NOVOS DESENVOLVIMENTOS DA DOUTRINA DE MONROE

NOVOS DESENVOLVIMENTOS DA DOUTRINA DE MONROE

Oliveira Lima

I

A Doutrina de Monroe está atravessando um mau momento: digo mau porque a estão atassalhando, não porque esteja ela perigando. Essa doutrina parecia haver chegado à condição feliz de não mais ser discutida. Parece, porém, que se tratava de um silêncio fortuito, não de uma aceitação deliberada. A própria Inglaterra, que pela boca de Lorde Salisbury considerara o monroísmo senão como doutrina internacional, fazendo parte do código de direito das gentes, pelo menos como regra fixa da política norte-americana, acaba de recalcitrar diante das palavras do embaixador dos Estados Unidos, o publicista Page — palavras tendentes a consagrar o direto de intervenção do Governo de Washington nas questões puramente domésticas da América Latina, dela expulsando de vez a Europa, a qual entretanto não dá mostras de querer reanexar o Novo Mundo, e aí afirmando o domínio financeiro e comercial da América do Norte.

Aliás, por ocasião do conflito diplomático anglo-americano a propósito de Venezuela e sua fronteira com a Guiana Britânica, o secretário de Estado Olney, a quem justamente o Presidente Wilson quis fazer embaixador em Londres — que o ilustre advogado de Boston entendeu não dever aceitar por já ser quase octogenário — a chancelaria americana declarara ser a vontade dos Estados Unidos o fiat do continente. A afirmação fora contudo um tanto teórica, vaga e enfática na sua expressão: agora é que ela se vai tornando prática a valer, especialmente acompanhada, no tocante à Inglaterra, da resistência a conceder, consoante o tratado vigente,-direitos iguais no Canal à marinha mercante britânica, bem como do propósito dc prejudicar os interesses ingleses no México em proveito dos próprios interesses nacionais dos Estados Unidos.

Dir-se-ia que o Partido Democrata pretende desforrar os trusts do prejuízo que lhes vai causar a modificação das tarifas aduaneiras entregando-lhes de mãos c pés atados a América Latina para campo das suas especulações e lucros. Na nossa rica língua portuguesa, rica dc locuções e provérbios tanto quanto de vocábulos, chama-se a isto fazer barretadas com o chapéu alheio…

Cada vez me convenço mais de que a velha filosofia da história tinha razão: que a política é muito mais uma questão de homens que de princípios. Digamos, sem armar à teoria nova, que os princípios desertam das ocasiões e que os homens aparecem para as ocasiões. Aqui está o Presidente Wilson, cujo espírito liberal não pode ser posto em dúvida perante o seu passado de educador e de publicista, de professor c de historiador, aqui está o secretário Bryan, apóstolo quase belicoso da paz e concórdia entre os homens de boa e de má vontade, fazendo ambos imperialismo tanto quanto o Sr. Roosevclt, ‘esquecidos dos princípios cardiais de seu partido e das promessas da plataforma eleitoral.

Ê verdade que Wilson e Bryan não andaram à procura de brigas, nem à cata de costados sobre que aplicar o big stick que o Sr. Roosevelt deixara encostado a um canto da sala de despacho da Casa Branca, como um troféu das suas excursões venatorias pelas tapadas da política internacional americana. Os incidentes surgiram sem que os Estados Unidos se pudessem decentemente esquivar a intervir neles, já porque para isto os procuram, já porque sem isto os incomodam. E uma vez que têm que intervir, vão formulando princípios para não desmentirem as origens filosóficas do atual governo e ficarem em paz com a própria consciência.

Assim é que para a Doutrina de Monroe, que é um princípio já velho do direito público americano ou mais precisamente norte-americano, foi também preparada uma novíssima interpretação. Chama-se — o jornalista V. V. que no Jornal do Comerão se ocupa com autoridade de assuntos econômicos, sociais e polnlcos achou a justa expressão — "o dever de chamar à razão e à liberdade os povos transviados da América Central", isto enquanto não chega a vez dos igualmente transviados da América do Sul.

Destarte já se não contentam os Estados Unidos com fiscalizar em São Domingos a percepção das rendas em benefício dos credores europeus, que agora recebem seus juros sem terem o trabalho de cobrarem os impostos. Também vão fiscalizar nessas partibus infi-delium, por meio de uma comissão extra-oficial e de quatro vasos de guerra que não se podem chamar senão oficiais, as eleições presidenciais, o que não deixa de ser um sossego tanto para o candidato que lá estiver ameaçado de uns 400.000 redondos quanto para o outro candidato em quem o povo enfurecido ou divertido quiser experimentar o tratamento dispensado aos cinco generais do Equador e a numerosos presidentes da América Central.

Como todo favor se paga, e tais favores são de extrema relevância, os Estados Unidos reclamam apenas monopólio das concessões comerciais. Nada mais de capitais europeus; aos Estados Unidos, acaba de declará-lo o Presidente Wilson^ "incumbe defenderem as nações deste hemisfério a emanciparem-se dos interesses materiais dos outros países, a fim de que essas nações possam gozar plenamente da sua liberdade constitucional".

Pode chamar-se a isto engolir a doutrina de Drago, ou antes extirpá-la pela raiz, pois que, não havendo dívidas é axiomático que se não verifica o ensejo de cobrá-las pela força.

O credor será um só, recorrendo tão-sòmcnte a meios suasórios.

Nada há com efeito de mais sugestivo do que um big stick.

São os Estados Unidos um campo conhecido, o maior campo que existe de emprego de capitais estrangeiros; mas estes aí não gozam na sua exploração industrial de uma situação privilegiada, segundo ocorre cm países de reconhecida inferioridade de civilização e sobretudo de reconhecida inferioridade de ordem, onde é preciso que os capitalistas façam a polícia em redor da colocação dos seus fundos, para darem o brado de alarma aos desperdícios que ameacem tragá-los sem esperanças de salvação, ou protestarem contra denegações de justiça que porventura sucedam a seu respeito.

Rio, dezembro de 1913

II

O Presidente Wilsonassim formulou um dia o seu credo: "Creio piamente que a lei moral não foi expressa somente para os homens em relação ao seu caráter individual, mas que também o foi para as nações". Esta sentença à John Bright explica em boa parte o proceder recente, tão discutido, dos Estados Unidos em assuntos continentais, se bem que seja evidente que os Estados Unidos se regulam nesta matéria muito mais pela proteção aos seus interesses do que pela proteção aos seus vizinhos e irmãos americanos, contra possíveis vexames de que estes irmãos são afinal de contas na maioria dos casos os culpados. As razões morais não são inconciliáveis com as positivas.

Quando o Presidente Taft evitou que um sindicato alemão empreendesse em Nicarágua um canal em concorrência com o do Panamá, fê-lo decerto para não comprometer o futuro da colossal tarefa do Governo norte-americano. Quando concessões a sindicatos britânicos são anuladas na Colômbia e no México, não tem em vista a Casa Branca senão defender a prioridade mercantil da proximidade topográfica.

Esta irmandade geográfica deve concluir por irmanar a cultura dessas dessemelhantes nações, e por isso é conveniente começar por ter em cada uma gente de feição. Não lhe servem ditadores nativistas; preferem espíritos cosmopolitas. Os primeiros são tanto mais facilmente apodados de bandidos quanto lhs não faltam no geral crimes com que possam ser denunciados à opinião sensível do mundo O Presidente Wilson dizia há poucas semanas, num discurso, que estimaria acreditar que em parte alguma deste hemisfério se pode manter um governo manchado de sangue ou repudiado pelos governados. Os segundos podem antes ser réus de habilidades de mão de passes de prestidigitação administrativa — pecados veniais com que melhor se acomoda a consciência alheia, mesmo porque de há muito com eles associou o governo doméstico destas terras. Não era só a monarquia uma "planta exótica": era-o igualmente a honestidade.

A aspiração manifestada pelo Presidente Wilson não constitui sem dúvida uma regra de relações internacionais. Um assassino aclamado pelo seu povo impõe-se aos demais povos, contanto que o seu governo mantenha a ordem, garanta a vida e a propriedade… dos estrangeiros, conserve abertos os tribunais e franco o negócio Huerta não é tanto indigno da proteção norte-americana porque mandou fuzilar à traição o seu inimigo preso e desarmado, no ato de ser conduzido para o cárcere — Don Porfírio fazia o mesmo — como porque apelou para interesses europeus e com eles pretendeu fundar um contrapeso econômico que fizesse oscilar ò fiel da balança política do México e subir o prato carregado pelos Diaz e Li-mantours com concessões norte-americanas.

Será aliás o General Huerta de fato um bandido à luz da moral governativa latino-americana? Êle não tem pessoalmente culpa de não constituir um povo a população indígena do seu país, ignorante, bisonha, indolente, indiferente; não lhe assiste pessoalmente a responsabilidade de andar rodeado de aduladores subservientes e passivos que lhe endeusam o gênio porque não ousam arcar com sua vontade; não pensa proceder mal quando se entrega a violências e ordena crimes, visto que por isso o aclamam os seus partidários.

As atenuantes não o absolvem todavia, e compreende-se a repugnância que a idealistas como Wilson ou como Bryan, homens de uma austeridade patriarcal nas suas famílias, de uma honestidade imaculada nas suas relações particulares e oficiais; de um devotamen-to cívico a toda prova à sua pátria, deve inspirar urri Huerta ou qualquer outro caudilho do mesmo jaez. Se um homem |e bem timbra em escolher suas relações íntimas e faz dificuldades cri estreitá-las com certos personagens que reputa menos dignos da Sua estima, por que não há de uma nação da elevação moral dos Estados Unidos agir de modo análogo no convívio internacional?

Tal relutância não pode, é claro, chegar ao rompimento simplesmente por si, como bem diz a Nation, mal poderia o Governo americano recusar-se a reconhecer um governo mexicano pelo fato de originar-se este na força, quando o México jamais conheceu nem conhecerá por longo tempo outra espécie de governo.

Com as afinidades espirituais é lícito coexistirem as afinidades materiais. O temperamento prático dos americanos leva-os a quererem implantar em terras que julgam abençoadas pela Natureza e malfadadas nas mãos dos homens que as exploram, o predomínio dos seus interesses; por que não haveria sua feição intelectual de levá-los a quererem também aí implantar o predomínio da sua tolerâancia, da sua cuítura, da sua moral verdadeiramente cristã? No direito de intervenção que lhes confere esta superioridade indiscutível e que êles assumem de fato pela doutrina formulada para sua garantia, os Estados Unidos põem porém inteiramente de lado um elemento importante que se insurge contra o exclusivismo do seu virtual protetorado. A Inglaterra é uma potência americanacom título igual ao dos Estados Unidos; a sua suserania sobre o Canadá, o seu domínio sobre a Jamaica e outras Antilhas, a sua posse da Guiana e das Malvinas outorgam-lhe tais foros, e mais nações há, como a Holanda, como a França, como a própria Dinamarca, que exercem autoridade sobre ilhas e frações do continente americano.

Não é pois êsle continente tão defeso à soberania européia. Não bastam palavras para destruí-la, e o Canadá poderá quiçá vir ainda a oferecer indiretamente à expansão norte-americana o anteparo que Napoleão III quis levantar-lhe no México com o império de Maximiliano. Na própria América Latina são reais os fatores dc intransigência, e o Sr. Zeballos em Buenos Aires forneceu há pouco ao Sr. Roosevelt a noção clara do que pode ser num dado momento a repulsa argentina. No Chile os estudantes ofereceram a contraprova dessa asserção.

A confiança não se impõe: conquista-se, como a fotografia do chefe do P. B. C. segundo declaração do eminente político, a um deputado que lha solicitava. Pode, por exemplo, o nosso Congresso votar a emenda que foi apresentada no Senado, em virtude da qual ficariam os bancos estrangeiros privados de poderem abrir contas-correntes de pequenos depositantes. Faria tal proibição afluir o pé de meia popular às caixas econômicas em maior proporção, ou não estimularia antes a desconfiança que faz com que muitos levem o seu dinheiro para ser guardado pelos "ingleses"?

A novíssima Doutrina de Monroe não está destinada a mais ampla aceitação do que a antiga. A América Latina desconfia das lições de moral do Presidente Wilson não menos do que das arremetidas sociológicas do Presidente Roosevelt. O México está até tomando aspecto de vítima e Huerta — quem o diria? — de cordeiro perseguido pelo lobo yankee.

Rio, dezembro de 1913

Fonte: Oliveira Lima – Obra Seleta – Conselho Federal de Cultura, 1971.

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