GONÇALVES DIAS – Biografia e poesias selecionadas

ANTÔNIO GONÇALVES DIAS (Caxias; 10 de agosto de 1823 3 de novembro de 1864) bacharelou-se em Direito na Universidade de Coimbra, e, voltando ao Brasil em 1845, sumamente se distinguiu como poeta lírico, publicando, de 1846 a 1851, os seus Primeiros, Segundos e Últimos Cantos.

Na Revista Trimensal do Instituto Histórico figuram interessantes memórias devidas à sua pena.

Com imensa felicidade explorou o veio poético do indianismo, e deu à publicidade, em 1857, o poema Timbiras, impresso em Leipzig. Depois de Gonçalves Dias, que o criou e assinalou tão vigorosamente, o indianismo pareceu esgotado.

Morreu o insigne poeta no naufrágio do Ville de Boulogne, em que vinha enfermo, e que abriu água nos baixos dos Atins, próximo ao farol de Itacolomi.

É corrente a opinião dos que ao inditoso poeta assinam a primeira plana no movimento que do jugo do classicismo libertou as letras brasileiras.

Canto do Piaga I

O’ guerreiros da taba sagrada.
O’ guerreiros da tribo tupi.
Falam deuses nos cantos do piaga, (594)
O’ guerreiros, meus cantos ouvi!

Esta noite, era a lua já morta,
Anhangá (595) me vedava sonhar;
Eis na horrível caverna que habito,
Rouca voz começou-me a chamar.

Abro os olhos inquieto, medroso,
Manitôs! que prodígios que vi!
Arde o pau de resina fumosa;
Não fui eu, não fui eu que o acendi!

Eis rebenta a meus pés um fantasma,
Um fantasma de imensa extensão;
Liso crânio repousa a meu lado,
Feia cobra se enrosca no chão!

O meu sangue gelou-se nas veias,
Todo inteiro — ossos, carnes, — tremi;
Frio horror me coou pelos membros,
Frio vento no rosto senti.

Era feio, medonho, tremendo,
O’ guerreiros, o espetro que eu vi!
Falam deuses nos cantos do piaga…
O’ guerreiros, meus cantos ouvi.

II
Porque dormes, ó piaga divino?
Começou-me a visão a falar:
Porque dormes? O sacro instrumento
De per si já começa a vibrar!

Tu não viste nos céus um negrume
Toda a face do sol ofuscar?
Não ouviste a coruja de dia,
Sons estrídulos tôrva soltar?

Tu não viste dos bosques a coma
Sem aragem vergar-se e gemer?
Nem a lua de fogo entre nuvens,
Qual em vestes de sangue nascer?

E tu dormes, ó piaga divino!
E Anhangá te proibe sonhar!
E tu dormes, ó piaga, e não sabes,
E não podes augúrios cantar?!

Ouve o anúncio do horrendo fantasma,
Ouve os sons do fiel maracá;
Manitôs já fugiram da taba!
Ó desgraça! ó ruína! ó Tupá!

III

Pelas ondas do mar sem limites
Basta selva, sem folhas, i vem; (596)
Hartos troncos; robustos gigantes,
Vossas matas tais monstros contêm.

Traz embira dos cimos pendente,
Brenha espessa de vário cipó;
Dessas brenhas contêm vossas matas,
Tais e quais; mas com folhas; é só!

Negro monstro os sustenta por baixo,
Brancas asas abrindo ao tufão,
Como um bando de cândidas garças,
Que nos ares pairando lá vão.

Oh! quem foi das entranhas das águas
O marinho arcabouço arrancar?
Nossas terras demanda, fareja
Esse monstro… Que vem cá buscar?

Não sabeis o que o monstro procura?
Não sabeis a que vem, o que quer?
Vem matar vossos bravos guerreiros,
Vem roubar-vos a filha, a mulher!

Vem trazer-vos crueza, impiedade,
Dons cruéis do cruel Anhangá;
Vem quebrar-vos a maça valente,
Profanar manitôs, maracá!

Vem trazer-vos algemas pesadas,
Com que a tribo tupi vai gemer;
Hão de os velhos servirem de escravos, (597)
Mesmo a piaga inda escravo ha de ser.

Fugireis procurando um asilo,
Triste asilo por ínvio sertão;
Anhangá de prazer há de rir-se,
Vendo os vossos quão poucos serão!

Nossos deuses, ó piaga, conjura,
Susta as iras do fero Anhangá.
Manitôs já fugiram da taba!
Ó desgraça! ó ruína! ó Tupá!

(Primeiros Cantos, pp. 9 a 12 da edição de Leipzig)

Canção do Tamoio I

Não chores, meu filho;
Não chores, que a vida
É luta renhida:
Viver é lutar.
A vida é combate
Que os fracos abate,
Que os fortes, os bravos,
Só pode exaltar.

II
Um dia vivemos!
O homem que é forte
Não teme da morte,
Só teme fugir;
No arco que entesa,
Tem certa uma presa,
Quer seja tapuia,
Condor ou tapir.

III
O forte, o cobarde
Seus feitos inveja,
De o ver na peleja
Garboso e feroz;
E os tímidos velhos
Nos graves conselhos,
Curvadas as frontes,
Escutam-lhe a voz!

IV

Domina, se vive;
Se morre, descansa
Dos seus na lembrança,
Na voz do porvir.
Não cures da vida!
Sê bravo, sê forte!
Não fujas da morte,
Que a mort há de vir!

V

E, pois que és meu filho,
Meus brios reveste;
Tamoio nasceste,
Valente serás.
Sê duro guerreiro,
Robusto, fragueiro, (598)
Brasão dos Tamoios
Na guerra e na paz.
VI

Teu grito de guerra
Retumbe aos ouvidos
De imigos transidos
Por vil comoção;

E tremam de ouvi-lo,
Pior que o sibilo (599)
Das setas ligeiras,
Pior que o trovão.

VII

E a mãe, nessas tabas,
Querendo calados
Os filhos criados
Na lei do terror,
Teu nome lhes diga,
Que a gente inimiga
Talvez não escute
Sem pranto, sem dor!

VIII

Porém, se a fortuna,
Traindo teus passos,
Te arroja nos laços
Do imigo falaz, (600)
Na última hora
Teus feitos memora,
Tranqüilo nos gestos,
Impávido, audaz.

IX
E cai como o tronco
Do raio tocado,
Partido, rojado
Por larga extensão;
Assim morre o forte!
No passo da morte
Triunfa, conquista Mais alto brasão.

X
As armas ensaia,
Penetra na vida:
Pesada ou querida,
Viver é lutar.
Se o duro combate
Os fracos abate,
Aos fortes, aos bravos
Só pode exaltar.

(Últimos Cantos, pp. 465-468, da ed. Leipzig)

O Mar

Oceano terrível, mar imenso
De vagas procelosas que se enrolam,
Floridas rebentando em branca espuma
Num polo e noutro polo,
Enfim… enfim te vejo; enfim meus olhos
Na indómita cerviz trêmulos cravo,
E esse rugido teu, sanhudo e forte,
Enfim medroso escuto!

Donde houveste, ó pélago revolto, (601)
Esse rugido teu?
Em vão dos ventos
Corre o insano pegão lascando os troncos,
E o profundo abismo
Chamando à superfície infindas vagas,
Que avaro encerras no teu seio undoso;
Ao insano rugir dos ventos bravos
Sobressai teu rugido.

Em vão troveja horríssona tormenta; (602)
Essa voz de trovão, que os céus abala,
Não cobre a tua voz. Ah! donde a houveste,
Majestoso oceano?

Ó mar, o teu rugido é um eco incerto
Da criadora voz, de que surgiste.
Seja, disse; e tu fôste, e contra as rochas
As vagas compeliste.

E à noite, quando o céu é puro e limpo,
Teu chão tinges de azul, tuas ondas correm
Por sobre estrelas mil; turvam-se os olhos
Entre os dois céus brilhantes.
Da voz de Jeová um eco incerto
Julgo ser teu rugir; mas só perene
Imagem do infinito retratando
As feituras de Deus.

Por isso, a sós comigo, a mente livre
Se eleva, aos céus remonta ardente, altiva,
E deste lodo terreal se apura,
Bem como o bronze ao fogo.
Férvida a musa, cos teus sons casada,
Glorifica o Senhor de sobre os astros
Coa fronte além dos céus, além das nuvens,
E cos pés sobre ti

O que há mais forte do que tu? (603)
Se erriças
A coma perigosa, a nau possante,
Extremo de artifício, em breve tempo
Se afunda e se aniquila. (604)
És poderoso sem rival na terra;
Mas lá te vais quebrar num grão de areia. Tão forte contra os homens, tão sem força
Contra coisa tão fraca!

Mas nesse instante que me está marcado,
Em que hei de esta prisão fugir pra sempre,
Irei tão alto, ó mar, que lá não chegue
Teu sonoro rugido.

Então mais forte do que tu, minha alma,
Desconhecendo o temor, o espaço, o tempo,
Quebrará num relance o circ’lo estreito
Do infinito e dos céus!

Então entre miríades de estrelas,
Cantando hinos de amor nas harpas de anjos,
Mais forte soará que as tuas vagas,
Mordendo a fulva areia; Inda mais doce que o singelo canto
De merencória virgem, quando a noite
Ocupa a terra; e do que a mansa brisa,
Que entre flores suspira.

(Primeiros Cantos, pp. 150-153, da ed. Leipzig).

  • (594) piaga = pajé, sacerdote e curandeiro entre os indígenas.
  • (595) Anhangá — ou, como ensina T. Sampaio, anhã ou anhangá, gênio ou espírito que corre, o diabo. "G. Dias escreveu anhangá — diz esse tupinólogo — talvez por necessidade do verso".
  • (596) — i = aí. V. as nn. 471 e 530.
  • (597) Hão de os velhos servirem de escravos — A cadência métrica levou o grande poeta a empregar o infinitivo pessoal, inadequado aí.
  • (598) fragueiro — de fraga, que, por sua vez, é derivado regressivo do Iat. jragosu, escarpado, pedregoso. Fragueiro è o que passa vida trabalhosa e agreste nos montes e vales, nas fragas, enfim. Poetas nossos têm confundido fraga com frágoa, escrevendo esta por aquela, levados quase sempre pela rima (água e mágoa). Frágoa é fornalha ou forja; vem do lat. fabrica, oficina de metais, através de alterações metatéticas: "fâvrega, frávega, are, e, segundo L. de Vasconcelos, nas Lições de Filol. Port., p. 84, nota 3, ‘frâgova.
  • (599) Sibilo e silvo são formas alotrópicas do vocáb. lat. sibilu-, tendo havido para o primeiro a deslocação da tônica e para o segundo metátese do -Z-. Dessa raiz promanam silvar, sibilar e assoviar.
  • (600) — falaz (do lat. fallace), enganador, pérfido, falso.
  • (601) — Donde houveste, 6 pélago… = donde conseguiste, donde alcançaste… Pélago e pego — formas divergentes do lat. pelagu-, mar alto ou geralmente, mar. Arquipélago significa mar principal, como era o Egeu para os Helenos: a abundância de ilhas nesse mar mudou o sentido ao vocábulo.
  • (602) horrísono = de som aterrador (horridus e sonus); à semelhança:altíssono, armíssono, uníssono, multíssono, raucíssono, dulcíssono, septíssono, undíssono etc. com um -í- eufônico a mais.
  • (603) — O que há mais forte do que tu? Quanto a esse o inútil, que está precedendo o que interrogativo, é melhor ao estudante verificar a boa doutrina lendo a opulenta comprovação de Rui em os n.° 145 a 153 da sua incomparável Réplica.
  • (604) — Prescindível o segundo se, que é aí apenas uma sílaba métrica.

Seleção e Notas de Fausto Barreto e Carlos de Laet. Fonte: Antologia nacional, Livraria Francisco Alves.

 

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