O INDIANISMO DE GONÇALVES DIAS – Silvio Romero

Silvio Romero (Lagarto, 21 de abril de 1851 — 18 de junho de 1914) – História da Literatura Brasileira

Vol. III. Contribuições e estudos gerais para o exato conhecimento da literatura brasileira. Fonte: José Olympio / MEC.

TERCEIRA ÉPOCA OU PERÍODO DE TRANSFORMAÇÃO ROMÂNTICA — POESIA (1830-1870)

CAPITULO III

SEGUNDA FASE DO ROMANTISMO E SEU MOMENTO CULMINANTE: O INDIANISMO DE GONÇALVES DIAS

É agora o segundo momento do romantismo brasileiro, a fase inaugurada por Gonçalves Dias. É o seu ponto culminante. O poeta maranhense e José de Alencar, o célebre romancista do Ceará, são inquestionavelmente os dous mais ilustres e significativos tipos da literatura romântica entre nós.

Talentos onímodos, quer um, quer outro, prendem-se pelo laço comum do indianismo e pela patriótica empresa de, evitando os exclusivos moldes portugueses, dar cores próprias à nossa literatura. Caminharam impávidos para a frente, guiados por seu ideal, alentados pelo entusiasmo das boas causas.

Quase não ficou um recanto das pátrias letras em que eles não pusessem as mãos e com’ elas os brilhos de seus talentos e os sons festivos de suas vitórias.

Na poesia, no teatro, na história, na etnografia, Gonçalves Dias fez-se ouvir com elevação e inquestionado valor.

Romance, drama, comédia, folhetim, política, crítica, polêmica, poesia, por tudo passou José de Alencar e seria preciso torcer e marear a imparcialidade da história para negar-lhe os desusados títulos de seu merecimento.

Eu não sou e nunca fui indianista: sempre estive na brecha batendo os exageros do sistema, quando das mãos dos dous grandes mestres passou às dos sectários medíocres. Mas esse velho, e por mim tão maltratado indianismo, teve um grandíssimo alcance: foi uma palavra de guerra para unir-nos e fazer-nos trabalhar por nós mesmos nas letras.

Conseguido esse resultado, os dous chefes calaram as tiorbas selvagens e empunharam outros instrumentos. È, destarte, a mor parte de suas obras é construída fora das inspirações do indianismo; mas as melhores, porque escritas com toda a alma, são as que ficam dentro do círculo daquele. É por isso que as poesias americanas são ainda e sempre as mais saborosas de Gonçalves Dias, e O Guarani e a Iracema os mais valentes romances de José de Alencar.

A maior vantagem da romântica entre nós, já o disse uma vez e o repito agora, foi afastar-nos da exclusiva influência da imitação portuguesa. O romantismo português possuía um triunvirato, por todos admirado, em que era vedado tocar: Garrett, Herculano e Castilho. Tiveram no Brasil admiradores e não tiveram imitadores. Isto é significativo.

Os talentos nacionais, embebidos na contemplação da natureza, da vida americana e das belezas da literatura européia, não quedaram a imitar os três corifeus lusos.

Devemos isto aos Gonçalves Dias, aos Alencares, aos Penas, aos Macedos, aos Álvares de Azevedo, aos Agrários.

Antônio Gonçalves Dias (1823-1864) não precisa que lhe trace a biografia. Este trabalho está feito, definitivamente feito, por Antônio Henriques Leal no III vol. do Panteon Maranhense. Consignarei apenas algumas datas e farei algumas observações que me elas despertam. As datas ajudam a compreender a formação do talento do poeta dos Timbiras. Ele é um completo produto de sua raça, do meio em que passou a infância e dos estudos que fez em Coimbra. As viagens posteriores de quase nada lhe serviram.

Nascido em 1823 em Caxias, passou aí e em São Luís os quinze primeiros anos de sua vida. De 1838 a 1845 viveu em Portugal, formando-se em Direito na Universidade coimbrã. Foram sete anos que alguma cousa lhe deixaram no espírito.

Passando rapidamente pelo Maranhão (1845-46), em meados de 1846 achou-se no Rio de Janeiro, que habitou seguidamente até 1854, fazendo apenas uma rápida viagem ao Norte (1851). De 54 a 58 viveu na Europa, que tornou a visitar de 1862 a 64, ano em que faleceu de volta ao Brasil. O intervalo de fins de 1858 a 62, passou-o em viagens pelas províncias do Norte na célebre comissão das borboletas.

Em 1862, antes de seguir pela última vez para o Velho Mundo, à busca de melhoras para sua saúde, tocou ainda rapidamente no seu amado Rio de Janeiro.

Gonçalves Dias morreu aos quarenta e um anos; destes, treze a quatorze foram passados na Europa e o resto no Brasil.

Tais algarismos não vêm aqui a esmo; comparados àqueles em que apareceram os seus livros, e já foram indicados ao tratar do Barão de Paranapiacaba, bem mostram que o poeta, morto em 1864 aos quarenta e um anos, se tivesse desaparecido em 1854, aos trinta e um, nós teríamos o nosso Gonçalves Dias completo.

Todas as suas obras foram escritas até esse ano, compreendendo os Cantos, os dramas, os artigos de crítica da história do Brasil, os Timbiras, e o trabalho etnográfico sob o título O Brasil e a Oceania.

Em dez anos (44-54) Gonçalves Dias desenvolveu pasmosa atividade. O último decênio foi relativamente estéril: relatórios, dando conta de comissões que exerceu, e um punhado de poesias originais e traduzidas, são os produtos desse tempo.

De resto, cumpre notar que o poeta maranhense não passou por dous grandes flagelos que assaltam de ordinário os homens de letras neste país: a guerra literária e a penúria econômica. O talento do poeta não foi jamais contestado. Contribuiu muito para isto o artigo encomiástico escrito por Alexandre Herculano sobre os Primeiros Cantos. Não passou por grandes dificuldades para viver. Teve sempre empregos e boas comissões. Neste sentido foi de grande auxílio a amizade que lhe votou sempre o segundo imperador.

No moço maranhense existem quatro aspectos principais, já o deixei ver: o poeta, o dramatista, o crítico de história e o etnólogo.

Apreciemo-los, principiando pela sua feição preponderante, o poeta.

Há vinte maneiras diversas de estudar e apreciar um escritor. Podem-se procurar as relações gerais que ele teve com a cultura de seu tempo, mostrando o que lhe deveu e em que a adiantou; podem-se, em dadas circunstâncias, indagar o que fez e o que representa na evolução intelectual de seu país; pode-se-lhe desmontar o espírito, procurando os elementos que o constituíram e qual a tendência que nele predominou.

Nesta investigação deve-se apontar a ação do meio físico e social, a parte da natura e a parte da cultura, insistir nos elementos hereditários acumulados na raça, e os elementos novos provenientes da educação científica.

Pode-se-lhe fazer apenas uma apreciação estética, a definição do gênero em que figurou; pode-se fazer a pintura de seus modos, sestros, impulsos e tiques, quadro fisiológico.

Pode-se desfiar o encadeamento normal de suas idéias, quadro psicológico.

Pode-se fazer a simples crítica impressionista, dizendo o gênero e a índole das emoções que desperta.

Pode-se, que sei eu? limitar a gente a apontar simplesmente suas obras e o conteúdo geral delas, ou tomar outro caminho qualquer.

Qual destes métodos vou aplicar a Gonçalves Dias?

Não sei. Digo o que penso dele, sem me preocupar com sistemas e amaneirados críticos.

O autor de Marabá, da Mãe-d’Água, do Leito de Folhas Verdes, do Gigante de Pedra, do I-Juca-Pirama, dos Timbiras, que é também o autor das’ Sextilhas de Frei Antão, isto é, o autor do que há de mais nacional e do que há de mais português em nossa literatura, é um dos mais nítidos exemplares do povo, do genuíno povo brasileiro. É o tipo do mestiço físico e moral de que tenho falado repetidas vezes neste livro. Gonçalves Dias era filho de português e mameluca, quero dizer, descendia das três raças que constituíram a população nacional e representava-lhes as principais tendências.

O mestiçamento, como se sabe, é no seu início uma fonte de perturbações e desequilíbrios.

O mestiço é o depositário de tendências, índoles e inclinações diversas, que nem sempre acham um ponto de apoio, ordem e fixidade. Daí o seu caráter inquieto, contraditório, anormal. Tal a razão da constante turbulência das populações americanas.

Creio que foi Herbert Spencer quem primeiro tirou seguras ilações desse estado fisiológico dos povos do continente para a sua política. É de esperar, porém, que uma mais forte ação do tempo acabe por trazer-nos a tranqüilidade orgânica e social a nós os americanos.

Nosso poeta aos africanos, o sangue que menos lhe corria nas veias, deveu aquela expansibilidade de que era dotado, aquela ponta de alegria que não o deixou jamais e que especialmente noto em suas cartas.

Aos indígenas, as melancolias súbitas, a resignação, a passividade com que suportava os fatos e acontecimentos, deixando-se ir ao sabor deles.

Aos portugueses deveu o bom senso, a nitidez e clareza das idéias, a religiosidade que o não abandonou jamais, a energia da vontade, as preocupações fantasistas, um certo idealismo mórbido e impalpável.

Juntai a tudo isto fortes impressões de luzes e cores e vida e movimento, fornecidas pela natureza tropical, que se expande pela região em fora que vai de Caxias a São Luís, juntai ainda as cenas marítimas da primeira viagem a Portugal, não esqueçais os quadros da natureza e da vida provinciana no velho reino, e nem tampouco os panoramas indescritíveis do Rio de Janeiro e região circunvizinha; trazei a esse concurso de fatos e circunstâncias as leituras dos poetas latinos e modernos, o estudo das crônicas coloniais, e tereis os elementos predominantes e fundamentais do talento poético desse valente e mimoso lirista.

Se Gonçalves Dias tivesse sido uma mediocridade, teria ficado exclusivamente naquela poesia piegas do tempo do Trovador de Coimbra, nota predominante na literatura portuguesa do tempo em que o maranhense fez ali o curso de Direito.

Garrett, Herculano e Castilho em 43-45, anos últimos passados pelo poeta em Portugal, já tinham publicado suas principais obras e já eram notabilidades indiscutidas lá. Mas a evolução natural do romantismo tinha já atingido a fase do sentimentalismo afetado e esterilizante. O maranhense, já de si bastante melancólico, aprendeu aquela maneira e deixou-se eivar da moléstia geral.

O sentimentalismo é, por certo, uma das notas mais intensas do seu trovar; é preciso, entretanto, ser muito surdo para não ouvir que um intenso naturalismo americano, um certo misticismo religioso, e o calor e a efusão lírica juntam às notas monótonas daquele sentimentalismo as volatas e as fanfarras de uma poesia variada, ampla, serena, meiga, ousada e embriagadora.

A volta do poeta para o Brasil, sua nova estada no Maranhão, sua subseqüente partida para o Rio de Janeiro

entram como fatores na formação de seu talento. Às primitivas impressões americanas tinham-se juntado as impressões do meio português. Se ele tivesse sempre permanecido ali, se novas sensações, novas fontes de vida e poesia não se lhe viessem juntar no espírito, não teria passado, como Gonçalves Crespo, de um poeta delicado, jeitoso, miniaturesco, porém mediano.

O direito, dizem os modernos juristas alemães sectários do darwinismo, é uma função da vida nacional, é um produto cultural de uma raça, de um povo dado. Pode-se dizer o mesmo da poesia; ela também é uma função da vida nacional; uma poesia geral para todos os povos é alguma cousa de análogo a um direito, uma lei para todas as nações.

É por isso que o critério etnográfico, introduzido por mim na crítica nacional desde 1869-70, é ainda hoje a meus olhos a base principal da compreensão das literaturas, nomeadamente a literatura de um povo misturado como o povo brasileiro. Enquanto não houver aqui uma bem nítida compreensão dessa ordem de idéias, a política e a vida social serão o objeto de investigações e expedientes puramente empíricos, a literatura e a crítica serão apenas uma retórica banal mais ou menos habilmente manejada.

Quatro séculos foram suficientes para criar neste país uma população exclusivamente nacional, que se distingue já perfeitamente dos fatores que a formaram, população que se vai cada vez mais integrando à parte e tendendo a rejeitar as influências estranhas. Logo no fim de dous séculos o índio tinha dado quase tudo que podia dar e começou a ser considerado como força inerte; ao cabo de três séculos compreendeu-se que o português, como chefe, era já um obstáculo e separamo-nos dele.

Chegamos depois ao ponto de dispensar o concurso do negro; já lhe vedamos há muito as entradas com a extinção do tráfico, e não contamos só com ele para o trabalho; estamos com a escravidão acabada.

O significado histórico desses fatos é que os três elementos primitivos da população já deram, como elementos separados, o que tinham de dar; o povo brasileiro deve-se considerar em essência constituído, e, a esforços de trabalho, energia, bom senso e perseverança, adquirir o seu lugar na história e na política do mundo.

Se, porém, acha que não tem ainda forças bastantes para as grandes lutas do progresso, se ainda precisa do

auxílio de braços e inteligências de estranhos, dirija a inoculação dos elementos imigratórios e coloniais com tino e critério. Não entregue zonas inteiras aos estrangeiros; espalhe-os por todo o país e assimile-os.

Esta é que é a idéia patriótica, ensinada pela história de nossa pátria, sobre a imigração. Não os planos, filhos do interesse pessoal de espíritos nocivos, como certos políticos perigosos, que ainda nos podem causar males irreparáveis..

Não cesso de combater idéias que julgo prejudiciais ao progresso e à unidade do povo brasileiro.

Em um país como o nosso, ainda novo, sem tradições bem formadas, sem coesão social bem compacta, nunca é demais insistir sobre o seu caráter popular e histórico.

Ainda mais é isto indispensável, tratando-se de um poeta como Gonçalves Dias, um genuíno brasileiro, um mestiço físico e moral, que será ainda por muitos séculos uma das mais autênticas manifestações d’alma deste povo.

Uma crítica mesquinha e incorreta espalhou aí ter sido o poeta maranhense um exagerado cantor de índios, não se ocupando de mais nada. Não pode haver maior injustiça.

A verdade é que o poeta, evidentemente sem plano escolástico, espontaneamente e sem impulsos doutrinários, deixou-se influir pela vida dos selvagens, como em I-Juca-Pirama e dez outras composições; pelas tradições portuguesas, como nas Sextilhas de Frei Antão e em Leonor de Mendonça; pelos sofrimentos dos escravos pretos, como na Escrava e na Meditação.

A vida e os sentimentos, as fantasias dos mestiços, dos brasileiros propriamente ditos, não são esquecidos. Bem pelo contrário, Marabá, a Mãe-d’Água e vinte outras o atestam. Um talento, como o de Gonçalves Dias, não podia ficar na poesia pura e exclusivamente indiana, e de fato não ficou. A poesia pessoal e subjetiva, a poesia exterior e descritiva, além de todas aquelas notas acima indicadas, inebriaram a alma do sonhador brasileiro.

O mesmo se deu com Alencar, que tratou do índio puro no Ubirajara, do índio em contato com os colonizadores em Iracema e O Guarani, da vida colonial nas Minas de Prata, da vida dos sertões do Norte no Sertanejo, da vida das fazendas do Sul em Til e no Tronco do Ipê, da vida elegante do Rio de Janeiro em Senhora, Lucíola, Diva,

Sonhos d’Ouro, de nosso viver burguês no Demônio Familiar... Isto para só lembrar suas principais obras.

Teria sido uma loucura imperdoável, se esses dous grandes agitadores da literatura brasileira tivessem olvidado os índios; teria sido censurável curteza de vistas, se nos quisessem perpetuamente molestar com eles. Tiveram o bom senso de se conservar no justo meio-termo.

Eu bem sei que houve aí uma hora de desvairamento em que se quis pregar como verdade absoluta só ser brasileira a produção que cheirasse a caboclos…

A chamada poesia puramente indiana é uma poesia biforme, que nem é brasileira, nem indígena. A raça selvagem, com todos os encantos e alucinações do homem criança, virgem e travessamente agradável, com todos os aparentes eflúvios de poesia imensa, é hoje vulto mudo a esvair-se no centro de nossa vida, no marulho de nossa civilização. Não quis ou não pôde sentir as agitações de um outro viver, escutar os ruídos de outras formas de anseios, de liberdade, de crenças, de lutas, que a turba, às vezes tirânica, dos conquistadores, lhe quis fazer entender. A raça selvagem está morta; nós não temos nada mais a temer ou a esperar dela. O colono europeu não teve que dar grandes batalhas a um inimigo tenaz: teve que presenciar o desfilar triste e compungidor da multidão selvaticamente boa e simpática dos adoradores de Tupã…

Todos conhecem os poucos casos de resistência da parte dos índios, todos se lembram da retirada de Japiaçu à frente das tribos do interior, que só pararam, diz a lenda, diante do Amazonas, força bastante valente para as fazer suster.

O espetáculo é triste: aquele povo não tinha o sentimento profundo e apaixonado da pátria; não palpitava nele ao menos o valor de heróis, que inspirara uma página brilhante da história da Grécia, a dignidade de fugir combatendo que nobilitou a retirada dos Dez Mil.

Ainda hoje foge diante da civilização. Como que uma lei desconhecida o repele para longe de nossas instituições; parece que Anhangá borrifou sobre ele todas as lágrimas da desgraça!…

O índio não representa, entre nós, por exemplo, o que em França significava o velho fundo da população gálo-romana, o terceiro estado, o povo que fez a Revolução. Embalde se procurará um sério e profundo princípio social e civil deixado por ele. Em pouco modificou o gênio, o caráter dos conquistadores.

A razão está, me parece, nesta lei histórica da conquista da América: quanto mais civilizada era a população indígena, tanto mais resistia e deixava vestígios. A inversa é verdadeira. As dominações dos impérios adiantados do México e do Peru e a do selvático Brasil a confirmam.

Um povo que fugiu dificilmente poderia deixar impressos no vulto do que lhe ocupou o lugar os seus toques, ainda os mais decisivos. O índio não é o brasileiro. O que este sente, o que busca, o que espera, o que crê, não é o que sentia, procurava, ou cria aquele.

São, pois, o gênio, a força primeira do brasileiro, e não os do gentio, que devem constituir a poesia, a literatura nacional.

O índio não deixou uma história por onde procurássemos reviver sua fisionomia perdida. Não nos pode dar, por exemplo, o romance histórico ou o romance de costumes propriamente tais. Não conhecemos sua vida íntima. E que no fundo hão revelado sobre ele quantos o têm estudado nos seus romances e nos seus poemas? O que têm dito se reduz a uma exposição de usanças meramente exteriores, conhecidas desde o século XVI, e que todos trajam de um só modo em rigor.

Argumentam com F. Cooper; é um grave equívoco. A glória do romancista americano provém propriamente de seu estilo vivo e penetrante; não de haver descrito a estatura do selvagem, no que, aliás, ficou atrás de Agostinho Thierry, no pensar de Guizot.

Ninguém tomará, certamente, o pinturista historiador francês por um poeta anglo-saxônico ou normando, por haver brilhantemente descrito esses povos ainda em estado de barbaria.

Cooper também nada tem de pele-vermelha. Foi, talvez, mais feliz nos seus romances de marinha. Não criou uma literatura para sua pátria, por haver falado de selvagens; Chateaubriand o precedera e tampouco a criara para lá ou para a França. Por seu talento vivaz o americano imprimiu ao romance histórico uma cor mais animada, ainda que mais falsa, do que lhe dera Walter Scott, e mais nada.

Será um dos fundadores da literatura de seu país por outros serviços, não especialmente por falar de caboclos, que lá se acham agora reduzidos a diminutíssimo número, e ainda fugindo da civilização, que lhes causa susto.

O senso popular desprezou tal poesia, porque não é a sua, porque não fala das suas esperanças. Os mais vulgares princípios d’arte a condenam também. A velha e soberana verdade — que a literatura é a grande artéria, o pulso da sociedade, que sofre de suas agitações, de suas ânsias, também se lhe opõe. A escola puramente indiana está desacreditada; os melhores poetas do país andam já desde muito por outro lado.

O pensamento daquela escola encerra para quem bem atender à estrutura atual da sociedade brasileira, quem refletir sobre suas leis históricas, alguma coisa que é a negação do gênio nacional. Diz-nos em sua pretensão de glórias: não tendes um íntimo vosso, não podeis achar poesia no vosso próprio ser, sois uma estátua morta, sem vida, sem palpitações, que necessita pedir aos homens, perseguidos por vossos maiores, um enlevo que vos inspire. É pungente…

Para quem assim compreende as coisas, individualidade dum povo, gênio duma nação é palavra balofa que no brasileiro exprime nada, que só no tupi pode achar esse quid ignoto que ele nos pode emprestar.

A nacionalidade da poesia brasileira só pode ter uma solução: — acostar-se ao gênio, ao verdadeiro espírito popular, como ele sai do complexo de nossas origens étnicas. É uma questão de instinto dos povos essa do nacionalismo literário. Isto vem espontaneamente; as nações têm todas uma força particular que as define e individualiza. Todos sabem qual é ela no inglês, no alemão, no francês… Também teremos, se o não temos ainda bem definido, o nosso espírito próprio.

O gênio deste país, ainda vago e indeterminado, um dia, ouso esperá-lo, se expandirá aos raios de um forte ideal que o há de fecundar. Andar, porém, estonteado hoje, como sempre, no empenho de nacionalizar a poesia, a literatura, parece-me cousa igual à luta inútil do antigo vidente, do antigo profeta quando buscava furtar-se à ação do Deus que o dominava… O indício nacional há de aparecer, sem que haja necessidade de o procurar adrede; o poeta é antes de tudo homem e homem de um país. Seus sentimentos mais arraigados, as inclinações mais fortes de seu povo hão de forçosamente aparecer.

As leis da seleção na literatura e no povo brasileiro dão a perceber que a raça que há de vir a triunfar na luta pela vida, neste país, é a raça branca. A raça selvagem e a negra, uma espoliada pela conquista, outra embrutecida pela escravidão, pouco, bem pouco, conseguirão diretamente para si. Os seus próprios recursos volver-se-ão em vantagem dos brancos.

Prova-o o fato do cruzamento em que tendem a predominar o tipo ê a índole do europeu, ajudado pela mescla do sangue selvagem e negro, o que mais o habilita a supor-£ar os rigores de nosso clima.

Se houvera necessidade de fazer aplicação rigorosa ao Brasil da teoria etnológica procurando a raça que definitivamente nos represente, melhor que Portugal o nosso país ofereceria ampla possibilidade para a empresa; porque não fora preciso levantar à altura de uma raça uma simples classe da população, como ali praticou alguém com os moçárabes. Entre nós o concurso de três raças inteiramente distintas, em todo o rigor de expressão, deu-nos uma sub-raça, propriamente brasileira — o mestiço. O elemento mais progressivo tem sido o branco, que vai assimilando o que de necessário à vida lhe podem fornecer os outros dois fatores.

A história o prova; ela nos mostra a inteligência e a atividade mais especialmente residindo no branco puro ou no mestiço; e nunca no índio ou no negro estremes de qualquer mistura.

Mas como o branco inteiramente puro, cousa que se vai tornando cada vez mais rara no país, pouco se distinguiria de seu ascendente europeu, é indispensável convir que o tipo, a encarnação perfeita do genuíno brasileiro, como a seleção biológica e histórica o tem produzido, está, por enquanto, na vasta classe de mestiços de toda a ordem na sua imensa variedade de cores.

Esta grande fusão ainda não está completa, e é por isso que ainda não temos um espírito, um caráter inteiramente original.

Minha tese, em resumo, é que a vitória na luta pela vida, entre nós, pertencerá no porvir ao branco; mas que este, para esta mesma vitória, atentas as agruras do clima, tem tido necessidade de aproveitar-se do que de útil as outras duas raças lhe têm podido fornecer, máxime a preta, com que tem mais cruzado.

Pela seleção natural, todavia, depois de prestado o auxílio de que necessita, o tipo branco irá tomando a preponderância até mostrar-se talvez depurado e belo como no Velho Mundo. Será quando já estiver melhor aclimado no continente.

Dous fatos contribuirão principalmente para tal resultado: de um lado a extinção do tráfico africano e o desaparecimento constante dos índios, e de outro a crescente imigração européia. Esta, porém, deverá ser bem dirigida, deverá ser bem espalhada, para não ser desequilibrado o país, e não desaparecer o primitivo elemento português, que nos criou.

À luz de tais idéias, de acordo com as vistas mais profundas da ciência de hoje, nenhum é o papel reservado ao indianismo exclusivo e sistemático.

O leitor compreenderá a razão de discutir eu insistentemente, tratando de Gonçalves Dias, a questão do indianismo. Foi uma poesia útil como um tônico, um abalo necessário imposto aos nervos de nossos burgueses para os arredar da mania das imitações européias; mas não podia ser exclusivista.

Encaremos ainda mais de perto o nosso autor.

Gonçalves Dias em sua carreira propriamente de poeta atravessou duas fases, ambas muito curtas, porém ambas bem distintas uma da outra. De 1840 a 1845 é a fase de Coimbra; o poeta escreveu então grande parte das peças que figuram nos Primeiros Cantos. As melhores deste volume, é verdade, foram escritas no Maranhão nos meses de 1845 a 46 que o autor ali passou.

Deste número são as poesias Seus Olhos e Adeus aos Meus Amigos do Maranhão.

Faço aqui incidentalmente uma notação e é esta: de decênio em decênio a literatura brasileira fez no XIX século um progresso que se assinalou pela publicação de um livro: em 1836 os Suspiros Poéticos de Magalhães, em 1846 os Primeiros Cantos de Gonçalves Dias, em 1856 O Guarani de Alencar, em 1866 os Cantos e Fantasias de Varela, em 1876 o Selvagem de Couto de Magalhães e os Ensaios de Ciência de Batista Caetano, em 1886 os Menores e Loucos em Direito Criminal de Tobias Barreto.

A segunda fase da vida poética de Gonçalves Dias é também de cinco anos em rigor, vai de 1845 a 1850, pois que os Últimos Cantos, publicados em 1851, já estavam prontos desde o ano anterior. Depois desta época o poeta quase mais nada produziu. Não se poderá talvez dizer que tenha influído para isto em qualquer grau e em qualquer sentido seu casamento, efetuado em 1852.

É preciso definir mais diretamente o talento deste mestiço.

Ele era antes e acima de tudo um poeta : tinha a vibra-tilidade das sensações, a ideação pronta e móbil, a linguagem fluida, sonora e cadente, o espírito sonhador e contemplativo, a imaginação sempre pronta a desferir o vôo. Não era da raça daqueles que confundem a poesia com a eloqüência, a música d’alma com os sons. de um instrumento.

"Há poetas, diz um grande crítico, há poetas para os quais a poesia é um instrumento encantado, a rabeca de Paganini, ou um outro instrumento qualquer, mas em suma um instrumento de virtuosidade. Há outros para quem a poesia é uma voz, uma linguagem, a expressão natural e espontânea d’alma. Vítor Hugo é o maior dentre os primeiros; Racine, André Chénier, Lamartine são da última família."

Gonçalves Dias é também desta derradeira família. Entra bem nesse grupo selecionado por Scherer, autor daquelas palavras.

Gonçalves Dias era sobretudo um poeta, já disse; falta ajuntar que na poesia era sobretudo um lírico. Mas que vem a ser um lírico? Podem-se dar vinte respostas a esta pergunta.

Eugênio Fromentin, o ilustre pintor e crítico, assim define o gênero, falando de Rubens:

"Tout cela nous conduit à une définition plus complète encore, à un mot que je vais dire et qui dirait tout : Rubens est un lyrique et le plus lyrique de tous les peintres. Sa promptitude imaginative, l’intensité de son style, son rythme 3onore et progressif, la portée de ce rythme, son trajet pour ainsi dire vertical, appelez tout cela du lyrisme, et vous ne serez pas loin de la vérité."1

Para Fromentin são, pois, a prontidão da imaginação, a intensidade do estilo, seu ritmo sonoro e progressivo, a altura deste ritmo, que constituem a essência do lirismo.

Não é precisamente neste sentido que entendo a palavra e o fato que ela exprime; não é pelo menos neste

1. Lea Maitrea d’autrefois, pág. 93.

sentido que a aplico a Gonçalves Dias. Ele tinha, por certo, imaginação ágil, tinha brilho de estilo, tinha sonoridade de ritmo; porém não são essas as qualidades que mais o distinguiram. Parece-me que a justeza do sentimento, a doçura das imagens, a delicadeza das tintas, a facilidade das idéias, a espontaneidade da forma, o vôo sereno de todas as forças mentais, eram de preferência seus predicados. Tudo isto numa alma profundamente sincera.

Eu não quero tecer encómios ao poeta; não sou um fazedor de elogios. Não quero trepar o escritor maranhense em pedestal tão alto que q não possa depois enxergar. Estou julgando o poeta em primeira instância; estou vendo-o no meio de seus pares do Brasil e de Portugal; não o quero equiparar aos primeiros liristas de seu século em todo o mundo, ainda que, estou certo, ele seria bem recebido em tão brilhante companhia.

Percorrei toda a coleção dos Cantos, e convencer-vos-eis que Seus Olhos, Rosa do Mar, Lira, Os Suspiros, A Tempestade, Não me Deixes, Zulmira, A Uma Poetisa, Rola, Ainda Uma Vez — Adeus, A Flor de Amor, Gulnare e Mustafá, O Gigante de Pedra, Leito de Folhas Verdes, I-Juca-Pirama, Marabá, A Mãe-d’Água, Olhos Verdes, Menina e Moça, Velhice e Mocidade, O Anjo da Harmonia, A Concha e a Virgem, Meu Anjo — Escuta, O Beijo, Saudades e algumas outras são belíssimas poesias, das mais encantadoras da língua portuguesa.

Não faço especial menção dos Timbiras, porque não passam eles de um fragmento de poema sem caráter épico, donde se colhem apenas alguns pedaços líricos.

Não é preciso citar trechos e trechos de Gonçalves Dias para comprovar o que tenho avançado; porque suas obras são de fácil acesso; ele é, com Álvares de Azevedo, Casimiro de Abreu, Fagundes Varela e poucos outros, do número dos poetas mais populares no Brasil. Não me julgo, porém, desobrigado de indicar ainda algumas notações para a boa compreensão do poeta.

Teve, como em parte já disse, perfeita intuição do problema etnográfico em o Brasil. Não se deduz este fato da simples consideração exterior da escolha de certos assuntos. Do íntimo de alguns cantos brotam as notas comprobatórias do que afirmo.

No Gigante de Pedra lê-se isto:

"E no féretro de montes
Inconcusso, imóvel, fito,
Escurece os horizontes
O gigante de granito:
Com soberba indiferença
Sente extinta a antiga crença
Dos Tamoios, dos Pajés;
Nem vê que duras desgraças,
Que lutas de novas raças
Se lhe atropelam aos pés!


Viu primeiro os íncolas
Robustos das florestas,
Batendo os arcos rígidos,
Traçando homéreas festas,
À luz dos fogos rútilos,
Aos sons do murmure!
E em Guanabara esplêndida
As danças dos guerreiros,
E o guau cadente e vário,
Dos moços prazenteiros,
E os cantos da vitória
Tangidos no boré.


E das igaras côncavas
A frota aparelhada,
Vistosa, e formosíssima
Cortando a undosa estrada,
Sabendo, mais que frágeis,
Os ventos contrastar:
E a caça leda e rápida
Por serras, por devesas,
E os cantos da janúbia
Junto às lenhas acesas,
Quando o tapuia mísero
Seus feitos vai narrar!

E o germe da discórdia
Crescendo em duas brigas,
Ceifando os brios rústicos
Das
tribos sempre amigas,
— Tamoi a raça antígua,
Feroz Tupinambá! ,
Lá vai a gente impróvida,
Nação vencida, imbele,
Buscando as matas ínvias,
Donde outra
tribo a expele;
Jaz o pajé sem glória,
Sem glória o maracá!

Depois em naus flamívomas
Um troço ardido e forte,
Cobrindo os campos úmidos
De fumo, e sangue, e morte,
Traz dos reparos hórridos
D’altíssimo pavês:
E do sangrento pélago
Em míseras ruínas
Surgir galhardas, límpidas
As portuguesas quinas.
Murchos os lises cândidos
Do impróvido gaulês!"

O poeta possuía a intuição histórica e étnica deste país, o que importa um elogio, atenta a ignorância, por assim dizer sistemática, dos nossos homens de letras em tudo o que se refere a assuntos nacionais.

Pressentiu, adivinhou inteligentemente a importância das crenças fetichistas dos aborígines. Fie não ficou em a descrição puramente exterior dos cosi ames indígenas. Na memória O Brasil e a Oceania penetr- u-lhes nas crenças, e, logo nos primeiros versos dos Timl Iras, mostra que na poesia compreendia a importância dai nela região psicológica :

"Os ritos semibárbaros dos Piagas,
Cultores de Tupã, e a terra virgem
Donde como dum trono enfim se abriram
Da Cruz de Cristo os piedosos braços;
As festas, e batalhas mal sangradas
Do povo Americano, agora extinto,
Hei de cantar na lira…"

É conhecido hoje o valor especial que a filosofia e a ciência moderna em geral ligam às crenças dos selvagens e do homem primitivo.

Gonçalves Dias, com ser muito católico, se não dedig-nou de demorar-se no fetichümo bárbaro.

Creio que o primeiro que o elogiou por esta face particularíssima foi o Sr. Teixeira Mendes; acho-lhe toda a razão, sendo preciso ajuntar que o poeta teve em geral a intuição do ístado subjetivo das populações brasileiras, não se limitando ao velho fetichismo tupi, como supõe o Sr. Mendes. Os documentos desta asserção andam esparsos por suas obras, bastando-me lembrar a Mãe-à"Água.

Outra nota muito particular da poesia de Gonçalves Dias é a verdade e a intensidade de tons que lhe vem de seu viver íntimo, psicológico. O poeta sofreu e as recordações são a trama perpétua de sua poesia. Ainda até nas descrições de cenas exteriores, como acontecia ao seu coevo Dutra e Melo, vinham as recordações assaltá-lo.

Eu sou do número daqueles que ainda apreciam a poesia íntima, recordativa, pessoal. Faço minhas estas palavras de Francesco De Sanctis, falando das Contemplações de Vítor Hugo:

"Indietro dunque! accettiamo le consolazioni che il poeta offre a sè, e ad altrui, e viviamo di memorie. Autrefois! Di rimembranza in rimembranza, di dolore in dolore, giungiamo alla nostra età fiorita,. quando per noi il cielo era ancora azzurro ed il prato ancor verde: a ciascuna pagina di queste poésie è attacoata una nostra memoria, un fantasma, che ci si leva rittô dinanzi, e ci dice: Ti ricordi? E noi benediciamo la poesia, che con un tratto di penna ci apre il regno délia morte ed evoca le ombre de nostri cari."2

O Cónego Fernandes Pinheiro disse uma vez que os Cânticos Fúnebres de Magalhães são superiores às Contemplações de Hugo. Eu não conheço uma igual heresia em crítica literária. Não cairei no lapso de julgar superiores os Cantos à obra magnífica do poeta francês, que se me antolha a melhor de quantas produziu. Nem é mais aquele lirismo límpido e brilhante, mas de curtos horizontes, das Odes e Baladas e das Orientais,, não é também aquela poesia ousada, de largas perspectivas, mas pala-vrosa, da Lenda dos Séculos, da Piedade Suprema e dos últimos livros do poeta. É um lirismo valente, impetuoso, ardente e ao mesmo tempo reflexivo, meditabundo, um consórcio soberbo de filosofia e poesia. Creio não errar dizendo ser aquele belo livro a obra maîtresse do poeta francês. Os Cantos de nosso patrício não chegam tão alto ; porém suportariam muito melhor o paralelo do que os Cânticos Fúnebres do poeta fluminense.

Em todo caso, o pensamento de De Sanctis sobre o papel das recordações, das memórias da alma na poesia do XIX século, é aplicável aos Cantos. Há ali muitas composições mimosas que são como folhas arrancadas do coração de cada um de nós todos os que temos sofrido na vida. Ide procurá-las, que as encontrareis.

Ainda uma vez — adeus! pode servir de exemplo; são estrofes escritas com o sangue que brota de feridas causadas por acerbos sofrimentos:

2. Saggi Critici di Francesco De Sanctis, terza edlzione, Napoli, 1874.

"Enfim te vejo! — enfim posso,
Curvado a teus pés, dizer-te
Que não cessei de querer-te,
Pesar de quanto sofri.
Muito penei!
Cruas ânsias,
Dos teus olhos afastado,
Houveram-me acabrunhado,
A não lembrar-me de ti!

Dum mundo a outro impelido,
Derramei os meus lamentos
Nas surdas asas dos ventos,
Do mar na crespa cerviz!
Baldão, ludíbrio da sorte
Em terra estranha, entre gente
Que alheios males não sente,
Nem se condói do infeliz!

Louco, aflito, a saciar-me
D’agravar minha ferida,
Tomou-me tédio da vida,
Passos da morte senti.
Mas quase no passo extremo,
No último arcar da esp’rança,
Tu me vieste à lembrança:
Quis viver mais e vivi!

Vivi; pois Deus me guardava
Para este lugar e hora!
Depois de tanto, senhora,
Ver-te e falar-te outra vez;
Rever-me em teu rosto amigo,
Pensar em quanto hei perdido,
E este pranto dolorido
Deixar correr a teus pés.

Mas que tens?
Não me conheces?
De mim afastas teu rosto?
Pois tanto pôde o desgosto
Transformar o rosto meu?
Sei a aflição quanto pode,
Sei quanto ela desfigura,
E eu não vivi na ventura…
Olha-me bem, que sou eu!

Nenhuma voz me diriges!…
Julgas-te acaso ofendida,?
Deste-me amor, e a vida
Que ma darias — bem sei;
Mas lembrem-te aqueles feros
Corações, que se meteram
Entre nós, e se venceram,
Mal sabes quanto lutei!

Oh! se lutei!… mas devera
Expor-te em pública praça,
Como um alvo à populaça,
Um alvo aos ditérios seus?
Devera, podia acaso
Tal sacrifício aceitar-te
Para no cabo pagar-te,
Meus dias unindo aos teus?

Devera, .sim; mas pensava,
Que de mim Vesquecerias,
" Que, sem mim, alegres dias
T’esperavam; e em favor
De minhas preces, contava
Que o bom Deus me aceitaria
O meu quinhão de alegria
Pelo teu quinhão de dor!

Que me enganei, ora o vejo;
Nadam-te os olhos em pranto,
Arfa-te o peito, e no entanto
Nem me podes encarar;
Erro foi, mas não foi crime,
Não te esqueci, eu to juro;
Sacrifiquei meu futuro,
Vida e glória por te amar!

Tudo, tudo; e na miséria
Dum martírio prolongado,
Lento, cruel, disfarçado,
Que eu nem a ti confiei;
‘Ela é feliz (me dizia),
Seu descanso é obra minha.’
Negou-mo a sorte mesquinha.
Perdoa, que me enganei!

Tantos encantos me tinham,
Tanta ilusão me afagava
De noite quando acordava,
De dia em sonhos talvez!
Tudo isso agora onde pára?
Onde a ilusão de meus sonhos?
Tantos projetos risonhos,
Tudo esse engano desfez!

Enganei-me!…
Horrendo caos
Nessas palavras se encerra,
Quando do engano, quem erra,
Não pode voltar atrás!
Amarga irrisão reflete:
Quando eu gozar-te pudera,
Mártir quis ser, cuidei qu’era…
E um louco fui, nada mais!

Louco, julguei adornar-me
Com palmas d’alta virtude!
Que tinha eu bronco e rude
Co que se chama ideal?
O meu eras tu, não outro;
‘Stava em deixar minha vida
Correr por ti conduzida,
Pura, na ausência do mal.

Pensar eu que o teu destino
Ligado ao meu, outro fora,
Pensar que te vejo agora,
Por culpa minha, infeliz;
Pensar que a tua ventura
Deus
ab eterno a fizera,
No meu caminho a pusera…
E eu! eu fui que a não quis!

És doutro agora, e pra sempre!
Eu a mísero desterro
Volto, chorando o meu erro,
Quase descrendo dos céus!
Dói-te de mim, pois me encontras
Em tanta miséria posto,
Que a expressão deste desgosto
Será um crime ante Deus!

Dói-te de mim, que t’imploro
Perdão, a teus pés curvado;
Perdão!… de não ter ousado
Viver contente e feliz!
Perdão da minha miséria,
Da dor que me rala o peito,
E se do mal que te hei feito,
Tambérn do mal que me fiz!

Adeus, qu’eu parto, senhora;
Negou-me o fado inimigo
Passar a vida contigo,
Ter sepultura entre os meus;
Negou-me nesta hora extrema,
Por extrema despedida,
Ouvir-te a voz comovida
Soluçar um breve — Adeus!

Lerás porém algum dia
Meus versos, d’alma arrancados,
D’amargo pranto banhados,
Com sangue escritos; — e então
Confio que te comovas,
Que a minha dor te apiade,
Que chores, não de saudade,
Nem de amor, — de compaixão."

O poeta é também hábil em pintar cenas da natureza exterior, animados quadros da terra americana. A paisagem em seus versos é sempre brasileira, ou se trate de cenas da vida social, ou da vida da natureza. Os exemplos superabundam.

Leiam estas estrofes de Rosa no Mar:

"Ia a virgem descuidosa,
•Quando a rosa
Do seio no chão lhe cai:
Vem um’onda bonançosa,

Qu’impiedosa A flor consigo retrai.
A meiga flor sobrenada,
De agastada,
A virge’ a não quer deixar!

Bóia a flor, a virgem bela
Vai trás ela, Rente, rente à beira-mar.
Vem a onda bonançosa

Vem a rosa, Foge a onda, a flor também.
Se a onda foge, a donzela

Vai sobre ela! Mas foge, se a onda vem.

Muitas vezes enganada,
De enfadada
Não quer deixar de insistir;
Das vagas menos se espanta,

Nem com tanta Presteza lhes quer fugir."

É uma rápida descrição dum fato simplíssimo e feita com grande habilidade. Quando me refiro a certa viveza de cores e de descrição em Gonçalves Dias, devo ajuntar logo que no gênero deixou apenas pequenos quadros esparsos em suas poesias.

Não estava ainda em moda a descrição moderníssima que se protrai por páginas e páginas. Vejamos uma pequena cena natural. São versos dos Timbiras:

"Era a hora em que a flor balança o cálix
Aos doces beijos da serena brisa,
Quando a ema soberba alteia o colo,
Roçando apenas o matiz relvoso;
Quando o sol vem doirando os altos montes,

E as ledas aves à porfia trinam,
E a verde coma dos frondosos cedros
Move o perfume, que embalsama os ares; .
Quando a corrente meio oculta soa
De sob o denso véu da parda névoa;
Quando nos panos das mais brancas nuvens
Desenha a aurora melindrosos quadros
Gentis orlados com listões de fogo;
Quando o vivo carmim do esbelto cacto
Refulge a medo abrilhantado esmalte,
Doce poeira de aljofradas gotas,
Ou pó sutil de pérolas desfeitas.

Era a hora gentil, filha de amores,
Era o nascer do sol, libando as meigas,
Risonhas faces da luzente aurora!
Era o canto e o perfume, a luz e a vida,
Uma cousa e muitas, melhor face
Da sempre vária e bela natureza:

Um quadro antigo, que já vimos todos,
Que todos com prazer vemos de novo.
Ama o filho do bosque contemplar-te,
Risonha aurora, ama acordar contigo;
Ama espreitar nos céus a luz que nasce,
Ou rósea ou branca, já carmim, já fogo,
Já tímidos reflexos, já torrentes
De luz, que fere oblíqua os altos cimos.v

É sóbrio; mas é belo; a simplicidade aqui não é filha da pobreza, mas sim da doce placidez do espírito.

Fora possível estender mais esta análise; tenho, porém, pressa em dizer alguma cousa do dramatista, do crítico e do etnólogo. O que escrevi do poeta é suficiente para dá-lo bem a conhecer.

O teatro de Gonçalves Dias é todo de obras de sua verde mocidade.

Consta dos dramas Boabdil, Patkull, Beatrice de Cenci e Leonor de Mendonça. Traduziu também a Noiva de Mes-sina de Schiller.

No teatro Gonçalves Dias não se elevou tão alto como no lirismo; ainda assim seus ensaios dramáticos são reveladores de grande talento. Fora para desejar que as nossas empresas teatrais levassem sempre à cena os dramas do autor maranhense, escritos em linguagem ampla e correta, e os acompanhassem dos dramas de Agrário, das comédias de Pena, e dos dramas e comédias de Macedo e Alencar.

Seria conveniente dar de vez em quando alguma cousa dos velhos, Magalhães, Porto Alegre, Norberto Silva, Ferreirá França, e dos mais modernos, Varejão, Castro Lopes, Machado de Assis, Távora e muitos outros brasileiros que têm cultivado o gênero. No meio de muita frandulagem sem valor, encontram-se muitos trabalhos de merecimento, que o grande João Caetano não se dedignava de levar à cena.

Tenhamos nisto e no mais um poucochinho de patriotismo. Leonor de Mendonça do poeta maranhense, por exemplo, é um belíssimo drama.

O Conservatório do Rio de Janeiro ineptamente em 1846 pôs-lhe embaraços à representação a pretexto de ser incorreto de linguagem!…

Singularíssima censura esta, tratando-se de um escritor, como o nosso poeta, de todos os nossos autores o mais preocupado em cingir-se aos modelos clássicos e mais chegado ao sestro de aportuguesar a linguagem, isto é, afiná-la pelo tom do velho reino!…

Se eu tivesse de fazer uma censura a Gonçalves Dias pelo lado da linguagem, seria justamente a inversa à que lhe foi dirigida pelo Conservatório, a saber, o pouco bra-sileirismo de sua língua e de seu estilo. Neste ponto Alencar teve a coragem de romper com todos os velhos preconceitos, deixando definitivamente de lado, por imprestáveis, os rigores lusitanos. Bastava isto para ser o célebre cearense um benemérito das letras brasileiras.

Gonçalves Dias para vingar-se dos seus gratuitos censores, conforme é fama, escreveu as magníficas Sextilhas de Frei Antão em estilo e linguagem do começo do século XVII.

Leonor de Mendonça é precedido de um excelente prólogo, onde o autor expõe os seus desígnios e idéias sobre a arte.

Ouçamo-lo, falando de sua própria obra: "Direi, nãò o que fiz, mas o que pretendi fazer.

"A ação do drama é a morte de Leonor de Mendonça por seu marido: dizem os escritores do tempo que D. Jaime, induzido por falsas aparências, matou sua mulher; dizem-no porém de tal maneira, que facilmente podemos conjeturar que não foram tão falsas as aparências como eles no-las indicam. O autor podia então escolher a verdade moral ou a verdade histórica, Leonor de Mendonça culpada e condenada, ou Leonor de Mendonça inocente e assassinada. Certo que a primeira oferecia mais interesse para a cena e mais moral para o drama; a paixão deveria então ser forte, tempestuosa e frenética, porque fora do dever não há limite nas ações dos homens: haveria cansaço e abatimento no amor e reações violentas para o crime, haveria uma luta tenaz e contínua entre os sentimentos da mulher e os da esposa, entre a mãe e a amante, entre o dever e a paixão: no fim estaria o remorso e o castigo, e neles a moral. Há nisto matéria para mais de um bom drama.

"Leonor de Mendonça, inocente e castigada, será infeliz, desesperada ou resignada. Ora, o remorso é mais instrutivo do que o desespero e do que a resignação, como o crime é mais dramático do que a virtude: pena é que assim seja, mas assim é. Se em prova disto me fosse preciso trazer algum exemplo, eu citaria o Faliero de Byron e o Faliero de Delavigne.

"Por que então segui o pior? É porque tenho para mim que toda a obra artística ou literária deve conter um pensamento severo: debaixo das flores da poesia deve esconder-se uma verdade incisiva e áspera, como diz Vítor Hugo, em cada mulher formosa há sempre um esqueleto.

"Foi este o pensamento, a fatalidade. Não aquela fatalidade implacável que perseguiu a família dos Atridas, nem aquela outra cega e terrível que Werner descreve no seu drama — Vinte e Quatro de Fevereiro. É a fatalidade cá da terra e que eu quis descrever, aquela fatalidade que nada tem de Deus e tudo dos homens, que é filha das circunstâncias e que dimana toda dos nossos hábitos e da nossa civilização; aquela fatalidade, enfim, que faz com que um homem pratique tal crime porque vive em tal tempo, nestas ou naquelas circunstâncias. Repito: não analiso o que fiz, digo apenas o que era meu desejo fazer.

"Leonor de Mendonça não tem nem um só crime, nem um só vício; tem só defeitos. D. Jaime não tem nem crimes nem vícios, tem também e somente defeitos. Os defeitos da duquesa são filhos da virtude; os do duque são filhos da desgraça: a virtude que é santa, a desgraça que é veneranda. Ora, como o que liga os homens entre si não é, em geral, nem o exercício nem o sentimento da virtude, mas sim a correlação dos defeitos, a duquesa e o duque não se poderiam amar, porque eram os seus defeitos de diferente natureza. Quando algum dia a luta se travasse entre ambos, o mais forte espedaçaria o mais fraco; e assim foi.

"Há aí também outro pensamento sobre que tanto se tem falado e nada feito, e vem a ser a eterna sujeição das mulheres, o eterno domínio dos homens. Se não obrigassem D. Jaime a casar contra a sua vontade, não haveria o casamento, nem a luta, nem o crime. Aqui está a fatalidade, que é filha dos nossos hábitos. Se a mulher não fosse escrava, como é de fato, D. Jaime não mataria sua mulher. Houve nessa morte a fatalidade, filha da civilização que fbi e que ainda é hoje."

Estas idéias são sãs e não destoam do merecimento da obra. Não há nesta aquela riqueza de pensamentos e finas observações sobre os domínios recônditos da alma humana, que fazem o assombro de quem lê Shakespeare. Mas quantos compartem com o grande dramatista igual tesouro? Nem Byron, e nem o próprio Goethe. Por essa face Shakespeare campeia isolado. Fora um absurdo tomar essa medida para unidade comparativa.

Diz-se vulgarmente que uma obra dramática só é bem apreciada quando é vista no palco. O próprio Gonçalves Dias o repete no aludido prólogo: "Se o drama não for representado, será bom como obra literária, mas nunca como drama."

Tenho medo de dizer uma heresia; porém, pelo que me toca, aprecio mais os dramas, especialmente dos grandes mestres, quando os leio. Se, além da leitura, ocorrer uma boa representação, meu conhecimento da obra não aumentará grande cousa, quanto à obra literária em si.

Se nunca li o drama e só o ouvi representar, nada sei dizer sobre ele, porque o que apreciei no palco foi o trabalho dos atores, sua voz, seus gestos, seu jogo cênico, seu savoir-dire e savoir-faire em cena, e não a criação do poeta diretamente.

Uma representação teatral é uma arte que se sobrepõe a outra e a vela em grande parte. O talento dos atores produz uma como segunda criação que pode até certo ponto dificultar a exata inteligência da primeira.

Nunca vi os dramas de Gonçalves Dias em cena. Creio não ser um empecilho para os apreciar. Leonor de Mendonça, por exemplo, bem representada, bem interpretada por atores de forte vôo, deve ser grandemente dramática. De todo o drama o Ato II, que constitui todo ele o Quadro terceiro, é o mais belo, especialmente nas cenas V e VI. As cenas passam-se em casa do velho Afonso Alcoforado, entre ele e seus filhos Antônio, Manuel e Laura. O moço Antônio Alcoforado tem já feito declarações à Duquesa, com quem deveria ter uma entrevista à noite justamente na véspera da partida do moço para a África. A noite é caliginosa, medonha; todos acham imprudente a saída do moço a desoras e só. O velho pai não se pode conter e o interpela. Trava-se forte luta no espírito de António Alcoforado entre o respeito paterno, o amor à Duquesa, o dever de não lhe marear o nome, confessando o seu intento, e a obrigação de não mentir. O lance é belo, e ei-lo aqui:

ATO II

Cena V

(O Velho Alcoforado, Laura, Antônio Alcoforado, Manuel, que entra.)

Manuel — Eis a espada, meu irmão. Boas noites, Laura. Laura — Boas noites, irmão. Manuel — A vossa bênção, meu pai.

O Velho — Deus vos abençoe. Trocastes a vossa espada? Manuel — Não, meu pai, empresto-a. O Velho — Como! pois ides sair, Antônio? Alcoforado — Sim, meu pai: estava só à espera da vossa bênção e da vossa permissão. O Velho — Ides. .. Alcoforado — Vou…

O Velho — Concebo a vossa hesitação. Como é amanhã o dia de Finados, ides orar pelos mortos, como é de um bom cristão. Alcoforado — Não, senhor.

O Velho — Não!… Ah!… sim!… Como sois bom filho, ides talvez antes de vos partirdes, orar sobre a sepultura de vossa mãe. Alcoforado — Não, senhor!

O Velho — Não!… Ah! bem. Como sois bom amigo, ides talvez despedir-vos dos vossos amigos. Alcoforado — Não, senhor. O Velho — Não! Então a que saís? Alcoforado — Não me interrogueis, meu pai. O Velho — Ides sozinho? Alcoforado — Sozinho.

O Velho — E não quereis levar o vosso criado na vossa companhia?

Alcoforado — Não o posso levar.

O Velho — Pois eu vos digo que não saireis sem que me digais primeiro o que vos obriga a sair.

Alcoforado — Peço-vos que me não interrogueis, meu pai.

O Velho — Que vos não interrogue!… Pretendeis sair a deso-ras e sem testemunhas, de espada e com os vestidos concertados, e não quereis que vos interrogue!… Onde ides vós, senhor?

Alcoforado — Eu vo-lo suplico.

O Velho — Oh! isto merece uma explicação. Retirai-vos.

 

Cena VI (O Velho Alcoforado, Alcoforado.)

O Velho — Vede a que me obrigam os vossos mistérios, que oxalá não sejam escandalosos!… Fazeis que um pai expulse seus filhos de sua presença, porque ele terá talvez de vos dizer algumas dessas rígidas verdades que por eles não devem ser ouvidas. Onde ides, mancebo?

Alcoforado — Senhor, não posso dizer.

O Velho — Vós não ides cumprir com os deveres de amigo, nem de filho, nem de cristão; ao que ides, pois? Passar talvez a noite em algum lupanar, ou sobre a banca do jogo, ou em orgias de homens intemperantes e envilecidos, ou escalar algum muro como ladrão noturno para roubar a honra de alguma família honesta, ou bater sorrateiramente a alguma porta humana para pagar a recepção cordial que durante o dia vos fez algum homem honrado e franco com a traição de um libertino. É infame!

Alcoforado — Meu pai!

O Velho — Dizei, senhor, dizei na vossa consciência que não ides praticar alguma ação criminosa.

Alcoforado — Em consciência, não o sei.

O Velho — Sei-o eu, senhor!… Sei que o homem que marcha treda e cautelosamente apalpando as trevas, e que não ousa confessar altamente as suas ações, muito se assemelha àquela ave de mau agouro, cujos olhos não podem suportar a luz do dia, cujo canto é um anúncio de desventura; sei que tão grande mistério pode encobrir uma virtude muito preclara, ou um vício muito vergonhoso. Dizei que ides praticar uma dessas virtudes cobertas com o precioso manto da modéstia, diáfano para Deus, impenetrável para os homens…

Alcoforado — Nunca vos menti, senhor…

O Velho — E se o houvésseis feito, a Providência Divina que vos guiasse no caminho da vida, porque teríeis morrido para mim. Talvez me julgueis severo por me crerdes pouco sensível, ou por supordes talvez que o tempo, que gelou o sangue nas minhas veias, já me fez esquecer da quadra em que fui da vossa idade, em que também fui novo e cheio de esperanças na vida e em que também dizia comigo o que agora lá vós estais dizendo convosco: Além naquele marco deixarei este caminho e tomarei outra vereda. Não; sou indulgente e pouco severo a ponto de vos confessar que também fui novo, e que alguns erros cometi quando tinha a vossa idade. Pois quem é perfeito neste mundo? Mas eu vos asseguro que a minha vida escrita, conquanto em parte me pesasse dela, não me traria um só remorso, nem me desconceituaria a minha velhice; aeseguro-vos ainda que em vésperas de um dia duas vezes santificado pela religião e pelo sentimento, nunca abandonei eu o teto de meus pais, como homem sem crença e filho pouco respeitoso, para me entregar às carícias de uma criatura sem pejo. Há limites em tudo, mancebo.

Alcoforado — Senhor, por que me supondes capaz de tão negro feito, ou por que vos mereço tal conceito? Acaso me tenho eu mostrado revel aos vossos conselhos, ou terei desaprendido as vossas lições? Não, senhor: se não vou praticar uma virtude, também não é o vício nem o crime quem lá fora me está chamando. Não é criminosa a ação que vou praticar: juro-vos…

O Velho — Jurai, senhor, jurai! No meu tempo o homem que ambicionava uma espada, ou que já a podia trazer consigo, tinha o juramento por uma cousa veneranda e sagrada, e usava dele apenas nas circunstâncias de momento. Era o vassalo que jurava lealdade a seu rei; era o cidadão que jurava amor a sua pátria; era o guerreiro que jurava morrer com o seu companheiro d’armas. Por isto o juramento era entre eles uma religião, e os mais altos como os mais humildes não se atreviam a quebrá-lo. Hoje porém fizeram dele uma fórmula para os usos da vida, e a criança desde o berço aprende a balbuciar essa palavra vazia de sentido, que noutro tempo foi símbolo de fé e era condão de prodígios.

Alcoforado — Como vos poderei eu confiar um segredo que me não pertence? Há bem tempo que vo-lo teria dito, se ele fosse todo meu, e se a minha confissão a ninguém mais comprometesse. Eu vos respeito como meu pai, eu vos amo como amigo, eu vos estimo como homem probo e cheio de integridade; sei que é impossível trairdes um segredo, mas devo eu traí-lo primeiro? Aconselhai-me, vós que tendes experiência da vida; dizei-mo, que sois meu mestre; posso eu fazê-lo?

O Velho — O segredo é inviolável; tendes razão.

Alcoforado — Deixai-me então sair, bom pai. Oh! se soubésseis quanto sofro por vos não poder confiar tudo!… Sede indulgente mais uma vez, talvez a derradeira. Esta demora me tem martirizado; largos anos tenho vivido nestes curtos instantes! Deixai-me partir.

O Velho — E não há perigo?

Alcoforado — Nenhum! nenhum! eu vo-lo asseguro. O Velho — E aquela espada?

Alcoforado — Foi um capricho de meu irmão que não sabe a que vou. Dir-lhe-ia um segredo que vos não digo a vós? Bem vedes que nada arrisco: deixarei a espada, e é até melhor que eu vá desarmado.

O Velho — Levarás a espada!

Alcoforado — Bom pai, quanto vos agradeço!

O Velho — Vai, e Deus seja contigo.

Alcoforado — Irei e voltarei bem depressa (cingindo a espada), o mais depressa que eu puder. Vereis que nada me acontece. Meu Deus! como partiria eu tão alegre, se de alguma cousa me arreceasse!

O Velho — Vai, meu filho.

Alcoforado — Nada receeis. Adeus, bom pai. (Vai-se.) O Velho (ficando pensativo: alguns dobres ao longe) — Meu filho! meu filho!… (Vai-se.)

É significativo tudo isto.

Meu desejo seria fazer uma história exaustiva da literatura brasileira; tudo indagar e tudo deixar ver. Do teatro de Gonçalves Dias haveria bastantes observações a tentar; mas é urgente resumir e passar adiante.

O poeta dos Timbiras deixou, entre outros pequenos escritos em prosa, quatro que merecem especial menção e são estes: Reflexões Sobre os Anais Históricos do Maranhão por Berredo, Resposta à Religião, Amazonas — Se ‘ Elas Existiram no Brasil, O Descobrimento do Brasil por Pedro Álvares Cabral Foi Devido a Um Mero Acaso? São ensaios sobre a história de nossa pátria.

São escritos naquele estilo claro, simples e harmonioso da prosa de Gonçalves Dias, uma das melhores do Brasil, o que se pode bem ver nos belos prólogos das diversas coleções de Cantos e de Leonor de Mendonça.

Neste número deveria também contar a célebre crítica que fez da Independência do Brasil de Teixeira e Sousa. Isto desperta-me uma observação que não devo calar.

Os escritores da época romântica quase tanto como os de hoje atacavam-se com desusado encarniçamento. Gonçalves Dias, de ordinário tão pacato, zurziu desapiedadamente o pobre poeta dos Três Dias de Um Noivado, por causa de seu poema épico A Independência do Brasil. Seguiu-se José de Alencar que flagelou horrivelmente a Confederação dos Tamoios de Magalhães; depois Bernardo Guimarães sovou medonhamente os Timbiras de Gonçalves Dias, e Franklin Távora a Iracema de Alencar.

Foram críticas azedas, de caráter puramente pole-místico e irritante, que tiveram porém grande eco.

As Reflexões de Gonçalves Dias sobre os Anais de Berredo são um belo artigo, onde lança pela primeira vez o seu brado de simpatia pela raça tupi, indicando o muito que lhe devemos. No mesmo espírito é o artigo em resposta ao periódico A Religião. A memória sobre As Amazonas é uma resposta a um programa do Instituto Histórico apresentado pelo imperador D. Pedro II.

O poeta revelou-se aí grande conhecedor dos cronistas e viajantes dos nossos tempos coloniais, e com subido critério desfez o rosário de sonhos e exageros dos que criaram e propagaram no Brasil semelhante lenda.

Chama em especial a atenção para as páginas em que Gonçalves Dias fala e insiste largamente sobre as decantadas pedras verdes, as pedras das Amazonas, que mais tarde vieram a servir para enganosas pretensões de Barbosa Rodrigues. Este em seus escritos nunca citou o poeta.. .3

3. Vide Obras Póstumas âs Gonçalves Dias, vol. iii. págs. 270 e seguintes.

Igualmente interessante, ou porventura superior, é o escrito sobre o descobrimento do Brasil. Gonçalves Dias combate nele, vitoriosamente ao meu ver, a idéia de ter lido proposital a chegada ao Brasil da parte de Pedro Álvares Cabral, idéia esta sustentada galhardamente por Joaquim Norberto de Sousa Silva.

Não me é possível descer a uma análise miúda de tais escritos nem mesmo da interessantíssima memória () Brasil e a Oceania. Esta é um verdadeiro livro em que 0 poeta passou em revista o que nos cronistas e viajantes se encontra sobre os povos selvagens do Brasil e da novíssima parte do mundo, no intuito, um pouco frívolo em verdade, de ver quais deles estavam em condições mais adequadas para receber a civilização cristã.

A parte relativa à Oceania, pelo muito que já sabemos de seus antigos habitantes, graças sobretudo à ciência inglesa, está hoje muito atrasada. O que se refere aos índios do Brasil ainda agora, apesar de bons progressos realizados por este lado, pode ler-se com proveito.

Entre outros destaco o interessante capítulo — Se os Americanos Caminhavam Para o Progresso ou Para a Decadência; O Que Pensamos dos Tupis.

Leiam-se todos estes trabalhos do escritor maranhense e ver-se-á bem nitidamente que ele não foi só um notável lirista, foi também um destro dramaturgo e um homem sabedor em assuntos de história e etnografia brasileira*.

Agora, porém, é tempo de ultimar esse perfil e o farei em poucas palavras.

Tanto quanto soube fazê-lo, mostrei a formação biológica do talento de Gonçalves Dias, indicando o que ele deveu às raças que o formaram e ao meio em que viveu, isto é, encarei-o no seu desenvolvimento ontogenético e em suas relações com a filogenia dos povos de que descende, não esquecendo a adaptação ao meio de Coimbra, do Maranhão e do Rio, onde viveu principalmente.

Está dito tudo? Não. Resta ainda alguma cousa para caracterizá-lo de vez. Resta saber o que dele ficou e ficará de pé para o pensamento do povo brasileiro, enquanto existir um povo brasileiro…

A luta pela existência na literatura e na arte tem dous momentos capitais: um que é feito pelo próprio escritor em sua vida, e outro que é feito pela consciência pública e pela história depois de sua morte. Este último é o que tem maior alcance e definitivo valor.4

Têm-se visto mediocridades, ajudadas por um meio propício, levantarem-se em falsas muletas e suspender as cabeças acima do nível comum, a ponto de todo o mundo olhar para elas. Mais tarde há uma reversão, alui-se o terreno e lá se vai por ele adentro a colossal figura, que estava trepada não em pedestal de barro, conforme a figura bíblica, mas em .pernas de pau, segundo o brinquedo de nossos campônios…

Às vezes também dá-se o contrário; o talento e o próprio gênio não podem abrir caminho em seu tempo, pu só o podem limitadamente. Mais adiante dá-se o que se pode chamar a luta reversiva pela vida no seio da história, e as idéias batidas e repelidas outrora saem vitoriosas dessa pugna póstuma.

A história da ciência e a da literatura estão cheias de fenômenos semelhantes. Vítor Cousin não será um exemplo do primeiro caso? Shakespeare e Lamarck não serão do segundo?

O nosso Gonçalves Dias, no seu pugnar pelas idéias, pelo belo e pela glória, não foi nem um derrotado, nem um vitorioso desses que fazem o seu caminho por entre cem batalhas. Ele estava mais ou menos n’altura de seu meio e de seu momento histórico, e esse momento era uma época de entusiasmo e esperanças para este país.

O poeta achou a fórmula própria dessas aspirações.

Desse sincronismo entre o seu sentir e o sentir de sua pátria num momento dado é que lhe vem o mérito e a natureza de sua glória: uma glória plácida e doce, sem ruídos; mas sem abatimentos e eclipses.

Que é que ainda vive dele, e parece que viverá sempre? Uma dúzia de poesias líricas, e certamente das melhores em que uma vez se vazou a língua de Camões.

4. Esta linguagem tomada a Darwin e Haeckel é aqui a mais própria para dar a explicação dos fenômenos literários. Nem é uma novidade em meus escritos, nomeadamente na Literatura Brasileira e a Critica Moderna, nos Estudos Sobre a Poesia Popular do Brasil, na Introdução á História da Literatura Brasileira, e neste livro, principalmente no cap. — Teorias da História do Brasil — publicado há multo noB Lucros e Perdas e na Revista dos Estudos Livres (de Lisboa).

Nâo se deve perder de vista que a maior parte desta obra Já tinha saído Impressa em jornais e periódicos, antes de aparecer em Uvro. É assim que na Gazeta de Noticias de 23 de dezembro de 1886 saiu um fragmento dela em que vem bem acentuada a aplicação da luta darwiniana na literatura e nas obras d’arte: é o cap. I da IX parte deste volume, pág. 777.

Link: Biografia de Gonçalves Dias na Antologia Nacional de Escritores.

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