Visconde de Taunay – O sonho de um sabiá

O sonho de um sabiá

Em velha e suja gaiola de taquara, suspensa à parede de uma taverna, vivia, há [1]) longos meses encerrado, feio, desditoso e melancólico sabiá.

Tédio mortal e agras tristezas metia-lhe tudo quanto o cercava.

Em vez do teto azul celeste, recamado à noite de nitentes r>) estréias, que servia de majestoso dossel à mata virgem em que pas­sara até então feliz e descuidosa a existência, só via, por entre as grosseiras lascas da acanhada prisão, a telha escura da repugnante vivenda, a que o levara um dia a imprudência ou a desgraça.

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Em lugar das auras suaves e perfumadas da serena madru­gada, que tantos cânticos lhe haviam inspirado, ou da brisa cálida dos dias tropicais que fizera palpitar de amorosa ânsia o ardido e juvenil coração, respirava agora um ar violento e impuro, misto de todos os cheiros que enchiam a lôbrega G) bodega.\

Em vez do ramo débil e flexível em que, tomado de loucas e inexplicáveis alegrias, se balançava bem no seio das frondosas moitas; em vez dos perfumosos galhos das laranjeiras, entre os quais costumava, à hora do crepúsculo, ocul­tar a modéstia para cantar mais a gôsto, ti­nha que ficar [2]) noite e dia, trepado no gros­seiro e comprido prego que sustentava a gaio­la, e cujas asperezas férreas lhe magoavam as delicadas patinhas.

De semana em semana atiravam-lhe umas talhadas de laranja azeda ou uns restos de banana meio apodrecida, que importuno en­xame de moscas e mosquitos vinha de tropel devorar, com mil zumbidos discordes e aterra­dores. Quanto à água, com que tinha de sa­ciar a sêde, criava, no púcaro lascado em que a punham, uma crosta de esverdeado limo, antes de ser renovada.

Impossível é aquilatar as amarguras e angústias que curtia

a pobre da avezinha nas vinte e quatro horas do dia! Nem sequer podia dormir, tão forte a dor que Jhe estortegava [3]) o peito.

Também em breve lhe caíram” tôdas as penas: mirou-se, ma- pro, pelado, horrendo, como um dêsses espectros de pássaro, que Salvator Rosa :!) pinta em suas fanáticas composições; pareceu ir-se-lhe a vida tôda concentrando em dois olhos minazes [4]) a fuzilarem ódio e indignação, olhos esbugalhados, fixos, e como que acocorados em cima de um bico pontiagudo e provocador.

Cuidou de-veras no suicídio, mas não soube como realizá-lo. Se, num ímpeto de desespero, batia com a cabeça de encontro às grades da prisão, escalavrava dolorosamente a pele, sem nunca conseguir a menor brecha no duro crânio, invólucro de tão negros 1 desígnios.

Deixar-se morrer à mingua. . . era, decerto, um meio; mas estes casos extremos é que [5]) a filosofia, mau grado nosso, insi-

nua no imo da alma o seu doce bálsamo e aos poucos vai dobrando os mais rebeldes espíritos à mansa lei da resignação.

Por isto ia o merencório *) sabiá, embora a custo, disputar, de quando em quando, às vorazes moscas uns bocados do asqueroso alimento. Ãs vêzes, por engano, aconteceu-lhe até engulir algu­mas mais assanhadas e intrometidas.

Uma vingança, porém, sabia tirar do bárbaro que lhe roubara a liberdade.

— Não canto, nem cantarei nunca mais! dizia êle consigo mesmo, lavrando o protesto solene e inquebrantável.

E justamente era o que mais incomodava o lorpa do ven­deiro.

Então, perguntava êste, levantando o nariz para a gaiola e encarando o prisioneiro com fisionomia tôrva, — quando preten­de dar um arzinho da sua graça? Boa vida a sua, encher o pan­dulho sem fazer coisa que preste!

Por dignidade, nada respondia o coitado à verberação [6]) do bruto, cujo olhar contestava :5) com valentia.

E assim iam, uns após outros, lentamente se arrastando, os dias, sem que o sabiá discrepasse um só instante da sua estudada mudez. Quando se sentia mais abalado pelo desgosto, mais ansio­so de desabafo, mas cheio de razão contra o seu tirano, atirava-lhe à cara por escárnio uns gritos dissonantes e agudos que faziam o gato da venda abrir, de espanto, os sonolentos olhos e franzir as esparsas sobrancelhas.

II.

Uma feita, em quadra de rigoroso verão, houve época de calor devorador.4).

Ondas de luz intensa e ofuscante iluminavam a natureza nas mais recônditas furnas, levando-lhe por tôda a parte o enlagueci- mento e o cansaço.

Na estrada geral batia o sol de chapa, reverberando com tal fôrça, que da terra se levantava um vapor sutil e incandescente.

Nos chapadões torcia-se requeimada a relva miúda, ao passo que as alterosas e copadas árvores contraíam a folhagem, para da­rem menor campo aos raios do desapiedado astro.

De prostradas se haviam até calado as caca rejantes seriemas e as estrídulas cigarras.

Deserta de freguesia estava a venda, e nem havia quem por

tal ardência e a essa hora do dia se animasse a procurá-la.

Bocejou o alarve três ou quatro vêzes ruidosamente: olhou distraído para a alta fita do caminho que rutilhava; distendeu os

musculosos braços, e, afinal vencido pelo sono, deitou-se a fio com-

prido num tôsco banco, à sombra do alpendre de sapé, digno peristilo[7]) daquele templo de sórdida ganância.

Não tardou muito, e roncava como um perdido.

Ficou então só o nosso sabiá.

Quis resistir à modorra que por seu turno o invadia, e não

pode. Não dormia de todo, mas com a pálpebra lateral corrida,

como um véu translúcido que lhe deixava a meio lobrigar o mundo

eterior pôs-se a cochilar e por tal modo que três ou quatro vêzes esteve a cair do seu prego, levado pelo pêso da cabeça e do bico.

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Aí sonhou que, a to­do o dar de asas, atraves­sava extenso e árido chapadão em busca de visto­so capão de mato que vira ao longe, lá bem no fun­do. Alcançou-o não sem canseira, e, ofegante de tão inopinada viagem, refres­cou com algumas gotas de pura linfa o corpo que queimava.

Alisou as poucas penas que tinha e, mais descansado, correu

os olhos pelo lugar a que chegara.

Achou-o, com razão, todo de delícias.

Em orlado, denso e vibrante bosque, serpeava um límprdo e travêsso regato, a cuja borda se alinhavam simètricamente espaçados, os tão saudosos buritis a alternarem com grupos de lisas e vstosas embaúbas.

Se em tôrno sopravam pesadas e afogueadas auras, ali ciciava uma aragem fresca e insinuante como o hálito da aurora nas primeiras horas da manhã. Nem lhe faltavam as fragrâncias das Pores, pois nos ares se expandiam como borboletas prêsas por invisíveis fios, odoríferas orquídeas e na terra as espirradeiras silvestres e os roxos manacás desabotoavam as olorosas pétalas.

Que fazer em mataria tão amena e sedutora, senão cantar?

Também o nosso sabiá abriu a maviosa garganta e — sempre

em sonho — despejou torrentes de harmonias.

Sem quase tomar respiração, contou todas as histórias que dos seus pais e velhos mestres aprendera na. vida de liberdade.

Primeiro que tudo, exaltou as glórias da criação.

Na sua canora linguagem, ora com canto largo e pausado, ora por meio de trinados e volatas [8]) ou ledas modulações, des­creveu a hora que precede o nascer do dia: imitou, como melhor pôde, as pancadas intervaladas da vigilante anhuma-pocá, a que de longe responde a grita cromática das aracuanas, nas margens dos rios: pintou as gradações da luz que vêm subindo, o júbilo da terra, que acorda, o borborinho da vida em suas primeiras agita­ções, o chilrear dos insetos, o gazear dos pássaros, a lembrar o murmúrio discreto das águas; numa palavra, êsse concrêto unís­sono que proclama o emergir do sol, a princípio abafado e místico, pouco depois mais e mais forte, afinal pújante como brado saído de peito valente e sôfrego de viver.

Figurou, em seguida, o correr do dia. Inspirado pela oca­sião, ninguém melhor do que êle, com mais concisão e verdade, lembrou a languidez que quebra as forças da criatura nas horas enervadoras em que estua o calor. Seu cantar teve quedas tão bem sentidas, que parecia por vêzes ir-se-lhe sumindo a voz na garganta com o desprender da existência.

Eis, porém, que assoma a tarde. Ã lei fatal tem também que ceder o astro da vida. Descamba cheio de majestade, e não tar­da que desapareça. Esquecidos os agravos de há pouco, touca-se a natureza inteira de gaza roxeada, que breve vai mudar-se em negro e funéreo manto. Começa o império da saudade e da mei­ga tristeza. A custo prendem as cumiadas das serras uns últi­mos raios do sol. Foge a luz. A passos largos se adiantam as trevas; apossam-se dos plainos, sobem os declívios; galgam os cabeços, como que perseguindo raivosas e implacáveis a claridade que busca nos céu derradeiro refúgio.

E’ noite.

Solta a onça da tétrica [9]) lapa, em que se acouta, um rugido.. . E o nosso sabiá parou.

Acordara [10]), espantado com o grito que dera.

Descerrou as pálpebras… e estremeceu:

Diante dêíe viu, com terror e raiva, o vendeiro que, extático boquiaberto, o estivera largo tempo ouvindo.

— Oh!, exclamou com vagar, como canta! E’ um mestre! E eu que pretendia hoje à tarde abriu-lhe a porta da gaiola e mandá-lo passear!

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Aí o coitadinho do pássaro sentiu uma pontada tão pungente que julgou morrer. A comoção apertou-lhe o peito; por um instante o sufocou.

Depois. . . nem sequer pôde chorar.

Era um simples sabiá; o consolo supremo das lágrimas, a bondade divina só o concedeu ao homem que dobra a criação em peso aos seus caprichos e ao seu jugo de ferro.

Visconde de Taunay.

Fonte: Seleta em Prosa e Verso dos melhores autores brasileiros e portugueses por Alfredo Clemente Pinto. (1883) 53ª edição. Livraria Selbach.


[1] há — em lugar de havia. Vide a nota i) à pág. 31.

[2] tinlia que ficar; correto é; tinha de ficar. Vide Leite de Vascon- elos — Lições de Filol. 389.

[3] estortegava — magoava.

[4] minazes — ameaçadores. *

[5] Nestes casos extremos é que a filosofia… insinua. É que (era i/iii , foi que)—locução que se liga ao sujeito ou a um complemento da “ração para realçá-lo, dar-lhe mais energia; ex.: Eu é que não quero. A mim é que tu vens dizer isto?! Foi então que Ruderico se apossou da co- K>a. (Alex. Herc. Eurico 3). Era às recordações maternas e à saudade… <iu<‘ este último grito do moribundo se dirigia (Eurico 223). Quando o ele- mento que se quer realçar, é um complemento de lugar, pode substituir-se mu por onde. Era num poial que servia de base à cruz, onde o padre l>, ior vinha assentar-se (Lendas e Narrativas). Era aqui onde os maiores 1’i’i’igos aguardavam os três fugitivos (Eurico 199). Foi aqui onde deram ” passo aos inimigos (Idem 201).

[6] verberação — repreensão, censura.

[7] peristilo — frontispício de. um edifício, formado de colunas sepa­radas.

[8] moquear a carne — (brasileirismo) = tostar, passar a carne pelo para conservá-la, para não se corromper.

[9] tétrica — horrenda, medonha.

[10] Acordara — e não acordara-se. O verbo acordar — na acepção de despertar, sair do sono, é intráns. e não se emprega pronominalmente. Eu acordei cedo, e não — acordei-me cedo; o mesmo diga-se dos verbos simpatizar, antipatizar, desmaiar. Eu simpatizo com Fulano… e não: Eu me simpatizo…

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