A REVOLUÇÃO PORTUGUESA DE 1820 – D. João VI no Brasil – Oliveira Lima

D. João VI no Brasil – Oliveira Lima

CAPÍTULO XXVII

A REVOLUÇÃO PORTUGUESA DE 1820

O autor das Notas dominicais andou
por Lisboa em 1816 e das suas observações, pontualmente exaradas cada semana, ressumbra
uma vez mais que a
questão do dia em Portugal era a situação de dependência do velho reino com relação ao novo.
"As duas partes da monarquia — notava o francês872 — acham-se mais em situação
de inimizade do que de frater­nidade, e na verdade é bem difícil administrar dois países que quase
não experimentam a
necessidade mútua de uma aliança e que, pelo contrário, possuem interesses opostos."

Para Portugal a questão era
principalmente de amor-próprio, antes mesmo de conveniência. O antigo reino sentia-se
completamente abando­nado:
decaído dos seus foros tradicionais, sem mais uma política sua, quase reduzido a não constituir sequer
uma expressão geográfica européia, pois se acreditava geralmente873
que Dom João VI deliberara não regressar mais e nutria a intenção de,
depois de esgotar Portugal, já tão depaupera­do em homens e em dinheiro, trocá-lo por uma das
possessões espanholas da
América, convertendo-se a dinastia bragantina numa realeza exclusi­vamente americana.874

O termômetro das esperanças regulava pelos
trabalhos do palácio da Ajuda: segundo se aceleravam ou estacionavam, tinham-se a volta por pró­xima
ou indefinida,875 e todos a desejavam,
exceção talvez feita de certa classe de proprietários que temiam novos impostos, portanto um acrésci­mo de encargos, com a presença da corte numa capital
arruinada, não só empobrecida.

Para o exército e o povo, aí se
tratava de vaidade, diga-se mesmo de pundonor; de interesse local para os lojistas e de
interesse geral para os armadores e vinhateiros, que estes sonhavam com o restabelecimento do
monopólio mercantil brasileiro. Devesse muito embora a abolição do ex

clusivo comércio náutico dos
portugueses trazer como resultado, segundo pensavam alguns economistas da
terra, desviar os capitais e os braços pa­ra a agricultura e as manufaturas,
suscetíveis de grande desenvolvimento. Não significava isto menos que um manancial farto e
fácil de lucros havia sido
estancado numa ocasião, para mais, em que tudo se conspirara con­tra a riqueza nacional, até a recrudescência das piratarias argelinas e o aparecimento dos corsários
platinos, acabando de esfacelar o comprome­tido
tráfico marítimo.

Portugal expiava só as veleidades imperialistas
do Brasil, e as com­pensações
que do Rio lhe vinham chegavam a parecer escárnio. Não se lembrara el-rei, em testemunho da benevolência à terra do seu
nascimen­to, de
ordenar que nas vestimentas dos seus criados e nos uniformes das tropas de terra e mar somente se
empregassem produtos das fábricas por­tuguesas?876
Entretanto abrira o mercado brasileiro, quer dizer que o en­tregara à exportação
inglesa, e quando lhe falavam no remédio essencial aos males da ex-metrópole, nesse
regresso que até lhe curaria as linfatites, fazia ouvidos de mercador. Não
carecia de atravessar o oceano para ter ar do mar: bastava-lhe a ilha do Governador, que de uma
caravela até ti­nha
a forma esguia. Das janelas do convento só se enxergavam as águas da baía, salpicadas de terras que
lhes quebravam a monotonia, e era tão gostoso
o peixe de mar servido no refeitório…

Insubordinação por
insubordinação, já que tanto se especulava com a de Pernambuco para o dissuadir de ficar, também em Portugal se cogi­tava revoluções, conforme andava
informado, e muito pior seria qualquer movimento numa terra esfomeada do que numa terra
abastada. E era fa­to
que avisos de prevenção tinham subido até o gabinete real, desacredi­tando a fidelidade portuguesa.

Depois, como de bom grado renunciar a uma posição
preponderante como
a que Dom João VI na verdade
ocupava e mais ainda imaginava ocupar na América? Maler não se enganava quando
escrevia877 que o ga binete do Rio, fascinado talvez pelos
hábeis artifícios de Barca, parecia mais interessado no papel que se desvanecia de estar
desempenhando no Novo
Mundo, do que disposto a retomar seu lugar entre as potências do Velho. "Em tempo ouvi a
este respeito as coisas mais espantosas da boca do falecido Bezerra. Este
coitado, todo entrevado, não trepidava em en contrar um novo Frederico Magno e
40.000 homens de guerra no Brasil com a mesma facilidade com que o Sr. conde dos Arcos
encontrou depois na Bahia um exército de Cipiões."878

O afastamento do rei
afigurava-se com boa razão a Portugal a causa capital dos seus infortúnios, que mais acerbos se
tornavam cada dia. À situação
crítica e inquietadora, classe alguma da sociedade escapava. Os negócios
apodreciam e a corte, quer dizer o soberano, notoriamente afei-çoado à sua ex-colônia, acumulava as medidas nocivas
aos interesses lusi­tanos
e acirrava, os ciúmes já azedos, colocando o exército português em pé de guerra
por amor ao Brasil, restabelecendo por três anos a contribui­ção de guerra, a saber o
quinto sobre todos os rendimentos e em todas as
cidades, por causa do Brasil, dispondo sucessivos embarques de forças armadas e equipadas para serviço no Brasil ou
serviço do Brasil.879

Em 1817 tinham seguido 6.000
homens mais para a campanha do Sul e logo se pediram mais 4.000, quando, ao
tratar-se de ida para a América, era necessário proceder a uma escolha individual porque
nenhum solda­do se
deixava convencer de alistar-se voluntariamente, correspondendo sem­pre ao convite, cedo transformado
em intimativa, um aumento nas deser­ções. Fora por isso mister
recorrer ao recrutamento forçado nas vilas e campos, a princípio discreto para não excitar
reclamações demasiado vi­vas, logo executado com gana, tendo sido revogadas as
isenções concedi­das por privilégios particulares. Ainda assim, de modo algum
se puderam arranjar
os 4.000 soldados: apenas foram, a 14 de agosto, 2.900 homens de infantaria e um destacamento de engenharia.

Para o tesouro todas essas despesas — expedição a Liorne para bus­car a princesa, bloqueio de Pernambuco, guerra de
Montevidéu — eram umas tantas sangrias dadas a um anêmico de último grau, que
só à força de expedientes se mantinha de pé. Para o empréstimo de quatro
milhões de cruzados
a que em 1817 houve que recorrer com urgência, só se encon­traram subscritores para milhão e meio, apesar do juro razoável de 6%, de uma taxa especial de garantia do seu serviço —
15%
sobre gêneros sal­gados,
queijos e manteiga de importação — e das instâncias da regência junto aos principais negociantes
e capitalistas de Lisboa. A operação ultimou-se porque a regência distribuiu à força o
restante do empréstimo por aqueles mesmos tomadores, que se consolaram da violência com a
idéia de que o dinheiro serviria também para se armarem fragatas desti­nadas a proteger o comércio português contra os
corsários de Artigas.

Em 1819 recusou porém a regência muito respeitosamente obtemperar outro
pedido real, de mais 5.000 homens, parecendo-lhe impossível re­crutar mais gente para um serviço
que a todos repugnava e quando no país, constantemente sob a ameaça da Espanha,
se reduzia o efetivo ar­mado ao estrito
necessário.

 

Em dinheiro não havia mais que
pensar; o que sobrava de negociantes ri­cos da capital transferia seus fundos
para França, para livrarem-se de no­vas exigências, e até falavam em mudança para lá,880 agravando com es­se boato de trasladação — depois
dos fidalgos, os mercadores — a acri-mônia popular. O povo, ainda que pobre, sente como se sua fosse a emi­gração da
fortuna. Já parecia demais.

Soldados que iam para o Brasil, lá ficavam como
colonos, se escapa­vam
dos combates; navio que para lá fosse, também ficava para guardar e alargar o
domínio pelo qual se perdera de amores o monarca fidelíssi-mo, cujo proceder para com Portugal, escrevia de
Lisboa Lesseps,881 pro­vava cada vez mais que lhe importava pouco seus destinos
e que somente buscava
utilizar todos os seus recursos para dilatar os estados reais na Amé­rica. Na realidade qualquer
movimento português tinha que ser um movi­mento separatista e justificado pelo
brasileirismo, de sentimentos e de in­teresses,
da corte de Dom João VI.

Quando um dia — tão patente se
fazia a tendência—Maler quisera car­regar a fundo sobre Barca a
propósito da expedição do rio da Prata e aven­tara como uma conseqüência
provável e funesta da política do gabinete do Rio leur
avant-poste
— foi-lhe friamente respondido que o
governo se achava preparado
para tal eventualidade, que se não assustava com ela e que de coração leve renunciaria à
Europa, ficando de todo americano}*2

Tão deliberado parecia o
propósito de despovoar de defensores e re­duzir à miséria extrema os antigos estados da monarquia,
em vez de acudir-lhes
o soberano com sua presença, que chegou a correr a ter-se por verda­deiro o boato de haver Dom João VI
feito apelo à
nobreza, autorizando-a a alienar seus morgadios
europeus e transferir-lhes o produto para o Bra­sil. Já os rendimentos da Real Casa e das casas
nobres passavam regular­mente além-mar e lá se consumiam,
indiferente o rei às representações da regência e às súplicas dos negociantes para se
estabelecerem em Lisboa um porto franco e um entreposto com os favores indispensáveis à navega­ção e comércio em crise. De seu lado o
recrutamento não só irritava os ânimos, como roubava à lavoura braços numerosos, quase
se tendo já por preferível, em muitos casos, deixar baldios os terrenos do que
cultivá-los com tanto ônus.

O agastamento assumira até a forma de cartas
anônimas dirigidas ao Juiz
do povo, em que se lhe declarava, em nome da população, que esta não sancionava disposições tão
vexatórias e tão adversas ao bem-estar do reino e se oporia a elas com toda a veemência do desespero.883 Vista a esta luz, a conspiração de Gomes Freire fora uma
manifestação não só antíestrangeira ou patriota como antidinástica
ou democrática. A opinião corrente
era hostil ao rei, protestando-se às claras que o receberia mal o país, que era seu mas
que ele tratara como inimigo, caso a junção do go­verno rebelde de Buenos Aires com Artigas desse em resultado a invasão do Brasil e uma
nova fuga da corte, desta vez para Lisboa.

As incertezas do momento traduziam-se nos boatos
mais desencon­trados: ora que a regência ia por sua própria autoridade e
iniciativa desti­tuir
Beresford e avocar as responsabilidades do mando, ora
que ia pelo contrário
resignar seus poderes nas mãos do que se poderia então com plena justiça denominar procônsul britânico. Na frase expressiva de Lesseps,884 a força da inércia e o risco da
destruição eram os únicos eixos que se
movia esse desgraçado pequeno estado.

Em certos meios já se ia até o
extremo de despedir toda suscetibilidade de independência e encarar sem relutância a união
ibérica, de ordiná­rio tão
antipática. Parecia mais digno este casamento de conveniência en­tre dois povos rivais, pondo
cobro a uma tensão sete vezes secular, do que o prolongamento da subalternação ao Brasil. No
fundo, a impedir qual­quer
reconciliação de interesses, senão de afetos, sobre a base da segunda fórmula, jazia insistente e irritante o problema do
monopólio.

A idéia ou mesmo proposta de
restabelecê-lo indiretamente, fazendo os gêneros brasileiros pagarem à saída, para qualquer
país que não fosse Portugal,
um direito especial igual ao que os tributaria se como antiga­mente tivesse Lisboa por escala,
não tivera aceitação.885 Seria restituir ao
Tejo a perdida primazia, mas às custas da
colônia elevada a reino.

Tornava-se preciso vingar a revolução liberal
para que se pensasse a sério na reconstrução do derrubado edifício econômico, invocando-se o princípio de que num governo
representativo a colônia não pode ser livre­mente tratada ou se não acha
exclusivamente à mercê do soberano, consti­tuindo propriedade comum da nação, sobre a qual exerce esta direitos e possui voz ativa: mais ainda, pois, como era o caso, as
cortes personifica­vam elas sós a
soberania nacional.

Seria injusto calar, a par dos
agravos de Portugal, a dificuldade da tarefa cabida a Dom João VI. Tollenare sem hesitar lhe reconhecia tal
ca­ráter, afigurando-se-lhe bem complicado ser a um tempo rei de
Portugal e rei do
Brasil e proceder paternalmente para com dois povos com desíg­nios tão antagônicos, um deles só
podendo viver de monopólio, o outro só respirando com sua supressão. Uma vez
conhecido o Brasil, mais se lhe radicou
então esta impressão.

 

Entre as notas tomadas na Bahia,
encontra-se a seguinte: "Das dificulda­des que oferece o belo tema da
prosperidade possível do Brasil, uma há que sempre me feriu vivamente, a da combinação de tal
prosperidade com a
do Reino Unido de Portugal. Todas as fórmulas que dizem respeito a semelhante harmonia aparecem-me numa confusão tão grande,
que me sinto invariavelmente sucumbir diante do esforço preciso para deslindar a verdadeira, quando disso
cogito. Existem sem dúvida princípios que de­vem servir a levantar o edifício da união:
quereria possuir talento e lazer bastante para pesquisá-los; mas renuncio a
tanto, pelo menos por enquan­to."886 Ao voltar ao assunto, já encontraria o francês
a solução do seu problema prejudicada
pela separação.

Num ponto só se ajustavam os
sentimentos coletivos dos dois povos, o português e o brasileiro: na antipatia à Inglaterra. Os
portugueses ran­giam
os dentes por ver um general inglês ocupando de fato o lugar do so­berano legítimo, que a regência
só nominalmente representava. Para os brasileiros constituía a Inglaterra o
óbice maior à continuação do tráfico negreiro, que interessava quase toda a
gente e que quase toda a gente — raríssimas eram as exceções — desejava
cordialmente ver prolongar-se.

"É como se fosse sua última
tábua de salvação — escrevia um sagaz via­jante.887 — Prima qualquer outra
consideração. Portugal e Espanha, Ingla­terra e França, Wellington, Bonaparte e o príncipe, pode
tudo ir parar nas profundas,
contanto que se não toque no querido tráfico, objeto dos seus devaneios na vigília e dos seus
sonhos no sono. Argumento algum tem po­der para romper esta ligação, excetuando o da força, que
é sempre uma me­dida
áspera e porventura pouco justificável, considerado o ciúme alimenta­do da nossa influência nos conselhos
nacionais, a qual todos, estadistas e mercadores, eclesiásticos e soldados, anelam por ver
diminuída. Nossa po­pularidade
está na verdade suspensa apenas de um tênue fio, porque a pe­culiar união comercial com a
Grã-Bretanha tem sido apodada de tão preju­dicial por alguns dos publicistas
da terra que, se o governo fosse de índole mais popular, sem dúvida de há muito ela se acharia
dissolvida."

Da Inglaterra provinha
justamente o mais forte empenho para que se não desatasse o laço que unia Portugal ao Brasil. Nas
suas reflexões diplomáticas888
dizia o marquês de Saint-Simon ser evidente que uma monarquia com um oceano de permeio
entre as suas metades, se achava vir­tualmente entregue a prepotência da
Grã-Bretanha, a qual dominava suas comunicações. Por isto instava tanto o gabinete de
Londres, para que se não
desligasse Portugal do consórcio, pelo regresso da corte. Que futuro
independente teria, porém o velho reino, esgotado, divorciado da sua di nastia nacional? A Espanha nem tempo lhe daria para qualquer
tentativa. Ainda o Brasil tinha por si um
desenvolvimento que cada ano mais se
acentuava, e melhor base se não poderia.oferecer a uma
forma autôno­ma de governo.

O embaixador em perspectiva de
Luiz XVIII pensava que à França pelo contrário, já que não visava a dominar politicamente, mais conviria
a desagregação do Reino Unido,
pois assim se lhe antojova no Brasil o ensejo de conquistar uma posição
econômica ao mesmo tempo que se lhe abria
em Portugal a oportunidade de recobrar, em benefício mercantil, a influência de antes do tratado de Methuen, que já fora ditado sobretu­do pela preocupação portuguesa de proteger as
possessões transatlânticas.

Por meio de uma aliança com a
corte de Lisboa, lograria além do mais a de Paris pesar sobre a Espanha e recuperar os
meios de ação que, segundo
Saint-Simon, "a situação atual torna mais necessários". Menos de quatro anos depois a França
intervinha com efeito além dos Pirineus, colhendo o duque d’Angoulême
os fáceis louros do Trocadero.

França e Inglaterra concordavam no entanto em considerar infensa aos seus interesses a união
ibérica, que a ambas reduziria de metade as possíveis vantagens políticas e comerciais. Em Portugal
era esta também a
solução temida pelo maior número e que o rancor nacional atribuía igual­mente ao Brasil, pois mercê da
Banda Oriental fora que chegara a concentrar-se na fronteira um exército espanhol contra o
qual o velho rei­no,
para garantir a sua autonomia, só enxergava armas, desproporcionadas na
quantidade, mas talvez superiores na qualidade, no valor discipli­nado do seu exército reduzido e
no desespero patriótico da sua população.

A Espanha tinha contudo
um objetivo mais remoto e menos singelo do que a anexação portuguesa, a qual seria um alimento demasiado
forte em seu estado de debilidade. A idéia do seu governo era sem dúvida em
primeiro lugar robustecer as reclamações feitas no Rio sobre a ocupação do território platino, mas não era menos levar a regência portuguesa a re­ter na Europa algumas, quando não muitas das tropas
que poderiam ir reforçar o exército em operações na futura Cisplatina.

Entre os liberais espanhóis,
naquele momento subjugados mas sem­pre alerta e conspirando, o
ideal ibérico era o da associação voluntária. Se intrigavam
em Lisboa, era para que aí se compreendesse a utilidade de resistirem juntos os dois
países aos muitos que combatiam os novos princípios. Uma vez de posse da administração os
liberais, no ano mesmo de 1820, a conveniência era grande de evitar que na
capital do reino vizi­nho,
continuando apegada às velhas instituições, se fundasse um centro de reação contra o regime
constitucional, quase republicano, de Cadiz.

Eis porque foram conspícuas
nessa ocasião as enzonas urdidas pelo encarregado de negócios Pando, devendo-se-lhes em boa parte atribuir a revolução portuguesa de agosto.889 A federação ibérica é de resto uma mi­ragem política que surge sempre
distinta ao vingarem na Espanha prefe­rências ultra-liberais e de outro lado avolumar-se em
Portugal o movimento democrático.
Moralmente é quase uma crise do instinto de conservação, pois que com essa miragem é
infalivelmente concomitante o afastamento nas duas nações da influência inglesa, de ordinário ativa
na Península e preponderante em Portugal.

A par do surdo trabalho espanhol
de solidariedade liberal, crescia a olhos vistos a rivalidade entre as duas seções da
monarquia de Dom João VI. A correspondência de Lesseps acusa em Portugal uma tendência pro­gressiva para a impaciência e o
desassossego. Já os soldados destinados ao Brasil recusavam embarcar sem que lhes fosse pago o
soldo devido de meses,
e a indisciplina dos militares animava a exacerbação dos civis. Cres­cia entre eles a audácia. Nas
esquinas apareciam pregados cartazes sediciosos e ameaçadores, que denunciavam claros intentos
subversivos.

Beresford, que era quiçá o único com
caráter e firmeza para conter a rebelião, se pudesse ter completa liberdade de ação, e
que na previsão dos acontecimentos
bem próximos, tinha em vão urgido a regência a fornecer ao governo de Fernando Vil os
6.000 homens pedidos para ajudá-lo a debe­lar a revolução de março, dispôs-se a partir de novo para
o Rio.890 Não só podia levar à paciência que o
soldo de suas tropas andasse tão indecorosa mente atrasado, como, movido talvez pelo governo
britânico, quis expor pes­soalmente ao rei a situação angustiosa e decidi-lo a vir impedir o
estalar de uma
insurreição.891 Ausente o marechal — que em qualquer caso estava prestes a retirar-se, pois já
fora nomeado governador em Jersey — desapa­recia
a garantia máxima da disciplina portuguesa.

No Brasil ia Beresford
descobrir uma corrente parecida de discórdia Havia mais de dois anos que Maler
anunciava para Paris892 que uma mar­cada antipatia se manifestava a cada passo entre
os batalhões brasileiros de regresso da expedição de Pernambuco e os regimentos portugueses che­gados com o marquês de Angeja, e que tinha ficado de guarnição à
cap­tai. Não tendo
o duelo entrado nos hábitos luso-brasileiros, as rixas toma­vam a forma freqüente do
assassinato e a forma diária do espancamento ambas muito ao sabor da tradição nacional.

Começaram os superiores por
tomar meias medidas, discursando às tropas, apelando para sua cordura, publicando sentenciosas ordens do dia Como nada disto fosse bastante e
o mal continuasse e até se agravasse o governador comandante das armas, na impossibilidade de
arredar per­manentemente os combatentes, tomou a resolução extrema de mandar apoderar-se e queimar os
porretes, instrumentos das agressões, sacudindo-se suas cinzas no mar.893

O mais inteligente historiador
do Brasil894 atribui pela maior parte os atritos à basófia
portuguesa, do seu renome militar e da sua ciência profissional, com a qual mal se
acomodavam a inexperiência e as descon­fianças brasileiras. Os oficiais do velho reino
desdenhavam dos do novo, negando-lhes foros de camaradas, e o general Vicente Arbués de Oliveira insistia até de contínuo na corte para que o acesso aos brasileiros
só fosse concedido até o posto de capitão, sendo todos os lugares do
estado-maior ocupados
por portugueses natos. As coisas chegaram a ponto de haver que adiar indefinidamente as
manobras para se acometerem de verdade e com vontade heróis de Talavera
e heróis de Pernambuco, para não bri­garem
pés de chumbo e pés de cabra.895

As idéias liberais estimulavam
instintivamente os sentimentos nati-vistas, que tinham por força que acabar pela separação dos dois reinos, mas eram sem comparação muito
menos hostis à realeza no Brasil do que em Portugal. Pessoalmente Dom João VI nunca deixou de ser popular,897 se bem que se não possa conceber que o Brasil
permanecesse regido pelo absolutismo ao
lado de Portugal constitucional.

Verdade é que para tal resultado
político no velho reino contribuiria mais do que a corrente idealista que
agitava a Europa em ânsias de refor­ma, o despeito, o ódio mesmo da colônia
emancipada. A subseqüente po­pularidade de Dom Miguel prova como o velho reino
era apegado ao seu tradicional
regime político, de que o pretendia libertar uma minoria ínfi­ma de ideólogos.
Após três quartos de século de constitucionalismo, ain­da se não tornou Dom Pedro
popular em Portugal: em vida, então, foi alvo de um concentrado rancor que explodia até depois de
instalado o go­verno liberal.

Mais acessível estava o Brasil
por todas as circunstâncias, às blandícias do credo novo. Grande ressentimento
produzia entre os brasileiros a situação privilegiada de que viam
no seu meio gozarem os portugueses, senhores do comércio, apesar de franqueado, por uma
norma arraigada e por uma disposição ao trabalho mais forte em emigrantes do
que nos da terra, e
senhores sobretudo dos serviços públicos que constituíam uma inclinação hereditária,
robustecida pela presença da corte com sua larga e ociosa burocracia.

Ameaçados ou pelo menos
invejados, os portugueses cerravam filei­ras, defendiam suas posições, e o bando dos assaltantes
tinha de recuar, falando com ira em preterição oficial e em direitos
patrióticos aos lucros e às dignidades. Já era ousadia, a desses reinóis, de virem
ao Brasil tomar desforra
do que lhes arrebatara com tanta justiça a trasladação da corte, seguida da elevação do Brasil a
reino… Os proventos e os cargos deviam doravante ser reservados aos filhos da terra, ou a graça
concedida ficava sem significação,
tornava-se irrisória.

Assim raciocinavam os pretendentes, que eram
legião, e suas ambi­ções
ecoavam num ambiente simpático, porque o interesse era de todos. Nas províncias — Handelmann o recorda com justeza — agravavam-se estes sentimentos de cru
nativismo com outro, que era o de bairrismo ou orgulho local ferido pelas
vantagens colhidas pelo Rio de Janeiro, que as capitanias estavam tão pouco acostumadas a
considerar capital do estado do Brasil, quanto aquela mesma cidade a julgar-se corte, ao que a erguera sua nova posição. Algumas das
províncias preferiam ainda assim ser sua terra
colônia portuguesa a ser colônia fluminense.

A esta impressão obedeceria aliás Dom João VI, quando, na impos­sibilidade de permanecer ele
próprio a tentar fazer frente ao furacão libe­ral, desencadeado no Brasil, com suas meias
medidas benévolas e astutas, decidiu que o filho ficasse para se arvorar em centro de agitação e
unifi­car as
veleidades dispersivas de independência, respingando os benefícios da separação e implantando a
coroa imperial onde sem ele teria brotado o barrete frígio. A intuição
do rei foi profunda e não lhe cabe dúvida, pois que consta da correspondência ulterior entre pai
e filho, gradualmente apre­sentada às cortes instaladas em Lisboa pela revolução vitoriosa de
agosto-setembro de 1820.

Dom João disse ao coronel Maler que as notícias que de Lisboa lhe trouxera Beresford
tinham sido para ele uma cruz, mas não se revolveu a regressar, que era o que em Portugal se
esperava resultasse da nova viagem do marechal ao Rio. O rei hesitava, usava de
subterfúgios e ensaiava um diversão — "três possible d’après le
caractère da Sa Majesté", comentava Maler para Paris — ao objeto da
missão acordada com a regência, incum­bindo provisoriamente o enviado de inspecionar e
reorganizar o exército brasileiro, e os estabelecimentos militares tais como hospitais e
armazéns

Para Portugal mandava-se entretanto algum dinheiro, a fim de ir sal­dando os atrasados do exército
português, e cogitava-se de uma carta re­gia abrindo no Brasil mais fácil e vantajoso
mercado aos produtos agríco las e industriais de Portugal com isentar-se de
todas as taxas as fazendas de
própria manufatura e sobrecarregar de imposto os vinhos estran­geiros.897

A situação tornara-se porém grave. A revolução de Cadiz
propagara-se moralmente; a agitação nas províncias era ainda maior do que em
Lis­boa; a solução Cadaval apresentava-se francamente, não parecendo repug-nar à duquesa mãe o papel de Luiza
de Guzmán, e da Espanha mais e mais se atíçava,
por meios ostensivos e secretos, a rebelião, constitucio­nal, muito embora,
porque ela própria continuara sendo uma monarquia, posto que ultraliberal.

Beresford — ele mesmo o declarou a Maler898
— viera lealmente pre­venir
Dom João VI de tudo isso e por debaixo dos seus olhos o quadro exato dos sofrimentos
e queixumes portugueses, no intuito de que o rei lhes valesse, começando por livrar da decadência e
do abandono a lavou­ra
e o comércio do velho reino. Se ao monarca contrariava tanto a volta, que mandasse em seu lugar o
príncipe real: a salvação podia efetuar-se sem essa condição, mas o penhor seria precioso das boas
intenções do soberano.

Esta última reflexão foi quando Beresford manifestou ao encarrega­do de negócios de França,
calando que se ocupava de promover a realiza­ção do alvitre. Nem Maler
lhe perguntou por mais porque, na sua frase, "le marechal h’est pas un
homme à questionner, il faut se contenter
de ce qu’il veut vous dire".

Dom João VI negou-se a deixar partir Dom Pedro, se bem que fosse conselho instante de Wellington
— e nenhuma opinião mais autorizada, ou que maiores probalidades
tivesse de ser executada — que o marechal devia volver sem demora a Lisboa a fim de parar os golpes
de uma revolu­ção
que já era inevitável, seguindo-o, porém, de perto o herdeiro da co­roa.899 Beresford foi o único a partir no Vengeur,
um dos navios da divi­são
do comodoro sir Thomas Hardy,
mas para encontrar consumado o movimento.

Soubera-se em Portugal que o
marechal era portador do resto da dí­vida às tropas e a informação fez apressar
o levante, pois receavam seus promotores que, pelo princípio de cessada a causa,
cessar o efeito, o pa­gamento
acalmasse a efervescência entre os soldados e apagasse o descon­tentamento. A Junta liberal nem
permitiu ao marechal desembarcar. Na barra mudou de embarcação e singrou para Inglaterra no
Arabela, dei­xando porventura uma única pessoa saudosa entre tantas que lhe
faziam a corte —
"la trés
jolie et fringante épouse" de um
funcionário portu­guês,
da qual era Beresford notoriamente amante.900

As doações e dignidades
conferidas pelo monarca ao comandante es­trangeiro do exército nacional, e bem assim as graças e
honradas dispen­sadas aos
seus partidários, de quem como era natural se ocupara exclusi­vamente o marechal, mais tinham
acirrado os ódios no meio indisciplina­do
e apaixonado do reino em rebelião.

Dom João VI
ficara contudo
crente de que a presença de Beresford, provido de bom metal sonante,
conciliaria a agitação, de que lhe tinham chegado as primeiras e inequívocas novas, a 17 de
outubro, por um brigue de guerra português, cujas comunicações com a cidade foram imediata­mente vedadas. Tão esperançado
andava o rei, que se não afligiu nem deu mostras de maior inquietação. Da ilha do Governador,
onde se achava e onde
lhe foram parar os despachos, veio no dia seguinte para São Cristó­vão, nada comunicando do ocorrido
à família e guardando segredo para a própria gente de sua privança.
As notícias espalhavam-se entretanto na capital graças à correspondência
trazida pelo navio de guerra britânico La créole, entrado na tardinha de 18.

Em contradição com sua índole
moderada e clemente, o rei tinha aver­são aos regimes liberais. Neste ponto, como observava Maler, deixava de raciocinar com seu bom senso do costume.
A expressão — constitucional — soava odiosamente aos seus ouvidos, talvez
porque "imbuído de certos princípios, quiçá fortalecido pela sua consciência",901
não formava sequer idéia
clara e precisa de uma monarquia que não fosse a absoluta, em cu­jas máximas fora educado.

Maler conta que mais de uma vez
tentara, desde 1815, inspirar-lhe idéias menos
desfavoráveis com relação à participação da nação no go­verno, expondo com jeito e
cautela as noções preliminares da essência e modalidades de um regime pelo qual se estava
dirigindo a França; mas que Dom João VI, o qual sempre o escutava com extrema bondade, repe­lia logo qualquer insinuação
desse gênero, pelo que com muito pesar e só com o receio de tornar-se importuno, cessara havia
muito o agente di­plomático
de discorrer sobre essas verdades políticas.

Acontecia agora que chegava a
ocasião decisiva sem que pudesse ser aproveitada pelos dois elementos que,
longe de se harmonizarem, se opu­nham irreconciliáveis. O soberano — descortinava Maler perfeitamente — sem um conselho d’estado ao qual recorrer, privado de
qualquer entidade intermediária
que lhe fosse dado consultar, só se decidiria na última ex­tremidade a dotar Portugal de favores que lhe
pareceriam enormes, na rea­lidade
paliativos que à distância e nas circunstâncias dominantes produzi­riam antes mal do que bem: sem esquecer que uma
sedição portuguesa daria o sinal de uma
perturbação perigosa no Brasil.

"Pessoas as mais distintas
por sua categoria, e cargos afirmam-me que nas províncias do norte, principalmente, existe um
fermento de des­contentamento
e mal-estar que é para temer-se; ouvi este desabafo melan­cólico a
grandes da corte, oficiais generais e altos magistrados; numa pa­lavra todas as pessoas cujas
opiniões são de valor, acham-se transidas de susto e julgam-se numa crise pavorosa."902

Dom João VI
era o único
otimista, e do gênero voluntário, que é o mais difícil de se deixar abalar. Bastava ouvi-lo
exclamar com alegria ao representante da França, quando se soube que o rei da Prússia se negava
a outorgar uma constituição ao seu povo: "Les journaux et
les amateurs de changemens
diront ce qu’il leur plaira,
mes nouvelles de Berlin sont positives et les choses
vont três bien."903

Para ganhar tempo, e também
porque no fundo percebia que a ques­tão entrara numa fase séria, ainda que
esperançoso do desfecho pela ação de Beresford —
apelo ao vigor alheio próprio de um temperamento pusi­lânime — o rei pediu por
escrito a opinião de várias pessoas: fora os dois ministros, onze, no número dois
fidalgos da sua casa, quatro magistra­dos,
o bispo e o intendente de polícia.

A sua finura como que se extraviara, e a sua
prudência tanto se desaprumara com o balanço, que degenerava nessa emergência na mais im profícua vacilação. Não se preparara bastante para o golpe, a que
fechara intencionalmente os olhos; o seu espírito não quisera encarar assaz a
con­juntura de uma
desunião da sua monarquia pela corrosão demagógica, como noutros tempos encarara a
partida para o Brasil, a que prontamente se acostumara, também porque lhe era simpática a
hipótese. Agora perdia dias em lamentar-se, condenar a ingratidão dos que tinham desnorteado o povo português. De fato
procedia como um nulo quem tinha perspicá­cia para traçar sua rota, quem levara as coisas do rio da
Prata até o desenlace
da incorporação da Cisplatina, com a legalização da qual ia rematar seu reinado
americano. Desta vez, porém, Maler notava com acerto
que Dom João
"experimentava uma sensação penosa e uma certa
relutância a examinar a questão na sua
verdadeira luz".

Força lhe era
entretanto acudir ao assunto. Dos pareceres pedidos — treze ao todo —
oito opinavam pela partida do príncipe real, solução que agradava mediocramente a
Dom João VI, posto lhe não desagradasse tanto quanto a do seu próprio regresso.
Imaginou porém arcar sozinho com a tempestade. O brigue Providência,
que a regência lhe despachara, devia singrar de volta a 29 de outubro.904
O rei na véspera encerrou-se na sua câmara, sem ouvir qualquer dos conselheiros
habituais, nem mesmo Thomaz Antônio, e redigiu sua resposta às comunicações de
Lisboa, mandando-a
para bordo alta noite por pessoa da sua confiança e velejando a em­barcação pela madrugada.905

Só se sabia então no Rio do
levante do Porto, estendendo-se a algu­mas localidades do Minho. A
gangrena não parecia ainda geral. Dom João declarara, com sua natural clemência, conceder anistia
geral aos revolto-sos e, com sua não menos natural
argúcia, autorizar as cortes convocadas pela anuência dos ex-governadores do reino, sem contudo esconder sua surpresa de tal convocação, incompetente
sem o concurso da sua real grandeza.

Julgando poder conter e dirigir
o movimento — ilusão comum nos governantes, que se repete em cada crise constitucional — ordenava que,
terminadas as sessões da assembléia, lhe fossem apresentadas as queixas da nação, para que as remediasse, e as propostas
formuladas, para que as sancionasse a coroa.
Depois partiria ele, ou um dos seus augustos fi­lhos, a aplicar as resoluções adotadas, com a condição todavia que pelas notícias
subseqüentes o soberano adquirisse previamente a certeza de que semelhante
deliberação não exporia a perigos a dignidade real.

A prevenção era prudente, pois
acontecia que no Rio mesmo essa dig­nidade se estava desprestigiando com uma rapidez quase
fulminante. Conta Maler906
que a população, de respeitosa que era da realeza por natureza e por hábito, se tornara
insolente e turbulenta desde que se inteirara dos primeiros acontecimentos de
Portugal. Choviam sarcasmos e borbulha-vam pasquins
ridicularizando a confiança manifestada pelo rei no resta­belecimento da ordem e das formas.

Manifestada, melhor se diria
aparentada. O silêncio real, observado para com o próprio príncipe Dom Pedro,
denunciava vacilação mais do que astúcia. Na incerteza das coisas, Dom João
refugiava-se na inação, fiava-se na providência e achava ganho nas demoras. Quando a 12 de no­vembro o alcançaram, com uma
travessia de 44 dias, no brique de guerra Infante Dom Sebastião, as novas
do sucedido em Lisboa, ficou porém su­cumbido. A fatalidade podia mais
do que o fatalismo. Maler participava ao seu chefe em Paris907
que se retirara da última audiência deveras pe­saroso, porquanto o rei estava de tal
forma impressionado e abatido, que era ponto de dúvida se conseguiria naquela
condição deliberar e agir de modo
conveniente. A finura ficara anulada pela fraqueza.

Não querendo imputar ao rei as
responsabilidades, culpava Maler o seu gabinete — uma coisa que bem
sabia não existir — de ter fechado vo­luntariamente
os olhos ao dissabor progressivo da nação portuguesa, desprezado o aviso da revolução espanhola, permanecido perplexo ante a revolução portuense e
de todo descoroçoado com a notícia da insurrei­ção lisboense.
Tomar um expediente, filosofava o encarregado de negó­cios
de França, é sobremaneira difícil quando nada está preparado, tudo falta e se reputa impossível qualquer tentativa,
e esta é a triste situação do governo.

Tão evidente era, que dela se ia
apercebendo perfeitamente o público: também os cartazes e as diatribes multiplicavam-se
espantosamente. Tudo indicava
que não tardaria a explosão do vulcão sobre que se repousava. Medidas tranqüilizadoras, ninguém
as tomava no meio do torvelinho, ao rei competindo aliás adotá-las.
Nenhum sistema se procurava seguir no Paço, nem se organizava um governo forte para conjurar os
apuros. O es­petáculo era lamentável, de uma tão singular apatia que não
logravam sa­cudir os inimigos já confessos da situação, muito menos os que
ainda an­davam à espreita de um ensejo para lançarem o repto. Na verdade porém o poder só exibia indeterminação, sujeitando-se a ser
dominado pela for­ça
dos acontecimentos. Maler surpreendia-se com razão de
que nem se efetuassem
prisões entre os que de noite afixavam boletins incendiários ou durante o dia parolavam em termos sediciosos.

Em Lisboa calculara-se mais
reação por parte do trono. Era até voz geral908 que Dom João VI solicitara da Inglaterra o
auxílio armado esti­pulado pelos tratados de aliança e de garantia para as
graves emergências nacionais.
De fato a política britânica buscava, como está nos
seus hábi­tos
inteligentes, tirar o máximo proveito de circunstâncias que não favoneara, antes aborrecia.

Se a diplomacia francesa, na esperança de pôr de
lado os ingleses e auferir
as vantagens de que estes se achavam na posse, mostrava certa sim­patia pela revolução liberal
portuguesa, a diplomacia inglesa por sua vez desviou do movimento qualquer
ameaça. Sacrificando seus ressentimen­tos, ela até empregou no Rio esforços — os quais deixava que se divulgas­sem em Lisboa — para o rei aprovar
a atitude dos liberais, que assim es­perava arregimentar do seu lado. A reunião à Espanha —
provável no ca­so da corte resistir, ou dos constitucionais se não contentarem
com meias reformas, as únicas autorizadas pelo príncipe que viesse representar
o so­berano, ou do duque de Cadaval não alcançar subir ao trono malgrado as muitas simpatias de que o aureolavam e o sério
partido de que dispu­nha — era o
desfecho que mais temia e mais desagradava ao governo de Londres.

 

Esta perspectiva se foi porém dissipando por si à medida que se ia afirmando o vigor da revolução,
apoiada como estava sendo nas classes conservadoras e nas ilustradas, nos proprietários, nos
comerciantes, nos professores,
no clero menor, e apenas hostilizada por alguns fidalgos, en­quanto o povo não
perdia suas ilusões a respeito. Em vez da junção à Es­panha por mais que a decepção
custasse aos que com tal pensamento oculto tinham, sobretudo para lá da raia, instigado o movimento,
no que se pen­sava era na reconciliação com o Brasil, uma reconciliação imposta
e pau­tada pela recolonização.

A diplomacia portuguesa
agitava-se no entanto por conta própria, sem esperar pela distância
instruções do Rio, desde que fora informada dos su­cessos revolucionários. Debelar a
revolução espanhola era em grande parte debelar a revolução portuguesa, e para
debelar ambas, que tinham operado pode dizer-se de concerto e se disporiam com certeza a
resistir aliadas, era indispensável
aos partidários do velho regime recorrerem à
intervenção es­trangeira.
Os recursos nacionais apareciam insuficientes ou falazes.

Marialva, centralizando, como antes
dele, com a autoridade do seu talento e serviços, costumava proceder Palmela, a direção na Europa da política externa portuguesa, não
se descuidou de enviar sobre o assunto circular às outras missões portuguesas, e em pessoa
procurou em Paris le­var
o governo francês a iniciar uma cruzada legitimista, mandando para Portugal
soldados e navios. Só conseguiu todavia o despacho de
um na­vio de guerra
para Lisboa, em missão expectante:909 faltava ainda no go­verno quem quisesse pôr em
prática as fantasias reacionárias de Verona.

O ministro em Londres, D. José
Luiz de Souza (sobrinho de Linhares e Funchal, mais tarde conde de Vila Real) procurara logo lord Castlereagh911-para obstar ao reconhecimento do
governo constituído em seu país, antes de sancionada a legitimidade dele pelo rei fidelíssimo:
tal respondeu o mi­nistro dos Negócios Estrangeiros da Inglaterra ser a firme
intenção da Eu­ropa coligada.

Ponderou-lhe mais D. José de
Souza a necessidade de ligar o governo constitucional de Madri por igual declaração, que teria
a dupla vantagem de
fazer esmorecer certas esperanças mais veementes da Junta portuguesa e limpar a honra da Espanha comprometida
pelos conluios do seu agente diplomático em
Lisboa. A esta parte replicou Castlereagh
referindo as ob­servações
que a respeito transmitira por intermédio de sir Henry Welles-ley, embaixador junto ao rei católico, com a
declaração de considerar ata­que contra a integridade dos domínios portugueses, cuja garantia assumi­ra a Grã-Bretanha, qualquer excitação à rebelião: do
que entretanto a
Espanha se tentara ilibar com os maiores protestos, não obstante o en­carregado de negócios Pando haver participado em
nota à regência do rei­no a marcha
de tropas espanholas para a fronteira portuguesa da Galiza
e constar tal fato da proclamação da Junta do Porto de 2 de setembro.

Não anuiu
contudo o gabinete britânico à sugestão, que seria conse­qüente com sua negativa de
reconhecimento, de mandar retirar de Lisboa o encarregado de negócios Ward,
assim cortando todas as relações com os rebeldes. O caráter diplomático deste agente fora
suspenso, mas a sua partida
seria inconveniente, tornado demasiado patente a parcialidade in­glesa pela causa do soberano
português e justificando de antemão qual­quer
futura acusação de pressão estrangeira, portanto impopular.

No interesse combinado de Dom João VI
e da nação
aconselhava-se uma
calculada isenção, a começar pela abstenção do emprego de forças militares e navais contra os
revoltosos, o qual redundaria em proveito dos partidários da união ibérica e adversários da
autoridade real. Tampouco deviam as relações comerciais sofrer com as alterações políticas. À
diplo­macia
portuguesa fazia-se mister admiti-lo, em vez de se
estar mexendo no
continente, a reboque de Marialva, para provocar uma
intervenção ar­mada de todo ponto
imprópria e ineficaz, quando factível.

Nem podia a Inglaterra tolerar
que, na sua falta, outros pensassem em entremeter-se na sua esfera de influência. A
independência da coroa portuguesa no lidar com a revolução cumpria que fosse escrupulosamen-te respeitada, e Dom João mesmo
provaria que entendia tratar do caso sem interferências estranhas. De resto, para qualquer
expedição, dependia o
gabinete da votação parlamentar de um crédito, que seria muito difícil obter visto o seu êxito problemático.911

Sob o pretexto, que em breve se
tornaria um princípio político seu, de repugnar-lhe o processo das intervenções, a Inglaterra
esquivava-se pois a tudo, a fornecer contingente militar ou naval, ou
subsídio pecuniário contra o movimento
constitucional no velho reino.

Souza referiu em ofício a
Marialva912 sua entrevista com Castlereagh,
fazendo chegar aos
ouvidos do marquês estribeiro-mor, todo açodado no seu absolutismo proselítico, a linguagem do bom senso: que não justifi­casse, com agressões
antipatrióticas, quer o partido dos que proclamavam querer apenas fazer Portugal independente
do Brasil, eventualmente imo­lando a dinastia, quer o partido dos que manobravam para a reunião à Espanha, aconselhada pela geografia e pela política.

Era preciso, no dizer do
ministro ao embaixador,913 não exacerbar os
ânimos e não cercar
de dificuldades a ação do rei ou do seu lugar-tenente,

 

que viesse repor as coisas em ordem na seção européia da
monarquia, e cujas
intenções honestas e benévolas se deviam ir encarecendo. A Ingla­terra iria
mesmo além daquela política negativamente favorável a uma in­teligência direta entre o soberano e súditos: desmancharia o efeito da de­claração
conjunta, vaga como resultou, de Troppau, e em Laybach se in­geriria, para anulá-los, nos planos de
Antônio de Saldanha da Gama, que dos três plenipotenciários portugueses — Marialva, Lobo da Silveira e ele — nomeados para o que desse e
viesse em matéria de congressos, foi, de combinação
com os outros dois, o único que ali se apresentou.

A Inglaterra usara com o
representante português de uma linguagem sincera. A lord Stewart, embaixador em Viena, que recebera
ordem de achar-se em
Troppau quando ali se encontrassem os soberanos
aliados, mandou lord Castlereagh instruções para
que se deixasse ali em paz a re­volução portuguesa, no próprio benefício da conservação
da autoridade de Dom
João VI, cuja presença só por si daria satisfação às queixas e co­locaria de novo
a nação nos seus eixos, sem que se avivassem suspeitas nativistas e se abonasse a
opinião dos que pretendiam querer a Inglaterra conservar Portugal numa dependência indecorosa.914
Longe do tumultuar das
paixões e do pugnar dos partidos, mais avisadas providências ainda poderia o rei ir entrementes
arquitetando para defrontar com a situação.

A opinião pública britânica já era
no conjunto liberal bastante para festejar as mudanças políticas de que estava sendo teatro
a Península Ibé­rica,
e ao gabinete conservador não convinha criar, mormente de motu
próprio, mais
tropeços à sua gestão. Em Nápoles também o constitucionalismo obtivera uma vitória, que
mais efêmera seria que as outras, e o ministro Acourt não fora retirado, se bem que lhe não tivessem expedido novas credenciais.

Lord Castlereagh
previa acertadamente que Dom João VI se adapta­ria à ordem de coisas
dominante em Portugal e tratava de contemporizar, aconselhando até D. José de Souza
a responder à circular de Hermano Braamcamp, ministro dos negócios
estrangeiros do governo liberal de Lis­boa, ao corpo diplomático português, nos mesmos termos
que o encarre­gado
de negócios britânico havia escolhido, para que se desse a conhece: a harmonia que reinava entre as
cortes de Saint James de São Cristóvão Souza não julgou todavia dever ir além de uma carta
particular, declinan­do
entrar em relações com a Junta antes de receber instruções do Rio de Janeiro.915

Fora D. José de Souza quem havia
recebido o maço de exemplares da circular e o remetera a Marialva,
que o devolveu sem lhe querer dar destino. O marquês estribeiro-mor
não se ajeitava muito com essa política de conciliação e não só se recusava a responder a
qualquer comunicação de
Lisboa, como solicitava por nota a suspensão das funções do encarre­gado de
negócios francês em Lisboa — o que o ministro barão Pasquier
verbalmente lhe
prometeu — e não cessava de insistir na intervenção. Che­gou a despachar Navarro de
Andrade para Troppau, onde
os soberanos aliados iam "consertar algumas medidas relativamente aos
sucessos que tem
tido lugar no decurso deste ano no meio-dia da Europa".916

Em corte alguma, das principais
pelo menos, permanecera inativa nessa crise a diplomacia portuguesa. Para evitar a união
ibérica podia bem contar-se com a Inglaterra, mas a concurso da Rússia parecia igualmente
precioso pelo que
significava por si, e pela preponderância que nos anos de 1815
a 1825 essa potência exerceu sobre os outros
países da Europa. Por isso logo que o movimento do Porto respondeu ao levante espanhol, o
ministro em São
Petersburgo, visconde da Lapa, tratou de induzir o governo do
czar a assumir o
compromisso de proteger a integridade portuguesa contra qual­quer ameaça de dilaceração por
parte da Espanha revolucionária.917

Invocava o diplomata português a
assinatura coletiva dos tratados de Viena que, no seu dizer, continham implícita uma
garantia geral e recípro­ca dos territórios respectivos das potências signatárias, assim como da
le­gitimidade e
independência dos seus governos. Na sua resposta, a chance­laria russa, arredando de vez os
ajustes do tratado de 1799 entre o Impé­rio e Portugal por terem sido ipsofacto
anulados em 1808 — não se reno­vando suas estipulações e dando Portugal as mãos à
Inglaterra, então no campo
adverso à Rússia — chamava a atenção da legação
portuguesa pa­ra a teoria eminentemente conservadora sustentada nesta matéria
pelo go­verno de São Petersburgo.

A Rússia propusera com efeito em Aix-la-Chapelle uma garantia ex­plícita, universal e recíproca a
fim de converter num fato material e incon­testável o espírito das transações que constituíam o
direito público euro­peu.
Esta proposta não estava contudo ainda aceita e a
chancelaria de São Petersburgo
rejeitou ligar-se por um acordo categórico, mas isolado. O des­pacho mandado em julho de 1820,
antes da revolução do Porto, ao barão de Thuyll, ministro no Rio de
Janeiro, rezava que a Rússia oferecia a Por­tugal, no caso de agressão por parte da Espanha, o mesmo
apoio moral que dera a esta por ocasião
da agressão portuguesa no rio da Prata. A mal
disfarçada ironia da resposta contida em substância nesse despacho, indica que não passara até então o mau humor
russo, cultivado por Tatischeff
e pelo governo de Fernando VII.

 

Antônio de Saldanha levaria para Laybach o seu plano particular, de mais vastas proporções, e em que
entrava Marialva. Consistia em mover o diretório
europeu a agir em nome dos seus princípios no benefício da monarquia portuguesa, opondo-se
pela força às idéias revolucionárias pro­pagadas no velho reino e iniciando em Portugal a tarefa
salutar da repres­são
e restabelecimento da ordem na Península, "pois que daquele reine é que se
devia trabalhar para o sossego e quietação da Espanha".919

O provecto plenipotenciário
português conversara com Capo d’Istria e Metternich,
que ambos julgavam o momento azado para medidas ge­rais, tendo Metternich adotado este modo de ver do ministro de Estran­geiros
da Rússia depois da revolução de Nápoles cujo contágio era para recear nos domínios italianos do
império austríaco. Viena acedera já a que coubesse à França na Espanha o papel que à Áustria cabia
na Itália, de abafar todo movimento sedicioso, surpreendendo-se o chanceler de
que a essa política
ativa preferisse a Inglaterra a inação, sobretudo por ser de temer a reunião de Portugal à Espanha.

A
coadjuvação da Grã-Bretanha era necessária, mas esta potência cujo assentimento as outras não
podiam dispensar, esquivava-se de mos trar hostilidade a movimentos que
não fossem puramente republicanos Já no
decorrer de 1820, querendo a Rússia arrastar as nações
aliada a uma intervenção anticonstitucional
na Espanha, tendente a consolidar a paz
européia, recusara o governo de que Castlereagh fazia
parte, terminantemente associar-se a qualquer demonstração militar ou sequer
política naquele sentido, a qual só
poderia originar uma nova deflagração, em seu entender.

A
Inglaterra, que argumentava historicamente com os males enormes resultantes da interferência
estrangeira nos negócios da França em 1792 achava-se então no período de voluntário
retraimento, de intencional isolação, indecisa entre a combinação autocrática que tutelava o continente
e a inclinação liberal que prevalecia a meio do seu povo: uma incerteza de que em breve a resgataria o
gênio ousado de Canning, colocando-a resolutamente à frente do movimento
constitucional e oferecendo combate à reação entronizada na Europa e disposta a avassalar de
novo a América Tampouco
queria a França naquele momento envolver-se nos negócios da Península: não era chegado o
instante em que
Chateaubriand julgaria com a expedição do duque d’Angoulême
dar lustre imperecível às arma bourbônicas.

Outra
razão pela qual a Inglaterra se negava a intervir direta e ativamente nesse caso, era a de
pretender por tal meio compelir Dom João VI a voltar para Portugal. Não contando o
rei com auxílio estrangeiro para esmagar a revolução, força lhe era esperar acalmá-la com
sua presença. Ora, o ensejo aparecia afinal em extremo propício à realização
daquele desígnio constante da política inglesa no tocante aos negócios portugue­ses, pelo qual se sacrificara
até Strangford: não podiam de boa mente perdê-lo em Londres.

Por esta circunstância especial, e também pela
razão geral de que o verdadeiro
protetorado exercido sobre o velho reino não devia comportar co-participantes, desconvinha pois à Inglaterra que
fossem os negócios da Península
tratados no Concresso, ou melhor reunião soberana de Laybach. Chegou mesmo a declarar não ter ali plenipotenciário, apesar de se achar
presente e tomar parte nas conferências lord Stewart,
e a aconselhar An­tônio de Saldanha a retirar-se para Londres e lá aguardar o
desenrolar dos acontecimentos.919

De outro lado Bernstorf
sugeria ao plenipotenciário português que ficasse, o que eqüivalia a
dizer continuasse à trabalhar no sentido da in­tervenção estrangeira. Tratou
Antônio de Souza efetivamente de alcançá-la nas audiências em que foi recebido pelos imperadores
da Áustria e da Rússia, em ambos os soberanos encontrando inequívoca boa
vontade no prestarem
apoio à causa dos tronos contra os povos. Esbarrava porém
com a frouxa
disposição da França, "que se desculpava com a sua situação interior"
— a qual o recente assassinato do duque de Berry por Louvei patenteara incerta e agitada — e
com a pouco disfarçada repugnância da Inglaterra, ‘ ‘que não só não queria
intervir, porém que quase protestava contra
tudo que se fazia a respeito de Nápoles".

Escrevia a este propósito Lesseps920
que o afastamento da Inglaterra das cortes reacionárias e sua adoção de um
sistema de neutralidade tinham ferido o espírito dos liberais portugueses,
insinuando ao mesmo tempo que a França obrara mal em aceder em
tese à repressão, posto que lhe levantan­do restrições na prática. Bastava
contudo isto para desmanchar o concerto das nações aliadas, cuja falta de união ficaria
publicamente demonstrada no verificar-se uma mediação parcial e poderia assim causar, nas
próprias palavras do
czar Alexandre, maior mal do que bem à causa geral.921

A fim de não acirrar os ciúmes
da Inglaterra e na falta de instruções positivas e terminantes da corte do Rio, retirou-se no entanto Antônio de Saldanha de Laybach sem lograr
que as três grandes potências ultra-conservadoras — Áustria, Rússia e Prússia
—, as mais empenhadas em suprimir todo germe demagógico, ‘ ‘adotassem uma resolução peremptó­ria acerca dos negócios de Portugal".

 

Sentiam-se aquelas outra nações
tolhidas sem o assenso da França e da Inglaterra, desta
sobretudo, da qual, no dizer do plenipotenciário, Portugal era
considerado um satélite. Referia Antônio de Saldanha que se não afoitavam as poderosas
cortes do norte a "ingerir-se nos negócios deste Reino, com o receio de que aquela potência
julgue uma tal interven­ção como um ataque feito a sua propriedade. Tal é
a triste situação a que nos achamos
reduzidos."922

Tendo ido a Paris ver Marialva, esteve D. José de Souza com Antônio de Saldanha no regresso de Laybach e, procurando saber deste se haveria in­tervenção, ficou certo de que ela
se não daria, não tanto pela distância do foco sedicioso quanto pela impossibilidade de
promover-se contra Portugal uma liga reacionária à qual faltasse o concurso britânico. Resignaram-se
as nações aliadas a
aguardar em Portugal o tratamento pela sugestão das me­didas violentas tomadas
contra Nápoles, julgando igualmente mais acerta­do não proceder desde logo contra a Espanha para
não "aumentar os males que ali se estão sofrendo, e comprometer mais a pessoa d’el-rei".923

O governo britânico, assumindo
uma atitude que nada tinha de am­bígua, declarou em despacho circular aos governos estrangeiros
que repu­tava
perigosa a ingerência das potências coligadas nas transações interio­res dos outros estados,
protestando que não aderiria às medidas que a tal respeito se pudesse ter em vista. Em conversação
com Souza, admitiu lord Castlereagh sem dificuldades que a circular
houvesse inspirado alguma con­fiança em Lisboa aos chefes do partido revoltoso, fortificando-os na
justa crença de que
a Inglaterra só se julgaria obrigada pela estipulação dos tra­tados quando se tratasse de
livrar Portugal de uma agressão estrangeira, não para rebater um levantamento nacional.

Deplorou o ministro de
Estrangeiros da Grã-Bretanha na aludida en­trevista com D. José de Souza,924
que a publicidade dada à declaração das intenções dos aliados de abafarem as revoluções levadas a
cabo por fac­ções
armadas, e a referência feita aos sentimentos do governo inglês no assunto, tivessem posto este na
necessidade de dirigir circular em questão, que
o prendia nas suas operações.    .

O soberano de Portugal e Brasil
tampouco desejava, antes repudiava uma intervenção da Santa Aliança no seu reino europeu. O
monarca que fúteis
compiladores de memórias, como a doidivana duquesa de
Abrantes, expuseram
quase imbecil aos olhos da posteridade, e de quem escar­neceu sem dó, glosando anedotas
postiças, um historiador cheio de talen­to e também de prevenções como Oliveira Martins,
compreendeu o que muitos
políticos, julgados tanto mais atilados do tempo, não quiseram perceber, o que escapou a Metternich como a Chateaubriand, a saber, que com a intervenção estrangeira apenas lucraria a causa
popular.

Antônio de Saldanha andara
avisadamente retirando-se de Laybach. A circular expedida do Rio de
Janeiro a 30 de janeiro de 1821, concernen­te à revolução portuguesa, dizia expressamente aos
representantes diplo­máticos
não ter Dom João VI "por agora a intenção de
empregar meios de coação nem de pedir socorros militares aos seus aliados para
sujeitar os seus
vassalos extraviados". A Inglaterra não ficava excluída dessa "re­solução final" que Castlereagh dizia em Londres a D. José de Souza não haver ainda sido tomada pelo rei
sobre o sistema que se propunha seguir.

A brandura
ingênita e o claro senso político de Dom João VI acham-se estampados naquelas palavras.
Os representantes diplomáticos, Marialva e Antônio de Saldanha, estavam
sendo mais realistas do que o rei. O que este queria era tão somente que a Inglaterra mantivesse
com relação à Es­panha a sua obrigação de
garantia de integridade da monarquia portu­guesa,
e a isto de bom grado anuía o governo de Londres. Havendo-lhe Souza figurado a hipótese de mandarem os espanhóis tropas contra Por­tugal como uma em que cabia a Dom João reclamar
positivamente o efei­to do
compromisso britânico, nada objetara lord Castlereagh, alegando até que sobre este ponto muito tempo havia que sir Henry Wellesley tinha levado
uma comunicação oficial ao governo de Madri.925

Este era porém
um caso de ameaça à independência portuguesa. Com respeito aos seus súditos, sobre que se exercia a sua soberania, que o abade de Pradt
desrespeitosamente tachava de itínerante (souverai-neíé voyageuse), achava o rei de Portugal e Brasil preferível,
mais decoro-so,
mais digno e mais hábil, agir livre de sugestões e de socorros de fora: "… S. M. se não determinará a
recorrer a meios extremos e violen­tos
senão quando se achem esgotados todos os de conciliação, e quando se
vejam frustradas as diligências que intenta praticar para atrair por concessões justas, razoáveis e compatíveis com o
decoro e segurança de sua real coroa os ânimos daquela gente extraviada, não
sendo de esperar de corações de
portugueses um tal excesso de infelicidade e de
ingrati­dão".937 Dom João VI está todo ele nestas nobres
palavras, de estadista e de homem de
coração.

Elegendo tal norma de proceder,
o rei ia mesmo de encontro às idéias do seu conselheiro habitual e habitualmente escutado,
Thomaz Antônio, cujo projeto imediato, ao chegarem ao Rio as notícias da
revolução por­tuguesa, fora obter para combatê-la o auxílio marítimo da Rússia
— que ele acreditava
não lhe seria negado pelo czar Alexandre, o pacificador da Europa e árbitro dos seus
destinos — no caso de se malograrem em Lon­dres
os esforços de D. José Luiz de Souza.927

O visconde da Lapa destruiu
porém logo essa ilusão, fazendo ver ao seu chefe a quase impossibilidade de alcançar o
que se almejava da pane do gabinete de São Petersburgo, pouco inclinado a entrar nesse terrena
em conflito com a Inglaterra, protetora reconhecida de Portugal. Tudo| conspirava contra: além das
contínuas ausências do czar da sua capital dificultando quaisquer inteligências, os negócios
italianos, mais próximos e mais prenhes de perigos ainda, absorviam a atenção geral das grandes chancelarias, as quais, sobretudo
por causa deles, não tinham no congres­so de Troppau, em 1820,
dedicado particular cuidado aos negócios portu­gueses, limitando-se a
declarações teóricas de resistência ao espírito de re­volta e salvaguarda dos interesses da legitimidade.

Por isso e por intuição política
sua escrevia, com muito acerto, o mi­nistro português na Rússia aquilo mesmo que com
diferença de dias man­dava
no Rio Dom João VI exprimir ao seu corpo diplomático por pala­vras diversas: "Chamar forças
externas para coadjuvar a expulsão de ini­migos externos, é o que a história apresenta a cada
passo; porém para sos­segar
as desordens internas é sempre arriscado… A massa da nação é ain­da sã, e
sendo a força moral a que se deve procurar encaminhar, não pos­so ocultar, que
o emprego da força marítima, só poderia servir para a irri­tar, e conduzir aos desvarios a que a desesperação
pode arrastar."928

O conselho era bom e tanto mais
merece ficar assinalado, quanto em Paris se estavam celebrando aqueles conciliábulos
de representantes conspícuos
do Reino Unido, Marialva à frente, que o Correio Braziliense ver-berava com muita acrimônia. Hipólito bem supunha o plano
de reação desaprovado na corte do Rio, mas imaginava mal que o diretório de di­plomatas em Paris estava tomando
a dianteira à chancelaria fluminense e impondo o seu modo de pensar, quando na verdade a
inspiração partira simultaneamente
de Marialva e de Thomaz Antônio, o qual era incapaz de ir de encontro nos seus atos à vontade real. Sustaria porém
tal inspira­ção a
benignidade inteligente de Dom João VI, um momento empanada, ao recuperar sua lucidez e
pôr-se em harmonia com uma melhor compreen­são
das conveniências do momento histórico.

No essencial se não enganava todavia Hipólito, antes acertou logo em julgar o rei
pessoalmente infenso aos manejos do chamado partido aristocrático,929 que
na sua constante ainda que mais disfarçada malevo-lência a Palmela, o publicista acreditava dirigidos por este estadista, de fato
empenhado em conciliar as coisas muito mais do que em ajustá-las pela força "… Mas
parece-nos que não será difícil o dar algumas provas, de que não é el-rei quem
obra contra Portugal, que não é do soberano de
quem se devem temer oposições a um sistema constitucional, em que os empregados
públicos sejam responsáveis por sua gerência, que é, em duas palavras, tudo quanto a voz pública pede e
exige; el-rei não tem inte­resse em opor-se a isso; porque com a existência
dessa responsabilidade nada perde,
antes muito ganha. Os governantes, que são os que verão suas mãos atadas para
não fazer mal, são os que se devem suspeitar de fazerem essa oposição a
um sistema para lhes porem freio… E é de esperar que as cortes de Portugal nunca se esqueçam de fazer a devida distinção
entre os sentimentos d’el-rei, e os de um partido de intrigantes, cujos fins são
manter seus interesses, a despeito dos da nação, e da mesma autoridade do
Rei."930

Se fosse exato que Palmela, nomeado havia muito ministro dos Ne­gócios Estrangeiros e assumindo
afinal a pasta, inspirar e fomentar o de­negrido "conciliábulo
aristocrata" de Paris — no intuito, pouco crível aliás,
de desbravar para si
o terreno e permitir-lhe num campo livre o cultivo das regias concessões — maior
merecimento tocaria ainda à atitude pers­picaz
do rei no assunto.

Foi bem um gesto privativo dele,
esse que tão de acordo se achava com o pensar do gabinete britânico e tão de
harmonia estava com recen­tes ensinamentos da história, que indicavam haver a intervenção estran­geira custado a vida a Luiz XVI e a
Maria Antonieta. Além disso era ób­vio — óbvio para quem tivesse
bons olhos — que uma intervenção estran­geira podia ocorrer em Portugal e aí abafar com relativa
facilidade o mo­vimento liberal, mas não poderia ir sufocá-lo no Brasil, onde
ele repercu­tiria mais vivamente mercê
mesmo da reação criada em Portugal.

Para isso seria indiferente
ficar o rei no novo reino ou voltar para o velho. A questão não era tanto essa: era sobretudo, como muito bem o colocava Hipólito, o resistir ou entrar a realeza
no caminho das reformas constitucionais, o governar arbitrariamente ou com um ministério respon­sável
e popular, cujos interesses não estivessem vinculados ao das classes
privilegiadas. Somente assim ficaria garantida, dado o progresso dos tem­pos, a integridade da monarquia.
De outro modo a revolução caminharia impávida
em Portugal, anulando a coroa, e se propagaria ao Brasil.

Pernambuco, apesar da residência
da corte no Rio, sublevara-se an­tes de Portugal, e se a tentativa fora mal sucedida —
como também o fora pelo
mesmo tempo em Lisboa o ensaio de Gomes Freire — depunha isto apenas contra as circunstâncias
do momento. O fato provava que o germe do governo constitucional existia no Brasil independente
de Portugal, tendo bastado
para a fecundação o contato da América espanhola, depois do exemplo dos Estados Unidos. Não
alcançaria constituir empecilho sufi­ciente contra a corrente a popularidade pessoal do rei,
que o periodista do Correio
carinhosamente descreve "brando, pacífico, sofredor, indul gente; sem ambição, nem avareza, nem crueldade"; porquanto ao lado
de Dom João VI existia
um ministério de gente corrupta — Hipólito poderia ter escrito, com mais verdade, de
gente eivada de preconceitos — que com sua presença excitava contra o trono e contra o velho
regime as novas pai­xões populares.

Essa era com
efeito a questão, posta nos seus termos gerais e políti­cos; no caso particular de que se
trata, havia porém que contar com um elemento a mais, fornecido pela discórdia
criada entre as duas metades da monarquia, das quais uma reclamava a sua dinastia, sob pena de fazer
voar o trono em estilhaços, e a outra timbrava em conservar a investidura recebida de cabeça do império.

Em Londres descortinava-se claro,
e era de Londres que Souza aconselhava931 e reputava mesmo inadiável a vinda do príncipe
real para o velho
reino, ficando embora na América Dom João VI para prevenir qualquer revolta análoga à das colônias espanholas; por
outra, "restabelecendo-se a
autoridade de S. M. em Portugal sem a pôr em perigo no reino do Brasil". Uma situação forte nasceria de tal combinação e
seria igualmente vantajosa às duas partes, preparando a futura consolidação da
união por "um sistema de governo ajustado ao espírito do século" e repousando sobre uma reciprocidade de interesses.
A benefício da sua pró­pria conservação, a dinastia teria contudo que se dividir.

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