PELA ALEMANHA RENANA
Oliveira Lima
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Regressei de Contrexéville a Bruxelas pelo caminho da Alemanha renana, o que um francês apelidaria le chemim des écoliers, por ser o mais longo: não só o mais longo, como o mais divertido. O passeio é efetivamente dos que mais merecem a pena de ser feitos. Os encantos dos Vosgcs, da Floresta Negra e do grande rio histórico, povoado de lendas e que o poeta alemão, consubstanciando a alma nacional e dando-lhe expressão literária antes de possuir realidade política, queria que fosse não fronteira da pátria germânica mas curso de água exclusivamente alemão, são bem conhecidos e de há muito têm sido apregoados.
Esta porção da Europa é não só das mais férteis e das mais lindas como provecta em tradições. Começa-se pelas romanas. Cidades principais de hoje como Mogúncia e Colônia, vilas termais como Baden e Aquisgrão, são fundações do grande povo latino cuja expansão mais do que nenhuma outra contribuiu para a civilização do mundo, e que ali se pôs cm contacto com os bárbaros que Tácito descreveria e que derrubariam, absorvendo-a, a cultura romana. Tre-ves (Augusta Trevirorum) possui antiguidades imperiais incomparáveis na Europa Setentrional. Os vestígios dos grandes banhos, as ruínas do palácio de Constantino, de que uma das paredes se levanta coberta de hera, infinitamente poética no fundo do céu crepuscular, sobretudo a sua famosa Porta Nigra, construção de gosto um tanto bárbaro na sua imponente massa de pedra escura, que data da segunda metade da época dos imperadores, evocam todo um passado, os tempos em que o poeta Ausônio denominava aquela cidade a segunda metrópole da vasta monarquia.
Após as recordações romanas, são as do grande Império do Ocidente as que nessa região se nos deparam e nos ferem. Aquisgrão foi a residência favorita e verdadeiramente a capital de Carlos Magno Aí se encontraram a curul de mármore em que se conta ter sido seu corpo achado sentado, e que com Frederico Barbaroxa entrou a servir para a coroação dos imperadores germânicos; o sarcófago de Paros esculpido em que é tradição que depois descansou seu corpo e o cofre de prata dourada, preciosamente cinzelada, que presentemente se diz guardar seus ossos. A poderosa monarquia carlovíngia tampouco perdurou, fragmentando-se, mas aí estão os distritos de Worms e Spire, hoje como então cobertos de vinhedos, que Luís, o Germânico reclamou e obteve por causa dos vinhos da sua predileção.
As lendas do período feudal vivem mais nos castelos alcandorados, desmantelados uns, outros restaurados, que se debruçam sobre as águas verdes e rápidas do Reno. Dos franceses as lembranças são antes de sangue e de devastação, contrastando com as primitivas reminiscências francas, de Clóvis e seus sucessores, que se refletem em fundações cristãs como a catedral de Worms, cidade posterior-
mente associada à reforma pregada por Lutero. A assolação da Alsácia e do Palatinado, sob Luís XIV, excedeu quanto praticaram mais tarde os soldados da Revolução e de Napoleão, e ainda hoje sua memória subsiste, por assim dizer viva, nos escombros e nas tradições.
E’ mesmo curioso que da grande época revolucionária sejam os monumentos de preferência piedosos a perpetuar a lembrança. À margem do Reno, bem visível para os que sulcam’ suas águas, ergue-se numa elevação, em Weissenturm, o obelisco dedicado a Hoche por motivo da passagem do grande rio em 1797, e sombreado pelas árvores de um pequeno cemitério, levanta-se ao pé de Pe-tersberg, perto de Coblentz — a Coblentz dos emigrados e de "Mon-sieur", em cujas velhas casas de telhado pontiagudo e de cheiro bolorento parece dormir o eco dos fugitivos de Versalhes — o túmulo do jovem Marceau, morto em combate pela pátria republicana. Fazem-lhe uma guarda de honra póstuma, e nenhuma mais grata poderia ser ao espírito do ilustre cabo-de-guerra, general aos 22 anos, os restos de numerosos prisioneiros franceses da desgraçada guerra de 1870.
A pequena distância deste túmulo glorioso, numa posição incomparável, a cavaleiro sobre a confluência do Reno, e da Mosela, ostenta-se, grandioso na sua simplicidade e mais ainda na sua significação, o monumento do Imperador Guilherme I ou antes da unidade alemã nele personificada: bem mais sugestivo nesse lugar, à beira dos dois grandes rios disputados pela nação inimiga, do que o monumento imaginoso e ornamentado levantado no Niederwal à Germânia vitoriosa. Nada aliás melhor atesta a pujança e o esplendor de tal criação política do que esse próprio vale, ameno e feraz, que da fronteira suíça à holandesa $e estende cultivado, povoado e abastado, constituindo o maior do patrimônio refeito pelo gênio de Bismarck.
Esta é a impressão capital para o viajante: a da força e riqueza do moderno império alemão. As tradições e legendas do passado quase perdem seu interesse e sorhem-se desbancadas por esta realidade palpitante. Nas fábricas que se sucedem, como nas searas bem tratadas, nas edificações colossais de estabelecimentos públicos, como nas construções graciosas de residências particulares, retra-tam-se um progresso e uma prosperidade com fidelidade que não engana. O socialismo pode ser paralelamente crescido porque se tornou ao mesmo tempo mais precisa a consciência dos direitos do cidadão e mais exigente a reivindicação do trabalho, mas com certeza diminiuiu no geral a miséria e aumentou o bem-estar do operá-rio. Um país não atinge semelhante grande desenvolvimento sem que odos os seus filhos lucres, pôsto que em proporções desiguais, dada a presente organização econômica.
Espetáculo algum é no seu gênero mais soberbo do que o ofe-recido pela Alemanha contemporânea: nenhum existe que seja mais de natureza a se impor. Veja-se, por exemplo, a florescência de Es-tiasburgo, onde todo latino entrará pela primeira vez com certa emo-ção recordando com o sentimentalismo da sua raça ou antes da sua
educação a conquista de 1871. Sobretudo quando se entra na Alsácia pelo caminho dos Vosges, tendo-se subido de Gerardmer a Schlucht por uma das mais bonitas paisagens da França, cortado florestas atapetadas de fetos arborescentes, cujos pinheiros miram sua folhagem sombria na límpida superfície de três lagos azuis, e descido no lado alemão para o desafogado e rico vale de Munster, coalhado de habitações e retalhado pelo cultivo, é com alvoroço que se descortina a flecha aguçada e atrevida da Catedral de grés vermelho que abriga o mais famoso dos relógios astronômicos.
A história de Estrasburgo acha-se estampada nas suas ruas e à primeira vista se divide em três períodos: o medieval, ameaçado de inteiro eclipse pois que poucos são os trechos que ainda restam desse cenário que ficará conservado nos romances de Erckmann-Chatrian, e a que o nome de medieval é aqui dado sem rigorosa propriedade histórica, pois que de fato se prolonga sua época até os fins do século XVIII; o francês, visível especialmente no palacete da prefeitura que hoje ocupa o statíhalter, da Alsácia-Lorena e na frondosa orangerie que não escapou às regulamentações de Napoleão, e o alemão, que tudo prima c tudo- avassala.
Os largos bairros novos da cidade, repletos de magníficas habitações e de palácios alterosos, oferecem um aspecto de regularidade, de asseio e de beleza, que nenhuma cidade francesa, com exceção de Paris, logra apresentar. O primeiro grande edifício que os alemães cuidaram de erigir foi o da universidade; mais tarde seguiu-se um palácio imperial, e hoje estão-se construindo os ministérios dessas ex-províncias francesas, atualmente terras do império destinadas a uma próxima autonomia dentro da confederação germânica.
Em frente à universidade, um monumento simbólico, apesar de pessoal. É o de Goethe. O autor do Fausto, o corpo ereto, o braço estendido e apoiada a mão sobre o castão de uma alta bengala, numa atitude sobranceira e que corresponde ao seu ar conhecidamente olímpico, parece dominar com sua importância intelectual os que lhe vêm prestar homenagem. Parece também, cm nome e por força de cultura nacional, tomar definitivamente conta destes antigos domínios alemães, de que a França se apossara e que amoldara ao seu feitio moral com o poder da sua simpatia proselítica, de que a humanidade por vezes sofreu a ascendência.
Não creio contudo muito que, se fosse o caso de um plebiscito, a França recobrasse suas províncias perdidas na última aventura imperial. Deu-me antes a impressão de um fato consumado a re-germanização da Alsácia. O valor que têm adquirido sua indústria e seu comércio, as vantagens da sua bem montada instrução, pode mesmo dizer-se que as franquezas da sua administração, falam alto em favor do domínio do vencedor. A tirania alemã, oprimindo a população da Alsácia-Lorena, é uma lenda destinada a alimentar a chama sagrada da desforra.
Li em Estrasburgo artigos dp velho jornal francês que ali se publica desde fins do século XVIII, que em situação análoga a França certamente não toleraria: ao próprio exército alemão não
eram poupadas alusões desgraciosas, senão ridículas. Por outro lado assegurou-me um sacerdote, com quem tive ensejo de conversar, a perfeita satisfação do sentimento religioso local. Nestas terras oficialmente protestantes e que pelo menos contam vexadas nas suas crenças e aspirações, não somente goza a Igreja Católica da mais completa liberdade e respeito — quando em França se vê alvo de sistemática e sectária perseguição — como são os próprios padres desta fé chamados nas escolas a fornecer ensino religioso às crianças.
Bruxelas, agosto de 1909
II.
O Sr. Jules Huret insiste nos seus excelentes volumes sobre a Alemanha numa observação profundamente justa, que honra o seu espírito de imparcialidade, pouco comum entre os viajantes franceses: a do bom gosto que preside às modernas construções alemãs. Um tempo houve, digamos dos 1870 aos 1890, em que a grandiosidade na edificação andava aliada ao mau gosto: dão disso prova a Rei-chstag de Berlim e o palácio imperial de Estrasburgo sem falar nos renques de casaria naquele estilo em qualquer das cidades da confederação. Neste verdadeiro barroco imperial, os ornatos, isto é, o detalhe, longe de aligeirarem e embelezarem a construção, aumentavam-lhe o peso e afeiavam-na.
Recentemente, porém, ocorreu a mais feliz transformação. Indo buscar inspiração nos motivos de outrora, ou criando motivos novos, a arquitetura alerrf& espiritualizou-se ao mesmo tempo que se expandia na florescência de um estilo difícil senão impossível de de-finir, formado por contingentes diversos e até opostos, mas fundidos todos sob uma concepção única de conforto e de elegância que em parte alguma da Europa parece atingir igual brilho e vigor. Na Gênova moderna o gênero dos palácios italianos como que reviveu modernizado na via monumental de 20 de Setembro. Em toda a Alemanha entretanto o desenvolvimento das residências particulares de mais modestas dimensões foi que tomou um viço e assumiu uma originalidade, combinada muito embora com reminiscências do pas-sado, que sem disputa lhe confere a primazia.
Nesta quadra do ano, para mais, o enfeite das flores, sejam gerânios vermelhos ou glicínias roxas destacando-se com mais vigor quando de hera escura, empresta uma graça e um encanto às habitações que lhes não poderiam decerto fornecer iguais os frescos com que há um quarto de século se pretendeu alegrar o aspecto das fechadas e recordar um gosto desaparecido, aliás curioso, sugestivo e até, em dadas condições, gerador de obras-primas. Por todo o Império generalizou-se este costume e doravante as feias sacadas, floridas de cravos, de Sevilha terão que ceder a fama aos lindos balcõcs, engrinaldados de plantas e decorados de vasos, das moder nas residências alemãs.
Em toda a Alemanha renana só numa cidade notei ausência de bom gosto, c foi em Karlsruhe, a capital de Baden, cidade inventada no século XVIII por um dos grão-duques, uma espécie de Belo Horizonte alemão. A edificação contemporânea da fundação, toda ela no mesmo estilo, se estilo se pode chamar a essa sensaboria arquitetônica, é o que de mais chato produziu a época, não falando na Baixa lisboeta, obra do espírito antiestético de Pombal. Por cúmulo, no hemiciclo fronteiro ao vasto palácio grão-ducal e disposto em arcarías baixas e escuras, algumas das casas têm sido, sem plano assentado e/sem previsão artística, substituída do modo mais infeliz por algumas dessas construções de confeitaria, como tantas que caracterizam a arquitetura alemã imediata à guerra, produzindo em resultado um disparate de estilos que choca a vista menos exigente em matéria de simetria.
Não admira, dado tal meio, que fosse em Karlsruhe que se lavantasse recentemente o famoso chafariz popularizado em gravura pelos jornais ilustrados europeus como exemplar único do gênero. Consta esse chafariz de uma colunada circular, em forma de templo grego, do qual fosse a divindade a ninfa sobre a qual despejam águas carrancas reproduzindo os traços dos conselheiros municipais sob cuja gestão se ideou e realizou o curiosíssimo monumento. O efeito é de um cômico irresistível, vendo-se jorrar a água das bocheças inchadas de um edil barbadão, ou à sombra do bigode eriçado à Guilherme II de outro dos vereadores, que não será em extremo difícil descobrir nas cercanias do chafariz, mirando-se deleitosamente na sua efígie.
É sabido que a Alemanha foi a segunda pátria do rococó, quer dizer, que o gosto Luís XV, transplantado além Reno e já adulterado, produziu nas cortes reais e principescas grandes e pequenas maravilhas de que Dresda fica servindo de belo exemplo. A meio da expansão industrial contemporânea, devia porém sentir-se tão mal a afetada delicadeza desse estilo sobrecarregado de ornatos e contudo harmônico, que se sumiu por completo sua influência ainda que permanecendo a gracilidade que êle convencionalmente queria estampar. Desta gracilidade continuam a dar provas sobejas e diretas as milhares de sedutoras casas de habitação construídas nos últimos tempos e que são incomparáveis.
A feição de um espírito coletivo não se modifica radicalmente de uma geração para outra, como se não altera por completo a formação de um caráter. Diz contudo o Sr. Max Nordau, num dos seus paradoxos sociológicos, que não existe semelhante coisa — caráter nacional, e cita justamente, errj abono da sua asserção. 0 fato do alemão de hoje, prático, enérgico e positivo, tão pouco se parecer com o alemão de há meio século, sentimental, contemplativo e idealista.
Será isto entretanto tão exato quando o pretende o distinto escritor? Eliminarão estas qualidades aquelas, ou antes subsistirão os antigos traços dominantes ao lado dos novos, se bem que aparentemente sobrepujados pelos característicos a que as circunstâncias do momento histórico e suas conseqüências emprestaram maior desenvolvimento? Terá porventura o alemão deixado de ser sentimental, contemplativo e idealista? Assim não pensava eu pelo menos, percorrendo os lindos trilhos da Floresta Negra, em redor desse ninho de verdura e de flores que é Baden-Baden, a mais deliciosa das estações de águas alemãs, que tanto descansam da banalidade, da rotina e da pretensão das estações congêneres da França, cujo conforto tem sido criado aos empurrões pelas exigências dos estrangeiros e onde os prazeres do vício ou do esporte parecem constituir os maiores atrativos e não os feitiços da Natureza que os alemães continuam a venerar na sua fase ativa, assim como a veneraram na sua fase afetiva.
Conta ainda como uma observação exata do Sr. Huret a da placidez alemã contrastando com o desassossego francês, feito de rancor reprimido, o qual, num dia de loucura coletiva como a da Comuna, se dá largas em desatinos e em crimes. Não quer isto dizer que seja a Alemanha um paraíso terreal e que ande portanto isenta de pecados: assim o nível da sua moralidade penso que tem baixado e defeitos há, seus, que se terão acentuado, mas no geral continua ela a dar, e mesmo a afirmar do modo mais brilhante, o exemplo da disciplina, da ordem, do sentimento de progresso, da sabedoria, numa palavra da superioridade. Sua evolução, que dia a dia mais se caracteriza, para uma organização parlamentar verdadeiramente representativa é simplesmente admirável de método, de perseverança e de habilidade, e, o que mais é de surpreender, tranformação política tab radical e tão importante tende a fazer-se tranqüilamente, sem revoltas nem sequer sobressaltos, com uma serenidade de processo morfológico que leva a crer numa fatalidade constitucional.
Não se pense todavia que é o temperamento alemão desprovido da faculdade de entusiasmo. O Sr. Huret, que tanto se espantou da fleuma alemã, não viu, como eu, a chegada à Colônia do dirigível Zeppelin, sua volta graciosa em redor das torres altaneiras da maravilhosa catedral, entre as aclamações delirantes, as apóstrofes, a Blegria exuberante e em todo o caso disciplinada da multidão que sc apinhava nas ruas, nas praças, nas janelas, sobre os telhados, desde a madrugada, aguardando a chegada, em Francfort, do balão monstro e do seu audaz inventor.
Bruxelas, agosto de 1909
Fonte: Oliveira Lima – Obra Seleta – Conselho Federal de Cultura, 1971.
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