Raimundo de Farias Brito – textos inéditos e dispersos (antologia)

Raimundo_de_Farias_Brito

INÉDITOS E DISPERSOS

Farias Brito (1862-1917)

Fonte: Farias Brito – Uma antologia organizada por Gina Magnavita Galeffi. GRD-INL/MEC (1979)

PÁGINAS
BIBLIOGRÁFICAS EXTRAÍDAS DO ÁLBUM DE FAMÍLIA

Dos inéditos e dispersos escolhemos algumas páginas do
"Álbum de Família", que é um precioso diário do autor.

Fixamos nossa atenção no momento doloroso em que Farias Brito perde o amado pai.

Em
seguida transcrevemos uma confissão feita pelo filósofo ao amigo Jackson de
Figueiredo, que lhe perguntara qual o momento mais feliz de sua vida. Ao mesmo
amigo dirige duas cartas que achamos importante relatar, principalmetne a
segunda, que pode ser considerada o testamento espiritual do nosso filósofo.

Para
mostrar seu procedimento lógico e sua clareza didática transcrevemos algumas
páginas do seu curso de História da Civilização que completam a ideia da sua
poliédrica figura.

Foi para mim o ano de 1901 um ano excepcional: foi aquele em
que tomei deliberações mais importantes: foi aquele em que experimentei emoções
mais terríveis e mais profundas: foi o ano em que morreu meu Pai.

Efetivamente
no dia 16 de agosto de 1901 exalou meu velho Pai (aos 71 anos de idade) seu
último suspiro, meu velho Pai, aquele que tinha em mim toda a sua esperança e
todo o seu amor, e o único que seria capaz de dar por mim a própria vida.

E eu tive o
pressentimento deste dolorosíssimo acontecimento.

Três meses antes, mais ou menos, eu havia resolvido fazer
uma viagem à Europa em companhia de meu sogro e amigo, o Sr. João da Costa
Bastes. A viagem fora resolvida um pouco precipitadamente e era precisamente
uma viagem de passeio. Se bem que fosse muito natural passear, havia contudo no
fato certa gravidade, pois não só ia me separar da família por alguns meses,
como demais iria, de certo modo, gastar inutilmente algumas economias que com
muito custo conseguira fazer. Tudo isto devia pessr no meu espírito e no
espírito dos meus, devendo-se notar que para a vida simples que levamos, uma
deliberação de tal ordem não deixara de ter grande importância. Contudo a
viagem foi aprovada, emboia com mágoa.

Meu
pai não só aprovou o passeio, como mesmo me animava a acompanhar meu sogro. Mas
eu notava que ele o fazia com frieza, assim como vi que ficou mui constrangido
quando a viagem ficou definitivamente resolvida.

No
dia da partida, quando eu me despedia dos meus, estava meu Pai tão abatido, tão
profundamente triste, que se fosse possível, eu teria desmanchado a viagem, tal
foi a mágoa que senti.

Fiquei impressionado, dolorosamente impressionado com aquele
abatimento, doeu-me aquela tristeza. Meu Pai estava preparado para
acompanhar-me até o lugar do embarque: mas eu o achei tão fraco, tão
profundamente abalado, que me pareceu que não estava somente triste, mas
doente. Por isto pedi que não fosse até a praia, ao que acedeu com custo,
dando-lhe em casa mesmo o meu abraço de despedida. Eu tinha naquele momento uma
grande dor n’alma e só me parecia que nunca mais havia de ver meu Pai.

Embarquei.
Ia o vapor perdendo a cidade de vista e eu não pensava em minha filha, não
pensava em minha mãe: só levava em pensamento meu Pai.

Seguimos
daqui para Pernambuco a fim de tomar ali o paquete da Europa.

Felizmente
ao chegar em Pernambuco meu sogro desistiu de sua viagem à Europa: sentiu-se
fraco para uma longa excursão, começou a preocupar-se com a família, pensou que
não devia au-sentar-se dos seus por muito tempo e deliberou voltar. Esteve em
Pernambuco apenas uns oito dias e voltou para o Ceará. Eu, porém, resolvi
chegar até o Rio de Janeiro. Ao despedir-me de meu sogro, quando tomava o
paquete para o Ceará, chorei: pensava em meu Pai. Dois dias depois de sua partida segui para o Rio em um vapor estrangeiro.

É
inútil descrever as impressões que experimentei zo saltar no Rio. Mas
estabelecido em uma casa de pensão, logo quatro ou cinco dias depois tive um
sonho que muito me impressionou: sonhei que via meu Pai dar uma enorme queda,
ficando inteiramente sem sentidos. Eu o via com o corpo totalmente abandonado,
suspenso no vácuo, e por fim via-o estendido no chão, deitando-me o mais triste
olhar de piedade e sofrimento. Tive este sonho à noite e logo no outro dia o
contei a algumas pessoas, dizendo que estava impressionado e que estava com
vontade de voltar. Dissuadiram-me disto, considerando que aquilo nade.
significava, que o sonho é coisa vã, que tudo provinha da preocupação em que estava,
ausente da família, e que devia esquecer. E eu terminei por me conformar. Mas
passaram-se poucos dias e eu tive outro sonho quas« nas mesmas condições. Vi
meu Pai dar outra enorme queda, ficando na condição mais desesperadora; vi-o
agonizando mesmo. Desta vez não falei mais a ninguém: preparei as minhas malas
e voltei no primeiro paquete.

A
bordo vinha sempre pensando em meu Pai e fiz a seguinte prece a Deus: — Meu
Deus, conservai meu Pai; e se ele deve morrer, se ele tem de morrer, fazei que
viva ao menos até que chegue: que eu o veja ainda e possa assistir aos seus
últimos momentos .

Felizmente encontrei-o vivo; mas sofrera, ao que me disse
minha mãe, uma grave pneumonia, e estava ainda em convalescença. O médico o dera por bom.

Meu
Pai, entretanto, andava, conversou largamente comigo, ficou muito satisfeito
com a minha chegada, mas eu via que estava muito fraco e abatido.

Entretanto começou meu Pai a passar muito mal as noites,
tornando-se para ele intolerável a falta de atr. O médico mesmo se impacientou,
e tendo tentado alguns remédios mais enérgicos, tão grave considerou o caso que
me lembrou a ideia de fazer uma junta médica. Fez-se e eu assisti às
discussões. Ouvi então de um dos médicos, o Dr. João Moreira da Rocha, a
seguinte sentença: — Estou de acordo, trata-se com efeito de uma lesão cardíaca
trazendo como consequência uma pneumonia passiva: infelizmente é um caso
perdido.

Fiquei então certo de que meu Pai ia morrer. E conformado,
agradeci a Deus ter atendido a minha prece, permitindo-me que assistisse aos
seus últimos momentos.

Dias antes da crise final minha mãe se lembrou de lhe
perguntar se queria confessar-se. Ele acatou com transporte esta ideia e até
estranhou que já não lha tivessem lembrado. Era já tarde: mas um Padre foi
chamado, confessando-se meu Pai à meia-noite do dia 14 de agosto.

Não sei como possa explicar a impressão que experimentei
quando ouvi as exclamações que proferia meu Pai no momento em que o Padre se
aproximava de seu leito de dor. E foi por entre exclamações, no meio de uma
prece contínua que a confissão foi feita. O Padre retirou-se, e em caminho
disse à pessoa que o acompanhava que era raro se encontrar um moribundo assim,
que aquilo era uma coisa admirável, que aquilo era uma graça especial.

 

Pela
manhã recebeu meu Pai a
comunhão
e daí por diante já não pensava em outra coisa senão na morte.

 

Organizou-se
um pequeno altar na alcova e ele de momento em momento se voltava para as
imagens fazendo preces A esse

— Jesus, Jesus, Jesus — dizia ele, e perdendo gradativamente
a fala. ia sempre repetindo em voz quase imperceptível: — Jesus, Jesus, Jesus.

Por
fim perdeu de todo a voz, tornando-se-lhe cadavéricas ?s feições: porém mesmo
neste estado ainda movia os lábios e via-se pelo movimento destes que dizia: —
Jesus!

Eu já desejava que meu Pai morresse, tanto me doía aquele
sofrimento e por minha vez me impacientava quando lhe encontrava o pulso ainda
forte. Na primeira síncope que teve fui eu quem lhe apresentou a vela. Mas ele
voltou a si. Fiquei impressionado. Pareceu-me que eu, um ímpio, não estava nas
condições de apresentar a vela a um justo nos seus últimos momentos. Sen-ti-me
naquele momento indigno de meu Pai. Por isto me recusei daí por diante a lhe
apresentar a vela, limitando-me a pegar na imagem de Cristo. Outro foi
encarregado de pôr a vela na mão do justo que morria.

Quando
abriu a boca pela última vez, soltava ainda um gemido, um ai profundo quase
imperceptível. Parece-me que sentia uma dor incomparável: tinha na fisionomia a
expressão de quem chora. Ao mesmo tempo suspendia lentamente a mão trémula, levando-a
ao coração.

Depois
tudo cessou e meu Pai ficou imóvel e frio: estava morto. Eu o vi na sua última
agonia, exatamente como o vira pouco tempo antes em sonho, voltando para mim os
olhos amortecidos, com a mesma expressão de dor e resignação.

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