanto da | |
Ilíada referentes ao adivinho, ao médico, | |
ao pescador, assim também tu me seleciona, já que és | e |
mais experimentado do que eu nas obras de Homero, as passagens próprias de rapsodo, | |
Íon, e da técnica do rapsodo, e o que convém ao rapsodo | |
examinar e distinguir, excluídos os outros | |
homens. | 5 |
Íon: Eu digo, Sócrates, que são todas. | |
Sóc. : Tu não dizes, Íon, que são todas: ou serias tão desmemoria- | |
do? Se bem que não conviria a um rapsodo corajoso ser | |
desmemoriado. | |
Íon: E do que me esqueci? | 540 |
Sóc.: Não recordas que disseste que a técnica do rapsodo é | |
diferente da do auriga? –Íon: Recordo. –Sóc.: Portanto, | |
sendo diferente, concordas que conhecerás coisas diferentes? –Íon: | |
Sim. –Sóc.: Ah! Então, segundo teu discurso, nem a técnica do rapsodo | 5 |
nem o rapsodo conhece todas as coisas. –Íon: Com exceção talvez | |
dessas aí, Sócrates. | |
Sóc.: Dizes dessas aí, ou seja, exceto talvez as outras | b |
técnicas; então quais coisas conhecerá tua técnica, já que não conhece todas? | |
Íon: Aquelas coisas, penso eu, que convém a um homem dizer, a uma | |
mulher, a um escravo, a um homem livre, a um | |
subordinado, a um chefe. | 5 |
Sóc.: Ah! Dizes então que as coisas que convém a um chefe dizer no mar estando | |
o barco na tormenta, um rapsodo saberá dizer melhor do que um | |
capitão? –Íon: Não, mas para isso um capitão. –Sóc.: | |
E aquilo que convém ao chefe dizer ao enfermo, um | c |
rapsodo saberá melhor do que um médico? –Íon: Não, isso | |
também não. –Sóc.: Mas, tu dizes, são coisas que convém a um escravo? –Íon: | |
Sim. –Sóc.: Por exemplo, dizes que ao escravo boiadeiro convém dizer | |
para acalmar o gado quando zangado, o rapsodo é quem saberá dizer | 5 |
e não o boiadeiro? –Íon: Não, é claro. –Sóc.: Mas, e das coisas que convém à | |
mulher fiandeira dizer a respeito dos trabalhos | |
da lã? –Íon: Não. –Sóc.: Então ele conhecerá as coisas que um general corajoso | d |
convém dizer para aconselhar os soldados? –Íon: Sim, | |
o rapsodo saberá dessas coisas. | |
Sóc.: O quê? A técnica da rapsódia é a mesma da técnica do general? | |
Íon: Pelo menos eu saberia o que convém ao general dizer. | 5 |
Sóc.: Talvez, Íon, tu sejas também um estrategista. Se | |
por acaso tu fosses ao mesmo tempo um cavaleiro, e um citarista, saberias os cavalos | |
que são bons e os que são maus de montaria. Mas se eu te perguntasse: "Por qual | e |
técnica, Íon, reconheces os cavalos bons de montaria: | |
como cavaleiros ou como citarista?" O que tu me responderias? –Íon: | |
Que era como cavaleiro, eu responderia. –Sóc.: Portanto, se reconhecesses quem toca | |
bem cítara, tu concordarias que tu os reconhece por aquela técnica pela qual tu és citarista | 5 |
e não pela qual tu és cavaleiro. –Íon: Sim. –Sóc.: | |
Já que conheces a técnica militar, tu a conheces como bom | |
estrategista ou como bom rapsodo? –Íon: Não | |
me parece haver nenhuma diferença. | |
Sóc.: Como? Dizes que não há diferença? Dizes que a técnica | 541 |
do rapsodo e a do general é uma e não duas? –Íon: De minha parte | |
parece ser uma. –Sóc.: Ah! Quem é bom rapsodo é | |
bom general também? –Íon: Certamente, Só- | |
crates. –Sóc.: Portanto, quem é bom general | 5 |
também é bom rapsodo. –Íon: Não, não é isso que me | |
parece. –Sóc.: No entanto, parece-te que o bom | |
rapsodo é também bom general? –Íon: Exatamente. –Sóc.: | b |
Então tu és o melhor rapsodo dentre os Gregos? –Íon: | |
Sou e muito, Sócrates. –Sóc.: E como general, Íon, também és o | |
melhor dentre os Gregos? –Íon: Bem sabe, Sócrates, que também | |
aprendi essas coisas de Homero. | 5 |
Sóc.: Então, pelos deuses, Íon, sendo o melhor dentre os Gregos em ambas | |
as coisas tanto como general quanto como rapsodo, | |
por que tu percorres a Grécia como rapsodo e não como general? Ou | |
te parece que os Gregos necessitam muito mais de um rapsodo cingido com coroa | c |
de ouro, mas jamais de um general? | |
Íon: É que a nossa cidade, Sócrates, é governada | |
pela vossa e por vós é comandada e não precisa de um general; e a | |
vossa cidade como também a dos Lacedemônios não me elegeria como general: | 5 |
pois vós vos julgais ser capazes disso. | |
Sóc.: Ó caríssimo Íon, não conheces Apolodoro de | |
Cízico? | |
Íon: Quem é este? | |
Sóc.: Aquele que os atenienses por várias vezes o elegeram general, mesmo | 10 |
sendo estrangeiro. E também Fanóstenes de Andros, e Heraclides de | d |
Clazômenas, os quais, à cidade mesmo eles sendo estrangeiros, tendo demonstrado | |
que são dignos de menção e foram conduzidos tanto ao posto de general quanto para os | |
outros comandos. Ah! Será que Íon de Éfeso não será eleito | |
general e não seria honrado se ele lhe parecesse digno de menção? Pois então? | 5 |
Vós, os efésios, não sois atenienses de origem, e Éfeso | |
não é inferior a outra cidade qualquer? Mas tu, Íon, se o que dizes é verdade, | e |
isto é, que com técnica e ciência és capaz de louvar Homero, | |
cometes injustiça; pois tu me asseguraste que sabes muitas e belas coisas sobre | |
Homero, afirmando que demonstrarias; tu me enganas e | |
careces de muito para demonstrar; tu que, nem mesmo queres dizer aquelas coisas a | 5 |
respeito das quais afirmas ser perito, apesar de minha insistência anterior. Mas | |
simplesmente, como Proteu, vens a ter todas as formas, virando-se | |
para cima e para baixo, até que, finalmente, depois de me teres escapado, tu me apare- | |
ces como general, a fim de me demonstrar como és perito sobre a sabedoria de Homero. | 542 |
Então, se sendo um técnico, como a pouco eu disse, e teres demonstrado a respeito de | |
Homero enganas-me de todo, és injusto; mas se não és | |
técnico, mas por parte divina és possuído de Homero e, apesar de não | |
saber tu dizes muitas e belas coisas a respeito do poeta, como eu disse a | 5 |
teu respeito, não és injusto. Escolhe, então, se desejas | |
ser reconhecido por nós como homem injusto ou divino. | |
Íon: A diferença é grande, Sócrates: e é muito mais belo ser reconhecido | b |
como divino. | |
Sóc.: Pois bem, de nossa parte o mais belo pertence a ti, | |
Íon, ser divino e não um técnico panegirista de Homero. | |
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