Continued from:

LX. Depois que esses
capitães se recolheram aos respectivos alojamentos, lançou-se Alexandre sobre o
leito em sua tenda, ali dormindo todo o resto da noite mais pesadamente do que
de costume, de maneira que os senhores que o procuraram pela manhã se encheram
de espanto ao vê-lo dormir ainda e deram eles próprios ordem aos soldados para
comerem. Mais tarde, vendo que o tempo corria, Parmênion penetrou no quarto e,
aproximando-se do leito, chamou-o pelo nome duas ou três vezes e, quando ele
despertou, perguntou-lhe como dormia assim até altas horas, como homem já
vencido e não pronto a travar a maior e mais arriscada batalha de sua vida.
Respondeu-lhe Alexandre, sorrindo: "Como! E não te parece que de fato já
vencemos, não valendo a pena perseguir Dano por um país imenso e destruído,
como teríamos de fazer se ele quisesse fugir à liça e devastar sempre o país
diante de
nós?"

LXI. Assim não se mostraram somente antes da batalha a
grandeza de sua coragem e a magnânima segurança que fundava no raciocínio, mas
também no mais forte do próprio combate, porque, a ponta esquerda de seu
exército, conduzida por Parmênion, fraquejou e recuou um pouco quando a cavalaria
Bactnana atacou os macedômos com grande rudeza e grande esforço nesse ponto,
tendo o tenente Mazeu, de Dano, destacado certo número de cavacos para assaltar
e atacar os que tinham sido deixado dentro do acampamento para a guarda das bagagens.
Eis porque Parmênion, surpreendido de ambos os lados, mandou avisar a Alexandre
que o seu acampamento e a bagagem estavam perdidos, pedindo-lhe enviasse um
forte reforço da frente de batalha para os que estavam na retaguarda. Quandc
essas notícias lhe chegaram da parte de Parmênion ele já tinha dado a seus
homens o sinal da batalha para o início do ataque; de modo que respondeu a quem
as trouxe que Parmênion não estava com o juízo certo, mas com a mente
perturbada, pois ganhando a batalha eles não só podiam salvar a bagagem, mas
conquistar mais e ganhar a dos inimigos ao passo que perdendo já não
precisariam pensar nem nos trastes, nem nos criados, mas tratar apenas de
morrer com honra no cumprimento do dever de combaterem com bravura.

(60) Vide as Observações.

LXII.
Após mandar essa resposta a Parmênion, colocou à cabeça o capacete, pois o
resto da armadura já tinha sido colocada antes de partir da tenda: um saio
feito na Sicília, cingido e por cima uma cota de malhas com várias dobras de
tela costurada, despojo ganho na batalha de Isso. O capacete era de ferro
reluzente como prata pura e firme tendo sido feito pelo armeiro Teófilo.
Também a argola era do mesmo metal,
mas toda coberta de pedras preciosas. A espada, de boa têmpera e de leveza admirável, fora presente do
rei dos citienses acostumado a servir-se dela em combate. Mas a cota de armas era de manufatura muito
mais suntuosa e mais rica do que todo o resto do equipamento: trabalho do velho
Hélicon (61), fizera-lhe presente dela a cidade de Rodes, e Alexandre usava-a
ordinariamente nas batalhas. Ora, enquanto punha as companhias em ordem de
batalha e dava instruções aos soldados, fazendo-lhes alguma advertência ou
passeando ao longo dos batalhões para tudo inspe-cionar, montava outro cavalo
para poupar Bucéfalo que estava já um pouco velho. Mas, quando precisava
conscienciosamente pôr mãos à obra, então le-vavam-lhe Bucéfalo e, logo que se
punha em cima, começava o ataque. Após haver falado longamente aos tessálios e
aos gregos, tendo-lhe eles assegurado que não faltariam ao cumprimento do dever
e pedido que os comandasse no ataque aos inimigos, tomou o dardo com a mao
esquerda e, levantando a direita para o. céu, rogou aos deuses, conforme
escreve Calístenes, que, se ele realmente fora gerado por Júpiter, o
auxiliassem naquele dia e dessem coragem aos gregos. O adivinho Aristandro
marchou a cavalo ao seu encontro, vestido com uma túnica branca e tendo à
cabeça uma coroa de ouro, para mostrar-lhe no mesmo instante da prece uma águia
que lhe voava sobre a cabeça justamente na direção dos inimigos.

(61) Vide as Observações.

LXIII Isso animou grandemente
e encheu de admirável ousadia os que o viram, de modo que, com tal regozijo, os
homens de armas se encorajaram entre si e puseram-se a galope. O batalhão de
infantaria marchou em seguida, mas, antes que os primeiros elementos da
cavalaria pudessem atingi-los, os bárbaros recuaram e houve grande perseguição.
Alexandre acuou os fugitivos até ao meio do acampamento, onde estava Dano em
pessoa, pois de longe o percebeu acima das primeiras fileiras, no fundo da
companhia real, alto e belo no elevado carro de batalha, o qual estava limitado
e cercado de todos os lados por numerosas tropas de cavalaria, todas em forma e
em boa ordem para esperarem e receberem o inimigo. Mas, quando de perto viram
Alexandre assim terrível, caçando os fugitivos por entre os que ainda se
conservavam nas fileiras, isso os aterrorizou de tal maneira que a maioria
debandou. Mas os melhores e mais valentes fizeram-se matar diante do rei e,
caindo uns sobre os outros, impediram que o alcançassem logo, porque, lançados
por terra e nos estertores da morte, ainda abraçavam os pés dos soldados e dos
cavalos. Então, vendo todos os males e desgraças do mundo diante dos olhos, e
como os batalhões que enfileirara diante de si para sua guarda se acumulavam
todos ao redor, de modo que não havia meio de avançar com seu carro nem de
fazê-lo recuar, pois as rodas estavam tolhidas i embaraçadas entre montões de
cadáveres, e os cavalos também, como que
sitiados e quase escondidos na confusão da derrota, resfolegavam e saltavam
apavorados, sem que os freios pudessem guiá-los nem conduzi-los, Dano acabou
abandonando o carro e, deixando as armas, montou numa égua que havia pouco dera
cria e se pôs a salvo a toda a brida. Todavia, não estaria salvo ainda se Parmênion
não tivesse de novo mandado pedir socorro a Alexandre, porque havia em seu
setor uma grande força reunida que não mostrava sinais de recuar. Como quer que
seja, acusa-se Parmênion de naquele dia ter procedido frouxa e covardamente, ou
porque a velhice lhe tivesse diminuído algo de sua ousadia, ou porque estivesse
despeitado e com inveja do poder de Alexandre, que se tornava grande demais
para o seu capricho, como diz Calístenes. O fato é que Alexandre — muito
descontente com aquele segundo pedido, embora sem disso dizer a verdadeira
causa aos seus homens, mas fingindo que pretendia mandar cessar o ataque, mesmo
porque a noite se aproximava — deu ordem para que tocassem a retirada e
encaminhou-se para o ponto em que o seu exército lhe parecia ter ainda o que
fazer. No caminho, porém, recebeu notícias de que mesmo ali os inimigos haviam
sido derrotados e fugiam em desordem por toda parte.

LXIV. Vencida essa batalha, verificou-se que o
império dos persas estava inteiramente arruinado e que Alexandre,
consequentemente, se tornara rei de toda a Ásia. Fez por isso suntuosos e
magníficos sacrifícios aos deuses, e deu aos seus familiares grandes riquezas,
terras, casas e senhorias. E, querendo também mostrar sua liberalidade aos
gregos, escreveu-lhes que desejava que todas as tiranias fossem abolidas na,
Grécia e que todos os povos vivessem em liberdade sob suas leis; mas fez
entender particularmente aos plateenses que pretendia mandar reconstruir sua
cidade, porque outrora os seus predecessores tinham entregue aquelas terras aos
gregos, para ali combaterem contra os bárbaros em defesa da liberdade comum de
toda a Grécia. Aos de Crótona, na Itália, mandou parte dos despojos, para
honrar a memória da virtude e boa afeição de seu concidadão Failo (62), que ao
tempo das guerras médicas, como os gregos habitantes da Itália tives-sem
abandonado os da verdadeira Grécia, porque achavam que eles jamais poderiam
salvar-se, partiu para Salamina com um barco armado e equipado à própria custa, a fim de travar
batalha e participar do perigo comum dos gregos. Assim Alexandre se
mostrava amigo afeiçoado de toda virtude, desejando conservar a memória dos
feitos belos e louváveis.

(62) Vide as Observações.

LXV. Ocupando rapidamente toda a Babilônia, maravilhou-se muito
quando viu, na província: de Ecbátanos o precipício de onde surgem
continuamente borbotões de fogo, como de uma fonte, e também a torrente de
nafta (63), tão abundante que forma como que um lago. Assemelha-se a nafta ao
betume e é tão fácil de inflamar que, mesmo sem atingir o fogo, ao simples
clarão deste se acende e também ao ar entre ambos. Os bárbaros do país,
querendo que Alexandre lhe visse e conhecesse a natureza, regaram com gotas desse
licor a estrada pela qual se ia ter ao seu palácio na Babilónia. Depois, nas
duas extremidades do caminho, chegaram tochas ao líquido. Era já noite escura
e, logo que as primeiras gotas se inflamaram, no mesmo instante tudo se acendeu
de um extremo a outro, ficando o caminho iluminado por um fogo contínuo. LXVI.
Ora, certo Atenofanes, natural de Atenas, era quem friccionava e untava o corpo
do rei quando este se banhava, ao mesmo tempo que lhe recreava o espírito com
alegres conversas e honestas anedotas. Um dia, como estivesse no banheiro um
jovem pajem chamado Estéfano, muito desajeitado e feio de cara, mas de voz
agradável quando cantava, disse ele ao rei: "Queres tu, Sire, que
experimentemos a virtude da nafta em Estéfano? Se o fogo pegar e não se extinguir,
direi que sua força é grande e invencível". O pajem ofereceu-se para a
experiência e, assim que a nafta lhe foi lançada, o fogo tomou-lhe o corpo
inteiro, deixando Alexandre penalizado e perplexo. Felizmente, várias outras
pessoas estavam no banheiro e intervieram com vasilhas cheias d’água, pois no
contrário não teriam podido socorrer o pajem a tempo de evitar que as labaredas
o sufocassem e queimassem. Ainda assim, tiveram muito trabalho para apagar o
fogo e o pajem foi gravemente atingido. Não é pois sem aparência que alguns,
querendo que a fábula de Medeia tenha sido coisa verdadeira, dizem que a droga
com que ela esfregou a coroa e o véu que deu à filha de Creonte, como é tão
mencionado pelas tragédias, seria esse licor de nafta, porque nem a coroa, nem
o véu podiam lançar o fogo de si mesmos, nem tampouco fora o fogo ali ateado
por si mesmo, mas, tendo sido a aptidão de se inflamar provocada ali por essa
fricção de nafta, a atração da flama foi tão pronta e tão subitânea que não se
percebeu à primeira vista. Os raios e fluxos que saem do fogo, quando vêm de
longe, lançam aos outros corpos a luz e o calor somente; mas aqueles que têm
secura ventosa ou humor gorduroso e ao mesmo tempo grudento, não procurando por
natureza senão alumiar-se e fazer fogo, alteram eles facilmente e inflamam a
matéria que aí encontram preparada.

(63) Vide as Observações.

LXVII.
Mas existem dúvidas quanto à maneira pela qual ele se engendra (64) ou, antes,
se essa matéria líquida e aquele humor que assim se inflama facilmente surge e
corre da terra de natureza gordurosa e prestes a fazer fogo. Toda a região dos
arredores de Babilónia é muito ardente, de maneira que muito frequentemente os
grãos de cevada esmigalhada saltam no ar e estalam muitas vezes, como se a terra,
pela veemência do calor, tivesse pulso para fazê-los saltar. Nos grandes
calores de estio, os homens ali dormem sobre grandes sacos de couro cheios de
água fresca. Harpalo, que Alexandre ali deixou como seu lugar-tenente e
governador do país, desejando ornar e embelezar os jardins do palácio real,
assim como as respectivas aléias, com todas as plantas da Grécia, conseguiu que
vingassem, menos a hera, que a terra jamais quis receber, fazendo-a fenecer
sempre, porque ela não podia suportar tão ardente temperatura, visto como por
natureza prefere ar e país frio. Essas digressões estão um pouco fora de
propósito, mas talvez não sejam desagradáveis aos leitores um pouco difíceis,
por não serem demasiado longas.

(64)
Faltam nesse trecho algumas linhas do original grego— Amyot.

LXVIll. Tendo-se apoderado da cidade de Susa, Alexandre
encontrou dentro do castelo quarenta mil talentos (65) em ouro e prata
amoedada, além de inestimável quantidade de ricos e preciosos móveis, entre os
quais dizem que havia trezentas mil libras de púrpura de Hermíona (66), ali
amontoada e encerrada no espaço de duzentos anos, faltando para tanto apenas
dez, e contudo ainda conservava a vivacidade de sua alegre cor, como se fosse
inteiramente nova. E dizem que a causa de se ter assim conservado estava em
haver sido a tinta feita com mel, nas lãs que outrora se tingiam de vermelho, e
com óleo branco, nas lãs brancas. Vêem-se las tingidas há tanto tempo que
mantêm ainda o vigor do seu brilho nítido e reluzente. Dínon (67) escreve,
ademais, que esses reis da Pérsia mandavam buscar I água dos rios Nilo e Danúbio,
que encerravam com I outros
magníficos tesouros, como para confirmar desse modo a grandeza do seu império e
mostrar que eram senhores do mundo.

(65) Vinte e quatro milhões, de ouro. — Amyot.
186.750.000 libras francesas.
(66) Parece que se trata de lãs, tintas de púrpura. A melhor
encontrada na Europa era a de Hermíona, cidade da Lacònia. — Amyot. Hermíona
não ficava na Lacônia, mas na Argólida. entre os golfos argólico e sarônico.
Mas não é a púrpura de Hermíona de que fala Plínio, e sim a da Lacônia, por èle
gabada em várias passagens; e pode-se julgar, pela décima-oitava ode do segundo
livro de Horácio, a que ponto era estimada em Roma.
(67)Pai de Clitarco, que acompanhou Alexandre em suas
expedições e escreveu a história desse conquistador. Assim, vivia Dínon na
época de Oco, rei da Pérsia. Cornélio Nepos seguia-lhe a autoridade no que
concernia à Pérsia. Entretanto, vê-se, por Plínio que sua obra não estava isenta
da mistura de fábulas.

LXIX. É a Pérsia um país de rudes entradas e ásperos
caminhos, tanto por natureza como porque as passagens eram guardadas pelos
melhores homens ali nascidos. Como o rei Dário, fugindo à batalha, se internasse na região,
um homem que falava a língua grega e a persa, filho de pai natural da Lícia e
de mãe persa, conduziu Alexandre ao interior por um desvio e circuito de
caminho, não longo demais, segundo predissera outrora a profetisa Pítia, quando
ele era ainda criança: um lício o guiaria e conduziria ao encontro dos persas.
Houve então grande matança de prisioneiros, e escreve o próprio Alexandre que,
julgando tal coisa favorável a seus negócios, mandou passar todos os homens a
fio de espada. Sustentasse que encontrou tanto ouro e prata amoedada, como
também acontecera na cidade de Susa, que mandou transportá-lo, com o resto dos
preciosos móveis e toda a fortuna real, por dez mil muares e cinco mil camelos.
Mas, entrando no castelo da cidade capital da Pérsia, viu por acaso uma grande
estátua de Xerxes, derrubada involuntariamente pela multidão dos soldados.
De-teve-se muito simplesmente e, falando-lhe como se ela tivesse senso e vida,
disse: "Nao sei se devo ir além sem te repor no lugar, por causa da guerra
que outrora fizeste aos gregos,, ou se devo mandar que te levantem, em atenção
à tua magnanimidade e outras virtudes". Finalmente, após haver demorado
longo tempo a pensar, sem proferir-palavra, pas-sou adiante e, como quisesse
refazer um pouco seu exército, cansado e exausto, mesmo porque era tempo de
inverno, ah permaneceu durante quatro meses inteiros. Dizem que a primeira vez
que ele sentou no trono real,
sob um céu de ouro, Demarato de Corinto, que por herança de seu pai Felipe lhe
dedicava amizade e benevolência, pôs-se a chorar de alegria, como bom velho que
era, dizendo que os gregos falecidos estavam privados da fortuna de ver
Alexandre sentado no trono real de Xerxes.

LXX.
E depois, como se preparasse para marchar ainda contra Dano, ofereceu um dia
um banquete e tão intimamente se divertiu com seus jovens amigos durante o
festim que até as concubinas de seus familiares compareceram com os amigos,
destacando-se entre elas a famosa Taís, natural da África e amante de Ptolomeu,
que após a morte de Alexandre foi rei do Egito. Essa Taís, ora louvando
Alexandre com habilidade, ora gracejando com ele à mesa, chegou a dirigir-lhe
um discurso muito de acordo com o natural afetado de seu país. mas de muito
maior consequência do que lhe cabia, dizendo que naquele dia se achava
inteiramente recompensada dos sofrimentos a que estivera sujeitai quando
acompanhou o exército por toda a Ásia pois tinha a fortuna de divertir-se à
vontade dentro do palácio dos grandes reis da Pérsia. Muito maior prazer
experimentaria ainda em incendiar, como passatempo, a casa de Xerxes,
que ateou fogo a Atenas. Encarregar-se-ia ela própria da tarefa, ante os olhos
de um príncipe como Alexandre para que no futuro dissessem que as mulheres que
o acompanhavam tinham vingado melhor a Grécia dos males que no passado lhe
foram causados pelos persas do que jamais o fizeram todos os capitães gregos
por mar e por terra. Logo que terminou esse discurso, os favoritos de Alexandre
e assistentes a aplaudiram com salvas de palmas e, com grande alando de
alegria, disseram que a idéia era a melhor do mundo e incitaram o rei a pô-la em execução. Levado pelas instigações, Alexandre levantou-se e, colocando à cabeça a coroa de
flores, empunhou uma tocha ardente e foi o primeiro a marchar, seguido dos
favoritos que dançavam e gritavam em volta do castelo. Os outros macedônios,
tendo ouvido a notícia, acorreram incontinenti com tochas e lanternas acesas.
Demonstravam grande regozijo, porque estavam certos de que isso era sinal de
que Alexandre pretendia retornar à pátria. Se ele incendiava e destruía assim o
castelo real, é porque não desejava permanecer entre os bárbaros. Eis como se
afirma que teve início o incêndio, embora haja os que digam que não foi assim,
por divertimento, mas por deliberação do conselho. Como quer que fosse,
reconhecem todos que ele logo se arrependeu e mandou extinguir o fogo.

LXXI. Liberal por natureza e
gostando de fazer presentes, acentuou-se nele esse pendor à medida que lhe
prosperavam os negócios. Esses gestos de generosidade eram então acompanhados
de uma delicadeza que os tornava ainda mais agradáveis.

Quero, a esse respeito, citar alguns exemplos. Ariston,
coronel dos Peônios, após matar um inimigo, levou-lhe a cabeça a Alexandre,
dizendo-lhe "Sire, este presente, em nosso país, é recompensado ! com uma
copa de ouro". Alexandre riu-se e respondeu: "Sim, com uma copa
vazia; mas eu, nesta que te dou, cheia de vinho, bebo à tua saúde". De
outra feita, encontrou ele um pobre macedónio a conduzir um burro carregado
de ouro do rei. Como o burro estivesse muito cansado e parecesse que não mais
suportaria o peso, o macedónio tomou a carga | às costas e continuou caminho.
Por fim, estava tão exausto que precisou largar o fardo no chão. Alexandre o
viu, perguntou-lhe o que era aquilo e, depois de ouvi-lo, disse-lhe:
"Não te canses tanto: leva a carga somente até à tua casa, pois ela é
tua". Em suma, desgostava~se mais com aqueles que não queriam receber
do que com os que lhe pediam. Escreveu a Fócion que deixaria de consi-derá-lo
amigo se recusasse os presentes que lhe fazia. Ocasionalmente, nada havia dado
a um jovem chamado Serapião, que lançava a péla aos que jogavam; e a causa é
que ele nada lhe pedira. Como um dia o rei viesse para jogar, o rapaz atirou a
péla a todos os outros, menos a ele. Afinal, Ale-xandre perguntou-lhe:
"E a mim, não me dás? Respondeu: "Não, Sire, porque não me
pedes". Logo percebeu Alexandre o que ele queria dizer e pondo-se a rir, fez-lhe
depois muitos presentes

Havia em seu séquito
certo Próteas, homem brincalhão, que sempre o divertia. Mas um dia aconteceu
que Alexandre se irritou contra ele. Os amigos intercederam, pediram perdão ao
rei e ele próprio o fez, com lágrimas nos olhos. Alexandre disse que lhe
perdoava, ao que Próteas replicou: "Então, Sire, dá-me o penhor do teu
perdão". Mandou o rei imediatamente que lhe dessem cinco talentos (68) .

LXXII. Quanto aos bens que distribuía e às riquezas que repartia entre os familiares e
guarda-costas, pode-se evidentemente conhecer que eram muito grandes por uma
carta missiva que sua mãe Olímpia lhe escreveu um dia, onde há estes próprios
termos: "Sou de opinião que deves presentear de outro modo teus familiares
amigos e que os mantenhas com honra ao pé de ti; mas tu os fazes iguais aos
grandes reis e lhes dás os meios de fazerem muitos amigos tirando-os de ti
mesmo". E, como a mãe lhe escrevesse frequentemente cartas semelhantes
sobre o mesmo assunto, ele guardava-as secretamente sem comunicá-las a ninguém.
Um dia, contudo, ao abrir uma, Heféstio estava presente e se aproximou, como de
hábito, e leu-a com ele. Alexandre não o impediu, mas, terminada a leitura,
tirou do dedo o anel com o qual selava e carimbava as cartas e levou o sinete à
boca de Heféstio. Deu ao filho de Mazeu, que era o maior personagem entre os favoritos de
Dário, outro governo além do que ele possuía e ainda maior do que o primeiro. O
jovem senhor recusou-o, dizendo: "Como, Sire, antes havia um só Dário, e
agora tu fazes vários Alexandres" . Ele deu também a Parmênion a casa de
Bagoas, na qual havia móveis somente de Susa, por mil talentos (69) . Mandou
dizer a Antípater que tomasse cuidado com sua pessoa, porque havia inimigos e
malfeitores que o espiavam. Também à sua mãe enviou vários belos e grandes
presentes, mas lhe pediu que não se envolvesse em seus negócios e nem se
atribuísse as funções de um capitão: como ficasse furiosa, ele suportou
pacientemente a aspereza de sua fúria. Um dia, Antípater escreveu-lhe longa
carta contra ela. Depois que a leu, ele disse: "Antípater não compreende
que uma só lágrima de mãe anula dez mil cartas dessa espécie".

(68) Três mil escudos. —
Amyot. 23.342 libras francesas.

LXXIII. Tendo percebido que os cortesãos se
tornavam muito dissolutos, imoderados nos prazeres e supérfluos nos gastos,
repreendeu-os doce e prudentemente. Hágnon de Teio (70) usava pregos de prata
nos chinelos; Leonato mandava carregar por vários camelos, em sua bagagem,
fardos de pó do Egito, para usá-lo somente quando lutava o se entregava a
outros exercícios pessoais; Filotas para caçar, usava telas de doze mil e quinhentos
passos de comprimento; e havia os que usavam preciosos perfumes e essências
aromáticas quando se banhavam e vaporizavam, em lugar de usarem óleo simples
para untar-se, e levavam delicados criados de quarto para friccioná-los no
banho e para fazer-lhes as camas. Disse-lhes então Alexandre: "Muito me
admira que, tendo combatido tantas vezes e em tão grandes batalhas, não vos
lembreis de que aqueles que trabalham dormem mais suavemente e melhor do que os
que não trabalham. Não sei como não percebeis, comparando com a dos persas a
vossa maneira de viver, que a vida luxuosa é coisa servil, ao passo que o
trabalho é coisa real. Como poderia tratar do próprio cavalo, lustrar a lança e
o capacete, aquele que por efeminada preguiça desdenha ou se desacostuma de
empregar as próprias mãos para esfregar o corpo? Não sabeis que a nossa maior
vitória consiste em não fazer o que faziam aqueles que vencemos e derrotamos?"
E, para incitá-los pelo exemplo a trabalhar, esforçava-se mais do que nunca na
guerra e na caça, arrostando ainda mais aventurosamente toda sorte de perigos.
Certa vez, um embaixador da Lacedemônia, vendo-o enfrentar e abater um grande
leão, disse-lhe: "Certamente lutaste tão bem contra esse Leão, Sire, para
disputar-lhe a realeza". Crátero, mais tarde, mandou colocar essa caça no
templo de Apolo, em Delfos, onde estão as estátuas do leão, dos cães, do rei
combatendo o leão e dele próprio ao socorrê-lo. Todas essas estátuas são de
cobre, umas feitas pela mão de Lisipo e as outras pela de Leócares.

(69) Sessenta mil escudos. —
Amyot. 4.668.775 libras francesas.
(70)Teio,
cidade da Iònia, diante da ilha de Quio: é a pátria Anacreonte.

LXXIV. Assim Alexandre, tanto para exercitar sua pessoa na
virtude como para incitar os amigos a fazerem o mesmo, expunha-se a tais
perigos. Mas os familiares, cumulados de bens e riquezas, queriam viver no
luxo sem trabalhar, de medo que lhes pesava continuar errando pelo mundo, entre
uma guerra e outra. Começaram então, pouco a pouco, a murmurar e a dizer mal
dele. A princípio, Alexandre tolerou-os pacientemente, por achar que era
coisa digna de um rei ser censurado e criticado por fazer o bem. Todavia, nas
menores demonstrações aos amigos, testemunhava-lhes cordial amizade e grande
deferência. Disso quero dar aqui alguns exemplos. Peucestes escreveu a
seus amigos contando que fora mordido por um urso, – mas nada lhe mandou
dizer a esse respeito. Alexandre ficou magoado e lhe escreveu: "Manda-me
dizer ao menos como estás passando agora e se alguns daqueles que caçavam
contigo te abandonaram no perigo, a fim de que sejam punidos" . Tendo-se
Heféstio ausentado da corte para negócios, escreveu-lhe dizendo que, enquanto
eles se divertiam em dar combate a uma fera chamada ícnêumon, Crátero tivera a
infelicidade de ser ferido em ambas as coxas pelo dardo
de Pérdicas. Como Peucestes tivesse escapado de grave moléstia, escreveu
Alexandre a Alexipo, médico que o curara, para agradecer-lhe. Certa noite,
estando Crátero doente, teve ele certas visões que o levaram a fazer
sacrifícios para que o amigo recuperasse a saúde, e recomendou-lhe que fizesse
o mesmo; e, como o médico Pausânias lhe quisesse dar um remédio com heléboro,
escreveu-lhe cartas mostrando-se preocupado e advertindo-o de que deveria tomar
muito cuidado ao recorrer a esse medicamento. Mandou prender Efíaltes e Cisseu,
quando denunciaram a fuga e a retirada de Harpalo, por achar que a acusação era
caluniosa. Tendo mandado fazer uma lista de velhos e doentes, para
aposentá-los, certo Euríloco de Ege fez-se arrolar entre os enfermos; mais
tarde, verificou-se que estava são, tendo então confessado que assim procedera
para acompanhar uma jovem chamada Telesipa, por quem se apaixonara e que
voltava por mar para os Países-Baixos. Alexandre perguntou de que condição era
essa mulher e lhe foi respondido que era uma cortesã de condição livre.
"Então, disse ele a Euríloco, desejo favorecer teu amor, mas não posso
fazê-lo à força (71): procura fazer com que ela, por meio de presentes ou boas
palavras, resolva de bom grado ficar, pois é de condição livre".

(71) Mas nós faremos de sorte que,
por meio de presentes, etc. C

LXXV. Coisa admirável
é que ele se desse ao trabalho de escrever aos amigos até sobre os fatos mais
insignificantes. Assim, escreveu para Cilicia, por causa de um criado de
Selêuco, que fugira, pedindo que se empenhassem em procurá-lo. Em outra missiva, louvou Peucestes por ter recapturado Nícon, escravo de Crátero.
A Megabizo, outro servo que se refugiara num templo, também enviou cartas
ordenando que o fizessem sair dali para prendê-lo, mas sem tocá-lo antes
disso. Dizem que a princípio, quando presidia aos julgamentos criminais,
enquanto o acusador fazia o libelo, tapava com a mão um dos ouvidos, para
conservá-lo puro e preservá-lo de toda impressão caluniosa, pois queria ouvir
também a defesa e as justificações do acusado. Mais tarde, porém, a enorme
quantidade de acusações feitas em sua presença irritou-o e tornou-o áspero, a
ponto de acreditar nas acusações falsas por causa do grande número das
verdadeiras. Mas o que mais o deixava fora de si era ouvir dizer que tinham
falado mal dele. Tomava-se então cruel, sem querer perdoar, pois amava mais a
glória do que o império e a própria vida.

LXXVL. Saindo de novo em perseguição a Dário, pensou que
este ainda quisesse combater; mas, informado de que Besso o prendera, permitiu
que os tessálios regressassem, após ter-lhes feito presente de dois mil talentos (72) além do soldo e do pagamento ordinário. Nessa perseguição a Dário, que foi
longa, laboriosa e difícil, pois em onze dias fez bem a cavalo umas duzentas e
seis léguas (73), de tal maneira que a maior parte de sua gente estava exausta,
inclusive pela falta d’água, encontrou ele um dia alguns macedônios conduzindo
muares com uma carga de odres de água que tinham ido buscar num rio. Como
vissem que Alexandre morria de sede, sendo já cerca de meio-dia, para ele
acorreram apressadamente e deram-lhe de beber dentro de um capacete. Ele
perguntou-lhes para quem levavam aquela água, ao que responderam que para seus
filhos: "Mas, enquanto viveres, Sire, poderemos ter outros, se perdermos
estes". Tendo ouvido essas palavras, pegou o capacete e, olhando ao redor,
quando todos os soldados que o seguiam estendiam o pescoço para espiar a água,
devolveu-a sem beber e agradecendo aos que a tinham presenteado: "Se eu
beber sozinho, disse, estes perderão a coragem". Admirando-lhes o gesto,
os cavaleiros pediram-lhe em altas vozes que ele os conduzisse ousadamente e,
pondo-se a instigar os cavalos, disseram que não estavam cansados e que já não
tinham sede. Não se julgavam mortais em companhia de tal rei.

(72) Duzentos mil escudos. – Amyot.
(73) No grego, três mil e três estádios e meio., a 24 estádios por légua 337 500 libras
francesas que perfazem 137 léguas

LXXVII. Era a boa vontade de segui-lo igual em todos, todavia, uns
sessenta somente chegaram com ele até o acampamento do inimigo, onde por cima
de muito ouro e prata que jazia por terra, esparramado pelo meio do campo e
passando além de vários carros cheios de mulheres e crianças, que encontraram
no meio do acampamento, fugindo a esmo, sem um condutor que os levasse,
partiram a toda brida até alcançar os primeiros fugitivos, pensando que Dário
devia estar entre eles, e tanto fizeram que por fim o encontraram, com
dificuldade, estendido dentro de um carro, tendo o corpo ferido por vários
golpes de dardos e de flechas estando prestes a exalar o último suspiro, no
entretanto, pediu de beber e Polistrato lhe trouxe água fresca, que ele bebeu;
disse-lhe, depois de ter bebido: "Esta é a última das minhas desgraças,
meu amigo, porque depois de ter recebido de ti este favor, não tenho os meios
para retribuí-lo: mas Alexandre dar-te-á a recompensa e os deuses, a Alexandre,
pela bondade, mansidão e humanidade de que usou para com minha mãe, minha
mulher e meus filhos, cuja mão eu te peço que apertes, por mim". Dizendo
estas últimas palavras, tomou a mão de Polistrato e morreu em seguida. Alexandre chegou logo depois e mostrou que evidentemente muito sentia a sua desdita
tirando seu manto, cobriu com ele o corpo e nele o envolveu. Depois, tendo
encontrado Besso, pren-deu-o, fê-lo esquartejar, por meio de duas árvores altas
e flexíveis que fez dobrar uma para a outra; amarrou a cada uma delas uma parte
do corpo, depois deixou-as. voltar à posição natural, com tal violência que
elas levaram cada qual a sua parte.

LXXVIII. Em seguida fez embalsamar e amortalhar pomposamente
o corpo de Dário, man-dando-o à sua mãe e recebeu seu irmão Exateres no número
de seus amigos (74) : depois, com a fina flor do seu exército dirigiu-se ao
país dos hircanianos, onde viu o sorvedouro do mar Cáspio, que lhe não pareceu
menor do que o do mar do Ponto, mas é-lhe a água bem mais doce do que a dos
outros mares. Nunca se pôde saber ao certo o que era, nem de onde vinha; o que
lhe pareceu, porém, mais próximo da verdade, é que aquilo era uma regurgitação
dos mares Meótidos. Todavia, os antigos filósofos naturais parecem ter sabido
da verdade a esse respeito: pois vários anos antes da viagem e das conquistas
de Alexandre (75), eles escreveram, que dos quatro principais sorvedouros do
mar que vem do Oceano e entram no seio da terra, o mais setentrional é o do mar
Cáspio, ao qual chamam também de mar Hircaniano: mas, passando por esse país
alguns bárbaros, repentinamente atacaram aos que levavam Bucéfalo, o cavalo de
batalha de Alexandre e dele se apoderaram; com isso ele ficou tão encolerizado
que mandou publicar por meio de um arauto aos habitantes da região, que os
passaria todos a fio de espada, até mesmo as mulheres e crianças, se não lhe
restituíssem o cavalo: trouxeram-no então de volta e fizeram ainda mais:
entre-garam-lhe as cidades e suas praças e ele os tratou benignamente, pagou
ainda o resgate de seu cavalo aos que o haviam trazido.

(74)Axatres. segundo Quinto
Cúrcio e Díodoro da Sicília.
(75)Veja as Observações.

Deixe um comentário

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.