Impressões de viagem – EM TERRA BASCA – Loiola

EM TERRA BASCA

Oliveira Lima

II Loiola

Da estação de Zumárraga o berço de Legazpi, o conquistador das Filipinas, centro de tradições guipuzcoanas e carlistas, portanto particularistas c absolutistas, onde se ergue a estátua do bardo vas-conço Iparraguirre, com sua barba de Homero, empunhando porém cm vez da nobre lira a popular guitarra, e muito perto de onde dorme o último sono o General Zumalacárregui, o herói da primeira guerra legitimista, morto no sítio de Bilbao — uma magnífica estrada de rodagem hoje conduz ao santuário de Loiola. A estrada acompanha as sinuosidades do Rio Urola, de cuja existência se fica, cm quadra seca, suspeitando pelas poças de água entre os seixos roliços, e que em fase mais feliz corre ligeiro, apertado entre montes frondosos que sc sucedem sem se parecerem e oferecem uma justa amostra desta terra vascongada, seca e ao mesmo tempo arborizada, a qual forma uma transição que se esforça por ser amena entre a Navarra sombrejada e a Castela desolada.

De súbito, porém, se abre um vale mais espaçoso e as montanhas por sua vez se tornam mais alterosas e menos regularmente verdejantes: é o vale de Yraurgui, guardado no seu acesso por duas sentinelas seculares, as vilas de Azpcitia e Azcoitia. A meio dele se erguia, desde os tempos da reconquista cristã sobre o domínio mouro, uma fortaleza granítica, através de cujas frestas se descarregavam as bestas e a que se sobrepôs, mais tarde, para habitação, uma construção em tijolos, como se encontram ainda outros na região, lembrando no desenho das ornamentações formadas pela disposição do material os motivos da arte mourisca.

Este foi o berço de Santo Inácio, sendo a mansão senhorial, severa e modesta, da sua família de fidalgos batalhadores. O velho solar acha-se agora embutido no edifício que a Companhia de Jesus erigiu em memória do insigne organizador da mais extraordinária milícia eclesiástica, depois que por influência da Rainha Mariana da Áustria obteve da família do Santo a propriedade daquela residência. Consta tal edifício de um espaçoso quadrilátero, cujas proporções estabelecem um conjunto regular, de uma imponência que não exclui de todo a elegância, dominado pela cúpula da igreja, circular como o Panteão de Agripa, que lhe serve de núcleo.

A proverbial falta de gosto artístico dos jesuítas aí ficou mais uma vez demonstrada. O colégio, que abriga um largo noviciado, não tem por si mais do que a grandeza das linhas: nem um vislumbre de estilo arquitetônico definido. Ê o triunfo da cantaria chata, como o templo é o triunfo dos mármores de cores e dos mosaicos, e a casa-capela de Santo Inácio o triunfo da talha dourada. Granito e mármores abundam, aliás, em alguns dos montes em redor, que dão à paisagem um ar supinamente agreste com sua enorme massa esbranquiçada e pelada; e onde escasseia a pedra, abundam as madeiras de castanheiro, faia e carvalho, para servirem de matéria-prima aos entalhadores mais relieiosos do aue artistas.

Os dourados velhos adquiriram com os anos uma pátina que na aparência lhes alivia o peso, sem lhes disfarçar a prodigalidade, mas na capela da Imaculada Conceição, concluída este ano em comemoração do jubileu da definição desse dogma, o tom cru do ouro novo, mais se destacando sobre a prata fosca do quadro em relevo que representa a Virgem entre os santos e doutores da Ordem, empresta ao imenso retábulo um aspecto de opulência babilónica, que seria barbárica se fosse profana. Em dois nichos laterais avançam, na atitude de lançar a bênção, o Papa Pio IX, propugnador do dogma que a Companhia de Jesus sempre defendeu, e o atual Papa Pio X, continuador da política intransigente do Vaticano de então.

O mau gosto das decorações de Loiola, cuja construção começou no findar do século XVII, deve também ser atribuído ao estilo predominante na época em matéria de arte religiosa. O século XVIII foi o século dos mais graciosos estilos civis, o Luís XV e o Luís XVI, o chamado rococó, de linhas suaves e harmoniosas que descansam a vista e emolduram perfeitamente a doçura do viver nobre daqueles tempos. Toda a graça falta, entretanto, no que toca à ornamentação eclesiástica, sobrecarregada e extravagante, que não raro foi até empregada em desfigurar a visão arquitetônica gótica, de uma elevação que se pode bem chamar mística, e ao mesmo tempo de uma pureza de linhas que não consegue destruir a exuberância dos motivos.

Com seus mármores negros, seus jaspes azuis, seus alabastros pálidos, seu pórfiros quentes, seu granitos pardos, suas esculturas, suas talhas, suas figuras de prata, a igreja de Loiola constitui um exemplar excelente daquela profusão antiestética, corrigida, todavia, pelas belas e nobres dimensões que lhe concedeu o seu risco, obra de um arquiteto italiano. Ela como que simboliza o apogeu da opulência material da Ordem, a que logo sucedeu a sua dissolução canónica decretada pela Santa Sé, uma fase de adversidade durante a qual se retemperou a fé, se renovou a humildade e se purificou a moral política dos seus filhos.

Não menos simbólica nos parecerá o engaste do solar dos Loiola no grandioso edifício de Fontana, um embutido misterioso mais do que um engaste aparatoso, pois que se oculta aos olhares de fora e faz-se preciso ir admirá-lo no recesso do monumento. Dir-se-ia um emblema da subjugação do temporal pelo espiritual, da vitória das meditações e dos êxtases sobre os* instintos e os apetites.

Semelhante domínio foi de todos os tempos o ideal e o objetivo da Companhia, e cm exercê-lo ela se há esforçado coletivamente, desde os apóstolos que, como Anchieta, iam missionar com mil perigos o gentio c arrebanhá-lo sob o báculo de Roma, até os pregadores que desassombradamente flagelam, como o Padre Van-ghan na capela de Farm Street, os luxos e pecados da alta sociedade, com o sucesso enorme que costumam ter tais prédicas, quando eloqüentes, entre aqueles que julgam ser virtude bastante ouvir censurar os. vícios que entretanto não cessam de praticar.

Da importância que continua a possuir a Companhia de Jesus, do seu grande papel na presente como na passada organização da Igreja, dá testemunho a atenção dispensada em todo o mundo à eleição recente do seu geral. Pela segunda vez na história da Ordem recaiu a escolha num alemão, o Padre Wernz, e ninguém deixou de perceber no ocorrido uma indicação mais das boas relações que a Alemanha tem ido estreitando com a Santa Sé à medida que mais se irritam as relações entre o Vaticano e a França oficial.

O Imperador Guilherme carece do concurso do centro católico, o mais numeroso partido do Reichstag, para formar a resistência conservadora aos assaltos cada dia mais confiados do socialismo, cuja representação parlamentar cresce constantemente, e é perfeitamente sensível ao prestígio que para a Alemanha se derivará in partibus infidelium da assunção do protetorado tradicional dos cristãos romanos, tão levianamente desdenhado como fator político por alguns dos homens de Estado mais eminentes da França — alguns, não todos, porque mesmo ferozes anticlericais, como Paul Bert, avaliaram exatamente a sua força moral.

Também a benevolência de Berlim para com o papado tem revestido uma feição prática.

A disposição que desde 1872, isto é, desde o Kulturkampf, vedava a entrada dos jesuítas na Alemanha foi abrogada, podendo eles agora entrar individualmente, o que não exclui sua imediata agregação, e ao catolicismo tem sido facultado tão desafogado desenvolvimento, que hoje se contam na Prússia 2.000 conventos e 30.000 religiosos, quando ao tempo do Kulturkampf apenas existiam 8.000 religiosos e 900 conventos.

Esta liberdade de expansão outorgada ao romanismo serve um vasto plano político que visa à pronta absorção, sem atritos, dos milhões de católicos alemães da Áustria no momento fatal da desagregação do Império do Danúbio, e visa mesmo à mais longínqua incorporação da Bélgica e da Holanda, dos antigos Países Baixos, onde tão forte é o sentimento %atólico. Na América do Sul, onde não há, dizem lá todos, perigo alemão, mas onde pode, algum dia, havê-lo, os padres e frades alemães estão destinados a ser os melhores agentes do pangermanismo, o qual, como qualquer outro imperialismo, começa por ser comercial para ser depois político. A Doutrina de Monroe terá eventualmente que contar com estes poderosos antagonistas, tanto mais poderosos quanto operam sobre as consciências e formulam apelo ao passado, em que tão valiosos serviços prestaram ao que é hoje o Brasil, zelando a sua civilização transplantada e modelando a sua cultura incipiente.

O espetáculo seria historicamente novo, e por isso mais suges tivo ainda, do papado e do Império —^para mais o império herético — trabalhando aliados, numa concordância de desígnios que o» dotará ambos de uma força prodigiosa. O fato é que, se o soberano germânico, cuja honestidade o pontífice proclama, concede o devido valor ao influxo do catolicismo, o clero romano por seu lado está renascendo com maior vigor para a atividade proselítica — a de um proselitismo exercido entre os seus próprios fiéis. A presença do legado papal, um legado cardinalício, nos congressos católicos que há pouco se celebraram em Tournai e em Essen, no seio das fervorosas populações flamenga e renana, teve muito o sabor de um acontecimento medieval, quando Roma era onipotente sôbre os espíritos, a Reforma não levantara o pendão da revolta pelo livre exame, e o império mascarava seu antagonismo de interesses com a comunhão dos intuitos morais.

Fuenterrabia, outubro de 1906

Fonte: Oliveira Lima – Obra Seleta – Conselho Federal de Cultura, 1971.

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