A poesia de Francisco Bernardino Ribeiro, por Silvio Romero

Silvio Romero – História da Literatura Brasileira (ebook por capítulos)

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TRANSIÇÃO

POETAS DE TRANSIÇÃO ENTRE CLÁSSICOS E ROMÂNTICOS (continuação)

Francisco Bernardino Ribeiro. — Na série dos nossos poetas e escritores mortos em verdes anos ocupa este um lugar conspícuo. Faleceu antes dos vinte e três anos e teve tempo de estudar preparatórios, formar-se em Direito, defender teses para o grau de doutor, fazer concurso, tirar uma cadeira na Faculdade de São Paulo, escrever artigos e poesias pelos jornais!… Foi uma vida curta e demasiado cheia. Eis aqui as datas principais: nasceu aos 12 de julho de 1814; matriculou-se em São Paulo no curso jurídico em março de 1830; publicou a Voz Paulistana em 1831; formou-se em 1834; teve o grau de doutor em 35, foi nomeado lente em 36; faleceu no Rio de Janeiro a 15 de junho de 37. Era uma talento sério, inclinado aos estudos políticos e jurídicos; cheio de gravidade, não possuía a descuidosa e ardente imaginação de um grande poeta. Suas poesias são medíocres; declamatórias em essência, falta-lhes o sentimento artístico. Em poesia não ocultava suas preocupações doutrinárias. O fragmento seguinte põe a descoberto seus gostos, suas leituras prediletas na poesia e revela a intuição dominante em São Paulo em 1831. O poeta escreve a um companheiro :

"Aías não comeces, Montauri, como usa
Gente de Lísia: — quadras namoradas,
Insípidas canções, cruéis idílios,
Magro soneto, cortesãs bucólicas
São todo o esmero dos trovistas nossos.
Imita o Anglo excelso, o Galo astuto,
E fitando na glória audazes vistas,
Canta a nobre virtude, ações preclaras,
Amor de pátria, destemidos feitos;
Na lira entoa não ouvidas vozes,
Sublime inspiração do estro divino.
Ou se o mundo real, tudo o que existe,
Te não esperta a mente, inflama o espírito,
Da longa fantasia os campos ara;
Cria dourados palácios, frescas sombras,
Aprazíveis regatos, verdes campos,
Jardins amenos, deleitosos bosques;
Aí rindo do mundo e das desgraças,
Que rebentam da terra, a par dos frutos,
Abre teu coração a novos seres,
E novas sensações gratas acolhe;
Zomba de invejas, de ambições, de fastos.
Dessa alma, que afeições doces formaram,
Verte rios de gosto, de delícias,
E de sensibilidade amável, terna;
Esmalta o universo das belezas
Em que a mente borbulha; não, não percas
O gérmen que plantara a natureza.
Aí tens o- belo, o encantador Ovídio,
Que te dirija o passo, aí tens o Ariosto,
Byron, Sterne, Garrett, honra dos Lusos;
Segue seus traços, colhe seus exemplos,
São d’aureas ficções mestres peritos.
Oh! como idéiam n’aima mil venturas,
Glórias sem conto, inúmeras delícias!
Oh! como abandonando estes martírios,
Que no mundo real nos atormentam,
Buscam benignos, plácidos prazeres,
A que Uránia gentil só nos convida!"

Ribeiro foi um verdadeiro espírito de transição entre as duas escolas clássica e romântica. O fragmento que se acaba de 1er o revela ; ele paira entre as ficções antigas e as ousadias modernas.

Manda o seu companheiro fugir da imitação portuguesa ; mas aconselha-o que tome outros guias, sofra outros jugos.

Bem como na ordem social tivemos a escravidão, na esfera da literatura temos sido um povo de servos. Os nossos mais ousados talentos, se nos aconselham o abandono da imitação dos portugueses, instigam-nos, por outro lado, à macaqueação francesa; se nos bradam contra franceses, é para nos atirarem a ingleses ou alemães!

Tudo isto é nocivo, tudo é um mau aconselhar. Devemos estudar as literaturas antigas e modernas da Europa como um recurso de cultura, como um estímulo para o espírito; porque ali estão os grandes monumentos da inteligência humana. Tão-somente isto; não devemos imitar ninguém. Sejamos brasileiros; tiremos de nós mesmos um espírito, um gênio, um caráter literário. Anteponho este conselho ao de Bernardino Ribeiro. Da Europa, especialmente da Inglaterra e da Alemanha, a cultura geral e nada mais. A alma deve ser nossa, deve ser americana.

E se não pudermos passar de imitadores, de copistas, melhor é deixarmos de escrever.

Os versos citados do poeta fluminense denunciam sua teoria da arte. Ele incitava o amigo a ocupar-se com os grandes e destemidos feitos, as ações preclaras que encontrasse no mundo real, e, se isto o não encantasse, espertasse e incendesse a mente, arando os campos da fantasia.

O poeta era um sectário do idealismo em literatura. Compreende-se; era a doutrina mais corrente em 1830. E que não o fosse; tudo é justificável em poesia.

Sob o ponto de vista do objeto a três se podem reduzir as teorias sobre a arte. Uns entendem dever ser ela uma representação, uma cópia da realidade; outros crêem dever fazer ela uma escolha, uma seleção na realidade; os restantes dão-lhe por obrigação fantasiar, criar um mundo mais vasto e superior ao mundo real. Estas três tendências são tão antigas quanto o homem. Nenhuma delas morreu ainda. Mudam de aspecto conforme a índole das épocas, e no fundo subsistem inalteráveis. Predomina esta ou aquela, neste ou naquele tempo, sem que a contrária deixe de existir a seu lado. Em o XIX século as três fórmulas travaram renhidíssimas lutas no domínio de todas as artes, e ainda recentemente encontrou cada uma abrigo e defesa nas obras de três grandes espíritos e constituiu cada qual a manifestação estética de três grandes escolas.

A doutrina da realidade pura, do documento humano autêntico e vivo, é a fórmula suprema do materialismo na arte. Ninguém a defendeu melhor do que Zola nos seus livros de crítica.

A natureza, a realidade, o fato material e fisiológico, o jogo físico dos aparelhos orgânicos, a marcha fatal dos temperamentos, eis a base, a origem, os meios e o fim da arte. Fora daí impera o capricho, o acaso, a fantasia, o erro; não há mais um critério; começam os domínios intérminos da falsidade.

A segunda doutrina é no fundo a excelente teoria da arte formulada por Kant e desenvolvida por A. Comte e defendida em grande parte por H. Taine. Os fatos concretos e isolados nada são, se deles não se tiram relações abstratas. A arte deve conciliar a verdade com a beleza; e a realidade crua, no meio de suas imperfeições, não nos revela jamais a beleza plenamente realizada. Tirar dos fatos concretos o tipo ideal, o modelo supremo e inatingível, é o fim da arte. Fazer a seleção do ideal através do real, eis a grande tentação do gênio.

Nem é isto uma obra fantástica, quando a própria natureza é a primeira a estabelecer infinitas gradações, quer no mundo físico, quer no mundo moral.

A terceira teoria teve um defensor admirável no audacioso Schopenhauer, e Deus sabe quantas chispas de gênio ele desprendeu de si para iluminá-la. A realidade é grosseira, mortificante e miserável; o homem sempre e em todos os momentos, coletiva e individualmente, forceja por libertar-se da pressão incômoda e aviltante a que se sente condenado. O mundo da arte é a região encantada da liberdade; ela é tanto mais perfeita, quanto mais nos afasta da realidade triste e mesquinha da vida. A arte é uma audaciosa corrigenda, que o homem, Prometeu encadeado, impõe ao mundo feio e deprimente a que o prendera um destino cruel. Achamos acanhada a realidade e sonhamos um mundo melhor.

Bem se vê que esta doutrina é mui suscetível de defesa. Bernardino Ribeiro, sem o saber, compartilhava da teoria do famoso filósofo de Francfort.

Do moço poeta e escritor restam alguns pequenos trabalhos em prosa de que devo dar uma idéia. Dentre fragmentos literários, políticos e jurídicos, prefiro destacar a lição de abertura do curso de Direito Criminal, pronunciada em abril de 1836.

Dá uma noção do estilo e das idéias do moço professor e serve de amostra da concepção do Direito Penal entre nós na primeira metade do século XIX.

O mestrinho, assim o apelidavam, abriu a sua aula com este discurso:

"Chamado para conduzir-vos no estudo do Direito Penal brasi-sileiro, cumpre-me, senhores, atrair vossa atenção para a matéria que vai ser o assunto de minhas preleções e de vossa meditação, e destarte interessar-vos no desenvolvimento das altas questões da jurisprudência criminal.

Vastas, importantíssimas são sem dúvida estas questões; elas abrangem a sociedade inteira, e a sociedade vive, senhores, e prospera, porque em todos os séculos e em todos os países uma solução qualquer lhes tem sido dada. Correi os olhos pelo espetáculo imenso que vos oferece o mundo do homem, refleti em todas as portentosas produções do gênio altivo da humanidade, perscrutai os segredos dos séculos, revolvei os depósitos preciosos que umas às outras as gerações transmitem, e dizei-me depois que cena há aí mais augusta, solene e majestosa, que espetáculo há aí mais grandioso do que esse, que apresenta o exercício da justiça humana! Não é o homem a subjugar a natureza, não é a inteligência dominando a força, não é a liberdade que submete autômatos; é o homem que subjuga outro homem, é a inteligência dominando vontades, é a liberdade a submeter paixões, enfim é a justiça governando a terra; a justiça, a mais gloriosa das idéias do homem, a mais soberba de suas concepções, o mais alto de seus pensamentos, porque seu tipo é a Divindade!

Filha primogênita da razão humana, inseparável companheira da religião, a justiça, senhores, virgem errante nas florestas, ajudou a levantar a choupana do bárbaro, e a tenda pastoril do nômade; menos perturbada depois sentou-se à porta do pastor e do agrícola, e guardou-lhes o rebanho e a seara. Ei-la que abandona os desertos, reúne os homens, eleva as cidades, constitui os Estados, e em prêmio lá lhe atiram a toga dos cônsules, aqui o diadema dos Césares, ali o cetro dos reis, acolá a marraque dos caciques; entra e dita leis no areópago, senta-se na cadeira curul, preside aos comícios, ora no senado, suas palavras são escritas, e suas palavras são o oráculo das nações. Ela é a lei.

Mas quê, senhores! Terá a justiça governado por si só a terra? Não: a justiça tem inimigos, assim como tudo o que é grande e maravilhoso no homem; as paixões armam-se contra ela com todas as forças do gênio da maldade; os crimes também aspiram ao cetro. Pois bem, nesse conflito atroz, em que a humanidade periga, arme-se também a justiça, rodeie-se de forças, levante o cutelo vingador do crime, constitua-se penalidade. E o que é a penalidade senão a mesma justiça ladeada de todo o cortejo das forças sociais?

Senhores! o homem é o maior inimigo do homem; cumpre desarmá-lo para viver com ele; a pena é esse pacto singular que liga o homem social ao bárbaro, a condição essencial da sociedade humana, a garantia sagrada de sua existência. Aboli em uma sociedade qualquer o sistema penal, desarmai a autoridade, e tereis destarte quebrado o talismã misterioso, que converte o egoísmo interesseiro em virtudes sociais, e totalmente aniquilado a sagrada influência das leis.

Mas eu vos disse que a justiça é uma concepção da inteligência humana, que a penalidade é um sistema. Toda a concepção tem uma história, todo o sistema tem uma teoria; não há mesmo um só fato na natureza que o homem não possa sujeitar ao domínio da inteligência: a justiça penal não pode ser excetuada, há de forçosamente ter uma história e uma teoria.

Sua história, senhores, sua história é como todas as outras, é a narração do progresso das faculdades humanas; agora contínuo e acelerado, daí a pouco incerto, expirando quase, depois revivendo, qual a fénix do deserto, cheio de brilho e de esperanças.

Deixemos de parte a Grécia e o Oriente: o mundo oriental e o grego têm mais existência para nós nas recordações da memória e nas ilusões mágicas da fantasia, do que em benefícios reais que nos hajam legado. Dracon com a inflexibilidade de suas leis de ferro que a nada se amoldavam, que puniam igualmente toda a sorte de crimes, mostrou que não conhecia o coração humano, e decretou, sem o querer, a impunidade dos delitos menos graves. Licurgo, suas leis, sua república formam uma anomalia histórica, que não teve modelo, que ainda não teve cópia, que não a terá sem dúvida, porque o governo monacal de Lacedemônia nenhuma semelhança tem com as sociedades de agora. As leis de Sólon são as mais célebres da Grécia; o filósofo de Atenas conheceu melhor os homens, procurou proporcionar as penas aos delitos, foi mais humano; todavia, nem nas leis de Sólon, nem nos escritos dos sábios gregos se encontra uma doutrina penal.

A legislação nesses tempos, e mesmo até muito depois, foi a partilha da erudição, um ramo de literatura e de belas-letras, mas não uma ciência: moral, religião, justiça, tudo estava confundido; nenhum determinado limite, nenhuma discriminação fixa, nenhuma forma regular de processo, nenhuma teoria científica; tudo caprichoso, tudo à mercê do legislador ou das facções do momento.

Apesar do impulso imenso que teve no mundo romano a ciência governativa, apesar dos preciosos cabedais legados em seus códigos à legislação civil dos povos vindouros, apesar da necessidade urgente que sentiu o povo-rei de bem governar tantas nações diversas, e de fazer respeitar no orbe a dignidade do cidadão romano, ainda assim a penalidade pouco teve que apurar nesse último cadinho da humanidade antiga. A mesma confusão lavrava; as teorias pouco se adiantaram; a jurisprudência penal não teve um código seu, que a independentizasse dos outros ramos da ciência social; além disso penas atrozes ou desproporcionais se aplicavam; ações socialmente inocentes foram punidas; falsas relações morais foram arbitrariamente estabelecidas pelo poder: todavia, o processo melhorou, um proceder franco e nobre, digno da magnanimidade romana, presidiu às investigações da justiça, e a humanidade, aliás atropelada no furor das batalhas, não gemeu sob a suave proteção das leis do império.

Ela guardou-se para gemer nessa época posterior de calamidades, em que a heresia foi o primeiro dos crimes, a tortura a mais segura das provas, e a roda o mais suave dos castigos. A razão perturba-se ao contemplar tantos horrores acumulados nessas eras em que o fanatismo invadiu os tribunais, em que milhares de processos-monstros se intentaram, em que milhares de vítimas compraram nas labaredas a liberdade das crenças.

Eu falo, senhores, dessa época singular, em que por um extraordinário contraste estavam com crimes e desgraças envoltos todos os elementos da civilização moderna, dessa época de fermentação, única na história em que as tradições do império, os sentimentos do bárbaro, e as esperanças de uma religião nascente deviam amalgamados produzir alguma cousa nova, alguma cousa, senhores, que se ressentisse das tradições do império, dos sentimentos do bárbaro, e das esperanças brilhantes do cristianismo! Dessarte, senhores, a média idade nada mais foi de que um vasto laboratório onde religião, filosofia, direito, tudo devia depurar-se para reaparecer com feições diversas, animadas com toda a força esperançosa da mocidade; ela não foi senão o campo imenso em que o gênio da humanidade fez as experiências do futuro.

Assim, por isso que tudo se achava confundido e em elaboração, o cristianismo se elevou entre os povos da média idade como uma potência vaga, indefinida por abranger a sociedade inteira, perigosa e formidável por unir os poderes do século aos recursos inexauríveis da crença, por calcar a cruz da tiara sobre a usurpada coroa dos reis; de outra parte a escolástica baralhou todas as idéias filosóficas, constituiu-se a ciência do poder da igreja, o fantasma ame-drontador do espírito humano; a legislação desenvolveu todos os furores do fanatismo e da ignorância e o apoio do sacerdócio foi o braço secular do Vaticano.

Mas, senhores, a elaboração foi vasta, seus resultados foram extraordinários; e assim como o cristianismo devia reaparecer mais brilhante, menos usurpador, tendo só por abrigo e império o santuário da consciência; assim como a escolástica devia converter-se em filosofia, e deixar ao espírito toda elevação e ardimento de suas concepções, assim também mais lustrada, mais humana, menos caprichosa devia surgir a legislação no meio da sociedade moderna, sem penas atrozes, delitos imaginários, formas de processos bárbaras, torturas nas provas e fogo nos suplícios. Era preciso que a humanidade atravessasse nove séculos, que Bizâncio baqueasse ante o alfanje maometano, para que tamanhos resultados se conseguissem, para que a sociedade nova se declarasse emancipada. Idéias, filosofia, religião, tudo sofreu, como devia, uma reforma total, e a Europa dentro em pequeno prazo não se reconheceu a si mesma. Todavia, o sistema penal de quase todos os países ia ainda conservando os hábitos de sua antiga ferocidade: lede o liv. 5.° desse código que Filipe III deu à nação portuguesa, e vede como ainda no século XVII a jurisprudência penal vacilava incerta e sem bases fixas. Só a Inglaterra, apesar da barbaridade de seus estatutos penais, repousava sua segurança no bom senso de seu povo, e nas garantias que até hoje lhe oferece essa instituição preciosa que guarda a liberdade dos ingleses, o júri, planta que talvez mirre em outros climas, mas que ao menos é a mais frondosa e abrigadora dos campos de Albion. Mas enfim a filosofia moderna devia também regenerar a ciência da legislação. Montesquieu propôs a discussão, e as questões sociais foram dadas para a ordem do dia da Europa. Todavia no Espírito das Leis a síntese sufocou a análise; o gênio vasto de Montesquieu tinha apenas pairado sobre as sumidades da ciência, não tinha descido aos pormenores da especulação penal.

Cumpria observar as monstruosidades do processo antigo e extirpá-las; cumpria dissecar a ação do homem para relacioná-la com os interesses sociais, e ainda mais cumpria ir arrancar ao coração humano o segredo do delito, pesá-lo, combiná-lo, e formar a escala completa dos graus da penalidade. Realizar esse pensamento, o único regenerador da ciência, estava reservado ao gênio brilhante da Itália. Beccaria foi seu primeiro intérprete. O pequeno Tratado dos Delitos e das Penas, senhores, é um monumento; ali se inscreveram os programas de legislação futura, ali se apontaram as necessidades que tinha criado o século da filosofia.

Vede o espantoso efeito que produziu esse livro: Voltaire faz-lhe o comentário, Diderot, d’Alembert, Hume, Frederico, os Enciclopedistas todos o elevam às nuvens; Beccaria absorveu por um momento a atenção da Europa. Mas senhores, o livro de Beccaria, como vos disse, é apenas um programa. As. questões ali mencionadas, e outras ainda não apontadas deviam ter largo desenvolvimento. Filangieri, Pastoret, Brissot, Pagano, são os grandes homens da ciência; eles prepararam essa opinião pública que devia dominar na assembléia constituinte da França revolucionada, essa opinião formidável diante da qual foram por terra as colunas góticas do edifício antigo, essa opinião enfim que já tinha sido escutada pelo rei de Sardenha, pelo grão-duque de Toscana, e por Catarina — a Grande. E com efeito, senhores, essa opinião dominou na França; o código de 1791 é na verdade um fruto dessa época, feito com todo o entusiasmo do bem, com toda a inexperiência do mal: os legisladores eram os ardentes conquistadores da Bastilha! Além disso eles desconheceram a gradação completa das penas; foi o maior de seus erros. Mas no entretanto lá se elevava na Grã-Bretanha um homem que por si vale Filangieri, Brissot, Pastoret, e a assembléia constituinte. Esse homem, senhores, é Jeremias Bentham. Teorias novas e as mais completas que temos, nomenclatura riquíssima, unidade científica, íntimo relacionamento com as outras partes da jurisprudência, tudo devemos a este célebre jurisconsulto. Restaurador do grande princípio da utilidade, o filósofo inglês nem por isso compromete a certeza de suas doutrinas.

É belo na verdade vê-lo com a perspicácia imensa de seu gênio, com a valentia de sua dialética, examinar os elementos de um delito, ou a natureza de uma pena; é então que ele alardeia os recursos infinitos de sua inteligência.

Foi ele quem nos deu noções claras dessa, há tanto apregoada, mas nunca cumprida proporção dos delitos com as penas; foi ele enfim quem completou a teoria da prevenção dos crimes. Estudai-o, pois, que pela maior parte suas obras servirão de base para as preleções desta cadeira.

Depois de Bentham as nações estão habilitadas para legislar; as idéias de Bentham são até hoje as balizas da ciência. Os redatores do Código Penal de Napoleão, Fodéra, Rossi, Lucas e Bavoux, esclarecem certos pontos, e quanta luz não derramam sobre os progressos da penalidade! mas não formaram sistema novo nem teoria especial. Foi nessas mesmas idéias que se baseou o código penal francês; nas mesmas teorias se baseou o nosso código, que podemos com ufania chamar em alguns respeitos a última expressão de penalidade moderna.

Vindo por último, podendo aproveitar todos os esforços dos sábios europeus, promulgado, em um país sem castas, sem privilégios, onde nenhumas antecipações, nenhuns preconceitos se opunham ao domínio das idéias novas, o código brasileiro poderia ser o compêndio de todo o trabalho dos séculos, o ultimatum das esperanças da humanidade.

Mas faltou-lhe um dado, faltou essa experiência sem a qual não há perfeição. E como legislar para um povo sem saber seus usos e costumes, suas idéias e sentimentos? Como acertar em uma legislação nova sem um compromisso com o passado?

Sim, senhores, o passado era medonho; era a média idade no século XIX; o presente constituiu-se sumamente sereno, sobretudo pará um povo que ainda tem tantos hábitos de barbaridade, legado fatal de seus antepassados. A experiência, porém, vem vindo com o tempo e reformas se elaboram no seio da representação nacional.

Oxalá possam elas conseguir o grande fim de nossos trabalhos, conciliar o amor ao homem com o horror à impunidade! Até aqui a história, senhores. Mas eu vos disse que há também uma teoria. Poder-vos-ei eu, porém, neste momento, fazer à teoria o mesmo que fiz à história? Não. O estádio deste discurso é sumamente curto.

A teoria é vasta, porque ela é a razão de todos os fatos; e demais esse vai ser o objeto de nossos estudos em todo este ano.

Então é que vos guiarei no estudo profundo da natureza do crime e dos seus autores; então vos mostrarei quais as circunstâncias que absolvem o delinqüente, quais as que denunciam a perversidade, quais enfim as que elevam ou abatem o termômetro dos crimes. Então exporei a bela teoria das satisfações, e vos conduzirei ao intrincado e triste labirinto das penas; depois indicarei suas diversas aplicações, e por fim entraremos no oceano do processo criminal, tão vasto e tão agitado cujas margens opostas talvez não possamos divisar. Basta: eu vos tenho oferecido os dados precisos para julgardes da importância da ciência. Cumpre agora que fale de mim e de vós: mas que vos direi eu de mim? Vós todos me conheceis; ainda ontem vosso companheiro, elevado hoje ao magistério, não tive ainda tempo de sazonar minhas idéias: urge confessá-lo, e, com toda a singeleza d’alma, um dissabor me acompanha no meio de jovens tão esperançosos, é a consciência que tenho de minha debilidade intelectual, a desconfiança que nutro de minha idade, a convicção em que estou de que nunca poderei satisfazer à sinceridade de meus desejos, e aos ardentes votos que faço pelos progressos de vossa ilustração.

Que direi de vós?

Certo de vossos princípios de honra, fiado em vosso antecedente procedimento, só vos recomendo uma cousa, porque essa nunca se recomenda demasiado: — o estudo.

Convencei-vos de que só pelo aturado estudo é que se chega à perfeição, porque o estudo é a chave do santuário da ciência; e lembrai-vos enfim das palavras de um célebre professor: "só pelo exercício varonil do pensamento é que a mocidade pode subir à altura dos destinos do século XIX."12

12. Minerva Brasiliense, pág. 583.

Com todos os seus defeitos, e apesar deles, este discurso tem valor, como produção de um moço de vinte e dous anos. É muito superior ao afamado discurso de Álvares de Azevedo, pronunciado onze anos mais tarde em São Paulo mesmo, e que principia pelas palavras:

"Quando lá da mãe-pátria da civilização moderna… etc."

Em Bernardino Ribeiro a faculdade predominante era a reflexão; Álvares de Azevedo era mais poeta.

Bernardino teria dado um grande professor e provavelmente um notável escritor político.

Suas faculdades eram daquelas que demandam o tempo para enriquecer-se e prosperar.

Azevedo fez bem em morrer cedo; a sua melhor poesia foi sua morte mesma. Se continuasse a viver, ter-se-ia desmantelado irremediavelmente ao galopear tumultuário de seu século.

Sua poesia sentimental e aérea não resistiria aos embates do tempo. Produto enfermiço, deveria durar um momento, e assim aconteceu.

Eis por que prantear a morte de Ribeiro é explicável e lastimar o prematuro fim de Azevedo é um contra-senso.

O discurso do mestrinho tem defeitos, disse eu, e é verdade.

Aqueles erros sobre a evolução do Direito na Grécia, a que ele nega influência no mundo ocidental, aquela incompreensão de Licurgo e do gênio político dos Dórios, para não falar nas vistas estreitas sobre Roma e a Idade Média, são imperdoáveis.

A concepção mesma da pena como um pacto era já em 1836 um atraso. Mas há clareza, ordem e boa exposição no discurso; anima-o um sopro liberal bastante intenso; há, apesar das imitações, certa elaboração própria, conhece-se que se está ouvindo um espírito pensador.

Ainda hoje os lentes das nossas faculdades jurídicas, com exceção de muito poucos, não atingem aquela altura.

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