A crítica de Platão ao teatro e a Homero como educador

A crítica de Platão ao teatro e a
Homero como educador
por Miguel Duclós


   
No início do livro X da República, Platão classifica a poesia e a pintura como
imitação (mimesis), no interior de sua teoria acerca de uma cidade
perfeita, imaginada de forma a ser justa. Platão diz que os poetas, como
imitadores, não tem conhecimento sobre aquilo que imitam, e fazem uma
brincadeira sem seriedade. A poesia e a pintura, para o autor, estão três
pontos afastadas da realidade.

   
O tema central de A República é a justiça, se ela existe por si, ou se é
relativa, como queria o sofista Trasímaco no livro I.  O argumento do
livro se desenrola quando Sócrates e os irmãos de Platão, Glauco e Adimanto, se
propõe a imaginar uma cidade ideal, onde haveria justiça. Ao contrário dos
diálogos de juventude de Platão, chamados aporéticos, A República oferece
soluções e definições para os problemas tratados, no decorrer da exposição de
Sócrates sobre a doutrina das Formas (ou Idéias). Em 351 a, por exemplo a
justiça é definida como sabedoria e virtude, e em 540 e, o mais alto e
necessário dos bens. Para entender a significação deste, porém, teríamos de
discorrer sobre toda a formulação platônica acerca da areté (virtude), que é parte
da temática central de sua obra e ponto importantíssimo de todo pensamento
grego. Obviamente, tais almejos não cabem aqui.

    
Pelo fato de o livro I de A República tratar do tema da justiça de uma forma
aporética (ou seja, sem solução), alguns comentadores quiseram que esta parte
do tratado fosse tomada como um diálogo à parte, feito na juventude de Platão.
Tais diálogos, como o Lísis, o Mênon, o Cármides e Lacques, também falhavam ao
tentar a definição universal para outras virtudes, respectivamente a amizade, a
virtude mesma, a temperança e a coragem.
 No livro I, a exemplo do que ocorrer nos diálogos acima citados, Sócrates
através do questionamento das hipóteses falsas, também recusa uma série de
opiniões de seus convivas, a saber "a justiça  é restituir a cada um
o que se tomou, dar a cada um o que se lhe deve, e a justiça é o interesse do
mais forte".
 
    No tratamento da solução da questão se a justiça é
intrinsecamente boa, se existe por si, surge no interior do diálogo o não menos
importante tema da educação. É necessário conjeturar qual seria a melhor
formação para incentivar cidadãos justos, visto que a justiça pertence a toda a
cidade. Assim, há uma passagem do indivíduo para a cidade na medida em que
vendo o surgimento da cidade, veria-se também aonde nasce nela a injustiça.
Platão diz que as cidades nascem da associação de indivíduos que executam
tarefas diferentes e complementares. Cada indivíduo deve praticar uma arte, de
acordo com as suas inclinações naturais. (Há que se lembrar aqui o mito de
Prometeu e Epimeteu no Protágoras, que expõe a opinião do sofista de que a
justiça, ao contrários dos demais saberes e artes, foi distribuída pelos deuses
de forma equânime, para que possam a sociedade ocorrer e os homens não se
matarem uns aos outros). Só para concluir esta nota inicial, gostaria de
lembrar que a importância de Platão, e mais especificamente da República no
ensino e na educação são monumentais. Partindo de uma crítica à educação até
então feita com base em Homero (como nos conta Xenofonte), Platão criou uma
espécie de centro de estudos superiores, a Academia, que junto com o Liceu de
Aristóteles ditaram por muito tempo a maior parte do saber científico
ocidental. A se somar a isso temos o tratamento igualitário dado por Platão à
educação das mulheres. Graças à República, as mulheres puderam ir na escola e o
ensino público, sustentado pelo estado, foi instituído.

   
Mas no texto, que procura analisar o trecho da República que vai de 602c – 605c
iremos tratar basicamente da questão das partes da alma,  e a qual parte
da alma os espetáculos se dirigem. Para isso, é necessário recorrer ao livro
IV, aonde Platão primeiramente trata o assunto.  O livro IV apresenta três
partes da alma, a parte concupiscível,  a parte irascível, e a parte
racional. A parte dos apetites é o que faz o homem obedecer, é mesmo o maior
elemento da alma humana. É ela que obriga a pessoa a beber, se tem sede, comer,
se tem fome, desesperar-se, se tem medo. A parte racional é a parte superior da
alma, que deve ser responsável pelo comando e pelo cálculo, e pelo homem agüentar
firme a imposição das paixões, desejos e apetites. Platão diz que muitos não
chegam a alcançar a razão, e outros só o fazem em idade avançada. A parte
irascível, se não foi corrompida por uma má educação, pode ajudar a razão a
governar, e assisti-la.  A ira é inicialmente posta por Glaucon no meio da
parte concupiscível, mas Sócrates observa que muitas vezes ela vai contra os
desejos, como  quando uma pessoa suporta a fome  e o sede pois se
sente vítima da injustiça. As paixões são contrárias à razão, e muitas vezes
quando elas nos forçam a fazer algo contra a razão, o homem censura a si mesmo,
se irritando e lutando contra aquilo. Assim sendo, o elemento irascível pode
ser positivo se aliado à razão, como um Pastor e seu cão. Platão observa que as
crianças já nascem cheias de irascibilidade, mas se a razão conduz e controla,
a cólera é legítima. A educação pela música e a ginástica harmoniza estas
partes.

   
As três partes da alma estariam presentes nos indivíduos e na cidade.  A
cólera e a razão, unidas, devem dominar o elemento concupiscível, que
geralmente, é a maior  parte da alma. O elemento concupiscível  é o
responsável pelo insaciabilidade de  riquezas e prazeres corporais. Quando
ele está dominando o indivíduo, diz-se que a pessoa é escrava de si. Quando o
elemento racional, que é o melhor, está dominando, diz-se que a pessoa é
senhora de si. estes ditados grosseiros, para Platão, são vestígios da virtude
na fala comum.

   
A parte racional deve deliberar, e a irascível obedecer as ordens com coragem.
A razão estaria presente em maior grau no guardião, a parte irascível nos
guerreiros.  Lembrando que existem três castas na cidade de Platão, a dos
artífices, a dos guerreiros e a dos guardiões. Aqui é necessário fazer uma
pequena regressão para entender o tema da virtude e sua relação com cada casta
da cidade. Na República, são quatro as virtudes cardeais: sabedoria, coragem,
temperança e justiça.  A cidade perfeita de Platão, para ser boa,
necessita apresentar estas quatro virtudes.  Vejamos cada uma delas.

   
O sábio é aquele que, por causa da ciência, pondera bem. Mas não é qualquer
ciência a dos sábios, como a do marceneiro, agricultor, ou carpinteiro. Na
cidade de Platão, a ciência do sábio é a da vigilância, da presidência e
chefia, e esta só se encontra na última casta, a dos guardiões. (428e) Sendo
assim, a virtude da sabedoria é algo que ocorre raramente, pois os guardiões
são em número resumidíssimo. Os guardiões são aqueles que passaram por
sucessivos testes ao longo da vida, sendo cada vez mais selecionados, só
chegando a ocupar seu posto na maturidade.

    
A coragem é uma virtude, para Sócrates, que se alcança através da educação. Um
animal ou bárbaro que apresente bravura numa luta não é corajoso. Pois é por
meio da educação que se conserva a coragem mesmo diante de todas as
vicissitudes, e consegue-se manter uma opinião legítima do que se deve ou não
recear, mesmo em meio aos desgostos, prazeres, desejos e temores.  A coragem
se encontraria principalmente na segunda casta, a dos guerreiros.

    
A temperança, é uma ordenação, o domínio dos desejos e prazeres. Estes, existem
em grande número nas crianças, mulheres e escravos, mas os sentimentos
moderados, dirigidos pelo raciocínio conjugado com o entendimento, só existem
nos de natureza superior, formados pela educação superior. Mas a cidade de
Platão, contudo, é temperante por inteira, pois nela a melhor parte governa a
pior. A temperança, ao contrário das outras virtudes, existe harmonicamente em
toda a sociedade. Ela é a harmonia, a concórdia, entre os naturalmente melhores
e os naturalmente piores, que sabem todos quem deve comandar. A temperança
existe devido à harmonia entre as partes da alma e da cidade, que concordam que
é a razão que deve governar, e não se revoltam contra ela.

     
Por último, Sócrates trata da justiça, e descobre que já estava tratando dela
já há algum tempo. Em Platão é recorrente o tema de uma espécie de
predestinação, do indivíduo ter uma inclinação natural por destino. Isto
aparece, por exemplo em Mênon, e em Protágoras. Lá se conclui que o indivíduo
pode perseguir a virtude, mas em última instância só alcançará a virtude aquele
que tiver recebido um bom quinhão da divindade. As moiras, ou parcas, são as
deusas responsáveis pela distribuição da parte, da cota de cada um. Elas
aparecem no final da República, durante a narração do mito de Er.  Esta
porção recebida das moiras no momento em que a alma vai voltar para a terra, é
em grande grau pelo possível sucesso de cada pessoa ao alcançar a virtude.
Estas deusas, tecelãs  do destino seriam deusas supremas, as quais até os
outros deuses estariam subordinados a elas.

    
Desde o início do diálogo, Platão havia assentado que cada um deve ocupar uma,
e apenas uma função na cidade: aquela pela qual é sua natureza é melhor
inclinada. Este foi o motivo, por exemplo, de se fazer um exército com a função
exclusiva de guardar a cidade, ao invés de se formar o exército com o corpo de
cidadãos quando se faz necessário. Platão acredita que cada pessoa é capaz de
exercer bem somente uma profissão de cada vez. Evitar que cada um detenha os
bens alheios, e executar sua tarefa adequada, sem se meter na tarefa dos
outros, é a justiça.  Mas esta divisão severa de tarefas é válida somente
enquanto preserva as castas. Ou seja, um carpinteiro, se revelar aptidão, pode
perfeitamente fazer o trabalho de um sapateiro, mas se conseguir juntar
dinheiro exercendo ambos os ofícios, e por causa disso conseguir ascender de classe,
passando para a dos guerreiros, mesmo sendo indigno de tal, isto será uma
injustiça, e causa da ruína da cidade.

   
A justiça diz respeito à uma atividade interna do homem, aquilo que ele
verdadeiramente é. A justiça não deve permitir que qualquer uma das partes
internas da alma se dedique a tarefas alheias nem que interfiram umas das
outras. A justiça consiste em dispor, de acordo com a natureza, os elementos da
alma, para serem dominados ou dominar uns aos outros. A injustiça é resultado
de uma ação conduzida pela ignorância, que leva à ingerência,  à sedição
dos elementos da alma, fazendo os elementos da alma governar uns aos outros não
de acordo com a natureza. .

   
No início do livro X de A República, Platão expõe que a  mimesis
pode representar apenas um aspecto, seja ele frontal ou lateral de um objeto, e
nunca o objeto como o todo. Sendo assim, a mimesis está ligada do 
múltiplo sensível, e não ao ser. É portanto contrária à ciência, pois trata do
oposto do que é. Os poetas, segundo Havelock, tinham por função a manutenção
das tradições orais. A educação pela poesia visava manter o ethos, entendido
como um enunciado lingüístico acerca da lei pública e privada. Platão faz uma
analogia entre a atividade mimética dos pintores e os poetas, pois estes
tratavam de diversos assuntos diferentes, da virtude e das coisas divinas,
sendo mesmo uma enciclopédia tribal. Platão conclui que a mimesis dos
poetas é uma imitação de um simulacro da virtude.

   
Platão procura determinar, então, sobre qual parte  do homem a mimesis
exerce atração.
     Ele verifica que, freqüentemente nossa alma se
encontra em confusão, como quando a ilusão da ótica comunica informações
contraditórias acerca de objetos idênticos, por exemplo, ao observar um objeto
dentro da água e fora dela. ou quando os objetos são distorcidos pela
sinuosidade das superfícies coloridas e pela distância.
Mas a parte racional da alma inventou o cálculo, que retifica por meio da
medida e do número estas confusões, evitando a contradição. Sendo assim, não é
a percepção subjetiva de um objeto  parecer ao mesmo tempo maior e menor,
mas sim a medida estabelecida que deve prevalecer.

   
Aqui vemos a visão de Platão de que os sentidos conduzem à ilusão. Platão tira
de Heráclito a noção de que todas as coisas sensíveis estão em perpétuo estado
de fluxo.  Em 602d Sócrates lembra que haviam assentado, já no livro V,
que é impossível ter opiniões contrárias acerca do mesmo objeto. Ou seja, para
Sócrates não é válido a proposição Heracletiana, exposta no fragmento 49 a, a
de que é possível ser e não ser ao mesmo tempo. Também na página 152 a de
Teeteto, Platão comenta a famosa afirmação de Protágoras, a de que o homem é a
medida de todas as coisas, da existência das que existem e da não existência
das que não existem. O filósofo explica que acontece, por vezes, de uns
sentirem o frio e outros não, sob o mesmo vento. O vento pode ao mesmo tempo
ser frio para uns e normal para outros. É contra este tipo de relativismo que
Platão diz, no livro X da República que se criaram o cálculo e a medida. A
medição, o cálculo e a pesagem são auxiliares preciosos contra a aparência das
coisas. É por isso que a aritmética e a geometria ocupa uma  central na
educação dos cidadãos da República. O cálculo é trabalho do logos, que está na
alma. Em 533c, Platão afirma que, eu cito  “o método dialético é o único
que procede, por meio da destruição das hipóteses, a caminho do autêntico
princípio, afim de tornar seguros os seus resultados, e que realmente arrasta
aos poucos os olhos da alma da espécie de lodo bárbaro em que está atolado, e
eleva-os à altura”. fim da citação  É a ascese dialética do espírito que
leva à contemplação da Idéia do Bem, idéia suprema que torna o mundo
inteligível. O método dialético apreende a essência das coisas.

   
A atividade poética, quando permite a contradição, faz parte de uma função de
uma faculdade da alma que é contrária à ciência, pois se baseia no relato
físico, sensível, que é  alheio ao número e ao cálculo.  Logo, mimesis
está ligada à pior parte da alma, a parte das paixões, que não tem em vista
nada a de verdadeiro, e só foge ao bom senso. O amante de espetáculos, na
interpretação de Havelock, é contrário ao tipo de saber intelectual que Platão
ligava ao Ser. Tal como foi definido no livro V, o amante de espetáculo é
ligado ao amigo da opinião, philodoxos, que amam imagens e sons belos,
mas não sabem o que é a beleza em si. Este estado mental da opinião é um estado
intermediário entre a ciência de um lado e a inconsciência de outro. Leva à
confusão mental contínua, pois aquele que ama imagens e sons vive fazendo
juízos contraditórios  acerca da mesma coisa. Na discussão do capítulo V,
Platão havia concluído que a alma está cheia de contradições de toda espécie, e
elas  aparecem com força na poesia mimética, que  imita “homens
entregues a ações forçadas ou voluntárias, e que em conseqüência de as terem
praticado, pensam ser felizes ou infelizes, afligindo-se ou regozijando-se em
todas estas circunstâncias” . Na poesia mimética, não o homem está a mercê de
suas paixões, ou seja, não é a parte racional que comanda, mas sim a parte concupiscente.

    
O homem comedido, que tem a razão no comando, suporta desgraças como perder o
filho muito melhor do que os outros.  Esta continuidade de caráter, que
permite aos homens manter um alheamento crítico, é avesso às paixões, e tema
constante da filosofia. Cícero, por exemplo, diz em seu diálogo sobre a
amizade, que Aquele que, se mostra firme, constante e inflexível, deve ser
considerado raro e quase divino.
No Banquete de Platão, em 176c, os companheiros de Sócrates observam que ele é
capaz de beber a quantidade de vinho que for sem se embebedar, o que representa
bem este domínios dos apetites e do corpo, que seria indispensável para os
guardiões. Em 413d da República, por exemplo, os candidatos a guardiões são
submetidos a trabalhos, sofrimentos e lutas, e transpostos de terrores a 
prazeres, para que seja observada as suas reações e ver se eles mudam de
opinião facilmente.

    
Platão prossegue dizendo que uma pessoa luta e resiste mais quando sendo
observada do que quando está sozinha, pois quando ela está sozinha pode
perfeitamente dizer e fazer coisas que se envergonharia se estivesse na
presença de terceiros.  Numa situação ruim, o que impele o homem a resistir
é a razão e a lei, mesmo que auxiliada pela cólera, e o que o arrasta para a
dor é a aflição. O homem deve fazer o que a lei manda, mesmo ante o turbilhão
de adversidades e aparências dos sentidos, deve tentar endireitar suas posições
e fazer o que a razão manda. Deve acostumar a alma a curar o mais rapidamente
possível o que caiu e adoeceu.
 
    A pior parte de nós quer recordar o sofrimento, e gemer sem
cessar. Isto é associado com a atitude egocêntrica de uma criança que berra sem

parar, e esta parte da alma é irracional, e leva à covardia.

    
Platão conclui este movimento dizendo que o poeta imitador está sempre a forjar
fantasias, a uma enorme distância da verdade.

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