Cônego Fernandes Pinheiro (1825 – 1876)
CURSO DE LITERATURA NACIONAL
LIÇÃO XXII
gênero épico
Rigorosamente falando, não se encontra na época que ora estudamos nenhuma obra de tal modo monumental que mereça o nome de epopéia, na acepção que lhe querem dar alguns críticos rigoristas, para os quais nem os próprios Lusíadas podem ser condecorados com semelhante título. Se escutarmos porém a opinião do ilustre Blair, nenhuma dificuldade haverá em alargar o estreito círculo em que os sectários de Aristóteles pretenderam encerrar o poema épico. Para o douto professor de Edimburgo, não só a Ilíada, a Eneida e a Jerusalém libertada, mas ainda a Farsália, a Tebaida, o Paraíso, a Messíada e muitos outros poemas devem ser qualificados de épicos, uma vez que cantem empresas ilustres. Lemercier acha dignos assuntos para as epopéias as fábulas em que se escondem as origens dos povos, suas guerras mais memoráveis e perigosas expedições. Condição essencial desses poemas é serem interessantes; cumpre porém não nos olvidarmos de que relativo é o interesse, e que a Henriade de Voltaire, que cativa a atenção dos franceses, por ligar-se a uma das mais notáveis épocas da sua história, é em sua grande totalidade insípida para o leitor português, ou brasileiro.
Abunda a literatura portuguesa em grande número de poemas históricos, mitológicos, ou romanescos, cuja análise nos levaria para longe do nosso plano. Escolheremos porém em tão rica messe o que mais digno nos parecer de estudo e imitação, preferindo sempre as obras que gozam de mais geral e incontestada reputação.
Singular é que o século XVII que, como dissemos, assistiu à decadência da nossa literatura, fosse ao mesmo tempo tão fecundo em poemas épicos, alguns dos quais bem indignos se tornam da categoria a que pretensiosamente aspiravam. Repercutia em todos as imaginações o eco da glória pátria, e, sem calcularem suas forças, arrojavam-se inúmeros lidadores no estádio em que Homero, Virgílio, Tasso e Camões haviam adquirido imarcescíveis louros. Se alguma vez pôde a intenção atenuar a imperfeição da obra, sirva-lhes de desculpa o ardente anelo que mostravam para vulgarizar os fastos nacionais.
Faremos apenas seleção de três poemas para o assunto desta lição, e serão eles a Ulisséia, a Malaca Conquistada e o Afonso Africano, por nos parecerem que melhor que todos preencherão as condições exigidas para as epopéias, e também por serem essencialmente patriotas. Na classificação e conceito que fizermos atenderemos ao voto dos juízes competentes, mas sem renunciarmos nossas próprias opiniões.
A Ulisséia, ou Lisboa Edificada. — Discordando do respeitável parecer do ilustrado coletor do Parnaso Lusitano, não duvidaremos assinar o primeiro lugar, depois dos Lusíadas, a este poema. Foi seu autor Gabriel Pereira de Castro, nascido na cidade de Braga aos 7 de fevereiro de 1571, e falecido em Lisboa aos 18 de outubro de 1632. Justamente considerado pelo seu saber, desempenhou diversos cargos da magistratura e magistério, para os quais o habilitava o seu grau de doutor em cânones pela universidade de Coimbra. Chegou ao pináculo das honras judiciárias, sendo despachado nos últimos tempos de sua vida chanceler-mor do reino, graças à sua adesão à causa castelhana. Restam-nos dele duas obras de direito, apreciadas pelos profissionais, dois volumes manuscritos de poesias líricas em várias línguas, ainda inéditos, e a epopéia acima indicada, cuja primeira edição saiu da oficna de Lourenço Craesbeck em 1636, precedida de várias poesias em seu louvor de um discurso poético de Manuel de Gaihegos em prosa e de argumentos em verso no começo de cada canto por D. Bernarda Ferreira de Lacerda. Afirma o Sr. Inocêncio Francisco da Silva que tem tido a Ulisséia cinco edições, sendo a última a de 1827, feita em Lisboa na imprensa régia em formato de 16. Tendo tido a fortuna de deparar com a primeira edição, que passa pela mais correta, por ela nos regularemos para os extratos que houvermos de fazer.
Formava Gabriel Pereira de Castro o mais subido conceito da sua epopéia, a ponto de recomendar em seu testamento que não fosse ela impressa senão quando uma junta de entendedores declarasse que era superior aos Lusíadas de Luiz de Camões. Cremos que nunca se reuniu semelhante junta e que desobedeceram seus herdeiros a tão vaidosa pretensão: e de vemos ser-lhes gratos por não nos haverem destarte privado de uma obra, que, apesar dos seus defeitos, não deixa de ser um dos ornamentos da poesia nacional.
Pertence Gabriel Pereira de Castro à escola castelhana, de que foi um dos patriarcas, e admirador apaixonado de Góngora, imitou-lhe o estilo e o colorido, levando-lhe porém vantagem na clareza e moderação no emprego das imagens o figuras. Injusto nos parece o que a seu respeito pensava Garrett quando falando do estilo da Ulisséia dizia: "O estilo é o protótipo da Fênix renascida, o requinte do gongerismo cujo patriarca foi entre nós, per ver tendo-nos à sombra da sua grande fama e brilhante engenho todo o resto escasso que de gosto tínhamos ainda, intrincando a poesia (senão também a prosa por mau exemplo) em um dédalo inextricável de conceitos, de argúcias, de exagerações, de afetada sublimidade, falsa e vã grandeza com que de todo veio à terra a poesia nacional, e que acabou a grande escola do Camões e Ferreira, que tantos e tamanhos alunos havia produzido. E supunha este homem vaidoso ter sobrepujado com as quixotadas da sua Ulisséia as naturais belezas dos divinos Lusíadas!" 1
No nosso entender não merece a Ulisséia tão severo juízo, e os nossos mais abalizados críticos reconhecem que nela observara seu preclaro autor todos os preceitos da epopéia, e que perfeita seria a sua fábula se por tão largo tempo não deixasse o herói ocioso no palácio de Circe, e se mais bem fundado fosse o ciúme desta deusa por causa dos amores de Ulisses com Calipso. Vigorosamente traçados são os caracteres, principalmente os do protagonista e o de Gorgoris; a ação progressiva, bem ligados e interessantes os episódios; brilhante e apropriado o maravilhoso; vivas as pinturas; cadente o estilo, e variada a metrificação. Com todos estes predicados porque não cabe à Ulisséia o primeiro lugar? — Por falta absoluta de originalidade. — Repleto de erudição, compôs o doutor Gabriel Pereira o seu poema de materiais alheios, sendo, como observa Costa e Silva, apenas uma terça parte de lavra própria. Pôs em contribuição Homero, Virgílio, Estácio, Ovídio, Ariosto, Tasso, Gongora, e até o próprio Camões, que fingia desprezar.
1 Bosq. da Hist, da Poes. e da Ling. Port., pág. XXJX
Apoderando-se de uma antiga legenda que fazia Lisboa edificada por Ulisses, assentou de escrever uma epopéia, que, lisonjeando o amor próprio nacional, lhe deixasse vasto campo para ostentar os profundos estudos que fizera dos clássicos gregos e latinos.
Nimiamente exploradas haviam já sido as aventuras do grego errante, limitando-se o poeta português a levá-lo às margens do Tejo e copiar em Gorgoris a personagem de Turno, que com tanto interesse admiramos em Virgílio.
Conhecido o argumento da Ulisséia percorramos rapidamente suas páginas, citando aquilo que mais digno se faz de nota.
No canto I, est. 41a, recomenda-se a bela metamorfose dos companheiros e Ulisses mudados em animais, em conseqüência dos encantos de Circe.
Qual vendo o companheiro ir-se mudando,
Quer socorrê-lo, e leva meia espada,
E ao infelice Acteon imitando
As mãos fendidas acha, a testa armada;
Qual libico leão representando
Ruge em lugar de voz articulada,
Qual como touro pelos montes brama,
Qual na água veste prateada escama.
Gracioso é o retrato de Helena, e de sua peregrina beleza, própria para atear o incêndio entre dois povos rivais. No canto II, est. 9a e seguintes lêem-se estes primorosos versos:
De vê-la o mesmo céu se namorava,
E o ar no do seu rosto se acendia,
O mar quando ela as conchas lhe furtava
Parece que a beijar-lhe os pés corria.
Quem as divinas graças que mostrava
Contar quiser, mais fácil lhe seria
Contar as flores do lascivo Maio
E do sol os cabelos raio a raio.
Pela testa sem ordem despargldo,
Solto o cabelo voa livremente,
Onde sai a queixar-se d’oprimido
De uma cinta de pedras refulgente:
No ombro soa o arco do brunido
Marfil, no lado a aljava está pendente:
Com menos graça ao bosque entrar costuma
A bela deusa que nasceu da escuma.
Quando no céu d’altiva fronta abria
Um e outro sol na luz que derramava
O campo todo, todo o ar ardia,
Que a tudo dava ser, tudo animava.
A cada passo seu, um céu movia;
A cada raio seu, um sol mostrava.
A cada olhar abria um paraíso,
E um coração feria a cada riso.
Perfeitamente bucólicos são os queixumes do gigante Po-lifemo, dirigidos à ninfa Galatéia: o que prova que o grave magistrado sabia tão bem embocar a tuba épica como a avena pastoril. Ouçamo-los:
Galatéia fermosa em cuja neve
Achou principio o fogo peregrino,
Que me soube abrasar, a culpa teve
Deste meu amoroso desatino:
Se me queres matar, e amor se deve
Matar-me, do teu ouro crespo e fino
Um laço me darias, bela homicida,
Onde suspendas co’a esperança a vida.
A ti no prado imita a pura rosa,
Quando quer exceder-se na beleza,
Por ti retrata como mais formosa
As que mais belas fez a natureza.
Que esta triste voz, que é só ditosa
Quando a tua graça canta, e gentileza,
Que por vangloria sua, amor ordena
Que os teus louvores cante a minha pena.
Assim como averbamos de imitador a Gabriel Pereira pede a eqüidade confessemos que não poucas vezes corrigiu ele e embelezou os seus modelos. No combate, por exemplo, entre Aquiles e Heitor leva o nosso poeta vantagem a Homero; seu Heitor é mais heróico, mais sublime do que o da Ilíada. Ninguém deixará de apreciar este belo quadro da inabalável coragem do defensor de Tróia.
Heitor a fria morte vê defronte,
Que na espada inimiga anda escondida,
Em negro sangue duma e doutra fonte
Vai pouco a pouco destilando a vida;
A armadura mais forte que fez Bronte
Por mil partes estava dividida,
O aperto a que a vida é já chegada
Com mil bocas o diz a própria espada.
Conhece-se ferido, que o fervente
Sangue já as fortes armas lhe banhava,
Contra Aquiles corria impaciente,
Que a vida e o perigo desprezava,
Girava a um lado e a outro a espada ardente
Com a voz que solta aos montes abalava,
Que um trovão parecia a voz pesada,
Traz ele um raio o fulminar da espada.
Sentia a coxa esquerda mal ferida,
O escudo lança atrás, a espada aferra
Que sobre Aquiles cai grave e temida,
Com que ambos os joelhos pôs em terra.
Bravo se ergue d’afronta recebida,
Aperta os dentes, co’o inmigo serra,
Nos braços o levanta, e entre os braços
Se dão ambos duríssimos abraços.
No prosseguimento desta gigantesca luta usa o poeta português de uma comparação verdadeiramente homérica quando diz:
Como se Peleu e Olimpo se topassem
De duas rochas fronte e peito aimados,
E na tosca aspereza se abraçassem
Cos braços de seus troncos carregados,
E em fontes d’apertados rebentassem:
Assi estes vivos montes abraçados
Se apertavam, onde Heitor qual vivo monte
Brotava sangue duma e doutra fonte.
Muito mais épica do que na Ilíada é a pintura da morte de Heitor na Ulisséia, de Castro, e, sob pena de abusar da paciência do leitor, tomamos a liberdade de chamar a sua atenção para as seguintes estâncias do canto VI:
Aquiles que se vê mais alentado
Estreitamente aperta Heitor consigo,
Mete o joelho esquerdo ao dextro lado
Carregando nos peitos do inimigo,
Qúe sem poder suster-se cai forçado
Sem descuidar-se em seu valor antigo,
Que nos braços o aperta tão veemente
Que ambos a terra medem juntamente.
Heitor, a quem o peito a dura lima
Da dor grave em mil partes dividia,
Tendo d’Aquiles o grão peso em c’ma,
A quem já contrastar tão mal podia,
Mostrando que ainda assi menos o estima.
Dum lado noutro o corpo revolvia,
Que sem temer contrário tão temido
Vencido quer não parecer vencido.
Vê no ar levantado o braço forte
E apertado um punhal na dextra erguida,
Do alto rosto vê descer a morte
Indo esconder-se o ferro na ferida:
Gozando Aquiles mars ditosa sorte,
Os laços corta desta ilustre vida,
Tendo outra vez no ar a adaga fera,
Como que a alma por feri-la espera.
Triunfa a morte e Marte do arrogante
Despojo que no campo se estendia.
A espada jaz, e o escudo rui Jante,
Que Grécia toda com rezão temia.
O ílion poderoso e triunfante
Nele a glória completa que perdia
Cuja alta fama quando o céu tocava
Nesta viva coluna descansava.
Pagando tributo ao mau gosto do tempo, não pôde Gabriel Pereira de Castro evitar as sirtes dos trocadilhos, como por exemplo quando no canto IV, est. 92, diz falando de el-rei D. Diniz:
Este terá a ilustre e cara espcsa
Do sangue d’Aragão bela Isabela
Que só procura n’aima ser fermosa
Sendo sobre a maior beleza bela.
Cumpre reconhecer que as expressões Bela Isabela, e beleza bela são do mais alambicado gongorismo.
Era outrossim grave defeito dos escritores seiscentistas a infeliz escolha das metáforas e hipérboles. Muitos são os lugares da Ulisséia em que tais máculas aparecem, como v. g.:
Logo João segundo belicoso
Fará escura toda a fama a heia
Vendo levar seu nome gorioso
A’é onde o ardente sol ferve n’are’a,
Descobrindo o grão Cato, que o famoso
Ni’o em coturnos de cristal passeia;
Rei exemp’o de Reis, digno governo,
Que fora eterno Rei dum Reino eterno.
E, por certo bem ridícula metáfora a do Nilo passeando com coturnos de cristal, e bem arrojada h pérbole a que desejava para D. João II a eterna realeza de um reino eterno! Releva que em tudo sit modus in rebus.
Desnaturando a bela figura denominada pelos retórics aposiopese (reticência), emprega-a Gabriel Pereira duas vezes de um modo pouco gracioso. No canto terceiro, est. 60, põe estas palavras na boca de Polifemo:
Serás, me disse, hóspede famoso,
O último que me mande ao triste inferno,
Por te pagar este licor saboroso
Que o néctar é de Júpiter eterno,
O mitino suave e o cheiroso
Falem… e sem poder dizer falerno,
Que as palavras turbada lhe impedia
A lingua grossa e ao sono se rendia.
No canto quinto outra infeliz aposiopese marca o esplendor da tocante repulsa que Circe faz de seu filho Telegônio. Vejamo-la:
Não te quero, lhe diz, pois és retrato
De um ingrato maior que o mundo teve,
Porque não no pareças sendo ingrato,
E quem me leva a vida o gosto leve,
Mas não te dou eu filho tão barato
Bem d’esta vida ore… sem dizer breve,
Que as lágrimas lhe afogam num momento,
Antre as fauces da voz o último acento.
Apaixonados pelos arrebiques de dicção a que chamavam conceitos, desprezavam os gongoristas o modo natural de expressar-se para recorrerem a guindadas e ocas frases. Citemos para evidenciar a nossa proposição o seguinte trecho, de aliás patética despedida, de Calipso a Ulisses, que se lê no canto XX, ests. 113 e seguintes:
Aqui parou chorando amargamente
E mostrando na vista mil afeitos Diza:
Que me deixas finalmente,
Nisto são fortes os valentes peitos;
Deixa-me porque chore estando ausente
Noites viúvas, dias imperfeitos;
Vieste, amigo Ulisses, a esta terra
Fazer-me Tróia d’amorosa guerra.
As torres de minha alma assalto deram
Desejos invenciveis a que o fado
Dobrou a força com que me venceram,
E o Ilion desta alma vi abrasado;
Novos incêndios em meu peito arderam,
Quando da liberdade vi prostrado
O nobre muro, e após a ardente chama,
Vi a saco metida a própria fama.
Deixamos grifadas as passagens em que mais salientes se tornam os defeitos que havemos apontado.
Por amor da brevidade omitimos o exame das incorreções de linguagem, impropriedade e má escolha dos epítetos, e solecismos, que se notam na Ulisséia de Gabriel Pereira de Castro, remetendo o leitor curioso para a interessante obra do erudito filólogo Francisco José Freire (Cândido Lusitano) denomina-da Reflexões sobre a Língua Portuguesa.
Malaca Conquistada. — No nosso pensar é este o terceiro poema épico, que conta a literatura portuguesa, e sentimos discordar do juízo que a seu respeito fez o ilustre Garrett. Conforme a praxe por nós seguida, esbocemos a biografia do autor antes de analisar a obra.