CAPISTRANO DE ABREU

O SR. CAPISTRANO DE ABREU

Oliveira Lima

Entre as publicações comemorativas do centenário da abertura dos portos brasileiros ao comércio universal, que no próximo ano se celebrará, figurará um escorço do desenvolvimento histórico do nosso país, da pena do Sr. Capistrano de Abreu, que me parece ser o que de mais condensado e ao mesmo tempo de mais substancial tem aparecido no seu gênero. * Apesar de não ser abundante a sua produção literária, ninguém no Brasil desconhece o Sr. Capistrano de Abreu ou discute sua autoridade: é reconhecidamente o mais competente e o mais consciencioso dos estudiosos do nosso passado em todas as suas formas.

Justamente porque é competente e é consciencioso, e é sumamente curioso, de uma curiosidade enciclopédica, é que o Sr. Capistrano é sóbrio na sua produção. Quando outros imaginam saber tudo porque leram meia dúzia de obras sobre um dado assunto, êle pensa e confessa que vê sempre o que aprender, mesmo na especialidade que há sido a da sua vida. Ainda não passaram muitos dias desde que o ouvi deplorar ter vindo ao mundo cincoenta anos antes, porque dentro de outros cincoenta anos encontraria acumulados os documentos necessários para escrever a história nacional.

Como fazê-lo hoje, quando todos os dias se descobrem novas minas e se captam novas fontes; quando os autores antigos vão, à luz dos documentos seus contemporâneos, sendo justificados ou desmentidos nas asserções que fizeram; quando muitos juízes erroneamente formulados vão sendo modificados pela crítica, ao passo que outras tantas opiniões vão sendo corroboradas? Por isso, sendo, como disse, o maior sabedor das nossas tradições históricas, nunca quis o Sr. Capistrano escrever uma história do Brasil. A empresa pareceu-lhe prematura e o resultado aleatório. Contentou-se, no pleno vigor da sua inteligência, com reeditar e anotar copiosamente, confirmando-lhe ou retificando-lhe os dizeres, a história de Var-nhagen, a única no seu dizer — que eu inteiramente subscrevo — que adiantou à de Southey, a qual foi a primeira revelação e ainda hoje se conserva a mais bela expressão literária da nossa formação nacional.

A hesitação de um tal erudito, a quem deveria ser caro o pensamento de legar uma obra de conjunto superior àquelas, deve servir de freio a aventuras nesse domínio intelectual. A nacionalidade brasileira já adquiriu certa consistência política, mas não chegou por enquanto o momento da organização definitiva da sua história. A fase é ainda de preparação, pertence à construção dos alicerces. As monografias conservam toda sua significação. A análise indispensável por ora não permite a síntese verdadeira.

Contudo, o estudo que o Sr. Capistrano de Abreu elaborou para o novo Livro do Centenário, é uma síntese admiravelmente feita, cheia de informações c com sua dose do imprevisto, saborosa e guardando a medida em qualquer sentido. Porque o perigo de tra balhos desta natureza está em regorgitar de fatos e ser assim a síntese pesada e indigesta, ou então perder de vista a documentação e elevar-se às alturas por vezes vertiginosas, da especulação filosófica, tornando-se fofa e palavrosa porque a ciência também tem a sua retórica.

O resumo de história do Brasil que vai breve aparecer nenhuma destas desvantagens oferece, antes representa o que de mais harmônico se poderia desejar em semelhante assunto. Também ninguém se encontraria que fosse tão capaz de tratá-lo. É sabido como geografia e história se ligam, como a configuração topográfica, os climas, os terrenos, os aspectos da paisagem, as facilidades ou dificuldades naturais de comunicação esclarecem muito acidente histórico e explicam muito processo evolutivo.

Pois, o Sr. Capistrano conhece perfeitamente nossa corografia, tendo-a aprendido, senão por experiência própria, nunca se tendo afastado muito do litoral, pelo convívio mental com todos os viajantes, exploradores e cientistas, e havendo disciplinado seu espírito, em tudo quanto toca à ciência histórica e suas ligações com outras ciências, com o severo e forte método germânico. Êle é um dos poucos entre nós familiares com os mestres alemães, mesmo porque é um dos poucos familiares com a língua alemã.

E. assim como sabe geografia, o Sr. Capistrano sabe História Natural, podendo classificar a vegetação de cada zona; sabe etnologia, podendo discriminar as nações indígenas; sabe etnografia, podendo aquilatar os legados do passado aborígene ou exótico; sabe história portuguesa, podendo destacar e caracterizar as contribuições da cultura importada e aclimada. Além de tudo isto, sabe escrever, podendo fazer amena uma exposição de fatos e de tendências por meio de um estilo a um tempo castiço e moderno, grave e pitoresco.

Na sua modéstia de erudito, que não é a falsa modéstia do hipócrita mas o sentimento sincero do homem de estudo que cada dia aprende coisas novas, adquire maior número de noções e se sente pequenino diante da universalidade do saber, o Sr. Capistrano de Abreu poderá julgar imperfeito o seu esboço, incompleto o seu quadro da evolução brasileira. Aos que sabem menos do que êle, o trabalho se afigura, porém, magistral.

Poderão variar certos pormenores, elucidar-se alguns pontos obscuros, modificar-se certos juízos particulares. A orientação geral, penso que não mudará, seguirá a mesma a trajetória, não se extraviará a concepção fundamental. A história do Brasil não se compreende que venha a ser diferentemente interpretada. O presente esboço da lavra do Sr. Capistrano de Abreu, verdade é que representa o fruto de demoradas pesquisas de escavadores nacionais e estrangeiros, ao mesmo tempo que o golpe de vista de conjunto de quem se retardou (feliz atraso!), examinando-as a todas, pesando-lhes a valia e aproveitando-lhes a essência, obedecendo o erudito na sua aparente desordem de trabalho à regra disciplinar, austera e profícua, por que se pauta a ciência alemã.

O interesse da história brasileira, entre as da América do Sul, ressumbra dessa condensação. Pela sua grande distância a costa do Pacífico ficou muito mais alheia ao pelejar de nações diversas que aspirassem a dominar no Novo Mundo, quando na costa do Atlântico, melhor dito, no território brasileiro, se mediram com afinco portugueses, franceses, espanhóis c holandeses. Nas possessões espanholas predominou como fator de trabalho, numas, como em Venezuela, o negro, noutras, como no Peru, o índio, ao passo que no’ Brasil foram os dois elementos conjuntamente a serem aproveitados sob coação, o índio em todo o caso constituindo, ocasional e finalmente, material para experiências prosclíticas, e o negro sendo importado em quantidade extraordinária, numa proporção crescente e desconhecida noutra seção da América do Sul, favorecido como era o tráfico pela situação geográfica da costa brasileira e da africana, fronteiras uma à outra, e pela vastidão dos reservatórios negros sob o domínio português.

No Brasil aprazaram-se personagens c aventureiros das mais variadas procedências: a América Espanhola não conta no seu passado heróico, perto do duro Pizarro c do alucinado Aguirre, um soldado de fortuna como Villegaignon ou um Mecenas principesco como Maurício de Nassau. A sua história é muito mais uniforme ou por outra muito mais nacional na sua violência c na sua crueldade. Também Nóbrega, Anchieta c Antônio Vieira nada ficam a dever a Las Casas, tendendo todos três jesuítas, ao mesmo fito do missionário espanhol, revelando-se um pela integridade, o outro pela suavidade e o terceiro pela habilidade.

No seu contingente pessoal, isto é, na soma de predicados seus que traz para o cultivo da ciência histórica em nosso meio, avulta no Sr. Capistrano de Abreu um notável espírito de imparcialidade no sentido mais geral da palavra, porquanto o que êle sobretudo se mostra é estranho a preconceitos comuns de raça ou de religião. Indígenas e negros merecem-lhe funda simpatia como lha merecem evangelizadores e colonizadores brancos porque em todos igualmente enxerga os agentes de uma evolução social cujo caráter impessoal êle mais que tudo busca fixar. Por isso o traço mais original e mais interessante da atividade literária do Sr. Capistrano, no campo da história pátria, é a preocupação que denota por fastos diversos dos bélicos, que tanto monopolizam a atenção do comum dos narradores. No estudo que vai aparecer a importância máxima é atribuída não à defesa do litoral mas ao povoamento do sertão, à energia na maior parte dos casos anônima c sempre indefessa daqueles que se assenhorearam, desbravaram e de algum modo civilizaram o interior do nosso país.

O Sr. Capistrano repete com acerto que sem gado não haveria minas, a saber, que a exploração do ouro e dos diamantes nas terras altas das colônias, virgens de cultura, não teria sido possível se os aventureiros não pudessem contar com o abastecimento de carne por parte dos que já então tinham iniciado a tarefa da criação no Brasil, e tornado assim realizável a indústria aleatória e absorvente da mineração.

Simultâneos com a indústria da criação, os dois outros motivos determinantes do povoamento do sertão, justamente apontados e excelentemente resumidos pelo Sr. Capistrano de Abreu, foram a pesquisa das pedras e metais preciosos a que se aplicou a ousadia dos antigos bandeirantes, caçadores do gentio, e a disseminação das missões, sobretudo jesuítas — circunstâncias que tornaram a história do sertão bem mais sugestiva e dramática na sua elaboração meio misteriosa do que a do litoral. É sabido o apelo que o mistério exerce sobre a imaginação.

As fazendas de gado, os arraiais do ouro, e as aldeias de catecúmenos indígenas constituem não somente a geografia econômica, como a história social do Brasil, nos dois séculos imediatos ao da descoberta da terra e defesa armada da sua posse, séculos que são os da exploração ávida das riquezas minerais, depois da conquista pacífica ou cruel da região interior, e também da formação nacional sobre que se devia basear a futura organização política em um organismo independente.

O importante estudo de que procurei dar uma idéia aproximada antes da sua aparição, e do qual não se pode desperdiçar uma linha, fecha com um curioso capítulo, que este já o Jornal do Comércio inseriu, sobre o aspecto econômico c popular do Brasil ao começar o século XIX. Esta parte é feita com um conhecimento dos observadores estrangeiros daquele período c, o que mais é, uma proporção de observação pessoal, com um saínete próprio, que a tornam um quadro animado como o de um Teniers tardio, que tivesse acompanhado ao Brasil Dom João VI, como Post acompanhou Maurício de Nassau.

Rio, julho de 1907

Fonte: Oliveira Lima – Obra Seleta – Conselho Federal de Cultura, 1971.

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