CARTA A JACKSON DE FIGUEIREDO (¹)
Meu caro Jackson de Figueiredo
Esta
carta foi traçada mentalmente, quando me achava de cama, na última enfermidade
de que fui acometido; e, agora, que já posso escrever, limito-me a reproduzir
com fidelidade o que então me vinha espontaneamente ao espírito. Significa isto
que é absolutamente sincero o que vou dizer-lhe. São reflexões que se me
apresentavam, de si mesmas, quase sem nenhuma co-participação de minha vontade,
gritos da consciência, que eu ouvia e não pedia conter, nem impedir, em
momento, em que tinha diante dos olhos, em visão clara, positiva, irrefragável,
o caráter vão de todas as nossas ambições, ainda as mais irresistíveis e
profundas, a esterilidade de todas as nossas mais alta aspirações, o nada de
todas as grandezas humanas, pressentimentos vagos e indefinidos do eterno e do
insondável, relâmpagos da merte. . .
Aí
vai, pois, o que eu pensava naquele momento triste, em que começava a me sentir
de tudo abandonado, mas também de tudo independente. Momento trágico, solene, e
que, para as pessoas de que me via cercado, se me afigurava de terror, pelo que
se lia de aflição em suas fisionomias, mas que eu encarava com absoluta
serenidade, certo de que nada se tem de perder e de que tudo tem de seguir, sem
perigo e inevitavelmente, o seu destino. Eu experimentava até, debaixo de certo
ponto de vista, profunda e incomparável alegria, como o navegador que antevê a
descoberta de noves continentes.
É
que a visão da morte que eu tinha presente não me causava susto, nem pavor, e
ao contrário me enchia o coração de suaves esperanças, consolando-me de todas
as decepções da vida e de todas as ilusões do mundo.
(1) pp. 105/114
Não
morri, entretanto; e levanto-me, seguro de que não morrerei já, como se ainda
não estivesse terminado o que me fora reservado fazer. E o meu primeiro trabalho,
ao levantar-me, é escrever-lhe estas linhas. Publique-as, é este o meu desejo,
como julgar mais conveniente. Pode ser que façam bem a outros que estão
irremediavelmente perdidos e que tanto temem a morte, insinuando-lhes, ao
espírito angustiado, que estão, não perdidos, mas salvos.
Passemos
agora propriamente ao que pensei em escrever-lhe doente.
Já
atravessei mais de um quarto de século, esforçando-me, quase ininterruptamente
quanto em minhas forças cabia, por examinar umas tantas questões e desenvolver
umas tantas ideias que têm, até aqui, constituído o objeto particular de minhas
cogitações, e vou chegando quase ao fim de minha obra, e ainda não consegui
fazer, que eu saiba, um só discípulo, a não ser alguns íntimos que não
pretendem, por modo algum, tornar-se conhecidos do público. De certo tenho
encontrado géneros acolhimento em nobres e valiosos espíritos. E Rocha Pombo,
Alcedo Marrocos, Tomás Pompeu, António Teodorico, Pedro de Queiroz, Augusto
Meira, Moreira de Souza. Álvaro D. Fernandes, Nestor Vítor, Laudelino Freire,
Pedro de Couto, Porto Carreiro, José Veríssimo, Clóvis Beviláqua e outros, são
brasileiros ilustres, homens de alto valor intelectual e moral que me animaram
com seus aplausos. E alguns honraram a aparição dos livros que venho
sucessivamente publicando desde 1895, com apreciações e críticas que, não raro,
chegaram a colocar tão alto o meu nome e as minhas ideias que eu mesmo terminei
por desconhecer-me. Isto, para não falar dos que já são mortos, como Araripe
Júnior, Sílvio Romero e outros. Todos estes homens, porém, são espíritos que
atingiram o desenvolvimento completo de seu pensamento, consciências
perfeitamente esclarecidas, espíritos independentes e fortes, tendo chegado a
seu mais alto grau de poder, com seus ideais próprios, com suas preocupações
morais e estéticas, com seu ponto de vista determinado em todas as
manifestações da vida espiritual;1 e seria, em tal caso, loucura de
minha parte esperar que fizessem adesão às minhas ideias. Ê o que seria absurdo
exigir de minhas forças. Tanto valeria, por exemplo, exigir de um ténue raio de
sol que tivesse virtude e poder para produzir uma comoção na montanha. Bem
compreendo de que natureza foi o sentimento que tiveram para comigo. Não foi
certamente o de admiração e solidariedade: mas provavelmente o da simples
curiosidade. Acharam-me talvez curioso, aplaudiram-me; mais, apenas como quem
aplaude um obscuro artista que representa o seu pequeno papel na comédia. Não
compreenderam que me esforçasse exclusivamente por amor da verdade, e que todo
o aplauso me fosse indiferente.
Entenderam que era necessário conceder-me um pequeno lugar
no banquete dos que vencem. Viram-me, além disto, isolado e triste; quiseram
consolar-me no meu isolamento e na minha tristeza. Interessaram-se por mim;
mas, sem dúvida, movidos unicamente pelo abandono em que me viam. Vieram ao meu
encontre, mas como quem se propõe a socorrer um náufrago que se afunda. Nobre e
generoso socorro que ainda agora me comove. . . Mas. por mais que me sinta
reconhecido, devo observar que não era isto o que eu ambicionava. Aplausos,
socorro?. . . Mas para que tudo isto? para levantar-me do abatimento em que me
achava?.. . Ora, abatidos hão de ser todos. . . O que eu ambicionava era coesa:
e solidariedade, cooperação para a vitória, na luta em que imaginava
empenhar-me — luta pela verdade, luta pela justiça, luta pelo aperfeiçoamento
moral — eterno combate que sempre se me afigurou como o objetivo essencial e c
destino próprio do espírito humano. Com este objetivo foi que não cheguei a
perceber ninguém que viesse ao meu encontro: o que tem naturalmente sua
explicação neste fato — que claramente se fazia visível a todos que eram vãos
os meus esforços e que eu me iludia, em absoluto, quanto à significação e valor
de minhas ideias.
Não
era, aliás, aos homens de alta cultura, aos filósofos, acs sábios, aos
pensadores e artistas que eu pretendera dirigir-me. Nem tampouco aos grandes e
poderosos da sociedade. Foi o que expressamente fiz sentir em um de meus
livros, quando disse: "Não é aos sábios, não é aos filósofos que dedico o
meu trabalho; mas, antes, à multidão anónima, em particular, aos que sofrem. Por
isto mesmo consiste o meu maior esforço em escrever com clareza, em linguagem
simples, acessível a todos". E, desenvolvendo bem esta ideia, ainda tive
de acrescentar: "Para falar aos sábios falta-me a necessária autoridade.
Meu espírito não se formou à luz dos laboratórios, nem ao ruído das máquinas
com que a ciência transformou o trabalho das indústrias e o movimento das
cidades; mas, antes, nos embates da vida, em particular, na observação do
sofrimento humano". Enganei-me, porém, quando imaginei que poderia exercer
qualquer influência sobre a multidão. Esta nem sequer me percebeu, e menos
ainda me ouviu. Perdi-me no seu seio, confundiu-me com ela; mas sem me
destacar, em coisa alguma e sob qualquer pretexto, da massa comum. Ou antes,
atravessei a multidão: mas apenas como uma sombra que ninguém percebe; estive
com ela em contato, mas como um estrangeiro que nada consegue transmitir do que
sente e deseja, por falar em uma língua que ninguém conhece, e que apenas se
expõe ao ridículo, ou ao desprezo.
Isto, entretanto, é justo, e
faltar-me-ia, de todo, vazão para formular qualquer queixa. Nem seria
possível acontecer o contrário. De fato: com poderia pretender influir sobre a
multidão, eu que sempre me senti isolado no meio dela, solitário que fui no
pensamento e na vida?. . .
Que
me restava depois disto? Procurar refúgio no seio da mocidade? É o que seria
para mim bem desejável, pois bem sei que é a mocidade que representa o futuro.
Além disto, é com a mocidade que mais perto me tenho sempre encontrado, o que
se explica pelo fato de ter dedicado minha vida, em grande parte ao ensino. Mas
tenho notado que a mocidade nunca se mostrou para comigo, senão indiferente e
fria. Nunca consegui nela despertar nenhum entusiasmo, nenhuma curiosidade
sequer. Tive, desde muito cedo, o aspecto e as maneiras de um velho: sou,
talvez por isto, antipático aos moços. A verdade é que me tenho feito ouvir por
muitos jovens estudiosos; mas nunca encontrei uma consciência juvenil com a qual
me sentisse perfeitamente identificado pelo pensamento. Também, pelo que tenho
observado, a mocidade é, na aparência, ávida de novidades; mas, no fundo,
dominada por velharias, conservadora e retrógrada, incapaz, por si mesma, de
reagir contra a rotina. Nos moços predomina a animalidade, a escravidão da
carne.
Nesse sentido pode dizer-se que a vida é uma
espiritualização contínua (o que equivale a dizer: libertação contínua); e é
assim na extrema velhice que se deve encontrar o mais alto grau de espiritualidade.
É por isto que nenhum dever nos é mais imperioso que o respeito à velhice. Os
grandes crimes são muito mais comuns nos moços que nos velhos. E é bem sabido
que foi a mocidade ateniense que condenou Sócrates à morte.
O insucesso de meu pensamento foi, pois, completo, absoluto,
integral. Isto, já perante os nossos homens de mais alta cultura que
representam a elite da sociedade; já perante a multidão que representa a massa
inconsciente; já perante a mocidade que representa o futuro. Foi o que me
pareceu, a princípio, difícil de explicar. Mas depois tudo compreendi. Se a
ninguém consegui impressionar por minhas ideias, a razão é esta: é que meu
pensamento, por si mesmo, é absolutamente ineficaz. Realmente o fato não pode ter
outra explicação. Se as questões de que me tenho ocupado a ninguém interessam,
é que, de si mesmas, são sem nenhum interesse: nada mais claro. Pensei coisas
inúteis, eis tudo. sem nenhuma significação, sem nenhuma objetividade, sem
nenhum valor real. É esta a verdade triste, mas irrecusável.
Eu,
entretanto, imaginara trabalhar pela verdade. E, como penso que a verdade está
necessariamente destinada à vitória, sonhara com a vitória. Não com a
minha vitória, propriamente dita, com a minha vitória, considerado eu como
indivíduo; porque bem sei que o indivíduo é apenas um acidente de momento, uma
ilusão passageira; mas com a vitória de minhas ideias. Tal fora o meu sonho:
fantasias de louco, visão alucinante de demente, delírio que não podia deixar
de terminar pelo mais tremendo desengano. A verdade é que, iludido com as
miragens de meu próprio espírito, vivi sempre a acreditar na realidade de
combinações puramente imaginárias.
Fui,
pois, no fundo, um visionário, um simples cavaleiro andante das ideias, a
imaginar fantásticos combates, ingénuo construtor de fantasmagorias. E se
aquele que se propõe a tratar das grandes questões do espírito, pode ser
chamado um semeador de ideias, fui apenas um semeador de ideias mortas: pobre
Quasímodo espiritual, estropeado e ridículo; D. Quixote do pensamento, a
fantasiar ideias absurdas; a triturar o íntimo, vazio de esperanças, e a
esvurmar amarguras e quimeras.
Mas esta ilusão passou. E foi certo, afinal, de que havia
perdido de todo o meu tempo, que, desiludido do valor de meus trabalhos, tomei
a resolução de não escrever mais uma linha sequer, sobre assuntos filosóficos,
deliberando voltar à profissão de advogado: profissão, com que me iniciei na
vida; bem penosa e ingrata, à qual nunca me pude adaptar de todo, e que já uma
vez, quando me sentia mais revoltado contra certos processos ordinariamente em
uso no Fórum, cheguei a definir: advocacia, arte de legalizar a fraude. Era,
entretanto, a única profissão a que poderia na ocasião recorrer. Resolução
tardia e vã e que, já agora, de nada poderá servir-me, porque, no esforço a que
me entreguei, sinto que minhas energias se esgotaram. Compreendi então que
havia cometido uma grande falta. E desta falta duramente me acusa a
consciência, pois é certo que me desinteressei daqueles que de mim mais
diretamente dependem. De maneira que, pretendendo ou imaginando entregar-me a
uma obra de valor universal, sonhando ser útil ao meu país e aos homens de meu
tempo, em verdade fui inútil até para os meus filhos. Tal foi a situação
tristíssima a que fiquei, depois de tudo, reduzido. E de todo o trabalho enorme
a que me entreguei com tanto entusiasmo e amor, de toda a penosa tarefa a que
dediquei minha vida, nada mais me ficou, por fim, a não ser o sentimento vivo e
doloroso da inutilidade de meu esforço, e a decepção e tristeza de minha
existência perdida.
Ê
fácil imaginar de que natureza foi a impressão que experimentei. Foi como se
estivesse assistindo, ainda em vida, à morte de meu próprio pensamento. Fui
inútil — tal foi, em conclusão, o último grito da minha consciência, a minha
confissão final e definitiva, ficando assim, em face de minha própria razão,
sem solução possível, o problema de minha existência, que eu mesmo não
compreendi.
Sou
alguma coisa? Reduzir-me-ei a nada, como em nada se: tem sempre
resolvido tudo o que hei feito em minha vida?. . .
Tal
era, meu caro amigo, a disposição de meu espírito, quando se deu o nosso
encontro.
Deve
estar bem lembrado. Faz pouco tempo ainda. Foi uma coisa rápida; uma simples
apresentação, uma ligeira troca de palavras, nada mais.
Notei-lhe
qualquer coisa de estranho no olhar, altamente expressivo. Expressão que não
sei se era de tristeza e desalento, ou antes de coragem: uma mistura de
tudo. Além disto, foi-me apre-‘ sentado como sergipano, e eu me tenho
acostumado a observar que todo sergipano tem sempre qualquer coisa de
extraordinário;
Já
nos conhecíamos, mais ou menos, como visionários que somos de um chamado mundo
de perfeição e de verdade: mundo com que sonhamos, bem pouco compatível com
esta república em: que vivemos: república de políticos e vagabundos,
e, agora, pois último, de assassinos.
Encontramo-nos,
depois, muitas vezes. Reunimo-nos sempre.’ Trocamos ideias, trocamos alguns
livros. Li seu estudo sobre Xavier Marques. Foi uma surpresa. Não sou dado,
aliás, a leitura dé trabalhos de crítica literária propriamente dita. Mas este,
li-o quase de um fôlego. Encantou-me aquela maneira toda pessoal de fazer a
apreciação dos valores; aquele modo de dizer, extremamente simples, mas ao
mesmo tempo autoritário e forte; eloquente e sincero, sugestivo e vivo. Ainda
não tinha lido uma linha sequer de Xavier Marques. Mas fiquei a admirá-lo como
um gigante.
Li,
depois, as reflexões que vem publicando em artigos sucessivos, sugeridos por
meus trabalhos. Foi para mim um renascimento. Vi que minhas convicções mais
profundas repercutiam vivas e verdadeiramente eficazes através de sua
consciência. Compreendi,; então, que me tinha enganado, quando se me
afigurou que havia assistido à morte de meu pensamento. Não: meu pensamento não
está morto. E estou, pelo contrário, convencido, agora, de que não somente está
vivo, como além disto, se destina à vitória. O que’ me matava era o isolamento.
Uma consciência que se isola é uma energia que se perde, que se torna
infecunda: planta a que não: só faltam raízes no solo, como ao mesmo tempo,
está impedida de receber todo o influxo da luz. Isole-se uma consciência —-
ei-la reduzida à situação de uma luz que para
sempre se apaga; é a solidão do deserto, o silêncio da morte, a esterilidade, o
nada. Una-se, porém, uma consciência a outra consciência; esta, a outra: esta,
ainda a outra; e assim sucessivamente, e teremos uma cadeia, que levará ao
infinito: é a fonte viva do amor, que tudo perpetua. o ideal do futuro, a visão
profunda do eterno. Nada, portanto, mais falso do que essa pretendida grande
descoberta de Ibsen, feita pelo órgão de uns seus personagens mais célebres:
"que o homem mais poderoso do mundo é o mais isolado, aquele que conseguiu
poder viver absolutamente só". E razão tinha, pelo contrário, um grande
visionário, Feuerbach, quando dizia: "O idealismo anda acertadamente em
procurar no homem a origem das ideias, ms.s erra, quando acredita que
possam decorrer do ser isolado, como existindo por si, do homem fixado como
alma, em uma palavra, do eu sem um tu, dado pelos sentidos. É
somente, pela comunicação, pela conversação do homem com o homem, que nascem as
ideias. Não se chega só, não se chega, senão com outrem, às ideias, à razão em geral. São necessários dois seres humanes para procriar um ser humano, intelectual, como
físico: a sociedade do homem com o homem — eis o primeiro princípio e o
critério da verdade e da generalidade. O homem, vivendo só, isolado, vivendo
somente para si, não tem a essência do homem, nem como ser moral, nem cemo ser
pensante. A essência do homem está na sociedade, na união íntima do homem com o
homem, união que, não obstante, repousa sobre a distinção do eu e do tu.
O isolamento é o finito, o limitado; a associação é a liberdade e a
infinidade. O homem, por si mesmo, é o homem (no sentido usual da palavra); o
homem com o homem, a unidade do eu e do tu, é Deus".
Foi
o que percebi claramente pela vida nova de que me senti inundado, só pelo fato
de ter encontrado uma consciência que se identificou perfeitamente comigo, na
mesma corrente de ideias.
Veio-me,
então, à mente, esta reflexão: será este o meu discípulo desejado?. . .
Discípulo,
não. Encontrei-o, como sabe, espírito feito, aos vinte e três anos de idade.
E
espírito feito, deste modo: tendo atravessado os extremos opostos do
pensamento, passando, do materialismo em todos os seus tons mais rubros e
ameaçadores (empirismo, positivismo, evolucionismo, anarquismo), através do
amoralismo ultra-reacionário e alucinante de Nietzsche, para uma concepção
profundamente mística do mundo, na qual, proclamado e reconhecido o sentimento
com a fonte mais profunda do saber, representa o conceito do divino, o
fundamento e a base, o princípio e o fim.
O
coração tem suas razões que a razão não compreende — este princípio de
Pascal parece ter sido o ponto de partida de suas investigações.
É
este princípio equivalente a este outro: acima da razão o coração: o que quer
dizer que o sentimento é o mais alto critério da verdade. De onde se segue que
é somente com apeio no sentimento que nos podemos elevar à compreensão do mais
alto princípio de que tudo depende: o que significa no fundo, que Deus nos é
dado, não pelo raciocínio, mas pela intuição. Daí, para traduzir, de modo mais
claro, seu pensamento, esta fórmula: Deus não se prova, mas sente-se: verdade
profunda que se torna de uma eloquência irresistível no seu modo de dizer,
quando avança, em tom categórico, esta proposição que tem alguma coisa do
clarão vertiginoso do relâmpago: "A consciência é Deus em nós".
Como
Novalis, poeta e filósofo; como Pascal, filósofo torturado pela nostalgia do
infinito, é com estes dois grandes espíritos que o acho parecido, sobretudo com
Pascal, considerando a complexidade extrema de seu espírito, onde se encontram
hinos e tempestades, cimes iluminados e tenebrosos abismos. Também, de Pascal,
disse de La Valette Monbrun, que parece ter sido o maior génio que a humanidade
já produziu.
Compreende-se que um espírito assim, feito para a
independência e para a originalidade, não poderia ser discípulo de ninguém. Mas
temos certamente afinidades profundas: fato este, de que experimentamos o
sentimento vivo e palpitante. E foi talvez isto o que, desde logo, tão
profundamente nos uniu. Pertencemos ambos ao mesmo radical espiritualismo;
domina-nos, a ambos, a mesma preocupação moral. Deste modo, pondo de parte
divergências secundárias, mais aparentes que reais, mais de técnica que de
princípios, a verdade é que pensamos fundamentalmente do mesmo modo. E esta
coincidência de duas consciências numa só e mesma concepção, é mais uma
garantia no sentido da verdade de nossas ideias porque, dado que somos duas
consciências formadas em circunstâncias inteiramente diversas, se coincidimos
no mesmo pensamento, é mais natural supor que coincidimos na verdade que na
ilusão, porque a verdade é uma só e a mesma para todos, ao passo que a ilusão é
múltipla e varia ao infinito.
E
esta concepção, demais, não é uma invenção nossa. É a tradição mesma do
espírito humano, sempre viva e vitoriosa, fortalecida no sacrifício e
retemperada no fogo dos mais formidáveis combates, através de todas as
operações e movimentos da história.
É
por isto que já não me resta nenhuma dúvida. Estou agora convencido: havemos de
vencer. Um homem nada representaria e teria fatalmente de desaparecer. Mas
desde que a um homem se liga outro homem pelo laço
das mesmas ideias, logo se forma uma cadeia, um centro de atração irresistível.
Outros deverão chegar em nosso apoio: é o que não se fará esperar muito tempo.
Basta que esse laço de ideias que nos une, seja, não uma simples convenção
banal, como ordinariamente sucede, mas uma convicção sincera e inabalável. Sim,
porque a sinceridade é já a verdade, ou pelo menos, um de seus aspectos
essenciais, e à verdade está necessariamente reservado o domínio universal, o
império sobre as consciências.
O que temos de fazer não se pode
ainda determinar. Mas com certeza iremos longe. E nossa obra terá de ser ainda
trabalhosa em extremo; mas já tem raízes profundas, e não poderá ser destruída.
Confiemos,
portanto. É esta a verdade: venceremos. Nem há mais razão para vacilações. É o
que se verá.
: E assim, que ninguém duvide.
Quasímodo reage eficazmente contra o mal. D. Quixote vencerá, com es que hão de
fazer a renovação espiritual do mundo.
E
que a multidão estremeça; porque terá fatalmente de ser subjugada, orientada em
suas representações obscuras e incertas, esclarecida em sua cegueira, vencida
em seus instintos selvagens.
• Rio, 30 de setembro de 1915.
R. de Farias Brito