A VOLTA DA TROPA – Historinha do Tempo da Cadeirinha (Mato Grosso)

A VOLTA DA TROPA

Na solidão nostálgica da Serra, afastado dos povoados, erguia-se o engenho do Glória, com seu casarão de vastas salas e varandas silenciosas, sua capelinha, suas enormes senzalas, apinhadas de escravos, sua moenda, casa de purgar, fornalhas, paiol e mais dependências. Era um dos primeiros estabelecimentos daquele tempo, quando a "ser-ra-acima" florescia em "engenhos" e sítios, qual mais próspero, qual mais rico, tornando-se aquela região previlegiada como que o opulento celeiro da capital, zona dos "senhores de engenho" que eram os homens de maiores cabedais e prestígio na época, pois, como bem frisou Antonil "bem se pode estimar no Brasil o ser senhor de engenho, quanto proporcionadamente se estimam os títulos entre os fidalgos do Reino". Tendo pertencido ao Capitão Antônio Leite do Amaral Coutinho, o "Glória" via agora garrular nos seus velhos paredões os netos daquele rico senhor, filhos de sua filha Rosa, casada com João Fernandes de Melo, que ali ficara a testa da propriedade.

Com eles vivia ainda a segunda esposa, ora viúva de Amaral Coutinho, Dna. Luísa, senhora de rara energia, dotada de atributos másculos de mando, que a tornavam respeitada da família e dos agregados do "engenho" e temida da sua numerosa escravaria. Duas vezes por ano descia a velha dona, com filha e genro, netos, séquito de crioulas e negros, no seu rico bangüê, para assistir o Natal e a Semana Santa na cidade. Ficava sempre duas semanas fora, com paradas na Chapada, onde tinha casa, sendo acolhida com expansão de alegria pelos moradores da vila que muito a estimavam. Era Dna. Luísa de ameno tratar com os seus iguais, sendo, porém, inflexível com os que por qualquer motivo discrepavam da linha do dever, tornando-se mesmo rude e áspera de maneiras quando se lhe antolhava descobrir qualquer deslise dos seus apaniguados. Reinava por isso no "Glória" um regime de severa fiscalização, que tornava o "engenho" respeitado e havido, entre os estabelecimentos similares, como dos mais ordeiros e moralizados.

Foi, pois, com surpresa que Dna. Luisa, naquela tarde branca, recebera, no seu quarto, estranha confissão, vertida em lágrimas, de sua escrava de estima e afilhada — a Brites Maria, guapa crioula, de seus quinze anos floridos, o braço direito de "sinhá dona".

Era ela quem lhe preparava o guaraná, de madrugada, ralado na hora e trazido em copinho de cristal, com água fria apanhada no córrego, a meia luz do entredia. Era ela quem lhe grosava a palha para os cigarros e quem lhe preparava a orchata, com cuidados filiais e mimos inexcedíveis. Dna. Luísa, ciosa do seu ponto de honra, despediu Brites de todos esses encargos e fê-la substituir pela Andreza, negra beiçuda, feia e repelente, como que para assim ainda mais vexar a substituída. E mandou que Brites fosse para o canavial, donde a muito empenho do genro, que se con-doía da súbita degradação da rapariga, a fez vir para o serviço da cozinha e da copa.

* * *

A criança nasceu pela Anunciação do outro ano e recebeu por isso o nome de Gabriel. Era branco e mimoso, o que fazia as parceiras de Brites conjeturarem mil coisas contra a infeliz criatura, de quem, entretanto, uma palavra sequer conseguiram arrancar sobre o responsável pela sua desdita. Ora, por esse tempo, a tropa do engenho andava de viagem para a Corte, tendo com ela seguido o último filho de Dna Luísa, Joaquim, para fazer seus estudos. Dna. Luísa esperava ansiosa a volta da tropa que lhe deveria trazer novas do filho, do seu caçula querido, o mimoso das suas afeições. Na noite de São João, detivera-se até mais tarde a conversar na varanda com o genro, e, por volta de 10 horas, tomando o castiçal de prata numa das mãos e sus-tendo a manga com a outra, deu as boas noites a João Fernandes e desceu os degraus que levavam através de um longo corredor escuro, para os seus cômodos. O inverno entrara de pouco e o sul assobiava nas frinchas das portas e janelas do vasto casarão silente e adormecido. Dna. Luisa fez as suas orações e esteve ainda, por algum tempo, banzando, sem sono, a balançar na rede lavrada. Depois foi apagar a vela e deitou-se para dormir. Dali a pouco, a filha, cujo quarto ficava na outra extremidade do vasto e longo corredor, ouviu-lhe a voz sempre autoritária e forte, desta vez trêmula e num fio: — João Fernandes! João Fernandes!

Acudiram assustados, filha e genro, e deram com a velha que, de pé, no meio do quarto com as feições alteradas, mal podia falar. E quando voltou a si do espanto, lhes contou que, nem bem se acomodara, antes que o sono a tomasse, ouvira uma voz — a voz de Joaquim, perfeita e clara que lhe disse, repetindo-o por mais duas vezes: — Forra Gabriel!

Sem saber o que significaria aquela ordem, intimativa e rija, no dia seguinte a velha fez partir um próprio para a cidade donde, com pouco, vinha o tabelião, que passava, a seu pedido, a escritura de alforria do filho de Brites.

Três meses depois chegava a "tropa" de volta da Corte. Entrou no terreiro já quase ao escurecer. De longe, porém, chamara a atenção a maneira pela qual se aproximava: silenciosa, sem o habitual chocalho dos sincerros que soíam acordar, com suas álacres campainhadas, os ermos serranos.

As madrinhas vinham cobertas de crepe, não se lhes vendo as cabeçadas de prata brunida relampear ao sol morrente do ocaso, nem os arreios metálicos dos tropeiros, nem a boneca da guia, nem os gritos vibrantes dos tocadores, a pé, cada um à frente do seu lote. Que seria aquilo? A Dna. Luísa pulsou-lhe, num rebate.improviso, o coração, sob o cabeção de rendas da camisa. Adiantou-se, num hausto, ofegante, até ao meio do terreiro, onde, sobre grandes couros lavados, secava o açúcar do serviço do dia:

— Nicomedes, o que é isso? Que notícia traz de meu filho?

Um segundo de silêncio, de angustia, de tortura infinita… Ninguém ousava falar. No terreiro, a varanda aberta, se encheram do pessoal do engenho, curioso e ansiado.

— Seu Joaquim… — tatibiteou, sem jeito, o. tropeiro, tirando o chapéu de aba larga, — seu Joaquim, sia Dona, morreu… Não se ajeitou com a clima da Corte. Pegou a amarela no chegar e foi-se, no fim de três dias.

— Que dia, Nicomedes?

— Foi no dia de São João…

Um grito convulso partiu do grupo que, no oitão da casa, aguardava o desfecho daquela cena. Corre que corre, apanha água, socorro, foi uma balbúrdia enorme… E enquanto a velha entrava para a varanda, soluçante, nos braços da filha, os escravos carregavam, desmaiada, para a senzala, a infeliz Brites, que, ao ouvir as palavras do tropeiro, caiu para trás, hirta, feita morta, completamente inerte e fria…

José de Mesquita: No Tempo da Cadeirinha. Edição da Academia Matogrossense de Letras (Estante Matogrossense, Vol. V), 1946, pp. 29-34.

Fonte: Estórias e Lendas de Goiás e Mato Grosso. Seleção de Regina Lacerda. Desenhos de J. Lanzelotti. Ed. Literat. 1962

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