TERCEIRA FASE DO ROMANTISMO: O SUBJETIVISMO DE ÁLVARES DE AZEVEDO E SUA PLÊIADA

 

Silvio Romero (Lagarto, 21 de abril de 1851 — 18 de junho de 1914) – História da Literatura Brasileira

Vol. III. Contribuições e estudos gerais para o exato conhecimento da literatura brasileira. Fonte: José Olympio / MEC.

TERCEIRA ÉPOCA OU PERÍODO DE TRANSFORMAÇÃO ROMÂNTICA — POESIA (1830-1870)

CAPITULO IV

TERCEIRA FASE DO ROMANTISMO: O SUBJETIVISMO DE ÁLVARES DE AZEVEDO E SUA PLÊIADA

O romantismo brasileiro não ficou estacionado em sua segunda fase, o indianismo; passou adiante e foi espreitar o que se fazia no grande mundo, no estrangeiro, para implantar novos achados, novas conquistas em nosso país.

Entretanto, parece singular que o sistema literário, que mais parecia coadunar-se ao espí-rito nacional, tenha sido justamente aquele que menos seiva revelou e menos frutos produziu. E assim foi; o india-III’ mo só contou dous grandes cultores neste país, Gonçalves Dias na poesia e José de Alencar no romance.

Os outros nossos escritores caminharam por diverso lado, e, se por acaso cultivaram de passagem o gênero, foi isso como um limitado preito prestado a tão ilustres chefes.

Magalhães, por espírito de imitação, escreveu a Con-federação dos Tamoios; Norberto Silva escreveu, em igual espírito, suas Americanas; Machado de Assis, pelo mesmo motivo, as suas; mas isto foi a exceção.

O mesmo em Franklin Távora, com o seu romance Os Indios do Jaguaribe, e Junqueira Freire, com seus versos () Hino da Cabocla. São casos isolados. Tal se pode dizer de Melo Morais Filho, com seus Escravos Vermelhos e seus Mitos e Poemas, e de Araripe Júnior, com Jacina — a Marabá.

Em rigor, só conheço dois cultores sistemáticos e teimosos do indianismo: Macedo Soares, no Sul, com suas poesias Almas Errantes, A Maldição do Piaga, O Canto da Indiana, e outras, e Santa Helena Magno, no Norte, em seu livro dos Arvejos Poéticos.

Macedo Soares, porém, bem cedo abandonou a poesia, atirando-se à jurisprudência e à lingüística, e Santa Helena Magno era preferível nos seus versos de caráter mais geral.

Posteriormente só Vilhena Alves e Severiano Bezerra na poesia, José Veríssimo no conto e Marques de Carvalho no romance têm cultivado mais ou menos o indianismo. Em regra, repito, o gênero só teve no Brasil dous cultores de elevada estatura: o poeta do Maranhão e o romancista do Ceará. Os outros dedicaram-lhe um ou outro momento rápido de atenção.

O indianismo não teve forças para constituir-se princípio dominante e avassalar todas as inteligências.

Apesar do talento de Gonçalves Dias, os jovens poetas, seus contemporâneos, Álvares de Azevedo, Bernardo Guimarães, Aureliano Lessa, Almeida Freitas, Silveira de Sousa, Laurindo Rabelo, José Bonifácio, Félix da Cunha, Junqueira Freire, Franco de Sá, Augusto de Mendonça, seguiram outros caminhos. É a plêiada que constitui a terceira fase do romantismo brasileiro.

Podem-se-lhe juntar os nomes de Trajano Galvão, Pedro de Calasãs, Teixeira de Melo, Costa Ribeiro, Franklin Dória, Casimiro de Abreu, Bittencourt Sampaio, Bruno Seabra, Fagundes Varela, José Maria Gomes de Sousa, Pedro Luis, Sousa Andrade, J. Coriolano, Gentil Homem, Joaquim Serra, Rosendo Moniz, Ferreira de Meneses e vinte outros.

O leitor não esmoreça… Tantos nomes, e ainda está na terceira fase do romantismo e entre os poetas… Seria um não acabar mais, se fora a desenvolver toda essa gente e outros tantos que ainda aí faltam.

Felizmente em história literária dá-se alguma cousa de parecido ao que acontece em gramática. Aí não há necessidade de declinar todos os nomes e conjugar todos os verbos. Dão-se os paradigmas das declinações e conjugações regulares e tanto basta. A indicação dos fenômenos irregulares vem completar a teoria e fica tudo acabado.

O mesmo pode-se ir aqui praticando; há poetas que se conjugam por outros; basta referi-los aos seus respectivos paradigmas. Assim será que dos muitos acima lembrados, bastará conjugar os irregulares, quero dizer, bastará interrogar de perto os espíritos originais, aqueles que de qualquer forma e em qualquer grau influíram no desenvolvimento literário do país.

Não se espante, por outro lado, o leitor de não ver entre tantos poetas, alguns bem medíocres, os nomes de Manuel de Macedo e Machado de Assis, por exemplo. Peço-lhe para não esquecer que eles e outros irão figurar entre romancistas e dramaturgos.

Manuel Antônio Álvares de Azevedo (1831-1852). — É um dos poetas mais lidos e amados no Brasil; ele mais pelos estudantes e Casimiro de Abreu mais pelas moças. Gonçalves Dias, Castro Alves e Fagundes Varela vêm logo após na popularidade. Isto no Brasil em geral; porquanto, no Norte em especial, nenhum é mais lido e mais recitado do que Tobias Barreto, sendo para lembrar que a notoriedade deste tende a aumentar em todo o país, ao passo que a dos outros tem permanecido estacionária.

Vê-se bem que me refiro ao puro movimento romântico; hodiernamente novos poetas, alentados por outros impulsos e por outros ideais, vão tomando a dianteira e é bem possível que algum venha a gozar brevemente de grande popularidade.

Como quer que seja, ainda entre eles não existe nenhum que haja angariado entre os contemporâneos o enorme prestígio desfrutado pelos cinco românticos há pouco lembrados, nem até a influência de segunda ordem exercida por Junqueira Freire e Bernardo Guimarães. Mas, por enquanto, ainda é cedo. Em todo caso, ninguém fará esquecer a figura simpática do sonhador da Lira dos Vinte Anos.

Este moço não tem biografia no sentido técnico e monótono da palavra. Foi filho de um estudante de Direito, natural do Rio de Janeiro, e que fazia seu curso em São Paulo. O menino nasceu nesta última cidade naquele memorável ano de 1831 que viu sair do Brasil D. Pedro I e inaugurar-se a Regência. O menino não devia passar nunca de estudante.

Quando o segundo reinado se inaugurava em 1840, o pequeno começava seus primeiros estudos. Em 1847 bacharelava-se em Letras no Imperial Colégio de Pedro II, e em 1848, no ano da revolução de Pernambuco, já o heróico mancebo achava-se em São Paulo a cursar os estudos jurídicos. De 48 a 51 Azevedo viveu naquela cidade.

Nestes quatro anos escreveu ele tudo que deixou. Faleceu em abril de 52 no Rio de Janeiro.

O decênio de 46 a 56 é a fase culminante do romantismo brasileiro, já o disse, e não é escusado repeti-lo para lembrar que a figura mais alta da época é, após Dias e Alencar, incontestavelmente o moço autor de Macário.

Qualquer que seja nossa atual presunção e o nosso afetado desdém de hoje pelas nossas faculdades de Direito, desdém reflexo e de imitação, sem fundamento sério, a história não poderá negar terem sido essas faculdades a grande pépinière donde têm saído os mais notáveis obreiros de nossa política e de nossas letras.

O tempo de Álvares de Azevedo foi, especialmente em São Paulo, uma fase de agitação, de liberalismo, de entusiasmo, de remoimento de idéias e opiniões. Ali se acharam reunidos aqueles moços que levaram por diante os dous maiores fenômenos da literatura da época.

Em Azevedo melhor do que em nenhum outro distingo eu os dous sintomas: 1.° é ele um produto local, indígena, filho de um meio intelectual nosso, de uma academia brasileira ; 2.° arranca-nos de uma vez da influência exclusiva portuguesa.

Antes de Azevedo, os outros chefes, como Porto Alegre, Magalhães e Gonçalves Dias, tinham ido estudar na Europa. Já nem falo nos escritores coloniais, porque quase todos eles fizeram cursos no Velho Mundo.

A criação de faculdades brasileiras foi de um alcance intelectual extraordinário; logo na esfera política e administrativa começamos a ter homens, como Eusébio, Zacarias, Nabuco, Rio Branco e oitenta outros que são filhos de academias nacionais e alguns deles não puseram jamais os pés na Europa, ou os puseram rapidamente. Foram sempre os melhores. O mesmo se deu na literatura. Azevedo, Bernardo Guimarães, Junqueira Freire, Macedo, Agrário, Alencar, Lessa, Laurindo, Pena são filhos de escolas nacionais e com eles tudo o que há de mais ilustre em nossa vida espiritual no XIX século. Pena só foi ao Velho Mundo colher a morte e Alencar apressá-la mais.

A literatura de um povo incipiente deve ter desses obreiros aferrados ao solo, desses que preferem ficar no seu país, conservando o pouco que sabem, a ir esbanjá-lo por aí algures.

Bem profundas são as palavras de Jacó Grimm: "É preferível aprender sem viajar do que viajar sem aprender ; porque o menos que pode suceder é esquecer o -pouco que se sabe no meio do muito que se ignora."

Magnífico pensamento de um grande homem e que deveria ser uma espécie de imperativo categórico para os escritores brasileiros.

O segundo feito de Azevedo que o compartilha com seus companheiros de lutas, é, ao invés do que se poderia pensar, um corolário do primeiro. Desde que não houve mais necessidade de ir a Coimbra buscar instrução, desde que se podia ficar na pátria e educar o espírito, não houve mais o monopólio dos autores da antiga metrópole.

Não há nada mais escusado na esfera dos fenômenos intelectuais do que a pretensão dalguns escritores portugueses quererem insinuar-se como intermediários entre nós e a ciência e literatura européias!…

Pois se posso ler o darwinismo em Darwin, o comtis-mo em Comte, o pessimismo em Schopenhauer, a filosofia do inconsciente em Hartmann; se posso ler o meu Haeckel, o meu Strauss, o meu Ihering, o meu Noiré, o meu Spencer; se não conheço melhor Hamlet do que o de Shakespeare, nem consta haver melhor Childe Harold do que o de Byron, para que ir ali a quem quer que seja pedir auxílio?

Azevedo compreendeu-o logo, e andou sempre a lembrar e a citar os bons escritores gregos, latinos, ingleses, italianos, alemães e franceses. Especialmente Shakespeare, Tasso, Byron, Werner, Musset, Vítor Hugo e Sand são os seus autores prediletos.

Para o universalismo literário de nosso romantismo, especialmente na fase historiada agora, parece ter sido de grande influxo a ação mental exercida na mocidade do tempo, que se preparava no Rio de Janeiro para os cursos superiores, por um punhado de estrangeiros ilustradíssi-mos, especialmente ingleses e alemães, que eram então a glória do magistério secundário no Brasil.

Por esta face e neste sentido devo aqui consignar, como operários eméritos de nosso progresso mental, os nomes de Planitz, Tautphceus, Calógeras, Freese no Rio de Janeiro, e Júlio Franck em São Paulo.

O gosto pela leitura e a forte instrução preparatória, Azevedo levou-os do Rio de Janeiro. Levou daqui também as tintas de sua imaginação desperta pela beleza primaveril desta região. São Paulo deu-lhe o gosto de escrever, a emulação, o entusiasmo, a vida livre do acadêmico, o desvairamento da poesia da época.

Juntai a tudo isto a melancolia inata, oriunda de um temperamento franzino e enfermo, e tereis os elementos dessa inteligência e desvendar-se-vos-ão os segredos daquele coração.

Eu não quero decompô-lo. Repugna-me às vezes este ofício de anatomista do espírito. Há uma certa impiedade em penetrar assim indiscreta e brutalmente pela alma adentro de um poeta, de um homem que sofreu, ainda mesmo quando este homem e este poeta são um mancebo de vinte anos, quase virgem de sentimentos.

Procederei por outro modo; antes pintor que anatomista, antes uma tela do que uma mesa de operações.

Muito se tem escrito de Álvares de Azevedo; mas é lícito ainda hoje pôr em dúvida que o poeta haja sido bem estudado.

A retórica maléfica descobriu que ele se impregnara do espírito de Byron e Musset e se fizera céptico. Isto é dizer muito pouco, é quase nada dizer.

Resta ainda e sempre determinar os motivos dessas predileções do poeta e definir a natureza de seu cepticismo. Céptica é quase toda a gente, é quase o mundo inteiro. A generalidade do qualificativo não tem forças de definir.

As preocupações da velha crítica não ficaram aí; foram adiante e levantaram o problema de saber se o poeta era sincero no seu cepticismo, em sua descrença, nas suas idéias, no seu modo de viver.

Formaram-se logo dous partidos: uns afirmavam que o moço escritor era um espírito meigo, delicado, virgem, puro e singelo, não conhecendo as diabruras e irregularidades da vida senão pelos livros dos poetas e romancistas românticos.

Destarte, seus sentimentos eram impolutos, seu viver recatado, seu corpo estreme de qualquer impureza. Nada de charutos, de vinho, de conhaque, de passeatas, de súcias, de bebedeiras, de lúbricos prazeres com as mulheres perdidas.

O poeta era um solitário; seus desvarios eram puros jogos, inocentes brincos de sua imaginação…

Os que assim têm discreteado, supondo elevar o caráter do moço escritor, aviltam-no de fato, reduzindo-o a uma espécie de maníaco, um ente mórbido, entregue talvez a algum vício oculto.

É escusado lembrar que, deturpado o caráter do jovem poeta, estragam também a sua obra, que fica reduzida a uma cousa aérea, imponderável, fantástica e nula.

Outros, julgando-se muito desabusados, tombam para extremo oposto. Pintam o autor da Noite na Taverna como um monstrengo moral, um ser depravado, corrupto, ébrio, devasso, metido em extravagâncias e desatinos de toda a casta. Estes supõem elevar a obra, deturpando o caráter do homem. Tudo isto é falso, falsíssimo.

Nem anjo, nem demônio.

Foi uma natureza inteligente e idealista, porém mór-bida, desequilibrada de origem, e ainda mais enfraquecida pelo estudo e agitada pela leitura dos sonhadores do tempo.

Chegou a fazer alguns desses pagodes próprios de estudantes, essa poesia prática da vida que bem se des-fruta na quadra da mocidade, encantadora fase cheia de delícias antigamente em São Paulo e Olinda. Hoje, seja dito de passagem, tem isto muito arrefecido. O poeta não teve, porém, tempo nem oportunidade de travar um amor sério, uma paixão sincera e pura.

Precoce em tudo, estranhava que esse afeto não lhe tivesse ainda chegado. Daí, por este lado, o dualismo que se nota nas composições líricas de gênero amoroso em Azevedo. Às vezes é um lirismo idílico e todo confiante, mas puramente ideal; outras vezes e a amargura de quem não encontrou ainda um coração que o compreendesse, ou a pintura dalguma cena lasciva.

Outro dualismo dá-se nas opiniões, crenças e doutrinas do poeta. Idealista e crente por índole, educado num regímen religioso, o sopro do século abalou-o em metade.

Esta revolução não se fez por intermédio da ciência e de idéias positivas; fez-se por meio da poesia e da literatura romântica. Daí esse desequilíbrio, esse cambalear, essas duas facetas do gênio e das inspirações do moço escritor. Posição aliás comum a um grande número de espíritos em um século de tão rápidas renovações e mutações intelectuais.

Determinar aquele dualismo, numa e noutra esfera, é o trabalho da crítica para com ele. Vida quase toda subjetiva, agitada pela leitura, não teve, repito, ensejo de amar, nem de gozar à farta. Daí o desânimo, a excitação, a impotência da vontade.

Sua melancolia, que aliás era ingênita e ainda mais se desenvolveu pela vacilação de suas idéias, não veio de injustiças sofridas, de lutas sociais, de problemas científicos em desarmonia com seus sentimentos. Não veio da traição de amantes nem de amigos. Ele não tem um canto de alegria pelo amor satisfeito e retribuído, nem de tristeza pelo amor traído. São sempre queixas de não ter podido achar mulheres puras e somente Messalinas... É sincero nisto é tragicamente sincero.

Não foi um viciado, um libertino, que fizesse a poesia de seus vícios; não foi também uma alma cândida e virgem, que se mostrasse por sistema viciada. Foi um melancólico, um imaginoso, um lírico, que enfraqueceu as energias da vontade e os impulsos fortes da vida no estudo, e enfermou o espírito com a leitura desordenada dos românticos à Heine, Byron, Shelley, Sand e Musset.

A vacilação mental se conhece por todos os seus escritos, ora crentes, ora descrentes. A falta de energia para envolver-se em intrigas amorosas sérias que o acalmassem, conhece-se nas confissões que tantas vezes repete de não ter tido um só amor profundo e somente sonhos falazes.

Ouçamo-lo mais de perto.

Ele é positivo neste sentido, e tantas são as provas que dificuldade há só em escolhê-las.

É bastante abrir a Lira dos Vinte Anos e ler aquelas poesias idealistas que se intitulam: No Mar, Sonhando, Cismas, Tenho um Seio que Delira, Quando à Noite no Leito Perfumado, A.T., Anima Mea, Vida, Saudades, Vir-gem Morta, Minha Musa e vinte outras, e depois passar a ler Um Canto do Século, onde se vê isto:

"Eu vaguei pela vida sem conforto,
Esperei minha amante noite e dia

E o ideal não veio…
Farto da vida, breve serei morto…
Nem poderei ao menos na agonia

Descansar-lhe no seio…

Passei como Don Juan entre as donzelas,
Suspirei as canções mais doloridas,
 
E ninguém me escutou…

Oh! nunca à virgem flor das faces belas,
Sorvi o mel, nas longas despedidas…

Meu Deus, ninguém me amou!"

Estas idéias e este estado psicológico repetem-se à farta em muitas composições do poeta, nomeadamente nas Idéias íntimas:

"O pobre leito meu, desfeito ainda,
A febre aponta da noturna insónia.
Aqui lânguido à noite debati-me
Em vãos delírios anelando um beijo…
E a donzela ideal nos róseos lábios,
No doce berço do moreno seio
Minha vida embalou estremecendo…
Foram sonhos contudo! A minha vida
Se esgota em ilusões. E quando a fada
Que diviniza meu pensar ardente
Um instante em seus braços me descansa
E roça a medo em meus ardentes lábios
Um beijo que de amor me turva os olhos…
Me ateia o sangue, me enlanguesce a fronte…
Um espírito negro me desperta,
O encanto do meu sonho se evapora…
E das nuvens de nácar da ventura
Rolo tremendo à solidão da vida!…
Oh! ter vinte anos sem gozar de leve
A ventura de uma alma de donzela!

E sem na vida ter sentido nunca
Na suave atração de um róseo corpo
Meus olhos turvos se fechar de gozo!

Oh! nos meus sonhos, pelas noites minhas,
Passam tantas visões sobre meu peito!
Palor de febre meu semblante cobre,
Bate meu coração com tanto fogo!

Um doce nome os lábios meus suspiram,
Um nome de mulher… e vejo lânguida
No véu suave de amorosas sombras
Seminua, abatida, a mão no seio,
Perfumada visão romper a nuvem,
Sentar-se junto a mim, nas minhas pálpebras
O alento fresco e leve como a vida
Passar delicioso… Que delírios!
Acordo palpitante… Inda a procuro:

Embalde a chamo, embalde as minhas lágrimas

Banham meus olhos e suspiro e gemo…

Imploro uma ilusão… Tudo é silêncio!

Só o leito deserto, a sala muda!

Amorosa visão, mulher dos sonhos,

Eu sou tão infeliz, eu sofro tanto!

Nunca virás iluminar meu peito

Com um raio de luz desses teus olhos?"

É inútil continuar. É uma posição especial. Por que não amou o poeta a alguém? Não encontraria ninguém em seu caminho que lhe merecesse os afetos?

No Rio de Janeiro, nas relações de sua família, nunca se lhe deparou uma bela fluminense que o prendesse em’ suas longas tranças e o enleasse nos brilhos do seu olhar?

Em São Paulo, terra de tantas belezas, nenhuma o engraçou?

Em uma das cartas que dirigiu a seu amigo Luís Antônio da Silva Nunes revela que freqüentava ali a boa sociedade e chegou a conhecer duas lindas paulistanas, que o tocaram de leve. Declara logo, porém, que não sentia amor por elas.

A razão de tantos escrúpulos e dificuldades? Seria o poeta muito exagerado no seu ideal da mulher? Seria acanhado? Seria tímido?

Pelo pedaço último transcrito poder-se-ia crer que nem teve nunca amor positivo a uma donzela, nem mesmo gozara os encantos de mulher alguma. Esta última suposição seria falsa, diante de declarações autênticas feitas pelo próprio poeta:

"Oh! não maldigam o mancebo exausto Que na orgia gastou o peito insano… Que foi ao lupanar pedir um leito, Onde a sede febril lhe adormecesse!

Não podia dormir! nas longas noites Pediu ao vício os beijos de veneno… E amou a saturnal, o vinho, o jogo E a convulsão nos seios da perdida!

Misérrimo! não creu… Não o maldigam, Se uma sina fatal o arrebatava… Se na torrente das paixões dormindo Foi naufragar nas solidões do crime.

Oh! não maldigam o mancebo exausto Que no vício embalou, a rir, os sonhos, Que lhe manchou as perfumadas tranças Nos travesseiros da mulher sem brio!

Se ele poeta nodoou seus lábios… É que fervia um coração de fogo E da matéria a convulsão impura A voz do coração emudecia!

E quando p’la manhã da longa insónia Do leito perfumado ele se erguia, Sentindo a brisa lhe beijar no rosto E a febre arrefecer nos roxos lábios…

E o corpo adormecia e repousava Na serenada relva da campina… E as aves da manhã em torno dele Os sonhos do poeta acalentavam…

Vinha um anjo de amor uni-lo ao peito, Vinha uma nuvem derramar-lhe a sombra, E a alma que chorava a infâmia dele, Secava o pranto e suspirava ainda!"

Sempre assim; gozos materiais, ânsias por um amor puro e sincero, que lhe não veio jamais. A cousa está liquidada e pode-se ir adiante.

Esta posição especial que assinalo em Álvares de Aze-vedo, de ser ardente, voluptuoso, sequioso de gozar, e ao mesmo, tempo não ter amado jamais, não haver tido em sua vida uma paixão amorosa, o que é perfeitamente expli-cável, porque o poeta morreu muito moço, é diversa do dualismo de ideal e ironia, de sinceridade e sarcasmo, de pureza e grosseria que também se nos depara em seus versos.

Este dualismo de outra espécie era conscientemente praticado, era sistemático e tinha alguma cousa de artifi-cial. O poeta o praticou de caso pensado e ele mesmo tem o cuidado de o avisar, precedendo a segunda parte da Lira dos Vinte Anos destas palavras, que revelam suas idéias, seus planos, suas preocupações de artista:

"Cuidado, leitor, ao voltar esta página! Aqui dissipa-se o mundo visionário e platônico. Vamos entrar num mundo novo, terra fan-báltica, verdadeira ilha Barataria de D. Quixote, onde Sancho é rei e vivem Panúrgio, sir John Falstaff, Bardolph, Fígaro e o Sganarello de D. João Tenório: a pátria dos sonhos de Cervantes e  Shakespeare.

Quase depois de Ariel esbarramos em Calibã. A razão é simples. É que a unidade deste livro funda-se numa binômia: duas almas que moram nas cavernas de um cérebro pouco mais ou menos de poeta escreveram este livro, verdadeira medalha de duas faces.

Demais, perdoem-me os poetas do tempo, isto aqui é um tema, senão mais novo, menos esgotado que o sentimentalismo, tão fashio-nable desde Werther até René.

Por um espírito de contradição, quando os homens se vêem inundados de páginas amorosas preferem um conto de Boccacio, uma caricatura de Rabelais, uma cena de Falstaff, no Henrique IV de Shakespeare, um provérbio fantástico daquele, polisson Alfredo de Musset a todas as ternuras elegíacas dessa poesia de arremedo que anda na moda e reduz as moedas de ouro sem liga dos grandes poetas ao troco de cobre, divisível até ao extremo, dos liliputianos poetastros. Antes da Quaresma há o Carnaval.

Há uma crise nos séculos como nos homens. É quando a poesia cegou deslumbrada de fitar-se no misticismo e caiu do céu sentindo exaustas as suas asas de ouro. O poeta acorda na terra. Demais o poeta é homem; homo sum, como dizia o célebre romano. Vê, ouve, sente, e, o que é mais, sonha de noite as belas visões palpáveis de acordado. Tem nervos, tem fibras e tem artérias, isto é, antes e depois de ser um ente idealista, é um ente que tem corpo!

E digam o que quiserem, sem esses elementos, que sou o primeiro a reconhecer muito prosaicos, não há poesia. Que acontece? Na exaustão causada pelo sentimentalismo, a alma ainda trêmula e ressoante da febre do sangue, a alma que ama e canta, porque

sua vida é amor e canto, que pode senão fazer o poema dos amores da vida real? Poema talvez novo; mas que encerra em si muita verdade e muita natureza, e que sem ser obsceno pode ser erótico, sem ser monótono.

Digam e creiam o que quiserem: todo o vaporoso da visão abstrata não interessa tanto como a realidade formosa da bela mulher a quem amamos.

O poema então começa pelos últimos crepúsculos do misticismo, brilhando sobre a vida como a tarde sobre a terra. A poesia puríssima banha com. seu reflexo ideal a beleza sensível e nua. Depois, a doença da vida, que não dá ao mundo objetivo cores tão azuladas como o nome britânico de blue devils, descarna e injeta de fel cada vez mais o coração. Nos mesmos lábios onde suspirava a monódia amorosa, vem a sátira que morde.

É assim. Depois dos poemas épicos, Homero escreveu o poema irônico. Goethe depois de Werther criou o Faust. Depois da Pari-sina e o Giaour de Byron vem o Caim e D. Juan, D. Juan que começa como Caim pelo amor e acaba como ele pela descrença venenosa e sarcástica."

É uma página interessante esta como documentação do pensar do poeta sobre a vida e sobre as condições da arte. O romantismo não foi assim tão despido de realidade e senso crítico, qual queremos nós os homens de hoje supor.

Eis aí em Álvares de Azevedo, que toda a gente agora costuma apresentar como um ente quimérico, cheio de fantasias estúrdias, um forte apelo para as duras realidades da vida. Devemos, pois, em mais de um ponto corrigir nossos levianos juízos. Onde mais verdade, já não digo em Balzac e Stendhal, mas do que em Goethe e Byron?

O autor da Lira dos Vinte Anos obedeceu às influências de sua época, a esse estado de vacilação, tão característico do XIX século.

Daí a dubiedade, aliás consciente, de sua intuição e de sua poesia. Eu bem sei que os grandes tempos de forte e máscula poesia, de imensas efusões artísticas, são as épocas de fé. É costume dizer-se isto.

Creio haver aí um bom fundo de verdade no tocante às criações épicas e outras equivalentes, que acompanham sempre as grandes sínteses religiosas e filosóficas. Assim no tempo de Fídias, assim no tempo de Dante, assim no tempo de Miguel Ângelo. Todo o século XIX foi uma época de lutas e fortes comoções intelectuais; os dogmas surgiam e tombavam, sem poder aliciar todos numa crença apaziguadora e universal. Este oscilar constante ainda perdura.

Tudo isto é verdade, e bem compreendo os que vacilam. É a luta entre o sentimento e a idéia.

Desgraçados dos que as sofrem! Trazem n’aima os impulsos encontrados de ideais diversos, e são teatro de combates e perturbações íntimas. E passa muitas vezes o vulgo ignaro e diz : "Grande tolo ! É um sentimental !… É um espírito atrasado ; não se adiantou ainda !… "

É que o vulgo estúpido está acostumado com certas almas de pedra, duras como os saibros dos caminhos, em que todos pisam e não dão sinais de dor.

O mundo extasia-se diante desses seres insensíveis que nada tomam a sério e mudam de doutrinas e crenças, como se muda um par de calças… Homens que passam do mais ideal cristianismo, por exemplo, ao mais requintado materialismo sem a menor comoção íntima. Singulares entes !…

Quanto a mim, é que jamais foram sinceros; nunca tiveram verdadeiro aferro a suas crenças. Do contrário sentiriam o esboroar delas.

Álvares de Azevedo foi dos que sentiam as dores d’alma ; era um suposto atrasado… De Sanctis também é um tal, quando escreve estas palavras: "II dolore come ritempra 1’animo cosi rinfresca l’ingegno. II dolore è il Colombo chè apre al poeta un mondo nuovo. Egli gitta l’anima in una diversa situazione, e le muta gli occhi, sicchè ella vegga le stesse cose sotto nuove forme o nuovi colori. Nelle suprême sventure 1’uomo vede come scom-parire il suo antico me, e dal tumulto dei mondo esteriore si ritira in sè stesso."1

Palavras destas escreve o sábio escritor, uma das glórias da Itália moderna. Entre nós certos ingênuos de tempos a esta parte levantaram o falso conceito do pretendido adiantamento, como critério definitivo da poesia… Não vê esta gente ser isto um formidável desacerto?

Não há uma poesia adiantada e outra atrasada; a poesia é o que ela é e mais nada; a poesia é boa ou má, sincera ou afetada. O conceito de atraso ou adiantamento só tem aplicação na ciência.

Em sua essência a boa poesia não tem data. Dante é tão adiantado como Shakespeare, Milton tanto como Byron, Ariosto tanto como Schiller.

1. Saggi Critici di Francesco De Sanctis, pág. 433.

Assim não entendem certos aristarcos; para eles a Ilíada é atrasada, a Divina Comédia é atrasada, Otelo é atrasado, os Lusíadas são atrasados... Deve-se modernizar tudo isto…

Álvares de Azevedo era um talento possante numa organização franzina. Não podia viver muito, era doentio; era em essência um melancólico. Isto pode-se dizer dele; porque é a verdade manifestada em sua vida e em seus escritos. Como melancólico era impossível que atingisse n’arte àquela serenidade de Goethe, por exemplo. Aplicar-lhe o conceito errôneo em poesia de adiantamento ou atraso é que é formidável desconcerto.

O poeta quase só produziu queixumes; porque era desequilibrado. "No íntimo da melancolia encontrar-se-á talvez sempre uma falta de equilíbrio das faculdades, e, como causa final, algum desarranjo orgânico.

"O melancólico é um ser incompleto, enfermo, ferido nas fontes da vida, que poderá exalar queixas eloqüentes; mas que nunca atingirá à grande arte.

"O verdadeiro artista, o que domina a natureza e o homem, que os reproduz numa concepção impessoal, um Shakespeare, um Goethe, um Walter Scott, esse é um são. Não sabe o que é apalpar o pulso. A paz de seu espírito não está à mercê do tempo que faz, contempla a vida com serenidade. A melancolia resulta de uma organização nervosa, impressionável, delicada, esquisita, porém incompatível com a harmonia das forças e a elasticidade de um temperamento robusto."

São palavras de Edmond Scherer a propósito de Mau-rice de Guérin. Aplicam-se perfeitamente ao nosso poeta.

Dada esta idéia geral da natureza de seu talento e das vicissitudes de seu estado espiritual, resta analisar mais diretamente os seus escritos.

Em Álvares de Azevedo há um poeta lírico e o esboço de um crítico, de um dramatista e de um conteur. O lirismo do jovem artista não é o simples lirismo melancólico à Lamartine. Há nele grande variedade introduzida por pinturas objetivistas, por cenas de costumes, por cantos políticos, por passagens humorísticas.

Quando se fala em Azevedo vem logo à mente a idéia de um lacrimoso perpétuo. Pois é um grande erro.

Há nele páginas de um objetivismo completo: Pedro Ivo,- Teresa, Cantiga do Sertanejo, Na Minha Terra, Crepúsculo no Mar, Crepúsculo nas Montanhas, e muitas

outras. Em Glória Moribunda, Cadáver de Poeta, Sombra de D. Juan,. Boémios, Poema do Frade, e no Conde Lopo, recentemente publicado, há muito desse satanismo, desse desprazer da vida em que veio acabar o romantismo. Há apenas mais talento do que em Baudelaire; porque, de envolta com os desalentos e extravagâncias do gênero, em Azevedo aparecem manifestações de lirismo que não possuía tão eloqüentes o poeta francês.

Esse lirismo pode sofrer uma divisão capital: idealismo e humorismo. Num e noutro há notas pessoais e gerais. Há dificuldade em mostrar trechos pela abundância de fragmentos típicos. Leiam-se Anima Mea, Harmonia, Tarde de Verão, Saudades, Virgem Morta, Spleen e Charutos, Meu Desejo, Lágrimas da Vida, Malva-Maçã, Namoro a Cavalo e vinte outras.

Não reproduzirei aqui nenhuma dessas; as obras do poeta andam aí e podem e devem ser lidas. Só uma incluirei neste lugar; porque só por si é apta a fazer amar esse rapaz, esse espírito desequilibrado e revolto; mas essa alma entusiasta é capaz de grandes dedicações. São os versos que o poeta dirige à sua mãe:

"És tu, alma divina, essa Madona
Que nos embala na manhã da vida,
Que ao amor indolente se abandona
E beija uma criança adormecida.

No leito solitário és tu quem vela,
Trêmulo o coração que a dor anseia,
Nos ais do sofrimento inda mais bela
Pranteando sobre uma alma que pranteia.

E se pálida sonhas na ventura
O afeto virginal, da glória o brilho,
Dos sonhos no luar, a mente pura Só delira ambições pelo, teu filho!

Pensa em mim, como em ti saudoso penso, Quando a lua no mar se vai doirando: — Pensamento de mãe é como incenso Que os anjos do Senhor beijam passando.

Criatura de Deus, ó mãe saudosa No silêncio da noite e no retiro A ti voa minh’alma esperançosa, E do pálido peito o meu suspiro!

Oh! ver meus sonhos se mirar ainda De teus sonhos nos mágicos espelhos.. . Viver por ti de uma esperança infinda E sagrar meu porvir nos teus joelhos…

E sentir que essa brisa que murmura, As saudades da mãe bebeu passando… E adormecer de novo na ventura Aos sonhos d’oiro o coração voltando…

Ah! se eu não posso respirar no vento, Que adormece no vale das campinas, A saudade de mãe no desalento, E o perfume das lágrimas divinas…

Ide, ao menos, de amor meus pobres cantos No dia festival em que ela chora, Com ela suspirar nos doces prantos Dizer-lhe que também eu sofro agora.

Se a estrela-d’alva, a pérola do dia, Que vê o pranto que meu rosto inunda, Meus ais na solidão lhe não confia E não lhe conta minha dor profunda…

Que a flor do peito desbotou na vida, E o orvalho da febre requeimou-a; Que nos lábios da mãe na despedida O perfume do céu abandonou-a!…

Mas não irei turvar as alegrias

E o júbilo da noite sussurrante,

Só porque a mágoa desnuou meus dias

E zombou de meus sonhos delirantes.

Tu bem sabes, meu Deus, eu só quisera Um momento sequer lhe encher de flores, Contar-lhe que não finda a primavera, A doirada estação dos meus amores…

Desfolhando da pálida coroa Do amor do filho a perfumada flor, Na mão que o embalou, que o abençoa, Uma saudosa lágrima depor…

Sufocando a saudade que delira

E que as noites sombrias me consome,

O nome dela perfumar na lira,

De amor e sonhos coroar seu nome!"*

É uma dessas páginas deliciosas, eivadas de brancas e doces e saudosas idéias; páginas feitas de mimo e candura, próprias para contrastarem tantas outras cheias de amargas ironias.

Creio que se o meu leitor for agora reler o seu Álvares de Azevedo, poderá comigo chegar a esta conclusão:

2.- Obras de Alvares áe Azevedo, 5.« edição, 1884, vol. 1.°, pág. 249.

as melhores páginas do poeta são aquelas em que ele deu expansão a seu talento mais natural e íntimo, o talento lírico.

O que distingue seu lirismo dentre todos os que tenho até agora examinado é certo modernismo, certa frescura das tintas e daâ imagens.

Em Magalhães, Porto Alegre, Moniz Barreto, Maciel Monteiro e outros há um certo tour na forma que lembra ainda o velho classismo. O mesmo em parte em Gonçalves Dias. No autor da Lira dos Vinte Anos a cousa é outra e a impressão que deixa é bem diversa; o tom é novo; vê-se nitidamente que se está a tratar com um filho do século.

O humorista é também novo, e é a primeira vez que aparece na poesia brasileira essa bela manifestação da alma moderna. Convém não confundir o humour com a chalaça, a velha pilhéria portuguesa; essa tivemo-lo sempre, e sempre a possuiu o reino.

O humour à inglesa e alemã nós não o cultivamos jamais, nem Portugal tampouco. O primeiro que o exprimiu em nossa língua foi Álvares de Azevedo, profundamente lido nas literaturas do Norte.

O humour é diverso da vis cômica, do espirito e da sátira, ainda que possa ter com eles alguma analogia. A comédia é o riso com certa malignidade; o espírito é a graça, a pilhéria para divertir; a sátira é um eastigo empregado como tal, mostrando cólera.

O humour é uma especial disposição da alma que procura em todos os fatos o lado contrário, sem indignação. Requer finura, força analítica, filosofia, cepticismo e graça num mixtum compositum especialíssimo, que não anda por aí a se baratear. Azevedo o possuiu até certo ponto.

Eu disse que o poeta abrigava em si o esboço de um conteur, dum dramatista e dum crítico. O conteur está nessa tão afamada Noite na Taverna, onde há algumas belezas entre muitas extravagâncias e afetações. O dramatista está nos Boêmios e em Macário, fragmentos informes para o palco, porém contendo algumas idéias felizes.

Pelo que me toca, prefiro o poeta.

O crítico me parece também de não mui avultado alcance.

O drama e o conto exigem muita observação, muita análise, muita tensão no espírito, a par de muita imaginação criadora. Não creio que aquelas qualidades predominassem no espírito do poeta.

A crítica exige muita lógica, compreensão muito nítida, ausência de toda nebulosidade, nada de sestros fanáticos, intuição rápida, aptidão filosófica intensa, assimilação pronta.

Azevedo não era propriamente isto. A prova está antes de tudo no fato de ele próprio, desconhecendo radicalmente a missão, o alcance e o objetivo da crítica, ainda laborar na velha e errônea noção de ser ela a parasita que vive de alheia seiva, e outras momices da espécie, que podem ser lidas no prefácio do Conde Lopo.

Nos ensaios do gênero, deixados pelo poeta, o estilo é por vezes pesado, obscuro e amaneirado e as contradições e obscuridades formigam.

Não é que ache completa razão em Wolf e Norberto Silva quando acusam geralmente a prosa de Azevedo. Há excesso de rigor; o moço paulista deixou algumas páginas saborosamente escritas.

Eis aqui uma delas:

"O que eu lhe vou dizer é triste, é lastimoso para quem o diz: tanto mais que ele o faz com a plena convicção de que fala ao indiferentismo.

É uma miséria o estado do nosso teatro: é uma miséria ver que só temos João Caetano e Ludovina. A representação de uma boa concepção dramática se torna difícil. Quando só há dous atores de força, sujeitamo-nos ainda a ter só dramas coxos, sem força e sem vida, ou a ver estropiar as obras do gênio.

Os melhores dramas de Schiller, de Gcethe, de Dumas não se realizam como devem. O Sardanapalo de Byron traduzido por uma pena talentosa foi julgado impossível de levar-se à cena. No caso do Sardanapalo estão os dramas de Shakespeare que, modificados por uma inteligência fecunda, deveriam produzir muito efeito. Se o povo sabe o que é o Hamlet, Otelo… deve-o ao reflexo gelado de Ducis. Contudo, seria fácil apresentar-se no teatro de S. Pedro alguma cousa de melhor do que isso. Com o simples trabalho dé tradução se poderiam popularizar os trabalhos de Emile Deschamps, Auguste Barbier, Leon de Vailly e Alfredo de Vigny, que traduziram^ Romeu e Julieta, Macbeth, Júlio César, Hamlet e Otelo..

Quando o teatro se faz uma espécie de taberna de vendilhão, yá que se especule com a ignorância do povo. Mas quando a Companhia do teatro está debaixo da inspeção imediata do Governo, deverá continuar esse sistema verdadeiramente imundo? não: o teatro não deve ser escola de depravação e mau gosto. O teatro tem um fim moralizador e literário: é um verdadeiro apostolado

do belo. Daí devem sair as inspirações para as massas. Não basta que o drama sanguinolento seja capaz de fazer agitarem-se as fibras em peitos de homens cadáveres. Não basta isto: é necessário que o sonho do poeta deixe impressões ao coração e agite n’aima sentimentos de homem.

Para isso é preciso gosto na escolha dos espetáculos, na escolha dos atores, nos ensaios, nas decorações. É desse todo de figuras grupadas com arte, do efeito das cenas, que depende o interesse. Talma o sabia. João Caetano, por uma verdadeira adivinhação do gênio, lembra-se disto.

Além dessas composições sem alma, que servem apenas para amesquinhar a platéia, esses quadros de terror e de abuso de mor-tualha que servem apenas para atufar de tédio o coração do homem que sente, mas que pensa e reflete no que sente e no que pensa.

Mas o que é uma desgraça, o que é a miséria das misérias é o abandono em que está entre nós a Comédia.

Entre nós parece que acabaram os belos tempos da Comédia. Verdadeiros blasés, parece que só amamos as impressões fortes, que preferimos estremecer, chorar, a rir daquelas boas risadas de outrora.

Em lugar da musa de Menandro e de Terêncio, temos hoje uma musa asquerosa que aparece nas tábuas do palco à meia-noite, como uma bruxa, que revolve-se imunda com a boca cheia de chufas obscenas, em chão de lodo, hedionda criatura, bastarda da boa filha de Molière, adiante da qual o pudor, digo mal, até o impudor tem de corar.

O estrangeiro que assiste àquelas saturnais vergonhosas da cena crê assistir a um sabbath de feiticeiras e, como o Faust de Goethe no Brocken, sente-se tomado de asco invencível por aquelas fealdades nuas. O soco romano-grego tornou-se o tamanco imundo da vagabunda desbocada!

É triste pensá-lo; — mas se é verdade que o teatro é o espelho da sociedade, que negra existência deve ser a da gente que aplaude frenética aquela torrente de lodo que salpica as faces dos espectadores !

A farsa embotou o gosto e matou a Comédia. O palhaço enforcou o homem de espírito. Arlequim fez achar insípido o Tartufo.

E, contudo, nós que nos fizemos homem no tempo em que João Caetano se não envergonhava de representar Casanova, nós que o vimos, não há muito, vestir o disfarce de Robin, embuçar-se no manto roto de Dom César de Bazan, que soltamos boas gargalhadas ante o Auto de Gil Vicente e Robert Macaire, não podemos deixar de lamentar que ele desdenhe a máscara da Comédia.

E contudo Molière — um gênio! — era cômico, Shakespeare preferia a galhofa das alegres mulheres de Windsor — What you will, A tempestade, etc., aos monólogos de Henrique III, ao desespero do Rei Lear, à dúvida de Hamlet. Kean despia o albornoz e o turbante do Mouro de Veneza para tomar o abdômen protubérante e o andar vertiginoso, as faces ardentes de embriaguez do bon vivant, cavaleiro da noite, amante da lua, sir John Falstaff !

Haja algum impulso da parte donde deve vir e esperamos que haja entre nós teatro, drama e comédia.

A nossa mocidade laboriosa se animará a empreender trabalhos dramáticos. Começarão por traduções, estudarão o teatro espanhol

de Calderon e Lope de Vega, o teatro cômico inglês de Shakespeare até Sheridan, o teatro francês de Molière, Regnard, Beaumarchais, e mais modernamente enriquecido pelo repertório de Scribe e pelos provérbios de Leclercq e de Alfredo de Musset, os que tiverem mais gênio, os que tiverem estudado o teatro grego, o teatro francês, o teatro inglês e o teatro alemão, depois desse estudo atento e consciencioso poderão talvez nos dar noites mais literárias, mais cheias de emoções do que aquelas em que assistimos a melodramas caricatos, a paixões falsas, todas aquelas concepções que movem-se e falam como um homem, mas que quando se lhes bate no coração dão um som cavernoso e metálico como o peito oco de uma estátua de bronze!"3

É bom este modo de dizer e são acertadas estas idéias. Onde não posso acompanhar o poeta é quando escreve cousas assim:

"… segundo nosso muito humilde parecer, sem língua à parte não há literatura à parte. E (releve-se-nos dizê-lo em digressão) achamo-la por isso, senão ridícula, de mesquinha pequenez a lembrança do Sr. Santiago Nunes Ribeiro; já dantes apresentada pelo coletor das preciosidades poéticas do primeiro Parnaso Brasileiro.

Doutra feita alongar-nos-emos mais a lazer por essa questão e essa polêmica secundária que alguns poetas e mais modernamente o Sr. Gonçalves Dias parecem ter indigitado: a saber que a nossa literatura deve ser aquilo que ele intitulou nas suas coleções poéticas poesias americanas. Não negamos a nacionalidade desse gênero. Crie o poeta poemas índicos, como o Thalaba de Southey, reluza-se o bardo dos perfumes asiáticos, como nas Orientais Vítor Hugo, na Noiva de Abydos Byron, no Lallah-Rook Thomas Moore, devaneie romances à européia ou à chinesa, que por isso não perderão sua nacionalidade literária os seus poemas."4

Por este pedaço, em má hora escrito, claro se vê que o autor de Macário não sabia bem o que era uma língua, uma literatura, o que era o indianismo, nem o que eram o Brasil e Portugal.

Ter ou não ter uma literatura não é questão de querer ou não querer… É um fenômeno fatal, biológico-histó-rico, que se está produzindo no Brasil, como se produziu em Portugal. Ou se queira, ou não se queira, o Brasil não está na Europa, nem o Rio de Janeiro à margem do Tejo…

Estamos noutro continente, temos outro clima, outra natureza, outro meio, outras raças mescladas no povo, outras fontes econômicas, outras aspirações, outro ideal. A língua vai-se alterando constantemente.

3. Obras de Álvares de Azevedo, 5.» edlçfio. vol. III, pâg. 237.

4. Obras de Alvares de Azevedo, 5.» edlçfio, vol. III, pág. 183.

Ora, meio à parte, raça à parte, ideal à parte produzem necessariamente literatura à parte. Nem é isto motivo para vaidades; é fenômeno sem mérito; porque e em essência quase mecânico. A vontade aqui pouco, bem pouco poderá influir.

Não é o fato do indianismo, comum aliás a toda a América, que nos garante uma literatura. Esta começou a formar-se no Brasil no dia em que os índios, os negros e os colonizadores entraram a viver juntos, a trabalhar juntos, a sofrer juntos, a cantar juntos. No dia em que o primeiro mestiço cantou a primeira quadrinha popular nos eitos dos engenhos, nesse dia começou de originar-se a literatura brasileira, que homens como Gregório de Matos, Durão, Basílio, Alvarenga, Taques, Andrada, Porto Alegre, Gonçalves Dias, Pena, Macedo, Bernardo Guimarães, Alencar, Agrário, Francisco Lisboa e o próprio Azevedo opulentaram e encaminharam para uma diferenciação cada vez mais crescente.

O segredo das teimas dos que negam esse fenômeno tão vulgar acha-se no desconhecimento dos mais elementares princípios de crítica relativamente ao conceito do que seja uma literatura, e na completa ignorância da etnografia, da história e, em geral, de todos os problemas que se referem ao Brasil.

Aureliano José Lessa (1828-1861). — Estamos em São Paulo; a Academia de Direito está animada; cheios de entusiasmo os moços cultivam a bela literatura; é no período que vai de 1846 a 1856. É donde então partem os raios que iluminam e alentam as pátrias letras.

Ao lado dos poetas e literatos havia os publicistas e oradores; é o tempo de Álvares de Azevedo, Aureliano Lessa, Bernardo Guimarães, José Bonifácio, Félix da Cunha, Ferreira Viana, Paulino de Sousa, José de Alencar, Duarte de Azevedo e muitos e muitos outros.

O movimento, inaugurado no Rio de Janeiro, por Magalhães, Porto Alegre, Gonçalves Dias, Pena e Macedo, chega até a capital paulista, os moços metem-se nele e o adiantam. Aureliano Lessa é um dos obreiros naquela faina. Ele, Azevedo e Bernardo Guimarães eram os mais aplaudidos poetas da época. Iam juntos publicar As Três Liras.

Bernardo e Aureliano eram mineiros e amavam-se extremamente. A estima entre ambos era mais profunda

do que entre qualquer deles e Azevedo. Razões psicológicas havia para isto; os dous mineiros eram plácidos, avessos a essa turbulência de idéias adequadas à índole do moço autor dos Boêmios.

O romantismo penetrou em Azevedo por todos os poros, sacudiu-lhe todas as fibras, tomou-lhe os sentimentos e as idéias.

Os dous mineiros, conquanto afetados do mal até certo ponto, a despeito de haverem adquirido certos hábitos acadêmicos, não deixaram no íntimo de ser profundamente idealistas e crentes, religiosos até em alto grau. A leitura atenta de Lessa sobretudo o prova irrecusavelmente.

Azevedo faleceu logo sem ter tempo sequer de acabar o curso acadêmico.

Os dous mineiros, retirados aos seus sertões, continuaram a viver descuidosamente, em todo o desleixo de verdadeiros poetas e verdadeiros meridionais.

Bernardo morreu já quase sexagenário; Lessa o antecedera de muito. Finou-se aos trinta e três anos de idade, aos 21 de fevereiro de 1861.

Dos três amigos, ele é que deixou menor nomeada. Um teve parentes cuidadosos que lhe publicaram imediatamente as obras e gozou a felicidade de fazer a bela poesia de uma morte a propósito. O outro viveu bastante para ter tempo de publicar uns poucos de volumes de versos e uns poucos de romances. Mas Lessa não era inferior aos dous.

Azevedo era dos três o talento mais possante; porém mais desigual e mais desequilibrado; Lessa era o que aliava mais naturalidade a mais idealismo; sua poesia era a emanação espontânea e doce de um rosal florido; nada de pose; tomava o tom do momento; a nota d’alma na ocasião. Bernardo era também natural; mas sem tanto idealismo talvez e com maior número de incorreções.

De Lessa não ficaram obras; doze anos depois de sua morte, um irmão carinhoso, após haver gasto largo tempo a apanhar aqui e ali algumas de suas produções, publicou um punhado delas sob o título de Poesias Póstumas do Dr. Aureliano José Lessa. É um livrinho de pouco mais de cem páginas.

Os espíritos grosseiros, que julgam o mérito de um escritor pelo montão de obras que ele deixa, espantar-se-ão de ser nesta história contemplado quem tão pouco legou

às letras. . . Lessa não vale pelo que fez; vale pelo que era. Poeta de talento, como tal deve ser tratado.

É preciso vê-lo em seu meio e para isto o melhor é dar a palavra a seu patrício, colega, rival e amigo, Bernardo Guimarães: "Nasceu Aureliano José Lessa em 1828, na cidade da Diamantina, nessa região do Norte de Minas, tão fecunda em pedras preciosas, como em talentos superiores. Estudou preparatórios no Seminário de Congonhas do Campo, onde graças à lucidez e prontidão de sua inteligência, unidas a uma memória das mais felizes, fez rápidos progressos. Aí parece que se deu ao estudo com mais aplicação e assiduidade do que nos cursos superiores, pois em matérias preparatórias possuía larga e sólida instrução.

"Transportado a S. Paulo apenas saído da infância, a fim de freqüentar o curso jurídico, sua vida acadêmica foi um longo delírio infantil, um incessante devaneio poético. Achava ele então em S. Paulo um círculo numeroso de moços apaixonados pela poesia, no meio dos quais não podia deixar de dar larga expansão ao seu extraordinário gosto pelas belas letras.

"A paixão pela poesia e pela literatura amena distraía por demais naquela época a mocidade acadêmica de seus estudos escolares.

"Aureliano, Álvares de Azevedo, José Bonifácio, Cardoso de Meneses, Silveira de Sousa, Paulo dò Vale, Ferreira Torres, Lopes de Araújo, o português Agostinho Gonçalves, e vários outros mancebos, entre os quais se contava também o autor destas linhas, eram como um bando de canários, que perturbavam com seus constantes gorjeios os severos estudos dos alunos de Têmis: eram uma verdadeira Arcádia no seio da Academia.

"No meio dessa plêiada de cantores, o guaturamo da Diamantina não podia ficar mudo.

"Graças à sua fácil inteligência, poucas horas bastavam a Aureliano para desempenhar os seus deveres escolásticos; o resto do tempo dissipava-o ele alegremente em convivências e palestras, improvisando estrofes fugitivas, ou discutindo literatura entre seus amigos. Nas polêmicas e certames acadêmicos a palavra lhe borbotava dos lábios com uma prontidão e abundância prodigiosas.

"Com a mesma facilidade com que dissertava sobre literatura amena, embrenhava-se também com incrível volubilidade nos mais intrincados labirintos da metafísica.

"Como todos os espíritos dotados de compreensão extremamente fácil, mas a quem faltam a calma e paciência necessárias para refletirem, tomava sofregamente as primeiras intuições de sua inteligência como verdades irrecusáveis, e assim por vezes de erro em erro era levado aos mais estranhos paradoxos, que ele todavia não deixava de defender com o acento da mais íntima convicção, e com uma dialética inesgotável em recursos.

"Essa- mania do paradoxo, e o gosto de metafisicar (deixem passar a expressão), o emaranhavam às vezes em tal confusão de raciocínios, que o tornavam completamente ininteligível.

"O pendor de seu espírito para as concepções transcendentais da filosofia reflete-se até em algumas de suas composições poéticas, nas quais o conceito é por vezes tão subtil e alambicado, que prejudica grandemente a clareza.

"Aureliano tomou o grau de bacharel, em Olinda, em 1851. Deixando os bancos acadêmicos, a sua norma ordinária de viver em nada se alterou. Continuou sempre o mesmo, sempre alegre e despreocupado, olhando com indiferença o presente, bom ou mau, e completamente descuidado do futuro. O gênio folgazão e imprevidente da puerícia parecia nunca mais querer abandoná-lo. Era sempre a mesma criança travessa, espirituosa, volúvel e doudejante. Epicurista por natureza, Aureliano quereria passar a vida em um contínuo festim.

"Não vá, porém, o leitor pensar que era ele um desses sensualistas libertinos e.descridos, como os que a imaginação de Byron criou à sua própria imagem e semelhança, ou um conviva crapuloso das tascas e dos bordéis, como esses que Álvares de Azevedo, exagerando Musset, tanto folgava de esboçar, esperdiçando em tão monstruosas criações as brilhantes cores de sua rica paleta.

"Não; Aureliano não tinha parentesco algum com D. Juan, nem tampouco com J. Rolla, e muito menos com Bocage.

"Era um epicurista sui generis. Suas orgias, se orgias se podem chamar, nunca tinham por teatro o lupanar ou a casa de jogo, ou outro qualquer lugar de devassidão ou crápula grosseira. Eram delírios galhofeiros em roda da mesa, em companhia de alguns poucos amigos.

"O fumo dos vinhos eles evaporavam rindo, cantando, poetizando, ou em passatempos, não direi escolásticos, mas quase infantis.

"Era uma devassidão do espírito, se assim me posso exprimir, jovial e inofensiva, e não os gozos do sensualismo material. Eram, desculpem-me se repito tantas vezes a frase que melhor o caracteriza, eram orgias de criança."5

Este pedaço é instrutivo, duplamente instrutivo; revela uma parte da índole de Lessa e uma parte da intuição reinante em 1850 em São Paulo.

Estava-se então na fase do sentimentalismo na romântica brasileira. Esta é a verdade; mas expressa de um modo tão geral que se fica a ignorar a realidade da história, a realidade da vida como ela se passou.

Dizer que naquele tempo a poesia choramingava é a verdade; mas não toda a verdade; é preciso ajuntar alguma cousa mais; é preciso dizer antes de tudo quem chorava com razão e quem pranteava sem ela; é mister sobretudo mostrar no meio de tanto pranto muito riso franco e jovial que passava gárrulo e sonoro.

É necessário acrescentar ainda outra cousa; no meio daquele grande lamuriar houve muita rebeldia, muito brado, muito grito em prol de novas crenças, de novos ideais. Foi um tempo de agitação e toda época de agitação merece grandes preitos da história.

Devem-se tomar estas precauções antes de julgar definitivamente Aureliano Lessa.

O estado fragmentado em que ficaram as produções do poeta é ainda uma atenuante para juízos rigorosos.

No descuidoso mineiro descubro três largas portas por onde o assaltavam as impressões da poesia: a meditação que o levava a certo naturalismo semifilosófico, o amor que se lhe traduzia em doces e langorosos arroubos, a melancolia que nos seus lábios tinha um travor dolorosíssimo.

A melancolia não é lá uma cousa tão disparatada como muita gente por aí anda agora a julgar; é antes uma genuína filha da civilização moderna, é uma das fórmulas do pessimismo, é o seu primeiro passo.

Ora, toda a humanidade é hoje mais ou menos pessimista. A época das grandes alegrias, a fase heróica do homem, está passada.

Por isso não se deve ser leviano e julgar mal dos outros sem provas cabais.

5. Poesias Póstumas áo Dr. Aureliano José Lessa, Rio de Janeiro, 1873, pâg. VI.

Pelo que me toca, estou completamente convencido da sinceridade de Aureliano; este nunca escreveu versos por sistema e cálculo, não cogitou jamais de glórias; sua poesia era espontânea como a sua conversação; nada de pose, repito.

Começo por mostrar o poeta pelo sombrio lado da melancolia. Ouçam:

"Há tormentos sem nome, há desenganos Mais negros que o horror da sepultura; Dores loucas, e cheias de amargura E momentos mais longos do que os anos.

Não são da vida os passageiros danos Que dobram minha fronte; a desventura Eu a desdenho… A minha sorte dura Fadou-me dentro d’alma outros tiranos.

As dores d’alma, sim; ela somente, Algoz de si, acha um prazer cruento Em torturar-se ao fogo lentamente.

Oh! isto é que é sofrer! Nenhum tormento Vale um gemido só da alma tremente, Nem séculos as dores de um momento!"

Na mesma índole são escritos estes outros versos:

"Oh! não me pergunteis por que motivo Pende-me a fronte ao peso da amargura, Quando um suspiro trêmulo, aflitivo, Sobre os meus lábios pálidos murmura.

Quando ao fundo do lago a pedra desce, Globo de espuma à flor do lago estala: Assim é o suspiro: ele aparece, Porque no coração cai dor que o rala.

Do lago a face lisa espelha flores, No fundo a vista não divisa o ceno; Assim dentro do peito escondo as dores, Mandando aos lábios um sorriso ameno.

Mas quando uma aflição acerba e crua Mais que um rochedo o coração me oprime, Quando nas chamas do sofrer estua Como no incêndio o ressequido vime;

Não choro, não! De angústias flagelado, Um queixume sequer eu não profiro; Descai-me a fronte, penso no meu fado… Oh! não me pergunteis por que suspiro!…"

Pudera citar outras provas dessas dores acerbas. Não é preciso; passo ao lirismo expansivo das efusões amorosas. Nele aparece o brasileirismo, isto é, o calor, o anseio do gozo vazado em forma doce e delicada. Entre as produções do gênero as mais significativas são Leviana, A…, Duas Auroras, Tu, Canto de Amor, Queixa^ além de outras.

Ei-lo que inebria-se nos fulgores de sua amante:

"Lá despontam no levante Entre cândidos vapores, Os primeiros resplendores Do purpurino arrebol. Já da noite os véus sombrios No ocidente empalidecem; Sobe a luz, as nuvens descem, Foge a noite, assoma o sol.

Sobre o páramo dos ares Um véu de luz se derrama, Que nas pérolas da grama Vem sorrindo cintilar. Estão as viçosas flores Abrindo os botões odoros E mil pássaros sonoros Sobre as ramas a trinar.

Preguiçoso rola o rio As verdes praias beijando, Longamente murmurando Um carpido adeus de amor. Da folhagem do arvoredo Doces lágrimas gotejam E mil zéfiros adejam Pousando de flor em flor.

Vem comigo, ó minha amada, Saudar esta aurora bela; Não tenho sem ti, donzela, Nem um completo prazer. Vem, do teu amante ao lado, Pousar neste chão de flores, E a linguagem dos amores Com (is aves aprender.

Vem, depressa, ó minha pomba! Vem com teus lábios risonhos Contar-me os singelos sonhos Que em tua alma o céu verteu. Eu quero também contar-te Um sonho, um sonho mui belo, Desejo, ó virgem, vertê-lo, Guardá-lo no seio teu.

Traze os teus louros cabelos Soltos à brisa ligeira, Assim como a vez primeira, Que neste prado te vi! Na minha lira dourada Vibrando as cordas sonoras, Cantarei duas auroras, Uma nos céus, — outra em ti!"

Estes versos intitulam-se Duas Auroras, uma na esplanada dos céus, outra nos olhos e no sorriso de sua amante. O quadro é gracioso e prenunciador do apuro a que devia com o tempo chegar a evolução do moderno lirismo brasileiro.

Eis outra página delicada e meiga, a poesia Tu:

"Teus olhos são como a noite

Trevas e luz; Ó anjo, o céu em teus olhos

Se reproduz!

Tu’alma ainda não conhece

Teu coração; Rubor que te acende as faces

É sem razão.

Inocente, quem gozara

Contigo o céu! Quem dos amores contigo

Rasgara o véu!

Quem descerrara teus lábios

Cum doce beijo!… Dizendo — amor — e em teus olhos

Vira um desejo!

Tua face é como a aurora

Púrpura e luz! Ó anjo, a aurora em teu rosto

Se reproduz!

Quero viver em teus olhos,

ô inocente! Quero adorar-te prostrado

Eternamente !"

É singelo e amável isto; é docemente lírico. Há quinhentos gêneros de poesias. Aprecio todos eles quando revelam sinceridade e talento.

A poesia pode ser crente ou descrente, alegre ou triste, pacata ou revolucionária, popular ou aristocrática, lírica, dramática, épica, patriótica, humorística, satírica, elegíaca, descritiva, cômica, meiga, ardente, voluptuosa, mística, religiosa, impenitente, científica… pode ser o que ela quiser e desejar ser; estou sempre disposto a apreciá-la, se for a expressão natural de um temperamento.

O que não tolero facilmente são o exclusivismo, a estreiteza de vistas, as igrejinhas fanáticas.

"Nos tempos modernos, diz Lessing, a arte recuou muito os seus limites. Hoje pretende-se que sua imitação se estenda a toda a natureza visível de que o belo é apenas uma pequenina parte. Expressão e verdade, assegura-se, são as suas primeiras leis. Como a própria natureza sabe sempre, quando se faz preciso, sacrificar a beleza a desígnios mais elevados, deve também o artista subordinar esta mesma beleza à vocação mais geral que o atrai a tudo imitar, e seguir-lhe as leis somente na medida em que se coadunam com a verdade e a expressão."

São palavras do Laocoonte ou Os Limites da Poesia e da Pintura, excelente livro, onde se acham em gérmen muitas das idéias mais tarde desenvolvidas por Taine, Fromentin e Guyau, os três ilustres estéticos franceses a que se prendem Bourget e Veron.

Lessing fala nesse tópico da pintura e repele aquele modo de pensar no que diz respeito a esta arte.

O que é assim até certo ponto inexato com referência à pintura é de palpitante verdade tratando-se da poesia. Esta deve estender os seus limites a todos os domínios da fenomenalidade universal. O grande Cosmos é o seu objeto.

Eu bem sei que se diz que a ciência, e sua filha mais velha a indústria, e sua filha mais nova a democracia, batendo os mistérios, materializando a vida e igualando as classes, têm trazido à poesia duríssimas provações; mas acredito que ela sairá vitoriosa de tão rudes combates.

Não creio ser em pura perda o tempo que tenho estado a empregar em ler e discutir poetas. Por isso diga-se ainda uma palavra sobre Aureliano Lessa.

Não se limitou à poesia subjetiva ou pessoal de suas mágoas ou de seus amores. De vez em quando lançava um largo olhar sobre o grande universo e envolvia-se no turbilhão das esferas pelos espaços fora. Então desferia desses hinos panteísticos, dos quais O Sol e A Criação são

dois belos espécimens. Leia-se aqui esta última, que não deve ser confundida com o Hino da Criação, também do poeta.6 Ei-la:

"Quando tudo era Deus, quando só Ele

Pejava o horror do espaço; Deus disse: — é bom que surja o Universo

Recuemos um passo. —

Depois coa destra contraindo o vácuo

Informe, e tenebroso, Deixou cair o Universo inteiro

No espaço luminoso:

O silêncio expandiu-se; era um sussurro

De sublime harmonia; Hino da vida, porque o sol girava

O primitivo dia.

Um chuveiro de mundos despenhou-se

Pelos desertos ares, Como a saraiva, ou como os grãos de areia

Lá no fundo dos mares.

Rodava a terra verde, e a lua pálida,

Ia a noite após elas, Mas caiu sobre as trevas, que fugiam,

Uma chuva de estrelas.

Os cometas correram desgrenhados,

Quais prófugos do inferno, Levando aos astros dos confins da esfera

Os decretos do Eterno.

Do seu leito de abismos o oceano

Tenta em vão levantar-se; Vem tombando, mugindo e espumando

Coas terras abraçar-se.

Abre o condor as asas sobre nuvens,

Leviatã dos mares; E os jubados leões, bramindo atroam

Os ecos dos palmares.

Vêm descendo dos montes, debruçados

Como enormes serpentes Pelas campinas ‘té beber no oceano,

Os rios e as correntes.

6. Vide Poesias Póstumas; lede O Sol, Hino ãa Criação, A Tarde, O Poeta, A Criação, etc.

Os pássaros cantando, a luz da aurora

Flóreos botões desata; A selva freme, a viração murmura,

Sussurrando a cascata.

Imóvel nos umbrais da Eternidade,

Té li o tempo estava; Mas após o primeiro movimento

Já veloz caminhava.

Então milhões de mundos, e mais mundos,

Céus, e céus ao redor, Todos em brado universal cantaram

Hosana ao Criador.

No meio da harmonia do Universo Deus despertou o homem,

Lançando sobre a terra um véu de nuvens Que ao seu olhar o somem.

Coa destra incerta tateando os ares

O homem despertava… Ébrio de vida, os membros apalpando

— Tu quem és? — perguntava.

Tentou falar; do peito a voz lhe brota,

E recua admirado; As aves cantam, e o cantar das aves

Escuta extasiado.

Quis caminhar, correu pela planície,

E galgou as colinas: Derrama em torno, ao longe, o olhar vago,

Vê montes e campinas.

Os ecos escutou por muito tempo,

Encruzados os braços, E de lá vem descendo pensativo

Com vagarosos passos.

Debalde as vistas erra pelos troncos

Da numerosa selva; Em vão percorre as grutas, fatigado

Assenta-se na relva.

Pensa, medita, e erguendo-se mais forte De novo a selva explora;

Volve, revolve tudo e o vazio Do coração deplora.

Súbito estaca palpitante o peito,

E co abraço aberto… Estão seus olhos devorando a cena,

Que descortina perto.. .

Na borda de uma fonte cristalina

A mulher se mirava; Rubra de pejo, as graças inda nuas

Coas brancas mãos tapava.

Ria-se à sua imagem; para ela

Os braços estendia… Mas vendo a sombra abrir-lhe um terno abraço

Recuava e sorria.

Ele exclama: eras tu! E ela fugia

Coas faces em rubor… Não pôde prosseguir, caiu, caíram,

E levantou-se Amor!"7

Lessa era um temperamento idealista e religioso; não da religiosidade exterior de práticas e cerimônias; sim da necessidade de alçar o espírito às origens, às sínteses últimas do universo, a essas causas primeiras e finais que o positivismo deseja banir da mente do homem e Kant declarou constituírem outros tantos problemas insolúveis cientificamente e indestrutíveis ante a natureza intrínseca da razão humana. É a esfera em que se debatem as duas velhas intuições — do dualismo e do monismo. É o terreno perpétuo das religiões e das metafísicas.

De ordinário se diz que a intuição monística do universo é um produto da raça ariana e a intuição dualística uma obra dos semitas. Assim parece ser a quem estuda superficialmente a história da filosofia. Um olhar mais profundo do espírito crítico por esse lado irá discernir nos dous maiores gênios dos semitas, Moisés na alta antiguidade e Spinoza nos tempos modernos, dous monistas no alto e elevado sentido, mas dum monismo que se pode aliar com o idealismo. Lessa parece ter lobrigado vagamente essa aspiração da inteligência.

Bernardo Joaquim da Silva Guimarães (1827-1884). — A passagem de Álvares de Azevedo e Aureliano Lessa para Bernardo Guimarães é muito natural. Já se viu que foram companheiros. Obedecem, mutatis mutandis, à mesma intuição.

Bernardo viveu apenas muito mais do que os seus dous amigos e teve tempo de publicar treze obras. São dez romances e três volumes de poesias. Teve tempo de tratar de seu bilan literário e providenciar sobre sua fama.

7. Poesias Póstumas, pág. 48.

Tem-se pois em face um poeta e um romancista; deve-se começar pelo primeiro, que foi também por onde principiou o notável sertanejo.

O mais antigo volume de versos de Bernardo apareceu em São Paulo em 1852 sob o título de Cantos da Solidão. Publicou sob a mesma denominação segunda edição no Rio de Janeiro em 1858; o volume vinha aumentado com as Inspirações da Tarde.

Em 1865 surgiu nova edição sob o nome de Poesias de B. J. da Silva Guimarães. O livro contém, além daquelas duas partes, Poesias Diversas, Evocações e a Baía de Botafogo. É a mais significativa obra poética do nosso mineiro; é uma das melhores da língua portuguesa.

Em 1876 saíram as Novas Poesias e em 1883 as Folhas do Outono. A decadência é evidente.

Deve-se ainda e sempre procurar o lirista naquele primeiro livro de sua mocidade.

Bernardo é daqueles poetas que lucram em ser relidos; descobrem-se-lhe novas belezas.

Possui boas amostras de lirismo naturalista, como em Invocação, e Ermo; de lirismo filosófico, como em o Devanear do Céptico; de lirismo amoroso, como nas Evocações; de lirismo humorístico, como na Orgia dos Duendes, no Dilúvio de Papel, em o Nariz Perante os Poetas.

Mas isto não define o poeta, não o individualiza; será preciso descobrir uma nota que seja só dele, que o afaste de seus competidores. E esta nota eu creio tê-la achado: são as tintas sertanejas de sua paleta e o tom brasileiríssimo de sua língua.

Eu me explico.

Magalhães, Gonçalves Dias, Álvares de Azevedo e muitos outros poetas nacionais, do Norte ou do Sul, eram filhos da região da costa ou quando muito da que se chama a região das matas próximas às costas. Viveram, além disto, nas grandes cidades ao contacto de estrangeiros e quase nada conheceram das diversas zonas do país.

Gonçalves Dias, que poderia fazer por este lado uma exceção, não a faz, porque só nos últimos anos próximos à sua morte viajou os sertões do Norte.

Por mais brasileira que fosse a intuição desses homens, não o poderia ser tanto como a de Bernardo Guimarães. Este nasceu e viveu em plena luz, no coração do Brasil, no planalto central.

Filho de Minas, ele viajou muito os sertões de sua província e das de Goiás, São Paulo e Rio de Janeiro.

Bernardo tinha o gênio de boêmio, era um caminha-dor; não apodrecia num canto; movia-se constantemente. Possuía o instinto do pitoresco.

Junte-se a isto o conviver íntimo com o povo, o falar constante de sua linguagem, e saber-se-á o motivo pelo qual o inteligente mineiro em seus versos e em seus romances é uma das mais nítidas encarnações do espírito nacional.

Todos os seus escritos versam sobre assuntos brasileiros; mas há neles alguma cousa mais do que a simples escolha do assunto; há o brasileirismo subjetivo, espontâneo, inconsciente, oriundo d’alma e do coração.

Um traço mais.

Bernardo, com ser um sertanejo, um homem habituado à vida singela e pitoresca do interior, não era um desses espíritos curtos, maldizentes, que praguejam contra todo o progresso, um desses obcecados que desejariam ficasse 9 Brasil perpetuamente entregue aos caboclos na sua inveterada estupidez. Muito pelo contrário, Bernardo foi sempre avesso aos caboclismos exagerados. Era um espírito liberal e progressivo.

Amava a civilização, não levava o seu amor pela paisagem ao ponto de gostar mais de uma bela mata do que duma bela cidade. Neste sentido, a poesia O Ermo é muito interessante e significativa.

O poeta possuía uma boa intuição dessas duas forças, que constituem os dous pólos entre os quais gira toda a evolução da humanidade: a natureza e a cultura (Natur und Kultur).

O maior erro da intuição romântica, erro desenvolvido pela influência maléfica da filosofia do século XVIII, foi o exagero das bondades e grandezas do chamado estado de natureza, corrompido mais tarde pela civilização.

A natureza era aqui elevada à categoria de uma potência benfazeja e divina, que tinha inspirado as maiores criações da humanidade.

Neste sentido falava-se numa Religião Natural, numa Poesia Natural, num Direito Natural, numa Filosofia Natural, numa Estética Natural…

Vê-se, pois, que a romântica andava também a falar muito em Mamãe-Natureza, e que o romantismo também se poderia chamar o naturalismo; mas era um naturalismo vaporoso.

Os grandes estudos de história, etnografia e antropologia mostraram o homem em estado de natureza mergulhado na miséria e na ignorância, e mostraram que a Mãe-Natura não produziu nunca arte, ou direito, ou religião, ou poesia, ou filosofia; mostraram finalmente que tudo isto é o resultado da evolução lenta da civilização humana. A intuição do cultural substituiu o conceito errôneo do natural.

Era lógico, e dever-se-ia esperar que o termo naturalismo desaparecesse da cena. Porém não foi assim.

A palavra ficou para significar, não esse bucolismo convencional, mas aquele sistema, aquela maneira de encarar o homem como ele é, como ele se desenvolve individual e coletivamente sob a dupla influência das forças físicas e da cultura social.

Bernardo Guimarães teve um pressentimento poético da intuição contemporânea.

No Ermo ele começa por convidar a sua musa para levá-lo às solidões desabitadas; apraz-se em tais ermos inebriado pelas belezas naturais do sítio, e assim exclama:

"Como é formoso o céu da pátria minha!

Que sol brilhante e vívido resplende

Suspenso nessa cúpula serena!

Terra feliz, tu és da natureza

A filha mais mimosa; ela sorrindo

Num enlevo de amor te encheu d’encantos,

Das mais donosas galas enfeitou-te;

Beleza e vida te espargiu na face,

E em teu seio entornou fecunda seiva!

Oh! paire sempre sobre os teus desertos

Celeste bênção; bem-fadada sejas

Em teu destino, ó pátria; em ti recobre

A prole de Eva o Éden que perdera!

Olha: — qual vasto manto que flutua

Sobre os ombros da terra, ondeia a selva,

E ora surdo murmúrio ao céu levanta,

Qual prece humilde, que no ar se perde,

Ora açoitada dos tufões revoltos,

Ruge, sibila, sacudindo a grenha,

Qual hórrida bacante. Ali despenha-se

Pelo dorso do monte alva cascata,

Que, de alcantis enormes debruçada,

Em argêntea espadana ao longe brilha,

Qual longo véu de neve, que esvoaça,

Pendente aos ombros de formosa virgem,

E já, descendo a colear nos vales,

As plagas fertiliza, e as sombras peja

D’almo frescor e plácidos murmúrios…

Ali campinas, róseos horizontes,

Límpidas veias, onde o sol tremula,

Como em dourada escama refletindo

Flóreas balças, colinas vicejantes,

Toucadas de palmeiras graciosas,

Que em céu límpido e claro balanceiam

A coma verde-escura. Além montanhas,

Eternos cofres d’ouro e pedraria,

Coroadas de píncaros rugosos

Que se embebem no azul do firmamento,

Ou se te apraz desçamos nesse vale.

Manso asilo de sombras e mistério,

Cuja mudez talvez jamais quebrara

Humano passo revolvendo as folhas,

E que nunca escutou mais que os arrulhos

Da casta pomba, e o soluçar da fonte…

Onde se cuida ouvir, entre os suspiros

Da folha que estremece, os ais carpidos

Dos manes do índio, que inda chora

O doce Éden que os brancos lhe roubaram J…

Que é feito pois dessas guerreiras tribos

Que outrora estes desertos animavam?

Onde foi esse povo inquieto e rude,

De brônzea cor, de torva catadura,

Com seus cantos selváticos de guerra

Restrugindo no fundo dos desertos,

A cujos sons medonhos a pantera

Em seu covil de susto estremecia?

ô floresta, que é feito de teus filhos?"

O poeta prossegue pranteando o desaparecimento dos primitivos íncolas, a destruição das matas, a mudança operada pelos colonos. Pranteia a morte de tantas cenas naturais.

De repente muda de linguagem e exclama:

"Mas, não te queixes, musa; são decretos Da eterna providência irrevogáveis! Deixa passar destruição e morte Nessas risonhas e fecundas plagas, Como charrua, que revolve a terra, Onde germinam do porvir os frutos. O homem fraco ainda, e que hoje a custo, Da criação a obra mutilando, Sem nada produzir destrói apenas, Amanhã criará; sua mão potente, Que doma e sobrepuja a natureza, Há de imprimir um dia forma nova Na face deste solo imenso e belo:

8. Poesias, pág. 59.

Tempo virá em que nessa valada Onde flutua a coma da floresta, Linda cidade surja, branquejando Como um bando de garças na planície; E em lugar desse brando rumorejo Aí murmurará a voz de um povo; Essas encostas broncas e sombrias Serão risonhos parques suntuosos; Esses rios que vão por entre sombras Ondas caudais serenas resvalando, Em vez do tope escuro das florestas, Refletirão no límpido regaço . Torres, palácios, coruchéus brilhantes, Zimbórios majestosos, e castelos De bastiões sombrios coroados, Esses bulcões da guerra, que do seio Com horrendo fragor raios despejam. Rasgar-se-ão os serros altaneiros, Encher-se-ão dos vales os abismos: Mil estradas, qual vasto labirinto, Cruzarse-ão por montes e planuras; Curvar-8e-ão os rios sob arcadas De pontes colossais; canais imensos Virão sulcar a face das campinas, E estes montes verão talvez um dia, Cheios de assombro, junto às abas suas Velejarem os lenhos do oceano!"9

Neste gosto prossegue o poeta, que assim se expressava em 1849 ou 50 nesta peça, uma das mais antigas de sua lavra.

Acho escusado insistir em cada uma das principais manifestações do lirismo do ilustre mineiro.

Algumas palavras sobre o que chamei o seu lirismo naturalista.

O Devanear do Céptico é o poeta diante da filosofia; pode ficar de lado. No Ermo é o poeta diante da natureza e da cultura; já foi visto aí. Invocação é o poeta em face do Universo, do Cosmos, da Criação. É um dos hinos mais objetivos e ao mesmo tempo mais entusiastas que já uma vez foram escritos em toda a América.

Alenta essa poesia notável um idealismo exuberante, um dinamismo que de tudo transpira e se comunica ao leitor. O universo inteiro palpita animado e exala-se em perenes hinos. É a poesia que de tudo transuda.

O poeta exclama:

9. Idem, pág. 68.

"Voz do deserto, espírito melódico, Que as cordas vibras dessa lira imensa, Onde ressoam místicas hosanas, Que inteira a criação a Deus exalça; Salve, ó anjo! minha alma te saúda, Minha alma que, a teu sopro despertada, Murmura, qual vergel harmonioso Pelas brisas celestes embalado…

Salve, ó gênio dos desertos, Grande voz da solidão, Salve, ó tu, que aos céus exalças O hino da criação!

Sobre nuvem de perfumes Te deslizas sonoroso, E o rumor de tuas asas É hino melodioso.

Que celeste querubim Te deu essa harpa sublime, Que em variados acentos As dúlias dos céus exprime?

Harpa imensa de mil cordas Donde em caudal, pura enchente, Estãos suaves harmonias Transbordando eternamente?

De uma corda a prece humilde Como um perfume se exala Entoando o sacro hosana, Que do Eterno ao trono se ala.

Outra como que pranteia Com voz fúnebre e dorida O fatal poder da morte E as amarguras da vida.

Nesta brando amor suspira, E lamenta-se a saudade; Nestoutra ruidosa e férrea Troa a voz da tempestade. Carpe as mágoas do infortúnio De uma voz triste e chorosa, E só geme sob o manto Da noite silenciosa.

Outra o hino dos prazeres Entoa leda e sonora, E com cânticos festivos Saúda nos céus a aurora.

Salve, ó gênio dos desertos, Grande voz da solidão, Salve, ó tu, que aos céus exalças O hino da criação!…"

A poesia prossegue sempre alentada. Convido o leitor a tomar do volume e repassar tão belos versos.

São escritos nesse espírito de um teísmo dinamístico universal ao gosto de Leibnitz, certamente mais poético do que a atomicidade absoluta de Demócrito.

A melhor e mais fulgente manifestação do talento poético de Bernardo Guimarães são as cinco primeiras peças da série que intitulou — Evocações, a saber: Sunt lacrimse rerum, Prelúdio, Primeira, Segunda, Terceira Evocação.

Aí entra-se em pleno lirismo pessoal, mas de uma pessoalidade amável e deliciosa. O poeta evoca as suas antigas amantes e fá-las desfilar ante ele. O sentimento é profundo e real; as Evocações lembram as Noites do primeiro poeta francês do XIX século, Alfredo de Musset.

A forma é de uma doçura e sonoridade de encantar.

Não sei se o diga, não sei se deva deixar aqui a manifestação de uma circunstância puramente pessoal; nunca pude ler esses versos do poeta mineiro, e eu os tenho lido bem vezes!… sem sentir sincera emoção.

Para mim, aquilo é a poesia verdadeira, feita com as lágrimas da realidade, com as desilusões da vida.

Não transcrevo nada para não correr o risco de transcrever quase tudo. Recomendo tão belas páginas aos amantes da boa poesia.

Aqui devera ficar quite com o poeta, se não fora a necessidade de juntar mais algumas palavras, a fim de prendê-lo à evolução geral de nossa literatura, marcando aí o seu lugar.

A crítica puramente descritiva não tem valor, se considerações mais sérias lhe não vêm imprimir o caráter científico. Entre nós já se pode assim falar.

Não sei bem se a poesia, o romance, o drama, a comédia, o folhetim, o conto, a novela estão ou não completamente transformados hoje no Brasil. Mas sei que a crítica literária está em grande parte.

Nos últimos trinta anos tantos têm sido os assuntos de caráter puramente brasileiro em que se há tocado, tal e tão pronunciado o esforço em conhecer bem o passado nacional, que uma série de fatos e de problemas aí estão

a reclamar o estudo de resolutos obreiros por muitos e muitos anos ainda.

À medida que a corrente estrangeira, que sempre tivemos e sempre havemos de ter, na literatura nos atirava à poesia hugoana, e mais tarde à poesia de Sully Prudhomme e Leconte de Lisle, e mais tarde ainda ao romance de Zola e ao mesmo tempo à crítica alemã ou ao positivismo de Comte, ou ao evolucionismo de Spencer, ao passo que os representantes entre nós do espírito do tempo punham-nos ao contacto das idéias européias, a plêiada dos aferrados às nossas tradições, outra falange de operários que sempre tivemos e sempre deveremos ter, abria brecha na pré-história, na antropologia, na lingüística e na história nacional.

São dous movimentos que se completam, duas tendências que se harmonizam. Devemos ser homens de nosso tempo e também de nosso país.

Esta dupla tendência modificou entre nós a crítica literária. É por isso que aquele que bem conhecer o seu Sainte-Beuve ou o seu Taine ou o seu Scherer, mas desconhecer os trabalhos de Batista Caetano, Couto de Magalhães, Batista de Lacerda, Ferreira Pena, Capistrano de Abreu, Rodrigues Peixoto, Frederico Hartt, Macedo Soares, Barbosa Rodrigues, Pacheco Júnior, Lameira de Andrada, João Ribeiro e muitos outros sobre a arqueologia, a lingüística, a etnografia e a história do Brasil, não poderá amplamente entre nós exercer a crítica.

O mais que poderá fazer é colher em livros europeus meia dúzia de regras, inspiradas pela análise de escritores estrangeiros, e cortar com elas a roupa em que se devem envolver os nossos autores. Isto é irregular e improfícuo. Tal o método, entretanto, de que muito se tem abusado no Brasil.

Em geral os nossos chamados homens de letras lêem livros europeus e especialmente livros franceses; raros ocupam-se de assuntos brasileiros.

Inúmeros são os poetas e literatos que não sabem duas palavras da história do país; raríssimos aqueles que se acham em estado de formular um juízo mais ou menos regular sobre o passado e o presente nacional.

E, todavia, quem tiver o gosto da erudição, da antropologia, da lingüística, das ciências naturais, etc, encontrará no Brasil vastíssimo campo às suas pesquisas.

Enquanto não nos aplicarmos a descobrir, esclarecer, desvendar os muitos assuntos científicos que se nos deparam entre nós e que atraem sempre e sempre sábios europeus às nossas plagas, não fundaremos nossa literatura científica, nem resguardaremos de quaisquer ataques nossa literatura propriamente dita.

É preciso deixar de lado o método exterior de julgar os produtos literários por meio de convenções retóricas. É mister procurar em toda a vida nacional o elemento popular, vivo, constante, criador. É urgente investigá-lo na história política e social e na história literária e das artes.

E, apesar de contarmos aqueles poucos escritores que se vão ocupando dos estudos nacionais, é ainda hoje uma verdade afirmar que somos um povo que se desconhece.

A história brasileira está em geral quase toda por escrever e sem ela nos perderemos sempre em divagações, não teremos um espírito próprio, nem a consciência de nós mesmos.

Tal o critério fundamental das indagações literárias.

Os livros dos novos e dos velhos poetas devem ser um corolário de nossa própria evolução, sob pena de nada valerem, de nada representarem, salvo o testemunho de algum raro espírito, algum raro pensador, tão geral, tão universal, tão humano, que vá tomar assento entre os mais ilustres representantes de nossa espécie e lá fulgir entre os gênios que não têm pátria, entre os Shakespeares, os Dantes, os Goethes, cousa que não sei se já nos aconteceu…

Bernardo Guimarães, à luz de tais idéias, não é um desclassificado. Muito pelo contrário ele é um elo normal, e uma das figuras mais interessantes de nossa literatura.

Cursou, como se viu, Direito em São Paulo, onde foi companheiro de Álvares de Azevedo, Aureliano Lessa, José Bonifácio, Silveira de Sousa, Félix da Cunha, José de Alencar e outros estudantes entusiastas e estróinas daqueles bons tempos. Foi a época de maior efervescência romântica em nossas academias.

À poesia religiosa de Magalhães e à poesia cabocla de Gonçalves Dias aqueles moços fizeram suceder uma poesia mais ampla, mais agitada, mais compreensiva. Avanta-jaram-se aos seus predecessores em conhecer melhor as literaturas estrangeiras, em preocupar-se mais das questões sociais, e em cultivar mais a forma. Trabalharam em horizonte mais vasto e com armas mais brilhantes.

Entre eles distinguia-se Bernardo Guimarães por um lirismo sereno, plácido, confiante, quase bucólico. Era mineiro e levava a influência de Gonzaga e dos sertões natais. Foi sempre contrário ao indianismo e por isso criticou de Gonçalves Dias.

Inimigo de formalidades, logo ao formar-se, retirou-se aos seus serros, donde não mais saiu, senão rapidamente para o Rio de Janeiro, que de pronto abandonou, acolhendo-se ao seu planalto, onde passou a vida sem ter empregos públicos, ao que suponho, e onde foi o último abencerrage do romantismo. Pôs-se então a cultivar o romance, de que falarei em breve, com um sainete especial.

Seus livros do gênero são novelas de um enredo simples, de um estilo leve, despretensioso, semeado de lirismo e de algumas notas humorísticas.

É justamente o mesmo que se dá nos versos.

Nestes as Poesias levam vantagem, como disse, às Novas Poesias e às Folhas do Outono. As melhores imagens desta última coleção são edições novas de seus versos antigos. O livro é quase um complexo de nênias. As melhores peças são, como lirismo, Flor Sem Nome e Saudades do Sertão do Oeste de Minas; e como humorismo A Moda e o Hino à Preguiça.

Por estas quatro ligeiras composições aprecia-se perfeitamente a índole poética do nosso mineiro. Ele foi no fundo uma natureza céptica, a que se ligaram certas tendências epicuristas.

Daí o seu lirismo voluptuoso de um lado e de outro a ponta de sarcasmo que se deixa ver em muitos dos seus versos.

Mas o autor das Evocações foi verdadeiramente um poeta, quero dizer, um espírito descuidoso e contemplativo, um espírito móbil e impressionável. Nunca desmentiu sua vocação. Não sei se o mesmo aconteceria a Álvares de Azevedo, se continuasse a viver.

Quem sabe se não teria ele, como José Bonifácio e Félix da Cunha, e mais que todos Francisco Otaviano, tomado estranho caminho na direção da política?

Tudo que aí vai dito de Bernardo Guimarães, na qualidade de poeta, e que lhe é favorável, não quer significar absolutamente que ele não tenha também os seus defeitos. Tem-nos e bastantes: é muitas vezes prosaico, por vezes incorreto e não poucas superficial.

Possui certa delicadeza e propriedade de tintas, possui facilidade e presteza de vôo; mas não tem força; interessa, mas não cativa. É claro que faço exceção das Evocações.

O romancista em Bernardo Guimarães é merecedor de atenção pelo caráter nacional das suas narrações, pela simplicidade dos enredos, pela facilidade do estilo.

O escritor mineiro pode ser tomado como um documento para estudar as transformações da língua portuguesa n’América.

Tomando-se Gregório de Matos nos meados do século XVII, Taques nos meados do século XVIII e o nosso mineiro em meio do século XIX, temos o termômetro certo das alterações e transformações progressivas da língua no Brasil.

Nas locuções, no modo de dizer, no agrupamento das palavras, no tour da frase, o espírito atilado vai marcar as variações.

As publicações de Bernardo Guimarães, no romance, são: O Ermitão de Muquêm (1858), Lendas e Romances, Histórias e Tradições da Província de Minas Gerais, O Garimpeiro (1872), O Seminarista (1872), O índio Afonso (1873), A Escrava Isaura (1875), Maurício ou Os Paulistas em São João d’El-Rei (1877), A Ilha Maldita (1879), O Pão de Ouro (1879), e Rosaura — a Enjeitada (1882). Alguns são simples ensaios, sem alento e descuidosamente escritos.

Os mais significativos, a meu ver, são: O Garimpeiro, O Seminarista, Maurício, A Escrava Isaura.

O Seminarista e um pequeno estudo de gênero; é a narrativa romantizada de um fato real. É a história de um rapaz, filho de um mediano fazendeiro de Minas, que, tendo amoroso enleio por uma bela menina da vizinhança, é obrigado a meter-se num seminário e tomar ordens.

A paixão, a princípio acalmada pelos estudos, penitências e macerações da espécie, rebenta forte por novos encontros nos tempos das férias, e violentíssima, quando o moço padre vem pronto para cantar sua missa nova e é chamado para ouvir de confissão uma moça agonizante. Era ela, era Margarida, a heroína, e ele Eugénio tinha-a ali à mão, mas próxima à tumba!…

Seguem-se peripécias atrozes e o jovem padre sai louco, furioso, no momento de sua primeira missa.

O livro deixa-se ler docemente; não é atordoador e cheio de convulsões; a ação corre serena e vai direita a seu fim. Tem muita verdade psicológica e muita exatidão de tintas nas cenas locais. Não tem aquele aspecto doutrinário, escavador, científico, técnico, que tem invadido o romance moderno, às vezes levado a tal exagero que antes ler um tratado de patologia, especialmente de moléstias do sistema nervoso e das faculdades mentais, do que ler tais livros, que, afinal de contas, nem ciência, nem arte são. O nosso lfvro não tem aquele aspecto demonstrativo de uma equação algébrica nem o tom realista de um processo-crime.

O romance é vazado nos velhos moldes; mas tem verdade, dessa verdade que se impunha a um homem que tinha os olhos abertos, como Bernardo Guimarães, e sabia observar, ainda que o não ostentasse.

A Escrava Isaura é um estudo social. Assenta sobre o fato da escravidão que existiu entre nós. Trata-se de uma bela rapariga, inteligente, graciosa, prendada e alva, como um exemplar de boa raça ariana. A pobre, entretanto, era cativa e requestada pelo senhor…

Consegue fugir em companhia de seu pai e, da cidade de Campos na província do Rio de Janeiro, onde corre o principal da ação, vai ter ao Recife.

Aí passa por livre, freqüenta boas rodas, vai a reuniões, tem admiradores.

É descoberta e presa afinal, voltando ao poder do cruel senhor, de cujas garras é arrancada por um moço rico que se tomara por ela de profundo afeto.

O fato é possível e deu-se até mais de uma vez; há veracidade em geral, a par de algumas incongruências e ficelles.

O Garimpeiro é uma narrativa local, é romance de costumes. Tem boas páginas descritivas, regulares quadros de gênero. Desse número é a cavalhada, que ocorre logo no segundo capítulo.

Na mesma índole e tendência é Maurício, ainda que mais significativo como estudo e como intuição etnográfica.

Maurício é romance de costumes sob o ponto de vista histórico. Refere-se à luta havida em Minas em tempos coloniais entre os paulistas, os ousados bandeirantes que desbravaram e povoaram aqueles sertões, e os portugueses, os reinóis, os emboabas avarentos, que se aprestavam a entesourar o trabalho alheio.

É um belo livro, onde há muitas verdades, quer em cenas da natureza, quer em cenas da vida humana. Daquelas é um exemplo o capítulo que se intitula A Gruta de Irabuçu e destas o capítulo — A Caçada.

Muita gente hoje crê só haver exatidão e verdade no romance de atualidade e no moderno naturalismo. É um exagero.

Nesse falso pressuposto repelem o romance histórico e o gênero que n’Alemanha teve em Auerbach um denodado cultor. São dous peremptórios juízos que precisam de revisão.

Pelo que diz respeito ao elemento histórico em o romance, a historicidade aí, como em tudo, é suscetível de aliar-se à verdade.

Bem arranjada estaria a humanidade, se a pobrezinha não pudesse tomar pé no terreno do passado. Então, adeus política, adeus história, adeus ciência. Viveria au jour le jour. Além do momento atual e presente, nada!… É justamente a intuição do selvagem.

Pelo que toca ao estudo das populações campesinas, é ele também suscetível de muita verdade. Não é só nos grandes centros populosos que há entes humanos. Numa aldeia também se vive, também há almas, também há paixões. Onde mais verdade do que em Hermann e Dorotéia? Em igual direção correm as novelas de Auerbach.

O naturalismo pode bem abrigar-se num e outro terreno.

No primeiro caso tem-se o que o moço crítico brasileiro Clóvis Beviláqua denominou o naturalismo tradicionalista, a propósito de Franklin Távora, e no segundo o que, a propósito do mesmo romancista, eu chamei o naturalismo aldeão e campesino.

Ora, acontece que em Maurício de Bernardo Guimarães dá-se a junção das duas tendências: a vida tradicional nas populações rurais. É também o caso do Cabeleira, do Matuto e de Lourenço, os três notáveis livros de Franklin Távora.

Este romancista e Bernardo Guimarães são, pois, dous predecessores do naturalismo à contemporânea e merecem honroso lugar na pátria literatura.

Quem se deleitar somente com os estudos de fisiologia e psiquiatria, que se encontram nas obras-primas do realismo contemporâneo, não poderá achar grande prazer nas pinturas rápidas e singelas de simples costumes populares

que se lhe deparam nos romances de Bernardo Guimarães.

Quem, porém, acha algum interesse em tudo o que é humano, em toda e qualquer manifestação do viver de um povo, pode e deve ler nos romances do mineiro belos quadros por todos eles esparsos.

Aqui vai um exemplo; é o mutirão em casa da Tia Umbelina nos capítulos XI e XII do Seminarista.

Lá vai um tópico:

"Alguns dias depois da proibição imposta a Eugênio, a casa de Umbelina amanhecia em grande animação e alvoroço. Via-se lá entrando e saindo mais gente do que de ordinário; matavam-se frangos, o forno trabalhava, o fogão deitava fumaça mais do que de costume, e reinava atividade e movimento, que faria crer que naquele dia ali se festejava algum batizado ou casamento.

Não havia porém nada disso. O que havia em casa de Umbelina era apenas um mutirão.

Mutirão! só esta palavra nos faz ressoar aos ouvidos os alegres rumores dos descantes e folguedos da roça, o estrépito dos sapateados da dança camponesa por entre a zoada dos adufes e violas, e nos transporta ao meio das rústicas e singelas cenas de prazer da vida do sertanejo.

Mutirão!… mas eu não sei se todos os meus leitores saberão a significação desta palavra, que julgo ser genuína brasileira, e que talvez não poderão encontrar em dicionário algum. Portanto é necessário defini-la.

É o mutirão um costume dos pequenos lavradores, ou da gente pobre dos campos, que vivem como agregados dos grandes fazendeiros, e que não possuindo terras, e menos ainda braços para cultivá-las, nem por isso deixam de plantar boas roças, ou de exercer uma pequena indústria, de que tiram a subsistência.

Quando chega o tempo de qualquer dos serviços de roça, que consistem nestas quatro operações principais, — roçar, plantar, capinar e colher, — o pequeno roceiro convida seus parentes, amigos e conhecidos da vizinhança para virem ajudá-lo, e todos pelo direito costumeiro são obrigados a vir dar-lhe uma mão, é a frase usada, — ficando o que assim se aproveita dos serviços dos vizinhos na obrigação de acudir também ao chamado destes para o mesmo fim.

Já se vê que a calhandra de La Fontaine erraria seus cálculos, e perderia inevitavelmente os seus filhotes, se tivesse de haverse com os bons lavradores desta nossa abençoada terra.

O mutirão constitui pois como uma espécie de sociedade de auxílios mútuos, baseada unicamente nos costumes e usanças dessa boa gente, que não dispondo muitas vezes senão do seu único braço para o serviço, planta todavia roças consideráveis, e obtém a colheita necessária para a sua subsistência.

Este uso não é somente dos roceiros, e é também posto em prática pelas mulheres que vivem de fiar e tecer, das quais antigamente havia grande número na província de Minas, alimentando com seu trabalho esse ramo de indústria outrora mui importante e florescente.

Mas o mutirão não consisto simplesmente no desempenho de uma tarefa de trabalho. O dono ou dona da casa tem por obrigação regalar os seus trabalhadores do melhor modo possível, e a reunião e a boa mesa trazem sempre como conseqüência natural os divertimentos e folguedos. Assim trabalha-se de dia, e à noite toca a comer e beber, a dançar, cantar e folgar.

Como íamos contando, havia mutirão em casa de Umbelina. Tinha ela convidado as comadres e amigas mais chegadas da vila e das vizinhanças a virem passar alguns dias em sua casa, a fim de ajudarem-na a desmanchar algumas arrobas de lã e algodão, que queria pôr no tear, e para as regalar punha em atividade toda a sua perícia de quitandeira mestra e de quituteira abalizada.

À noite, como de costume, havia toques, cantigas e folguedos, e então apareciam também lá alguns rapazes da vila e dos arredores. A sociedade de Umbelina era em verdade de pessoas do povo e de baixa condição, mas honra lhe seja feita, era tudo gente comportada e de bons costumes. Ela era incapaz de chamar à sua casa vadios, peraltas e mulheres perdidas para junto da companhia de uma filha, que era a menina dos seus olhos, e cuja reputação

zelava com o maior recato e solicitude ………… Ressoavam as

violas e adufes; o folguedo já tinha começado à sombra da figueira do terreiro.

Além do luar, que estava soberbo, duas grandes fogueiras acesas no terreiro a alguma distância, iluminavam de um modo original e pitoresco o âmbito, dentro do qual se desenhavam destacando-se vivamente as figuras daquela curiosa e interessante reunião, uns no centro, dançando, outros em derredor, sentados pelo chão ou em tamboretes e cepos de pau como servindo de cerca e limite àquele recinto. O clarão das fogueiras avermelhava a cúpula gigantesca da figueira, que com sua espessa folhagem abrigava os convivas do orvalho frio da noite.

Eugênio chegou-se à roda tolhido e ressabiado. Porém Margarida, que apenas o avistou soltou um grito de alegre surpresa, e veio imediatamente colocar-se ao pé dele, fez com que logo cobrasse ânimo e presença de espírito, e tomasse assento na roda com todo o desembaraço, como qualquer dos habituados.

Atraídos pela beleza de Margarida, como dissemos, alguns rapazes freqüentavam a casa de Umbelina, e lhe requestavam a filha. Esta, porém, não lhes dava a mínima atenção, e em sua cândida inocência nem mesmo suspeitava o verdadeiro motivo, por que tanto a festejavam.

Entre esses aspirantes ao amor da rapariga, o que mais padecia era um certo rapaz por nome Luciano. Era um moço, que teria a rigor seus vinte e cinco anos, de bonita e agradável presença, tropeiro bem principiado, que já tinha alguns lotes de burros no caminho do Rio, e que além de tudo se tinha em grande conta de bonito, de rico e de bem-nascido, pelo que não deixava de ser sumamente ridículo, quando não era insolente e malcriado………….

Sabe o leitor o que é quatragem?

Não sabe. É uma dança.

É a dança original e pitoresca de nossos camponeses, dança favorita do roceiro em seus dias de festa, e que faz as delícias do tropeiro nos serões do rancho após as fadigas da jornada.

Dança vistosa e variegada, entremeada de cantares e tangeres, já cheia de requebros e languidamente balanceada ao som de uma cantiga maviosa, já freneticamente sapateada áo ruído de palmas, adufes e tambores.

Sem ter o desgarre e desenvoltura do batuque brutal, não é também arrastada e enfadonha como a quadrilha de salão; ora salta e brinca estrepitosa e alegre, ora se requebra em mórbidas e compassadas evoluções.

Como o próprio nome indica, forma-se de um grupo de quatro pessoas. a música é desempenhada pelos dançantes, que além de uma garganta bem limpa e afinada, devem ter nas mãos ao menos uma viola ê um adufe. Há uma quantidade incalculável de coplas para acompanhar esta dança, e a musa popular cada dia engendra novas. São pela maior parte toscas e mesmo burlescas e extravagantes; todavia algumas há impregnadas dessa maviosa e singela poesia, que só a natureza sabe inspirar.

Dançava-se a quatragem no mutirão da Tia Umbelina. Margarida estava sentada junto de Eugênio, de cujo lado não se arredara desde que este havia chegado.

Ia-se formar nova roda de dançadores; Luciano, que tinha a viola em punho, dirigiu-se a Margarida, e convidou-a para a dança. Ela recusou-se pretextando já ter dançado muito e achar-se fatigada.

— Então venha esse mocinho, que aí está com a senhora, disse Luciano.

Com este convite o rapaz procurava mesmo ocasião de travar-se de razões com o estudante, a fim de desabafar o ciúme e despeito que por dentro o corroíam."10

Deve-se ler no romance a luta entre Luciano e Eugênio; tem perfeita cor local. Repare-se na maneira brasileira da linguagem. Grifei algumas palavras e dizeres no intuito de despertar a atenção do leitor.

Bernardo era do número dos que se não preocupam com as portentosas maravilhas do purismo; não quebrava a cabeça nem perdia o sono, cismando sobre a colocação dos pronomes e outras brilhaturas da espécie…

José Bonifácio de Andrada e Silva (1827-1886). É este um dos homens de letras menos estudados e aquilatados no Brasil. Herdeiro de um grande nome, os aduladores políticos tomaram bem cedo conta dele e meteram-no nas regiões misteriosas da mitologia de convenção.

Fizeram do neto de Andrada um estadista, um pensador político, um sábio publicista, um professor emérito, um jurisconsulto original e não sei mais quê, esquecendo-se todos de não ser o famoso paulista mais do que um orador acadêmico e um poeta de talento.

10. O Seminarista, págs. 119 e seguintes.

Nesta dupla qualidade é que vai ser estudado e contemplado neste livro.

Antes de tudo o poeta.

Logo em começo surge uma questão preliminar. Sabe-se que, apesar de haver muita originalidade intrínseca no lirismo nacional, não se pode negar nele, pela face meramente exterior, uma certa feição refletiva da influência de alguns poetas europeus.

Chateaubriand, Lamartine, Byron, Musset e Vítor Hugo foram os indiretos influidores do romantismo brasileiro.

Pois bem, resta saber quando e como começou a orientação exercida por Vítor Hugo.

Antes de tudo, releva ponderar que a ação de Vítor Hugo foi meramente exterior, simples questão de forma. Mas donde partiu essa simples modificação do estilo poético entre nós?

José Bonifácio, Luís Delfino, Pedro Luís e Tobias Barreto têm passado pelos iniciadores do hugoanismo em nossa poesia. Isto demanda uma explicação.

Há a notar antes do mais a questão da idade: José Bonifácio era de 1827, Luís Delfino de Í834, Pedro Luís e Tobias Barreto ambos de 1839. José Bonifácio era, pois, sete anos mais velho do que Luís Delfino e doze mais do que os outros dous.

O poeta paulista, porém, não possuiu logo de princípio a intuição hugoana da forma. Só mais tarde ela lhe chegou, mais ou menos incompletamente.

Nunca publicou livros que corressem o país, foi um trabalhador solitário, inserindo de longe em longe alguns versos em efêmeros jornais. Seu folheto de 1849 sob o título de Rosas e Goivos, pelo que tenho ouvido referir dele, é medíocre como documento literário e está fora da intuição de que se trata.

Os versos, que apareceram em 1861 nas Trovas Burlescas de Getulino e em 1862 na Biblioteca Brasileira de Quintino Bocaiúva, em alguns pontos já se lhe aproximam mais algum tanto, não tendo, porém, ainda a forma pura do moderno lirismo de Hugo.

Como quer que seja, porém, José Bonifácio não teve discípulos, não passando de um simples precursor isolado. Como escola, como movimento literário, o condoreirismo começou no Recife.

Luís Delfino, com ser cinco anos mais velho do que Pedro Luís e Tobias, não os antecedeu na poesia.

Delfino veio tarde de sua província para o Rio de Janeiro estudar os preparatórios. Creio que os seus primeiros ensaios poéticos são de 1855 ou 56, justamente no tempo em que principiaram os outros dous.

Delfino nunca foi assíduo na imprensa; também nunca publicou livros. Até 1880 pouco, bem pouco publicou em jornais. Nos últimos anos é que, já rico pela clínica, principiou a ter atividade literária; mas, neste tempo, nem já ele tem sido mais condoreiro, nem a escola existe mais. Dissolveu-se há muitos anos.

Delfino foi um poeta intermitente, sem ação direta sobre o público, e não teve discípulos no tempo e no sentido a que aludo. Atualmente ele tem o seu pequeno cenáculo adornado de outras vistas.

Restam Pedro Luís e Tobias Barreto. São ambos de 1839, o notável ano em que nasceram também Carlos Gomes e Machado de Assis, e em que se começou a agitar o movimento da maioridade.

Pedro Luís, além de não ter começado antes de seu êmulo, não era um temperamento literário.

Apenas formado em 1860, atirou-se à política. Publicou umas cinco ou seis poesias nos jornais do Rio, em estilo semi-hugoano. É um tipo apagado pela política.

O condoreirismo, como escola, em sua dupla manifestação de lirismo e poesia social, foi iniciado em 1862 por Tobias no Recife. O poeta possuiu essa intuição desde os seus primeiros ensaios de Sergipe e Bahia. Em seu lugar demonstrarei isto cabalmente.

Considerarei, entretanto, os três poetas do Sul como predecessores.

A escola, como tal, só existiu depois que no Recife Tobias, Castro Alves, Plínio de Lima, Guimarães Júnior, Vitoriano Palhares, Castro Rebelo, Altino de Araújo e muitos outros obedeceram a uma intuição geral e tiveram mais ou menos uma só feição literária.

O condoreirismo teve, porém, duas fases, a do Norte e a do Sul.

No Sul ele foi pregado diretamente por Castro Alves, quando, em 1868, o moço baiano passou-se para São Paulo. Quase toda a gente naquele tempo no Rio de Janeiro e províncias do Sul fez versos, imitando a maneira do poeta das Espumas Flutuantes. Os mais notáveis seguidores

do gênero foram Carlos Ferreira, nas Rosas Loucas, Mudo Teixeira, nas Sombras e Clarões, e Elzeário Pinto, em algumas composições soltas.

Dada esta prévia explicação, avistemos o poeta em José Bonifácio. Foi lírico e épico-lírico.

Distinguiu-se dos seus contemporâneos e companheiros de lutas acadêmicas em não ter sacrificado fortemente no altar do byronismo.

Teve sempre e desde então uma nota valentemente objetiva que o levava a extasiar-se diante de cenas naturais e de fatos da sociedade. O estilo nele teve também sempre certa individualidade, que o separava dos mais.

O poeta possui vigor e segurança de tintas; tem destreza e facilidade na mão. Sabe pintar. Tais são seus méritos. Exagera-se muitas vezes, faz alegorias, torna-se visionário, entra no domínio das aparições. São seus defeitos.

As poesias de José Bonifácio que pude coligir para o estudar são: Um Pé, Tu e Eu, O Retrato, Suprema visio, Aspiração, A Amante do Poeta, Camões, Lendo Camões, O Corneta da Morte, Não e Sim, O Redivivo, O Adeus de Gonzaga, Primus inter pares, A Caridade, À Margem da Corrente, Álvares de Azevedo, e um soneto sem título que começa — Os tristes olhos meus tão empregados.

Além destas, tenho mais adiante de mim: Que Importa?, Guaturamo e Árvore Seca, impressas na Biblioteca Brasileira, e ainda Rodrigues dos Santos, Saudades do Escravo, Calabar, Enlevo, Garibaldi, Teu Nome, Prometeu, Saudade, Olinda e O Tropeiro. Ao total trinta peças. Julgo ser o suficiente para conhecer o poeta.

O seu livrinho das Rosas e Goivos não o pude encontrar, por mais que o procurasse, falta que não creio ser demasiado sensível.

Suponho terem ficado esparsas muitas outras composições, que devem parar em mãos dos parentes do autor. Uma edição completa delas torna-se urgente para a verdadeira compreensão do poeta. Ele é um lírico dos mais elegantes do Brasil.

Ouçamo-lo; eis uma bela amostra de lirismo, a poesia O Pé:

"Adorem outros palpitantes seios,

Seios de neve pura; De angélico sorrir meiga fragrância,

Ou sobre colo de nevada garça, Caindo a medo em ondas aloiradas, Bastos anéis de tranças perfumadas.

Adorem o coral do lábio ingrato Na alvura do alabastro, A voz suave, o pálido reflexo Da luz do céu em face de criança; Ou sobre altar erguido à formosura, Na fronte ebúrnea a mórbida brancura.

Adorem outros de um airoso porte

Relevados contornos; A majestade da beleza altiva, O desdenhoso passo, o gesto ousado, A descuidosa mão, que a trança alisa Na trípode infernal a pitonisa.

Não, não quero painéis de tal encanto,

Tenho gostos humildes, Amo espreitar a negligente perna, Que mal se esconde nas rendadas saias, Ou ver subindo o patamar da escada Sem asas a voar um pé de fadai

Um pé, como eu já vi, de tez mimosa,

De tez folha de rosa, Leve, esguio, pequeno, carinhoso, Apertado a gemer num sapatinho; Um pé de matar gente e pisar flores. Namorado da lua, e pai de amores!

Um pé, como eu já vi, subindo a escada

Da casa de um doutor; Da moçoila gentil a erguida saia Deixou-me ver a delicada perna!… Padres, não me negueis, se estais em calma, Um coração no pé, na perna um’alma.

Um pé, como eu já vi, junto à otomana,

Em férvido festim, Tremendo de valsar, envergonhado Sob a meia sutil, e a cor do pejo Deixando flutuar na veia azul, Requebro, amor, feitiço, — um pé ta fui!

Poeta do amor e da saudade,

Depois de morto peço, Em vez de cruz sobre a funérea pedra, A forma de seu pé; foi o meu culto. Quero sonhar o resto enquanto a lua Chorosa e triste pelo céu flutua…"

Eis o lirismo delicioso d’América.

Bonifácio de Andrada sentia o calor, a seiva, a impetuosidade dos sonhadores meridionais. Ei-lo, tirando o Retrato de sua amada:

"Incline o rosto um pouco… assim… ainda… Arqueie o braço, a mão sobre a cintura; Deixe fugir-lhe um riso à boca pura E a covinha animar da face linda.

Erga a ponta do pé… que graça infinda! Quero nos olhos ver-lhe a formosura, Feitiço azul de orvalho que fulgura, Froco de luz suave que não finda.

Há pouca luz… eu vejo-a… está sentada. Passou-lhe a sombra de um cuidado agora Na ruguinha da fronte jambeada…

Enfadou-sel… meu Deus, ei-la que chora. Pois caiu-me o pincel; que mão ousada! Pintar de noite o levantar da aurora!…"

São efusões nossas: alguma cousa de etéreo, mimoso, sutil, que suavemente embriaga ao modo dos aromas adormecedores do Oriente.

Cousas assim são possíveis às margens do Tietê, do Capibaribe, do Paraíba; é uma poesia saída da mesma fonte donde saem os beija-flores, e as irisadas borboletas de nossas matas.

Ouçamo-lo ainda; falem as recordações:

"Tu e eu! que ventura e vida imensa! Que lindo sol! que bela primavera! Pudesse eu ver-te ainda! Oh! quem me dera Tua alma remoçar e a minha crença! Aquecer-me ao clarão esmorecido Dessa réstia de sol, meio sumido!

Mas os dias de outrora não volveram! Mas é já tarde pra falar de amores! Os nossos sonhos, nossas pobres flores Em seu próprio jardim já feneceram! Foi d’ânsia de viver… não sei de quê… Decifra o mito, e, se o não podes, crê.

Inda te escuto a voz, inda à noitinha

Vejo tua sombra a perseguir-me, os passos,

Inda em meu sonho, em plácidos abraços

Contemplo esfaima que me diz que és minha!

Mas da tarde à serena claridade

Quero chamar-te e chamo-te saudade!

Noutro tempo, meu Deus, não era assim,

Tudo então me falava só de amores:

A brisa, o orvalho, o ninho, o céu, as flores,

A natureza inteira, o mar sem fim!

Até cada rumor dos arvoredos

Era um ninho d’amor, — tinha segredos!

Em nossa vasta solidão sem termos Não se ouvia do mundo um só respiro, Tinhas tu em meu peito o teu retiro, Eu -em teu coração meus doces ermos! Minha alma era tua alma repartida, Duas vidas ligadas numa vida.

Oh! não víamos do mundo o vaivém, A festa, a luz, a dança, as doudas falas; Só viviam, meu Deus, naquelas salas Tu e eu tão-somente e mais ninguém; O meu teu ser, o teu meu sentimento. Unidos coração e pensamento…

Mas à visão final a vista me arde… Vi um altar… ouvi um juramento..’. De tua doce voz o meigo acento Murmurou-me um adeus… Era já tarde! Ai! despertei do sonho em que vivi Sem luz, sem sol, quero dizer, sem ti!"

Vê-se bem que não é o lirismo pobre, sem fulgores de forma e exuberancias de sentimento, dos maus poetas. Também não é a pieguice do lamartinismo afetado.

Teu Nome é na mesma intuição:

"Teu nome foi um sonho do passado; Foi um murmúrio eterno em meus ouvidos; Foi som de uma harpa que embalou-me a vida; Foi um sorriso d’alma entre gemidos!

Teu nome foi um eco de soluços,

Entre as minhas canções, entre os meus prantos;

Foi tudo que eu amei, que eu resumia,

Dores, prazer, ventura, amor, encantos!

Escrevi-o nos troncos do arvoredo, Nas alvas praias onde bate o mar; Das estrelas fiz letras, soletrei-o Por noite bela ao mórbido luar!

Escrevi-o nos prados verdejantes Com as folhas da rosa ou da açucena! Oh! quantas vezes n’asa perfumada Correu das brisas em manhã serena?!

Mas na estrela morreu, caiu nos troncos, Nas -praias se apagou, murchou nas flores; Só guardada ficou-me aqui no peito — Saudade ou maldição dos teus amores."

Nessa mesma corrente de lirismo pessoal e recordativo são os" versos sob a denominação Que Importa? Neles há um travor especial, uma nota de despeito e vingança, que merece ser apreciada.

A poesia em Pernambuco é citada como pertencendo ao grande galanteador Maciel Monteiro. É um engano em que também laborei por algum tempo. Ei-la:

"Podes sorrir-te embora! As flores murcham Mas não morre o perfume sobre o chão! Que importa o riso sobre o lábio ingrato, Se inda, mulher, te bate o coração?!

Fada orgulhosa nos salões brilhantes Vargas sem tino, no dançar louquejas; E as penas brancas da plumagem alva Caíram todas: num paul doidejas!

Vale acaso essa vida de delírio, Aqueles sonhos de paixão fervente, Os quentes beijos, os abraços temos, E o céu tranqüilo sobre a terra ardente?

Ai! que louca tu foste! As nossas festas Tinham por luzes os clarões da lua; Ainda hoje às vezes, solitária e bela, Tua imagem triste no luar flutua!

Não chorei… oh não! Lá quando um dia

Emudecer o som da louca festa,

Essa história de gozos infinitos

Hão de contar-te as brisas da floresta!

Teu pranto em fio pelas faces murchas Há de ser minha única vingança; Serás a estátua muda da saudade No sepulcro deserto da esperança!…

Embalde o tentas… Minha imagem sempre Como um remorso surgirá perdida! Eu sou tua sombra, seguirei teu corpo! Eu sou tua alma, seguirei tua vida!"

Quão distante se está do lirismo de Magalhães! A língua tem tomado mais flexibilidade, mais amplitude, mais sonoridade, mais tintas, mais ardores.

É preciso pôr termo ao que tinha de dizer do poeta; não o posso fazer sem dar ao menos uma qualquer amostra do estilo de Andrada no gênero épico-lírico.

Seja O Redivivo, consagrado à memória de um dos nossos heróis na campanha do Paraguai, essa famosa guerra que patenteou nossa coragem, nosso patriotismo, a unidade de sentir de nosso povo, a inveja de nossos vizinhos, e tanto incandesceu a imaginação de nossos poetas:

"Dorme o batalhador!… por que chorá-lo? Armas em funeral! — silêncio, ó bravos!

Que a dor não o desperte! Tão só… tão grande… sobre a terra inerte! A pátria além… partido o coração… Saudade imensa e imensa solidão!…

Não o despertem! — ele dorme agora Embalado nos braços da metralha,

Ao trom da artilheria: Por lençol — a bandeira: em terra fria Tem por leito — os troféus; por travesseiro Tem o canhão no sono derradeiro!

Sorrindo adormeceu — a espada em punho! A imaginar, sonhando, ouvir no espaço

O clarim da investida! À cabeceira — a morte agradecida; Aos pés — a glória; e ao lado ajoelhada — A pátria, pobre mãe desventurada!

Segura as rédeas do corcel sem dono Formosura sinistra — olhar infindo! —

É a deusa da guerra! Mede os espaços, os confins da terra… Quer despertá-lo… treme… o passo é incerto… Estende a mão e aponta pra o deserto!

Quando ele adormeceu, na mente insana Homéricas visões lhe apareceram!

Olhou fito o seu norte… Eu sou a eternidade — disse à morte, Do meu ginete o pé a terra abala, Quando eu caminho — o viração nem fala!

E que eternas visões!? — na marcha ousada, Para saudá-lo os mortos levantavam-se,

Tocavam as cornetas, As peças disparavam nas carretas, E, ao cabo do caminho, a doce paz Lhe preparava os arcos triunfais!

Ele via, qual mar tempestuoso, Ondas revoltas, umas após outras,

Da audaz cavaleria As cargas, que a vitória presidia; E, galgando a galope a imensidade, Dizia à morte: — eu sou a eternidade!

As montanhas se abatem, quando eu passo; O rio inclina o dorso e me saúda, Se me apeio em caminho! O meu cavalo é águia, o céu é ninho; A fome, a peste, a chuva, em véus de fumo, São meus soldados, guiam-me no rumo!

E que eternas visões — em vale imenso, A narina incendida, o peito arfando,

O ginete parava! Eis a voragem!… lá no fundo a lava Que entornam os vulcões de artilheria, E um exército de mortos, que se erguia!

Depois nuvem de fogo… uns sons tremendos… Um estalar de ossos… ais… mil pragas…

Uma orquestra infernal! Num mar de sangue o sol como fanal! Os tambores rufando… armas quebradas… Bandeiras rotas… retintim de espadas!

Um trovejar sem fim… um largo incêndio… Mas ele à frente, no corcel, fitando

O infinito — seu norte, Dizia à eternidade: eu sou a morte, Meu cavalo é o destino, o céu mortalha, Meu braço é raio, o coração muralhai

Ao ver-me, tremulante as palmas dobra A palmeira; estreitam-se os banhados;

O arroio nem transborda; No firmamento azul o sol acorda! Quem é, pergunta a noite à ventania, Este arcanjo de luz e poesia?

É da floresta o rei, exclama o vento, É o espetro do sol, afirma a estrela,

Das águas o senhor, Murmura o rio um cântico do amor; E a tempestade diz: meu cavaleiro, Tens por corcel as asas do pampeiro!

E corre e corre. . . ao cabo da carreira Imenso boqueirão.. fosso sem bordas…

Tranca-lhe o espaço a cruz!

Embaixo a densa treva!… o cimo é luz! Basta, lhe brada a voz da imensidade, A morte foi teu guia à eternidade!

Armas em continência! — é um morto vivo! Ei-lo que passa agora, erguido ao alto

Há nisto imaginação, movimento, vida, brilho.

Eu não gosto de receitas: odeio o mister dos boticários; para mim todos os gêneros poéticos são bons, uma vez que revelem talento; não canso em o repetir.

Clássicos, românticos, realistas, parnasianos, condo-reiros, socialistas, satânicos… todos me agradam,, sob uma só condição: não serem medíocres.

Os versos de José Bonifácio revelam um talento/uma individualidade fora, muito fora do comum.

Não o acho igualmente meritório na sua qualidade de político e de orador parlamentar.

Sei bem que justamente por esse lado é que ele foi reduzido a mito.

É preciso estudá-lo por essa face; e se pode bem fazê-lo, apreciando um seu célebre discurso da Câmara dos Deputados, na sessão de 28 de maio de 1879, quando se discutiu a reforma da Constituição no sentido de se encartar nela o sistema da eleição direta.11 É isto necessário para ver neste livro a figura completa de José Bonifácio. Depois do poeta, o orador.

O célebre paulista não é, para mim, o que vulgarmente dele se diz, um grande pensador, adicionado ao mais perfeito dos oradores. Não; é simplesmente para mim, como para tantos outros, um poeta de mérito, que errou o seu caminho.

Como poeta, esfera em que devia se ter concentrado, pôde ele escrever páginas animadas, quais o Primus inter pares ou O Redivivo. Como orador, por mais que isto pareça estranho, pouco se elevou acima do nível da vulgaridade e das amplificações estudadas.

Por certo não se está mais na época em que qualquer homem verboso, tendo à mão algumas dezenas de frases

No esquife da vitória!

O Brasil o saúda, e tu, História, Um poema de luz de novo escreves! Soldados, cortejai Andrade Neves/"

11. Vide Discursos Parlamentares, do Conselheiro José Bonifácio de Andrada e Silva, Bio de Janeiro, 1880, pág. 583.

sonantes e de interjeições entusiásticas, podia conquistar os foros de grande orador.

Se para o romancista, e até para o poeta hodierno, requer-se mais profusa receita do que a que dantes manipulava, que se dirá do orador, máxime do orador parlamentar ?

Hoje, depois de tantas revoluções ensangüentadas para os povos e de tantas crises profundas para os pensadores, depois que os mais graves problemas filosóficos e sociais passaram das surdas meditações dos sábios para a mente das massas populares, depois da evolução do socialismo, do naturalismo filosófico e das idéias positivas, o orador político e social não é mais o agitador vulgar, o glosador de pobres vacuidades.

Deve ser o político profundo, debaixo de cuja palavra vibrante encontre asilo a idéia do pensador; atrás do homem que fala e apaixona, há de estar o homem que medita e resolve. Que encerra, eu o pergunto, de verdadeiramente extraordinário e admirável o discurso citado? Deixando de lado por brevidade as questões de forma, a parte estética da peça, o estilo pesado e palavroso, vejam-se as idéias, as doutrinas do orador.

Antes de tudo, qual a filosofia social de José Bonifácio?

Este último representante do doutrinarismo andrâdico, para repetir a justa palavra de Pereira Barreto, um dos mais elevados espíritos brasileiros, era exatamente um doutrinário romântico à guisa de Benjamin Constant.

Dizê-lo, é assinalar o enorme atraso em que laborava o ilustre conselheiro e lavrar a condenação de seus ingênuos admiradores.

Seu discurso, depurado ao crisol da análise e escoi-mado das frases que lhe obscurecem o pensamento, reduz-se a uma velha apologia à soberania popular, outra à eleição direta com o censo da Constituição, ladeadas ambas de alguns errinhos de história geral e história do Brasil.

Depois da revolução de 1789, esse fenômeno histórico mal compreendido, tema predileto de todos os declamadores modernos, espalharam-se entre os povos filiados na raça e na civilização latinas as extravagantes idéias de soberania e inerrancia popular de que o romantismo da Restauração apossou-se, jogando-as pelo mundo.

Pasto condimentado para os tribunos de todos os tamanhos, vieram elas girando até à nossa terra e até aos

12. Noe Estudos Sobre a Poesia Popular Brasileira, cap. I.

nossos dias, produzindo na Europa muitas comoções inúteis e aqui o descrédito dos partidos e o nosso político atraso.

A soberania popular, já o disse uma vez, é alguma cousa de análogo ao direito divino dos reis e à infalibilidade dos papas.13

O conceito do povo como soberano, isto é, como podendo ele só ditar as leis ao Estado e à sociedade, é um conceito metafísico e vão. A direção das idéias não parte do povo como massa inerte. Este lento ofício pertence à ciência em geral, representada por todos os seus operários, grandes ou pequenos, e se ela não pretende a inerrância, como pretendê-lo-ão as massas de que falava José Bonifácio?

O povo, no que ele tem de melhor e mais nobre, não precisa que para iludi-lo lhe preguemos nos farrapos com que se cobre, no abatimento a que o temos deixado cair por nossas teorias falaciosas, algumas tiras bordadas de vã soberania…

É chasqueá-lo, depois de exauri-lo.

O povo pode e deve intervir na direção dos seus destinos; para isto basta o seu direito à liberdade e ao progresso. Ele tem jus ao melhoramento e à cultura e tanto basta para justificar que lance maus olhos para os governos que lhos negam, e que num dia de desespero os atire por terra. Para tanto não precisa agáloar-se como soberano, pela mesma forma que um homem de estudo não tem mister de empunhar o báculo da infalibilidade para demonstrar um fato ou estabelecer uma teoria. O caso é o mesmo.

A idéia da soberania popular, transformada por Gui-zot em soberania da razão, não tem o fundamento da ciência, a sanção da história, nem faz a felicidade das nações.

Não tem o fundamento da ciência; pois que todos sabem, exceto os declamadores, que esta baniu do horizonte humano todas as noções abstrusas e de impossível verificação prática, fazendo a devida justiça aos preconceitos transcendentais.

Não tem a sanção dos fatos; porque a história, a despeito das teorias aéreas, mostra o povo sempre oprimido, subjugado, conquistando dia por dia, passo a passo, a sua emancipação pela indústria, pelas artes, pela ciência, em nome de seu trabalho, e não em nome de um predicado

que lhe não assiste. A soberania não é, nunca foi um fato positivo, um fato adquirido; mas um simples anelo despido de senso.

Não faz a felicidade das nações; porque aquelas que, como a França e a Espanha, tanto a têm proclamado, hão sido a presa da anarquia, para passar depois às fauces do despotismo.

É inútil apontar os fatos de ontem, que estão no conhecimento de todos. Foi em nome desta soberania que Luís Filipe criou o censo elevado e formou o país legal, o reinado dos burgueses intolerantes. Foi ainda em seu nome que o segundo império conservou o sufrágio universal, servindo, cruel ironia!… para justificação do mais pretensioso e ridículo governo dos modernos tempos.

E é com estas vacuidades metafísicas, como diria Strauss, que José Bonifácio de Andrada queria regenerar este país e abrir-lhe a estrada larga do futuro!…

Cuidado! A soberania em lugar da atividade e do trabalho livre, às vezes traz um Luís Bonaparte, e este quase sempre entre as névoas de seus desatinos deixa lobrigar ao longe Sedan…

A política é uma ciência prática e complexa que não prescinde do conhecimento do meio social. Isto faz lembrar o que entre nós se dizia e se esperava da eleição direta, encomiada por José Bonifácio.

As infantilidades de um indivíduo são fáceis de desculpar, se ele não tem por si a lição da experiência; as ingenuidades, porém, de um povo de quatrocentos anos de existência, a que se podem adicionar mais três séculos empregados por seus maiores em conquistar e firmar a própria autonomia, não devem passar sem reparo.

A sociedade brasileira acordou um dia sobressaltada e sentiu-se doente. Queixava-se de falta de liberdade política e de muitos males sociais; queixava-se de poucas rendas para o seu comércio, sua agricultura, suas indústrias.

Urge um remédio para tanto sofrimento, bradaram todos, e todos apontaram para a panaceia da eleição direta.

Todos, conservadores e liberais, chefes e vice-chefes, os aristocratas e o vulgacho, enamoraram-se da eleição direta…

Não compreendiam os ingênuos que os males de uma nação, fundos, palpitantes como as suas próprias entranhas, velhos, crônicos, calosos como a estupidez de um

bushman, não se extirpam de momento e por meio de uma medida que só afeta a superfície, a tona de nossos desconchavos.

Pois como? Uma simples mudança no modo prático de eleger alQgumas dúzias de palradores, nos havia de trazer a era das prosperidades!

Não! Só o trabalho lento de algumas gerações e estas bem inspiradas de seus deveres, um serviço gradual e paulatino, começando pela reforma de nossa intuição atrasadíssima do mundo, nos poderá salvar. Atirar à face de um povo que se confessa desanimado a futilidade da eleição direta, como o meio único de salvação, é dolorosamente irrisório; é como atirar em cima de um homem chagado uma porção de brasas.

Opino, e comigo todos os homens desprendidos das peias partidárias, que ela só por si e sem ser secundada por uma série complexa de reformas, que tragam uma total mudança em nossa decrépita educação nacional, para nada vale, de nada presta. \

Foi com a eleição direta que Guizot deitou por terra a monarquia de julho; foi com ela que aquele notável homem de Estado ia sufocando as liberdades francesas.

Mas ouça-se José Bonifácio:

"A constituição do império, disse ele, assenta sobre três princípios: soberania universal, unidade da soberania organizada e equilíbrio de mandato…"

O orador unge o seu doutrinarismo com o óleo santo do misticismo.

Ali está o número três, o número típico das lendas e mitos populares, a tríada infalível: soberania universal, unidade da soberania organizada e equilíbrio do mandato!. .. Três palavrões vazios, inania verba, com que se tem embalado algumas gerações de bacharéis!

Parece que se está a ouvir uma das gentilíssimas pre-leções do suposto direito público ensinado em nossas faculdades jurídicas.

Ainda se gasta o tempo em articular despropósitos nebulosos, aéreos, metafísicos e nulos. Unidade da soberania organizada… que quer isto dizer?

A velha prosa francesa de Constant só sabe excitar o riso.

Se José Bonifácio tivesse lido os trabalhos sociológicos ou jurídicos de um Spencer ou de Gneist, veria que lá não

se encontram, em lugar de fatos e demonstrações, tais e tantas vaporosas logomaquias. Disse ainda o orador:

"Qual é, em suprema e última análise, a garantia da unidade e divisão da soberania? A garantia desta unidade e divisão é ainda a mesma soberania nacional."

Esta última e seus dous apêndices, conforme o orador, são a base da Constituição; mas logo exclama que a garantia do segundo, isto é, da unidade da soberania organizada, é a mesma soberania!…

Vão jogo de palavras e nada mais.

Destarte aquele pretendido fantasma é base e é cúpula, é tudo justamente porque nada é…

Acabe-se de uma vez com isto, e dêem os deputados e senadores o exemplo de discutir questões sérias, com argumentos sérios e proveitosos.

À vista de tanta inanidade, quase que sou levado a dizer que não existe sistema algum de eleições que nos possa garantir uma boa representação, não tanto por intervir o poder, como vulgarmente se propala, no pleito das urnas, como pela falta de pessoal habilitado em que se possa votar.

O ilustre orador era partidário do sufrágio universal direto, e, como o não podia ver aplicado no Brasil, contentava-se com o sufrágio direto limitado com o censo da Constituição.

Repelia as duas condições do projeto do governo impostas aos futuros votantes: a renda de 400$000, e o saber ler e escrever. Achava que exigir essa quantia de renda era muito, porque a capacidade não se marca pelo dinheiro. De acordo. Para mim é indiferente que o votante produza cem, duzentos ou trezentos alqueires. A renda maior ou menor pouco importa, se houver outras garantias para uma boa escolha.

Ouçamo-lo:

"Duas são as condições do direito do voto: a vontade e o discernimento. O discernimento, porém, não depende nem de saber ler e escrever, nem da ciência, nem da instrução…"

Deixando de parte a vontade, cuja intervenção era escusado lembrar, porque ou ela é bem ou mal aplicada; se bem, não é tanto uma condição, como uma necessidade,

1008 Sílvio Romero — História da Literatura Brasileira

se mal, nada produz; deixando de lado a vontade, dizia, quanto ao discernimento, sem ao menos saber ler e escrever, não é tanto sem contestação o que pensava o ilustre conselheiro.

Disse que, se vingasse o projeto, teríamos dezenove vigésimas partes da população sendo governadas por uma vigésima parte.

E que é que tem sempre acontecido aqui e por todo algures? Isto mesmo.

Nos próprios países onde o sufrágio universal é mais lato e radicado é uma quimera supor que todo o povo concorre às urnas e ainda mais que todo ele toma parte no governo.

Demais, na hipótese contrária ao projeto e que Bonifácio de Andrada advogava, teríamos um resultado também pouco satisfatório, isto é, as massas incultas governando os cidadãos que têm luzes.

Como sair da dificuldade?

Eis o ponto a que chegam as reformas da superfície, quando não se penetra no âmago podre dos erros que pedem remédio.

Por que, desde muito, não promoveram, por todos os meios possíveis, a instrução do povo? Eis o grande problema, sem cuja solução tudo o mais é edificar sobre areia.

Os errinhos de história cometidos pelo orador, e de que falei, não consistem tanto no modo de narrar os fatos, como na maneira de os apreciar.

Aqueles sucessos da Grécia e Roma que lembrou para fundamentar a soberania popular e o direito das massas ao voto político, são devaneios de poeta.

O fórum romano e a agora ateniense não são símiles que nos aproveitem a nós, pobres epígonos modernos do Brasil.

Outros impulsos e outras leis regeram o desenvolvimento das civilizações antigas. No que disse de nossas lutas da Independência, com a intenção manifesta de justificar os velhos Andradas, de que a princípio a revolução não tinha um alcance separatista, o novo filósofo da história brasileira iludiu-se belamente.

Três fatos concorrem para prová-lo: a) a lei geral orgânica das sociedades que tendem a desagregar-se das metrópoles, em chegando aquelas a certo grau de desenvolvimento; b) os próprios antecedentes dados aqui no Brasil; c) os resultados finais da revolução.

Período de Transformação Romântica, Poesia, 1830-1870 1009

13. As biografias existentes de Laurindo o d ao como nascido em 1826; creio, porém, haver al engano de 6 anos. Parece-me que o poeta é de 1820.

O primeiro fato tem sua justificação em toda a história da América. Antes do Brasil, já as colónias inglesas haviam na mor parte sacudido o jugo e o mesmo tinham feito muitas espanholas.

O segundo é também realíssimo: as tentativas da Inconfidência e de 1817, sem falar noutras, são características neste sentido. A corrente geral era pela separação, que veio a verificar-se, e não para criar a grande monarquia, de que só alguns ambiciosos ou medíocres da época se poderiam lembrar.

A opinião não-separatista era em minoria e foi levada de vencida pela vontade da nação, dirigida pela leis naturalísticas da história.

O sonho do velho Andrada foi um delíquio passageiro, que felizmente não se contaminou, se é que realmente ele o teve. Pouco importa que isto pareça a alguns menoscabar da geração de heróis da Independência.

Os que não acreditam na divinização dos heróis, porque sabem que a evolução social é lenta, entrando nela cumulativamente o trabalho de todos, têm um outro modo de explicar os sucessos de 1822.

Para concluir:

José Bonifácio foi um homem de merecimento em geral; na poesia teve grande valor; na política foi menos considerável; era eloqüente, mas não profundo.

Laurindo José da Sdlva Rabelo (1826-1864). — Foi um dos talentos poéticos mais valentes da fase média de nosso romantismo.13

É, talvez, o espírito menos devidamente aquilatado de nossa vida literária, onde deveria sempre ter ocupado o primeiro plano.

É neste livro incluído na terceira fase da romântica, por um simples motivo de método, não que ele devesse nada a Álvares de Azevedo ou a qualquer outro do tempo.

Laurindo, que foi o talento mais espontâneo que tem existido no Brasil, em 1844, aos dezoito anos, já era poeta, qual sempre se mostrou, quando Azevedo era ainda um menino de treze anos, que principiava os preparatórios.

Norberto Silva o filia na escola de Magalhães. É um grande absurdo. Magalhães era quinze anos mais velho e

1010 Sílvio Romero — História da Literatura Brasileira

começou antes; porém jamais existiram dous temperamentos tão diametralmente opostos.

Laurindo era um talento intuitivo, espontâneo, natural, dotado de todas as qualidades brilhantes da inteligência; era um causeur inesgotável, um orador torrencial, um humorista perpétuo, um repentista sempre lesto, adicionado de um singular talento lírico.

Era um homem do povo, um espírito inquieto e ambulante, um homem das ruas, das festas, a mais perfeita personificação de uma classe de índoles literárias que já tem desaparecido de todo.

Que tem que ver com tudo isto Magalhães? Absolutamente nada.

Não se antecipem fatos e idéias; comece-se pelo princípio — a biografia do poeta; porque este a teve num tecido de sofrimentos.

As condições de seu viver e sua origem explicam nele perfeitamente a singular junção’ do lirismo elegíaco e da sátira.

Nasceu no Rio de Janeiro de pais paupérrimos, de baixa classe, isto é, de mestiços, em cujas veias corria, além de tudo, o sangue cigano. Não é embalde que se descende de uma raça que foi três séculos escravizada e da raça nômada, abatida e ossificadamente triste dos ciganos, esse singular problema ^etnográfico.

O longo e temeroso patrimônio de lágrimas, penetrando todo o ser pensante e emocional, se lhe transmite por hereditariedade e vai acentuar-lhe a fisionomia com os traços indeléveis do sofrimento.

Juntai agora a tudo isto a indigência absoluta dos pais, a quem todo o trabalho era dificultado pela atroz concorrência feita pelos estranhos ao proletário nacional; juntai as cenas de desolação que cercaram a primeira infância do poeta; adicionai-lhe por cima as peripécias terríveis que o assaltaram durante a atribulada existência, tudo isso numa inteligência de elite, e compreendereis Laurindo Rabelo.

Ele veio ao mundo, ao que se diz, em 1826. Seu aprendizado das primeiras letras foi feito entre inúmeras dificuldades.

Conseguindo no meio de grandes embaraços entrar para o Seminário de S. José, onde chegou a receber ordens menores, teve de abandonar a carreira eclesiástica, por intrigas que lhe moveram padres influentes daquele tempo,

Período de Transformação Romântica, Poesia, 1830-1870 1011

invejosos do seu talento oratório, que os iria a todos eclipsar.

Tentou, então, a carreira das armas, matriculando-se na Escola Militar, que teve de deixar, por haver escrito umas sátiras contra o diretor.

Matriculou-se na Escola de Medicina do Rio de Janeiro.

Por esse tempo, baldo inteiramente de recursos, passou pela provação de ver louca a irmã, por lhe haver falecido o noivo.

Deixou a escola médica, por completa falta de meios. Encontrou, porém, a mão caridosa do Dr. Salustiano Vieira Souto, que o levou para a Bahia, em cuja academia matriculou-se.

Depois de aí estar, e ter passado por crudelíssima enfermidade, chegou-lhe a notícia do falecimento da irmã. Mais tarde um pouco morreu-lhe a mãe, ficando-lhe a família reduzida a um só irmão.

Para cúmulo de infortúnios, este teve fim desastroso, sucumbindo assassinado barbaramente.

O leitor me relevará entrar nestas minudências. São necessárias para a inteira compreensão da índole do poeta; mostram como ele foi feito pela natureza e pelos acontecimentos; indicam especialmente a razão oculta daquela melancolia, daquele tom elegíaco ante o qual as tristezas de Azevedo, Lessa, Bernardo e Andrada, são brinquedos de criança.

Laurindo teve a melancolia negra, próxima da loucura, que o não assaltou pela elasticidade pasmosa de seu temperamento.

Daí esse duplo estado de depressão que se exalava em suspiros e de arrebatamento que se traduzia em sátiras. Conheceu também o terreno intermédio das facécias e das pilhérias.

Formado, a fortuna não lhe sorriu.

Estabelecido no Rio de Janeiro, não achou clínica; teve dé seguir como médico do exército para o Rio Grande do Sul. Voltando ao Rio, mais tarde, seguiu o mesmo emprego até 1862, quando deram-lhe um lugar de professor no curso anexo à Escola Militar desta capital.

Pouco aproveitou dessa última posição, pois faleceu em princípios de 1864 aos trinta e oito anos de idade.

Laurindo era um desses talentos de ação direta e pessoal que mais se apreciam pelo contacto imediato.

1012 Sílvio Romero — História da Literatura Brasileira

As inteligências desta casta são essencialmente perdulárias e descuidosas; produzem todos os dias aos fragmentos, desbaratando as próprias forças; é gente que não se concentra para edificar alguma cousa que persista.

Em palestras, discussões orais, discursos de ocasião, improvisos poéticos, malbaratou Laurindo as suas faculdades.

Tinha seu cenáculo constante onde se distinguiam homens como Castro Lopes, Pires Ferrão, Eduardo de Sá, Ferreira Pinto e sobre todos Constantino Gomes de Sousa, tão infeliz quanto ele.

De passagem, devo aqui notar que os críticos da moda, em tratando dos amigos que cercavam o poeta fluminense, ocultam sempre o nome de Constantino de Sousa, o mais ilustre de todos!…

É que o pobre e sisudo moço era um simples provinciano, tinha o crime de haver nascido em Sergipe e não adulava os prepotentes do dia… É castigado por isso.14

Laurindo, além de dissipar o seu talento, não teve cuidado em salvar o que escreveu, nem de reunir o que publicou pelos jornais; por isso se perderam dele poemas e dramas e correm anônimas pelas gazetas muitas produções suas.

Estou reduzido para o julgar ao pequeno volume de poesias editado por B. L. Garnier em 1876 e alguns outros trabalhos aliunde colhidos.

Quanto à parte inédita de sua ação sobre quantos o conheceram, tenho interpelado diretamente a tradição.

Mais de vinte pessoas inteligentes, ilustradas e insuspeitas tenho interrogado sobre Laurindo. Feliz enteí Nunca ouvi gabar tanto um morto, um pobre diabo, que não deixou descendentes. Esse testemunho colhido da tradição quero eu aqui depô-lo em honra ao genial poeta.

Todos me falam dele comovidos, assombrados por tão descomunal inteligência, sempre lesta, sempre pronta, espontânea, alígera, posta em provas continuamente na conversação, na oratória, em discussões de todo o gênero, em toda a casta de improvisos poéticos, em todos os estilos, sérios, satíricos, humorísticos, galhofeiros ou até pornográficos.

14. Vide nas Obras Poéticas de Laurindo o estudo preliminar por Norberto Silva. N&o íala em Constantino!!…

Período de Transformação Romântica, Poesia, 1830-1870 1013

Era uma inundação perene de força e graça, um desperdício de calor e seiva. O mais adorável dos boêmios ladeado de peregrino talento e de bondosa alma.

Do causeur e do orador não resta mais nada além do testemunho dos contemporâneos. Do repentista quase tudo se perdeu.

No improviso poético ele não excedia a Moniz Barreto; ultrapassava-o na palestra e imensamente na oratória; pois é preciso que se saiba que o repentista baiano não possuía o dom da palavra. O fluminense o sobrepujava também na sátira e no talento lírico.

Tal a razão pela qual os versos meditados de Moniz Barreto são fracos, ao passo que de Laurindo restam algumas poesias que entram afoitamente no número das mais belas que se têm escrito na América.

Neste número se contam: O Que São Meus Versos, O Meu Segredo, O Gênio e a Morte, A Linguagem dos Triste, A Morte de José de Assis, Sobre o Túmulo de Labatut, Adeus ao Mundo, A Minha Vida, Amor e Lágrimas, Saudade Branca, À Bahia, Amor-Perfeito, Dous Impossíveis, Não Posso Mais.

Laurindo é um lírico. Seu lirismo teve duas manifestações principais: uma elegíaca, inspirada pela tristeza incurável de sua raça e de sua vida social; outra satírica, insuflada pela ironia, manifestando-se severa ou galhofeiramente. Esta última parte anda quase toda inédita. Não tenho lazeres para procurá-la. Conheço-a, todavia, até certo ponto. Da outra manifestação, a elegia, existem boas amostras no volume a que me hei referido.

Na poesia deste sofredor os predicados principais são: simplicidade e clareza de forma, verdade de sentimentos, riqueza de idéias, formando o todo um estilo pessoal, alguma cousa, que o separa dos outros cantores do tempo.

Devo começar pelo que o poeta nos deixou de mais leve, de mais singelo.

Eis as suas sensações e impressões diante de um amor-perfeito:

"Secou-ae o roaa… era roaa; Flor tão fraca e melindroaa, Muito não pôde durar. Exposta a tantos calorea, Embora foaaem de amores, Cedo devia aecar.

1014 Sílvio Romero — História da Literatura Brasileira

Porém tu, amor-perfeito,

Tu, nascido, tu afeito

Aos incêndios que amor tem.

Tu que abrasas, tu que inflamas,

Tu que vegetas nas chamas,

Por que secaste também?

Ahl bem sei. De acesas fráguas As chamas são tuas águas, O fogo é água de amor. Como as rosas se murcharam, Porque as águas lhes faltaram, Sem fogo murchaste, flor.

É assim, que bem florente Eras, quando o fogo ardente De uns olhos que raios são, Em breve mas doce prazo, Te orvalhou naquele vaso, Que já foi meu coração…

Secaste, porque esse pranto Que chorei, que choro há tanto, De todo o fogo apagou. Triste, sem fogo, sem frágua Secaste, como sem água A triste rosa secou.

Que olhos foram aquelesI Quando eu mais fiava deles Meu presente e meu porvir, Faziam cruéis ensaios Para matar-me… Eram raios, Tinham por fim destruir.

Destruíram-me: contudo Perdôo o pesar agudo, Perdôo a pungente dor Que sofri nos meus tormentos, Pelos felizes momentos Que me deram nesta flor…

AU querido amor-per feito! Como vivi satisfeito, Quando te vi florescer! Ai! não houve criatura No prazer e na ventura Que me pudesse exceder.

Ai! seca flor, de bom grado, Se tanto pedisse o fado, Quisera sacrificar

Período de Transformação Romântica, Poesia, 1830-1870 1015

15. Obras Poéticas, pág. 162.

Liberdade e pensamento, Sangue, vida, movimento, Luz, olfato, sons e ar;

Só para ver-te florente, Como quando o fogo ardente De uns olhos que raios são, Em breve mas doce prazo, Te orvalhou naquele vaso, Que já foi meu coração… "10

A apreciação das sensações e emoções do poeta nestes rápidos versos mostra um ser ardente, um coração abrasado pela desdita e pelo amor.

Laurindo veio a falecer atacado neste órgão central da vida. O coração matou-o; não foi a tuberculose, como falsamente alguns pensaram. Sei bem disto.

O poeta inflamava-se e vegetava nas chamas, segundo sua expressão. Esse eretismo de toda a sua organização extravasava-se em sua contínua ebulição mental.

O abalo íntimo, o estremecer constante de sua vida psíquica torturou-o sempre. Ele mesmo pintou esse estado de espírito na poesia O Meu Segredo, que é uma verdadeira autobiografia, em os Dous Impossíveis, que são uma bela página de psicologia.

Ouçam esta última:

"Jamais! Quando a razão e o sentimento Disputam-se o domínio da vontade, Se uma nobre altivez nos alimenta, Não se perde de todo a liberdade.

A luta é forte: o coração sucumbe Quase nas ânsias do lutar terrível; A paixão o devora quase inteiro, Devorá-lo de todo é impossível!

Jamais! A chama crepitante lastra, Em curso impetuoso se propaga, Lancem-lhe embora prantos sobre prantos, É inútil, que o fogo não se apaga.

Mas chega um ponto em que lhe acena o ímpeto Em que não queima já, mas martiriza, Em que tristeza branda e não loucura À razão se sujeita e harmoniza.

1016 Sílvio Romero — História da Literatura Brasileira

É nesse ponto de indizível tempo Onde, por misterioso encantamento, O sentir a razão vencer não pode, Nem a razão vencer o sentimento.

No fundo de noss’alma um espetáculo Se levanta de triste majestade, Se de um lado a razão seu facho acende, De outro os lírios seus planta a saudade…

.Melancólica paz domina o sítio, Só da razão o facho bruxuleia Quando por entre os lírios da saudade Do zelo semimorto a serpe ondeia!

Dous limites então na atividade Conhece o ser pensante, o ser sensível: Um impossível — a razão escreve, Escreve o sentimento — outro impossível!

Amei-te! Os meus extremos compensaste Com tanta ingratidão, tanta dureza, Que assim como adorar-te foi loucura, Mais extremos te dar fora baixeza…

Minh’alma nos seus brios ofendida, De pronto a seus extremos pôs remate, Que mesmo apaixonada uma alma nobre Desespera-se, morre, não se abate.

Pode queixar-se inteira a flicidade De teu olhar de fogo inextinguível, Acabar minha crença, meu futuro… Aviltar-me! jamais! É impossível!

Mas a razão, que salva da baixeza

O coração depois de idolatrar-te,

Me anima a abandonar-te, a não querer-te,

Mas a esquecer-te, não, sempre hei de amar-te!…

Porém amar-te desse amor latente, Raio de luz celeste e sempre puro, Que tem no seu passado o seu presente, E tem no seu presente o seu futuro.

Tão livre, tão despido de interesse Que para nunca abandonar seu posto, Para nunca esquecer-te, nem precisa Beber, te vendo, vida no teu rosto.

Que, desprezando altivo quantas graças, No teu semblante, no teu porte via, Adora respeitoso aquela imagem Que deles copiou na fantasia…"

Período de Transformação Romântica, Poesia, 1830-1870 1017

16. Vide, neste vol., pág. 715, as páginas consagradas ao Marquês de Sapucal.

. Vê-se que o poeta era desses espíritos reflexivos, que se voltam sobre si mesmos, que padecem, e se analisam no meio de suas lutas.

Era também altivo; mas era sincero; fugia, sumia-se e não esquecia, nem deixava de amar, como ele mesmo disse.

Claro se mostra que Laurindo não tocava instrumento, não era virtuose; sua poesia não era retórica e cheia de frases, era a expressão natural de seus afetos.

Note o leitor que vai numa verdadeira gradação. Já vislumbrou n’aima do poeta suas ternuras diante de uma flor dada por sua amante; já entre os seus segredos surpreendeu a luta funda que ele travou para vencer uma paixão ingratamente retribuída…

Um passo mais e vê-lo-á prantear loucamente diante das saudades que lhe arrancou a lembrança de sua irmã.

Não insistirei neste ponto, porque já toquei nele quando falei de Araújo Viana, Marquês de Sapucaí.16

Está-se em plena elegia. Um passo mais, e em Meu Segredo, na Linguagem dos Tristes e vinte outras poesias, se verá o sofredor fluminense, o pobre mestiço proletário diante de seu viver, diante de seu destino. A elegia então geme e dói ouvi-la.

Não há artifício; a simplicidade da linguagem deixa vazarem-se através de seus poros as exalações de uma alma dilacerada. Ele teve bem razão de assim dizer em — O Que São Meus Versos:

"Se é vate quem acesa a fantasia Tem de divina luz na chama eterna; Se é vate quem do mundo o movimento Co movimento das canções governa;

Se é vate quem tem n’aima sempre abertas Doces, límpidas fontes de ternura, Veladas por amor, onde se miram As faces de querida formosura;

Se é vate quem dos povos, quando fala, As paixões vivifica, excita o pasmo, E da glória recebe sobre a arena As palmas que lhe ofrece o entusiasmo;

1018 Sílvio Romero — História da Literatura Brasileira

Eu triste, cujo fraco pensamento

Do desgosto gelou fatal quebranto;

Que, de tanto gemer desfalecido,

Nem sequer movo os ecos com meu canto;

Eu triste, que só tenho abertas n’aima Envenenadas fontes de agonia, Malditas por amor, a quem nem sombra De amiga formosura o céu confia;

Eu triste, que, dos homens desprezado, Só entregue a meu mal, quase em delírio, Ator no palco estreito da desgraça, Só espero a coroa do martírio;

Vate não sou, mortais; bem o conheço; Meus versos, pela dor só inspirados, — Nem são versos, — menti, — são ais sentidos, Às vezes, sem querer, d’alma exalados;

São fel que o coração verte em golfadas, Por contínuas angústias comprimido; São pedaços das nuvens, que m’encobrem Do horizonte da vida o sol querido;

São anéis da cadeia que arrojou-me Aos pulsos a desgraça, ímpia, sanhuda; São gotas do veneno corrosivo, Que em pranto pelos olhos me transuda.

Seca de fé, minha alma os lança ao mundo, Do caminho que levam descuidada. Qual, ludíbrio do vento, as secas folhas Solta a esmo no ar planta mirrada. ."

Este podia assim falar ; podia chorar sem rebuço, sem se tornar ridículo; tinha para isto o privilégio dos sofrimentos de uma vida flagelada. Era uma alma de têmpera. Podia também rir; porque só o havia de fazer quando a efusão fosse bastante forte para mandar a gargalhada brotar através das mágoas.

Laurindo não era uma natureza unitária, de uma só faceta, uma dessas organizações simplistas, que tomam a direção que lhes imprime o curso dos acontecimentos.

Um entezinho desses, se as cousas lhe correm bem e possui certa habilidade literária, atira-se aos versinhos fáceis, e também ao pagode, à crápula, à súcia, e vai engrossar a coorte dos peraltas e boêmios letrados.

Vê-se então a frivolidade galante dos cafés e botequins. Os versos que fazem, os folhetins que escrevem, parecem-se

Período de Transformação Romântica, Poesia, 1830-1870 1019

com as gravatinhas listradas, as bengalinhas leves que conduzem …

Se, porém, as cousas não correram bem, as dificuldades sérias surgiram de fauces abertas, então o entezinho desequilibra-se de todo, estiola-se, murcha, inutiliza-se. Vai para o túmulo ou para o hospício.

Nosso poeta não era dessa qualidade de gente.

Foi do número daqueles homens ousados que naufragam; mas nadam sempre para as costas e vão surgir adiante com as mãos dilaceradas, nus, famintos, e sempre enérgicos e cheios de esperança.

Foi do número desses que respondiam ao infortúnio com a ironia, ao desespero com a gargalhada.

Era batido; porém não se deixava prender; era vencido, mas não se rendia.

Forte casta de homens que se batem como heróis, choram como leões e riem como gigantes. Esses saem fora da medida comum. Foi por isso que Laurindo por onde passou interessou a todos com as cintilações de seu espírito, de suas sátiras, de suas pilhérias.

A Bahia e Porto Alegre ainda hoje lembram-se de seus chistosos ditos e de suas singularidades; o Rio de Janeiro riu-se durante vinte anos pelo diapasão do seu riso franco e sonoro.

Era a gargalhada irônica e profunda do pariá, do mestiço, do cigano, do proletário numa pátria ingrata, explorada pela cobiça de uma burguesia d’estranhos e pela ganância de politiqueiros relapsos.

Grande porção da obra do poeta, por esta face particularíssima de seu talento, perdeu-se, porque foi oral. Outra porção dela existe impressa e esparsa por aí algures.

Na Marmota, no Sino dos Barbadinhos, na Voz da Juventude e noutras publicações da época pode-se joeirar muita cousa no aludido sentido.

Não tenho tempo de o fazer e indico o trilho a investigadores futuros, que desejem estudar a fundo o escritor.

Existem também por aí inéditas em cópias que algumas pessoas possuem muitas composições de pura pornografia, iguais ou superiores pelo chiste às produções do gênero atribuídas a Bocage.

Antes de dizer algumas palavras finais sobre o talento do repentista e do poeta faceto, é útil um passo mais na senda da elegia.

1020 Sílvio Romero — História da Literatura Brasileira

O poeta estava na Bahia, fazendo o curso médico; ali não tinha ainda escrito a Saudade Branca, dedicada à memória de sua irmã, quando caiu gravemente enfermo. Esteve às portas da morte. Convencido absolutamente que ia morrer, escreveu o Adeus ao Mundo.

Todos os encantos da natureza e da sociedade lhe aparecem para receber-lhe o adeus da última despedida.

Quem já uma vez perdeu entes queridos, porções d’al-ma que se foram, leia; é pungente:

/

"Já do batel da vida Sinto tomar-me o leme a mão da morte:

E perto avisto o porto Imenso, nebuloso, e sempre noite,

Chamado — Eternidade! Como é tão belo o sol! Quantas grinaldas

Não tem de mais a aurora! Como requinta o brilho a luz dos astros! Como são recendentes os aromas Que se exalam das flores! Que harmonia Não se desfruta no cantar das aves, No embater do mar, e das cascatas, No sussurrar dos límpidos ribeiros, Na natureza inteira, quando os olhojr Do moribundo, quase extintos, bebem

Seus últimos encantos!

II

Quando eu guardava, ao menos na esperança,

Para o dia seguinte o sol de um dia,

De uma noite o luar para outras noites;

Quando durar contava mais que um prado,

Mais que o mar, que a cascata erguer meu canto,

E murmurá-lo num jardim de amores;

Quando julgava a natureza minha,

Desdenhava os seus dons: ei-la vingada:

Cedo de vermes rojarei ludíbrio,

E vida alardearão fracos arbustos

Sobre meu lar de morto! A noite, o dia,

O inverno, o verão, a primavera,

A aurora, a tarde, as nuvens, e as estrelas,

A rir-se passarão sobre meus ossos!

Não importa. Não é perder o mundo

Período de Transformação Romântica, Poesia, 1830-1870 1021

O que me azeda os pálidos instantes Que conto por gemidos. Meu tormento, Minha dor, é morrer longe da pátria, Da mãe, e dos irmãos que tanto adoro.

III

Quando da pátria me ausentei, não tinha Nada, que lhes deixar, que lhes dissesse O que eram eles dentro de minh’alma. Mendigo, a quem cedi pequena esmola, Deu-me quatro sementes de saudade; Ao meu jardim doméstico levei-as, Cavei, reguei a terra com mjeu pranto, E plantei as saudades. Soluçando Chamei ali os meus: ‘Aqui vos deixo (Disse apontando à plantação) em flores Minh’alma toda inteira; aqui vos deixo Um tesouro enterrado. Jóias, ouro, Riquezas, não, não tem, porém na terra Estéril não será.’ Ondas de pranto Afogaram-me a voz: houve silêncio; Palpei de novo o chão; vi que de novo Cavado estava! A terra se afundara, E as sementes nadavam sobre lágrimas, Que minha mãe e minha irmã choravam… Replantei-as, orei, beijei a terra, E parti… Trouxe d’alma só metade; E o coração?… deixei-o num abraço.

IV

Certo estou de que a planta, já crescida,

Terá brotado flor. Se ao menos dado

Me fosse colher uma.’.. ver a terra

Pelo pranto dos meus santificada!

Se uma dessas saudades enfeitar-me

Viesse a minha essa, ou meti sudário,

Ou, pela mão materna transplantada,

Encravar-me as raízes no sepulcro…

É tão pouco, meu Deus!… Eu não vos peço

Soberbo mausoléu, estátua augusta

De túmulo de rei. Assaz desprezo

Esses gigantes de oiro Com entranhas de pó. Mortalha escassa De grosseiro burel, que bordem lágrimas; Terra quanto baste pra um cadáver. E as minhas saudades, e entre elas Uma cruz com os braços bem abertos, Que peça a todos preces. Terra, terra Perto dos meus e no torrão da pátria,

É só quanto suplico.

1022 Sílvio Romero — História da Literatura Brasileira

V

A morte é dura, Porém longe da pátria é dupla a morte. Desgraçado do mísero, que expira Longe dos seus, que molha a língua, seca Pelo fogo da febre, em caldo estranho; Que vigílias de amor não tem consigo, Nem palavras amigas que lhe adocem O tédio dos remédios, nem um seio, ‘Um seio palpitante de cuidados, Onde descanse a lânguida cabeça! Feliz, feliz aquele, a quem não cercam Nesse momento acerbo indiferentes Olhos sem pranto; que na mão gelada Sente a macia destra d’amizade Num aperto de dor prender-lhe a vida! Feliz o que no arfar da ânsia extrema De desvelada irmã piedoso lenço, Úmido de saudades vem limpar-lhe As frias bagas dos finais suores! Feliz o que repete a extrema prece. Ensinada por ela, e beijar pode O lenho do Senhor nas mãos maternas! Desgraçado de mim!… Talvez bem cedo Longe de mãe, de irmãos, longe da pátria Tenha de me finar… Ramo perdido Do tronco que o gerou, e arremessado Por mão de gênio mau à plaga alheia, Mirrarei esquecido! Os céus o querem, Os céus são imutáveis: aos decretos >. Do senhor curvarei a fronte humilde, Como cristão que sou. Eternidade, Recebe-me a teu bordo!… Adeus, ó mundo!

VI

Já sinto da geada dos sepulcros O pavoroso frio enregelar-me… A campa vejo aberta, e lá do fundo Um esqueleto em pé vejo a acenar-me…

Entremos. Deve haver nestes lugares Mudança grave na mundana sorte; Quem sempre a morte achou no lar da vida, Deve a vida encontrar no lar da morte.

Vamos. Adeus, ó mãe, irmãos e amigos! Adeus, terra, adeus, mares, adeus, céus!… Adeus, que vou viagem de finados… Adeus… adeus… adeus!

Período de Transformação Romântica, Poesia, 1830-1870 1023

Adeus, ó sol, que amigo iluminaste Meu pobre berço com os raios teus… – Ilumina-me agora a sepultura: Adeus, meu sol, adeus!

Florezinhas, que quando era menino Tanto servistes aos brinquedos meus. Vegetai, vegetai-me sobre a campa: Adeus, jlores, adeus!

Vós, cujo canto tanto me encantava, Da madrugada alígeros orfeus, Uma nênia cantai-me ao pôr da tarde: Passarinhos, adeus!

Vamos. Adeus, ó mãe, irmãos e amigos! Adeus, terra, adeus, mares, adeus, céus!… Adeus: que vou viagem de finados!…

Adeus!… adeus!… adeus!…"

Então? Eu disse bem: é uma página singular esta; é uma das elegias mais doloridas que já uma vez foram escritas em qualquer língua. Em português nenhuma outra a excede em singeleza e sinceridade.

Laurindo era um homem da plebe e sempre viveu em estado próximo da indigência. Não privava com o imperador, não era sócio do Instituto Histórico e tampouco era um protegido dos régios magnatas da literatura do seu tempo.

Não era apaniguado de Magalhães, Porto Alegre, Otaviano, Macedo e outros influentes da época. Pelo contrário, noto no jornalismo do tempo completo silêncio sobre o poeta fluminense.

Repare-se que Fernando Wolf nem uma só vez faz menção do seu nome. É que aqueles, que forneceram os apontamentos para a obra do escritor austríaco, guardaram silêncio sobre o desditoso trovista.

E, todavia, a injustiça aqui é clamorosa; porque êle foi um dos mais valentes talentos poéticos de nossa língua. Se não teve fama entre os grandes, gozou da mais completa notoriedade que nosso povo tem outorgado aos seus diletos.

Laurindo Rabelo e Gregório de Matos foram os poetas da plebe, do grande número no Brasil.

Homens do povo, falavam para ele a sua linguagem.

Entre nós a literatura, ou mais propriamente a poesia, tem tido duas expressões, capitais e divergentes.

1024 Sílvio Romero — História da Literatura Brasileira

De um lado, nota-se o grande grupo dos poetas por plano e reflexão, os espíritos estudiosos e ilustrados que têm procurado acompanhar as idéias do tempo em que vivem e aclimá-las no país.

Têm merecimento e prestaram bons serviços; mas não foram as bocas entusiásticas e proféticas por onde falava a nação.

De outro lado, estende-se em linha o troço dos que nada ou quase nada sabiam do estrangeiro, ou que nada ou quase nada se impressionaram com o que por lá corria, mas, em paga, estavam identificados com o nosso povo e eram dele uma voz, um soluço, um lamento, um cântico, alguma cousa que lhe saía d’alma. São as duas correntes gerais de nossa literatura. Até hoje têm andado divergentes.

É por isso que ainda não tivemos um poeta daquela primeira plana em que fulgem os vultos de Camões, Tasso, Milton, Goethe e doutros astros desse tamanho.

Só quando as duas correntes se encontrarem na cabeça e no coração de um homem, a um tempo a síntese de sua raça e no espelho de seu século, só então possuiremos quem nos vá representar na região dos grandes gênios.

Laurindo não passou de um talento, notável talento em verdade.

Sinto não poder aqui estudá-lo como satírico e humorista. A necessidade de resumir-me, e, em parte, a falta de materiais agora à mão, obrigam-me a passar adiante, dizendo apenas duas palavras sobre o repentista.

Por esta face só Moniz Barreto podia com eíè; muitas vezes digladiaram-se na Bahia.

No improviso oratório, como já disse, Laurindo não tinha rival então; no improviso poético acompanhava o repentista baiano. Eis aqui um soneto dirigido à cantora Marieta Landa:

"Tão doce como o som da doce avena Modulada na clave da saudade; Como a brisa a voar na soledade, Branda, singela, límpida e serena;

Ora em notas de gozo, ora de pena, Já cheia de solene majestade, Já lânguida exprimindo piedade, Sempre essa voz é bela, sempre amena.

Período de Transformação Romântica, Poesia, 1830-1870 1025

Mulher, do canto teu no dom superno

A dádiva descubro mais subida

Que de um Deus pode dar o amor paterno. t

E minh’alma num êxtase embebida, Aos ,teus lábios deseja um canto eterno, E, só para gozá-lo, eterna vida…"

Moniz Barreto, entusiasmado, atirou-lhe este mote Tens nas mãos teu porvir, teu bem, teu fado, que o poeta fluminense glosou assim, dirigindo-se à mesma cantora:

"Disseste a nota amena da alegria,

E, arrebatado então nesse momento

De um doce, divinal contentamento,

Eu senti que minh’alma aos céus subia…

Disseste a nota da melancolia, Negra nuvem toldou-mc o pensamento; Senti que agudo espinho virulento Do coração as fibras me rompia.

És anjo ou nume, tu que desta sorte Trazes o peito humano arrebatado Em sucessivo e rápido transporte?

Anjo ou nume não és; mas, se te é dado

No canto dar a vida ou dar a morte,

Tens nas mãos teu porvir, teu bem, teu fado…"

Basta; o que aí fica é suficiente para dar um amostra da limpidez, clareza e simplicidade dos improvisos do lírico fluminense.

Para concluir.

Laurindo é um poeta de caráter autonômico em meio dos seus pares.

Mais moço que Magalhães e Porto Alegre, apareceu depois deles, sem lhes seguir as pisadas.

Mais moço apenas três anos que Gonçalves Dias, apareceu mais ou menos pelo mesmo tempo e não lhe deveu absolutamente nada.

Igual independência mantém em face de Azevedo, Lessa, Bernardo e Andrada, pouco mais moços do que ele.

A qualidade predominante da sua poesia é a nota elegíaca. Não é a chamada poesia sentimental e lamu-rienta.

O poeta não se lastima; também não se insurge, nem se rende; não é um revoltado que blasfeme, nem um sub-

1026 Sílvio Romero — História da Literatura Brasileira

17. Nao confundir com o moço autor das Funções do Cérebro.

metido que se prostre vencido. Não; ele é naturalmente elegíaco. O pranto lhe sai espontâneo e não o espanta; não se converte em motivo de queixa ou de ódio.

Aquilo não é fingido, não arma ao efeito; é assim por índole.

Luís José Junqueira Freire (1832-1855). — De São Paulo e do Rio de Janeiro é tempo de chegar à Bahia.

De Laurindo Rabelo é natural a passagem para Junqueira Freire, seu amigo e por ele pranteado em belos versos.

O decênio de 1850 a 60 na Bahia foi uma época de grande animação literária; igual’ só houve ali, no tempo de Gregório de Matos, no século XVII.

A começar pela Igreja, fulgiam então o Arcebispo Romualdo de Seixas, distinto pelo seu saber, e os frades Itaparica, Arsênio da Natividade e Raimundo Nonato, famosos pelo seu talento oratório.

O ensino médico fulgurava em Eduardo França, Jonatas Abott, Ataliba e Malaquias dos Santos.

A eloqüência política falava pela boca de Mauricio Wanderlei, Landulfo Medrado, Fernandes da Cunha, Barbosa de Almeida, Vítor de Oliveira e João Barbosa.

O jornalismo político possuía um combatente, que valia por vinte, Guedes Cabral.17

A bela literatura formava a linha da frente com Moniz Barreto, o repentista, Agrário de Meneses, o dramaturgo, Manuel Pessoa da Silva, o satírico, Augusto de Mendonça, Rodrigues da Costa, Gualberto de Passos e, algum tempo, Laurindo Rabelo, os liristas. Desse grupo era Junqueira Freire.

Este poeta é de 31 de dezembro de 1832; em 1851 entrou para a Ordem dos Beneditinos, professando no ano seguinte.

Foi a isto levado em parte por conselhos e em parte por desgostos privados, o que sei por informações particulares e fidedignas.

Tendo de seguir em 1854 para o Rio de Janeiro, pediu, a rogos de sua mãe, que ficaria desamparada na Bahia, a secularização, e a obteve.

Pouco depois falecia de moléstia cardíaca aos 24 de junho de 1855. Tinha pouco mais de 22 anos.

Período de Transformação Romântica, Poesia, 1830-1870 1027

Tratando-se deste poeta, aparece logo uma questão inicial: um poeta monge em pleno século XIX!…

Isto agitou a turbulência leviana da crítica nacional e começaram logo a formar-se as lendas.

Uns deram o moço frade como um espírito místico, duma religiosidade idealista e remontada, que fugiu das torpezas do materialismo mundano para abrigar-se ao puro retiro do claustro.

Outros pintaram-no como um espírito forte, uma alma agitada pela impiedade, pela descrença, pela mais atroz filosofia, obrigada a meter-se nas asfixiantes compressas da clausura, onde viveu em perpétua luta.

Finalmente, quis-se ver nele, nem um místico, nem um ímpio; "mas o Anacreonte dos claustros, um D. Juan disfarçado em monge". Não julgo provada nenhuma dessas opiniões.

O estudo atento dos versos do poeta, a leitura dos prólogos das Inspirações do Claustro e das Contradições Poéticas, e, especialmente, de um fragmento de autobiografia que dele ficou, levam-me a outras conclusões.

A idéia de ter sido Junqueira um místico foi levianamente forjada do simples fato de sua entrada para o convento.

Prova por demais frágil; porque sabe-se bem hoje que não foi a vocação irresistível que o impeliu; o claustro foi um recurso, um expediente de ocasião, levianamente abraçado pelo poeta.

Não é só isto; a leitura do moço baiano dá por terra com o suposto misticismo, o que pode verificar quem o quiser.

Também não foi um espírito que rompesse todos os laços tradicionais, fizesse tabula rasa completa das velhas crenças.

O poeta foi educado no regímen católico; mais tarde, abalado pela filosofia e pela literatura de seu tempo, caiu num estado de vacilação e incerteza.

Ora pendia para as velhas idéias, ora para as novas, aliás pouco definidas.

Pelo que toca ao caráter erótico e sensual de seu temperamento, é ainda uma nota inexata. Junqueira havia tido um amor de puerícia e este amor contrariado, não sei por que circunstâncias, nunca mais se lhe apagou do coração. É possível que tivesse, além daquela, uma ou outra intriga amorosa.

1028 SfLvio Romero — História da Literatura Brasileira

Não é essa, porém, a nota predominante do seu lirismo. Por este lado é muito inferior aos diversos românticos analisados até aqui.

É mister penetrar n’aima do poeta, e apreciar as suas opiniões.

No Prólogo das Inspirações do Claustro lê-se isto:

"As poesias presentes agradarão a bem poucos: agradarão apenas a algumas almas fortes, que não puderam ainda ser eivadas nem do cancro do cepticismo, nem da mania do misticismo: agradarão apenas a alguns homens completamente livres, que não sujeitaram-se ainda senão às luzes da razão. Ora, estes homens são bem raros na sociedade atual, porque a hipérbole dos sistemas e das crenças traz em si não sei que talismã, que arrasta todos os espíritos, por bem formados que sejam.

Pela mão invisível da Providência fui arrojado há três anos para o coração do claustro.

Por essa inclassificável ação de que hoje me espanto, tive as bênçãos de uns e os escárnios de outros. Eram ainda os homens místicos e os cépticos que louvavam-me ou vituperavam-me. Pela mão invisível da Providência fui arrojado outra vez para o torvelinho dá sociedade.

Por isso tive a maldição de quase todos. Eram ainda os místicos, que não pejavam-se de cantar a palinódia dos louvores, que me haviam magnificamente dispensado, — eram os cépticos, que compunham deste acontecimento um marciálico epigrama… O aspecto social, que parecem ter estas composições, obriga-me ainda a não finalizar de súbito este prólogo.

O que cantas? perguntar-me-ão. O que podia eu cantar, encerrado nas muralhas solitárias de um claustro, ouvindo a cada hora os toques continuados de um sino que chama à oração, vendo uma turma de homens com vestidos talares negros que levavam-me à recordação dos costumes dos tempos antigos, passeando sempre sobre um chão povoado de sepulcros, conversando com o silêncio do dia e a solidão da noite?

Cantei o monge e a morte.

Cantei o monge, porque ele sofre, sofre muito. \.

Cantei o monge, porque o mundo o despreza.

Cantei o monge, porque ele é hoje uma cousa inútil e ociosa, em conseqüência de suas instituições anacrônicas.

Cantei o monge, porque ele não tem culpa de ser mau, nem pode por si só ser bom.

Cantei o monge, porque ele é infeliz.

Cantei o monge, porque ele é escravo, não da cruz, mas do arbítrio estúpido de outro homem.

Cantei o monge, porque não há ninguém que se ocupe de cantá-lo.

E por isso que cantei o monge cantei também a morte. É ela o epílogo mais belo de sua vida: é seu único triunfo…

Na verdade, ao homem sincero amante de sua pátria, dói-lhe dentro da alma ver tanta gente estacionada, sem nada fazer, podendo

Período de Transformação Romântica, Poesia, 1830-1870 1029

produzir tanto bem. Não! a caridade que o Cristo ensinou, não é egoísta: Imagem real do pelicano, que arranca o coração para dá-lo aos filhos! Muitos, a quem tomam o cuidado de chamar ímpios, censuram o monge no monge. Eu deploro-o somente, porque ele não é criminoso.

A instituição, a instituição é que, depois de lhe tirar o trabalho, hoje em dia já não preciso, de rotear montanhas, não lhe forneceu outro qualquer em ordem às necessidades da época, mas antes convidou-o a uma espécie de ócio, no qual ele não pode ser mais que mau e desgraçado."

Estas palavras do prólogo das Contradições Poéticas são ainda mais expressivas como pintura do estado psicológico do autor:

"Este livro é a história de minha vida.

Minha vida tem sido a continuidade de circunstâncias todas contrárias, todas variadas, todas repugnantes quase.

Meu livro, pois, sendo a expressão destas circunstâncias, é todo contrário, todo variado, todo repugnante quase, como tem sido minha vida.

Eis aqui a razão de minhas Contradições Poéticas.

Uma educação cristã, porém livre, que minha mãe soube dar-me, imprimiu-me entre seus ósculos maternos o sentimento religioso lá bem no âmago de meu coração.

As minhas poesias ortodoxas, portanto, pertencem a minha mãe. São sua inspiração.

O ardor da juventude, a ambição da ciência, a sociedade corrompida, degeneraram em mim o homem feito por minha mãe. À proporção que estudava, ia-me tornando mais filósofo, isto é, mais vaidoso, mais ignorante, mais incrédulo.

As minhas poesias filosóficas pertencem a esses acessos de loucura.

Entrou-me quase nesse tempo essa visão encantada, essa alucinação febril, que mata o coração e o espírito, depois de tê-los bem gasto. O amor!

As minhas poesias eróticas pertencem a esses segundos acessos de loucura.

Depois desses errores, a mão da doença, prelúdio do castigo eterno, arrojou-me por várias vezes às aprazíveis paisagens do nosso belo recôncavo, e vi a pastorinha singela correndo no campo lá pela madrugada, e as cabanas inocentes dos pescadores, e tudo isso encantou-me. Foi um segundo amor, porém mais puro.

As minhas poesias campestres pertencem a essas fases de desgraça, sim, mas de inocência.

Hoje que se têm desvanecido estes momentos tão doces de loucura juvenil, como uma noite misteriosa num palácio de fadas, assento-me tranqüilo em cima de um cômoro de folhas secas, que de quando em quando caíram da árvore, e deixaram-na por fim só com seu tronco e suas galhas mirradas.

1030 Sílvio Romero — História da Literatura Brasileira

Não é tudo; no fragmento de autobiografia que vem citado no estudo do poeta escrito pelo Conselheiro Franklin Dória há alguma cousa mais completa ainda sobre a puerícia, os estudos, as primeiras idéias do moço frade.

Tudo isto fala bem alto; as três lendas inventadas à conta do moço poeta desaparecem confusas e batidas por estas confissões irrecusáveis de uma transparência absoluta. Junqueira era um pobre jovem nervoso, apreensivo, que se viu atraído por duas intuições diversas.

A educação religiosa e a corrente do século travaram luta em sua alma; suas crenças vacilaram, seus sentimentos se ressentiram.

Daí certa dubiedade, certo dualismo em seus escritos; justamente o mesmo abalo que se dera em Azevedo e em seus companheiros. Apenas Junqueira era mais lúcido, mais raciocinador e menos imaginoso, menos poeta.

O baiano é, como todos os bons poetas brasileiros, um bom lirista; seu lirismo tem quatro notas principais: religiosa, filosófica, amorosa, popular. Dou este último nome ao punhado de poesias que se inspiram de cenas do viver de nossas classes pobres e aldeãs. \

Infelizmente não são abundantes as peças do gênero, que, ao meu ver, são as melhores do autor.

As principais delas são: A Órfã na Costura, nas Inspirações do Claustro, e O Banho, O Canto do Galo, O Menestrel do Sertão, nas Contradições Poéticas.

Nos outros gêneros as mais saborosas são: Por que Canto, Meu Filho no Claustro, A Flor Murcha no Altar, Frei Bastos, entre diversas mais.

Aqui separo as mais verdes das mais secas, as maiores das menores, para fazer uma camada, e plantar sobre ela um nome pobre e mesquinho, que talvez não nasça…

Estes cantos são meus dias antigos, são minha vida vivida, são todo o meu passado.

Eu amo todos esses tempos, como um pai ama os esqueletos de seus filhos, que já não são, mas que já foram uns mais bonitos, outros mais feios.

Eu amo todos esses tempos, porque custaram-me suores e sangue.

Eis aqui por que eu conservo intactas as minhas Contradições Poéticas. Nem as reduzo a um sistema, a um pensamento uniforme, constante, único. Apresento-as quais são.

Nunca poeta foi hipócrita."

Período de Transformação Romântica, Poesia, 1830-1870 1031

Não é possível discutir e exemplificar todas as manifestações do talento poético de Junqueira; como amostra de seu estilo aqui vai — A Flor Murcha no Altar:

"Está murcha: — assim nos foge A brisa que corre agora. Está murcha: — assim o fumo Cresce, cresce — e se evapora. Está murcha: — assim o dia Em raios afoga a aurora.

Está murcha: — assim a morte Do mundo as glórias desfaz: Assim um’hora de gosto Mil horas de dores traz: Assim o dia desmancha Os sonhos que a noite faz.

Está murcha… Ainda agora — Eu a vi, — não era assim. Era linda, era viçosa, Acesa como o rubim, Reinava, como a rainha, Sobre as flores do jardim.

Foi a donzela mimosa, Foi passear entre as flores. Foi conversar coas roseiras, Foi-lhes contar seus amores. Julgando que sobre as rosas Não se reclinam traidores.

Ela foi cos pés formosos Deixando mimoso rastro, Qual no céu passou de noite, Correndo, fulgindo, um astro. E esta rosa foi cortada Com seus dedos de alabastro.

A rosa ficou mais bela Naquela virgínea mão. Encheu de perfume os ares, Talvez com mais expansão. Mas a virgem teve pena De pô-la em seu coração.

Entrou no templo a donzela Coberta co véu de renda. Teme que aos olhos dos homens Sua modéstia se ofenda: Como a cortina das aras, Que aos ímpios se não desvenda.

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Leva a modéstia na fronte, Leva no peito a oração Leva seu livro doirado, Leva pura devoção: Leva a rosa, a linda rosa Nos dedos da breve mão.

Rezou: e depois ergueu-se, Dirigiu-se ao santuário, Modesta, qual sua prece, Qual a luz do alampadário: E depôs a linda rosa Ao pé do santo Calvário.

Os anjos depois vieram. Respiraram sobre a flor. A flor cobrou mais beleza, Mais gala e mais esplendor. Ali ao pé do Calvário Deu mais expansivo odor.

Ali parecia aos olhos Crescer, crescer… Mas agora? Agora murcha, tão murcha, Não tem a gala de outrora, — Assim o fumo do teto Cresce, cresce, e se evapora.

Assim as horas do tempo Correndo, correndo vão. Assim passou inda há pouco O matutino clarão. Assim ontem foste infante, Assim hoje és ancião.

Murcha, murcha! não expande Jamais seu odor intenso. Há de secar, feliz dela, Junto à Cruz do Deus imenso. Há de aspirar sobre as aras O cheiro de grato incenso.

Feliz! — seu leito de morte, Sobre as aras ela tem, A prece que vai ao Céu, Sobr’ela primeiro vem. A mirra que a Deus incensa, Incensa a ela também."

Há simplicidade e certa melodia popular nestes e noutros versos do poeta baiano.

Período de Transformação Romântica, Poesia, 1830-1870 1033

Ele não possuía o vigor de Azevedo e José Bonifácio, a doce melancolia de Bernardo Guimarães e Aureliano Lessa, nem a exuberância de Laurindo Rabelo.

Ele, Augusto de Mendonça e Franco de Sá servem de transição entre o grupo de poetas do Sul, que tenho estado a analisar, grupo a que pertencem também Teixeira de Melo e Casimiro de Abreu, ainda não estudados, e a plêiada do Norte em cujo número contam-se Pedro de Calasãs, Trajano Galvão, Dias Carneiro, Bruno Seabra, Franklin Dória, Bittencourt Sampaio, Gentil Homem, Juvenal Galeno, Joaquim Serra, Sousa Andrade e Costa Ribeiro: bela coorte de poetas pouco apreciados e mal retribuídos em seu merecimento.

O leitor não se esqueça de que está tio que eu chamei a terceira fase do romantismo no Brasil, o tempo do cepticismo e do sentimentalismo à Byron e Lamartine.

Já se viu que Álvares de Azevedo, Aureliano Lessa, Bernardo Guimarães, José Bonifácio e Laurindo Rabelo, todos filhos do Sul, obedeceram a essa tendência que variavam de vez em quando, inserindo em seus cantares algumas notas de naturalismo brasileiro, alguns tons de paisagens e de cenas nacionais.

Por esse mesmo tempo começou a formar-se nas províncias do Norte, sob a influência da escola do Recife, aquela falange de poetas citados acima.

A diferença, que julgo importante e característica, entre os dous grupos, é que no do Sul predominou o sentimentalismo sobre o naturalismo rústico e popular e no do Norte predominou este sobre aquele.

Entre os dous grupos, como um laço que òs prende, figuram os dous baianos Junqueira Freire e Augusto de Mendonça e o maranhense Franco de Sá, que poetaram nos dous sentidos que apontei.

Para concluir com Junqueira Freire deixo ainda aqui uma observação: ele nada deveu a Álvares de Azevedo na formação de sua intuição poética. Pouco até o leu, se é que jamais o leu.

Só em meados ou fins de 1853 poderiam ter chegado à Bahia as obras deste poeta, publicadas neste ano.

Desde quatro ou cinco anos antes Junqueira poetava no estilo que sempre conservou. A Lira dos Vinte Anos não produziu as Inspirações do Claustro.

1034 Sílvio Romero — História da Literatura Brasileira

São duas correntes paralelas e esse paralelismo é devido às correntes gerais das idéias e à atmosfera do tempo.

Não houve imitação direta, como inexatamente eu mesmo tinha dito na Literatura Brasileira e a Crítica Moderna, pequeno erro aliás que um estudo mais completo dos fatos leva-me gostosamente a corrigir agora.

O mesmo não se pode dizer de Franco de Sá, três anos mais novo do que Junqueira, e cujas primeiras poesias datam de 1853.

Antônio Augusto de Mendonça (1830-1880). — Daquele grupo de poetas e literatos que figuram vivamente no decênio de 1850 a 60 na Bahia, filiados na fase romântica estudada agora, Augusto de Mendonça, com ser dos mais meritórios, foi o mais infeliz na luta pela glória.

Junqueira Freire morrera a propósito e cresceu facilmente em fama ; Agrário teve a vantagem de cultivar um gênero pouco explorado no Brasil — o dramático, e fácil lhe foi obter nomeada, tendo também falecido em boa hora; Moniz Barreto deixou filhos que lhe ficaram apregoando o nome. Só o pobre Mendonça é hoje ainda um ilustre desconhecido.

Além de tudo, seus companheiros de lutas de 1850 foram-se todos, ele deixou-se ficar até 1880, e teve assim de assistir ao advento da chamada escola condoreira, que veio substituir a sua própria escola.

Castro Alves, seu patrício, cresceu rapidamente em fama, tornou-se imensamente conhecido, e o infeliz Mendonça viveu ainda dez anos mergulhado no esquecimento.

E, todavia, essa indiferença do público é uma grande injustiça. Foi um lírico suave, doce, melancólico, duma melancolia terna e plácida.

O poeta passou por algumas inclemências na vida; ficou órfão ainda na puerícia, tendo ao seu cargo pesada família. Não pôde seguir um curso acadêmico e teve de ser empregado público de província com pequenos vencimentos. Esta posição esquerda e inferior ao seu merecimento infiltrou-lhe n’aima perpétua tristeza. Mas era uma tristeza resignada e contida. /

Tinha muita facilidade de escrever, muita doçura e música no verso; muita nitidez, muita naturalidade na linguagem. É uma poesia apaziguada, boa companheira para aplacar grandes dores.

Período de Transformação Romântica, Poesia, 1830-1870 1035

O poeta não aparece esguedelhado a inchar as bochechas e a> gritar para que se ouça e se veja que ele ali está a declamar cóleras e entusiasmos; não se põe a berrar palavrões, a rufar tambores, a badalar bombos numa pancadaria feroz.

Não, ele chega de manso e nos diz algumas frases ao ouvido macia e sossegadamente. Passa e vai-se.

Castro Alves o comparava ironicamente ao caboclinho de nossas matas. Pode-se aceitar a denominação; pior seria se o poeta fosse uma arara ou maracanã gritadeira.

Mendonça foi um poeta de índole lamartiniana; creio poder compará-lo a Vítor de Laprade; não é a grande poesia; porém é ainda uma alta poesia.

É óbvio que eu podia desenvolver o retrato do poeta; a economia deste livro obriga-me a deter-me e a não passar desses rápidos traços.

O talentoso baiano deixou muitas composições esparsas; deixou também em livro um volume de suas Poesias (1860), e um poema, A Messalina (1866).

A publicação de suas obras torna-se necessária para sua completa reabilitação.

Numa só poesia, A Saudade do Sepulcro, vai o leitor ter um belo espécimen dos sentimentos, do estilo, do talento do poeta.

É isto:

"Sobre um sepulcro isolado Roxa saudade vi eu; Solitária vicejava No chão frio em que nasceu; Nunca saudade tão triste Em sonhos me apareceu!…

Nunca!… Senti então pelo rosto Turva lágrima sentida

Deslizar…

Foi à hora do sol-posto… Hora de muito cismar! Quando o arcanjo da poesia Harmoniza o céu com a terra Na mesma melancolia… Na mesma doce tristeza, Que às vezes nos faz chorar, E chorar a natureza Ao lento morrer do dia!

1036 Sílvio Romero — História da Literatura Brasileira

Cheguei… beijei a saudade Que assim, tão erma, encontrei; Com ela simpatizei; Porque — da minha orfandade Neste deserto profundo, Pobre enjeitado do mundo, Só com saudades me achei!

Estranha, viva agonia Ressumbrava-lhe na cor; Na muda expressão dizia Tantas penas, tanta dor, Que só no reino da morte Duma lágrima podia Ter nascido aquela flor…

A saudade! Emblema de muito amor!…

Poeta às dores afeito, Tentei debalde arrancá-la, Para no fundo do peito, Como um tesouro, plantá-la. Debalde! porque a infeliz Tinha encravada, segura No fundo da sepultura A desgraçada raiz!

Ah! quem soubera o destino Daquela flor merencória! Quem a sua ignota história Porventura escutará? Quem?… se a flor misteriosa, No seu recinto funéreo, Muda como o cemitério Para todos sempre está?

Quem sabe!… talvez que à triste, Que no sepulcro descansa, Dentre as sombras do futuro Lhe sorria uma esperança… Talvez!…

Quem adivinha se a brisa, Que docemente a embalança, Não lhe vai de amor falar? Se o sol.. . se o sol ao deixá-la, Não lhe deixa em despedida Num raio um gérmen de vida, Saúdo8o de a não levar?

Se ardente, extremoso afeto, Se estremecida paixão Que já no peito não cabe,

I

Período de Transformação Romântica, Poesia, 1830-1870 1037

Por indizível feitiço, Não lhe dá alento e viço Co zangue no coração?

Quem sabe!…

Sei que a mísera saudade, Quando no feio horizonte Feia surge a tempestade; E da cúpula do céu Nem sol, nem tímida estrela, Através do espesso véu,

Despede um raio de luz; Sei que a mísera saudade, Porque o vento a não desfolhe, Nem as pétalas lhe açoite, Encosta-se — ou dia ou noite — Nos braços de sua cruz."

Não há aí as agitações, os estertores dos desesperados ; o poeta encarava a vida melancolicamente, mas havia resignação em sua tristeza.

Ele foi também um hábil repentista da escola de Moniz Barreto e Laurindo Rabelo. A posteridade acabará por fazer justiça a este escritor.

Antônio Joaquim Franco de Sá (1836-1856). — Era filho do Maranhão e estudou Direito no Recife.

Foi contemporâneo de Pedro de Calasãs, Gentil Homem, Trajano Galvão, Dias Carneiro, Franklin Dória, Costa Ribeiro, Gomes de Castro, Marques Rodrigues e outros belos talentos que figuraram em Pernambuco no decénio de 1850 a 60. Faleceu aos vinte anos.

Sua poesia tem duas notas capitais: é pessoal, recordativa e íntima, ou é humorística. Esta nota é em especial referente a episódios da vida estudantesca do Norte.

As peças principais do gênero são: Meus Namoros de Olinda, Amor e Namoro, As Vizinhas, A Sabatina, A Esbelta. As outras enchem o resto do volume de versos do jovem maranhense.

O estilo é simples, a metrificação sonora e correta, os pensamentos não são vulgares; bem pelo contrário, tudo indica que o país perdeu em Franco de Sá um bom e mavioso poeta.

De seu livro, publicado por seu irmão, destacarei como apta a exemplificar o seu estilo — a poesia — Ao Dia 7 de Setembro.

1038 Sílvio Romero — História da Literatura Brasileira

Era em 1855; o poeta saudou assim o aniversário da independência brasileira:

"Ao sopro dos ventos, ao som das cascatas, Em leito pomposo, formado por Deus, Um índio gigante, nascido nas matas, Dormia, cercado de mil pigmeus.

De zonas ardentes e frígidas zonas O vasto colosso se estende através; Repousa-lhe a fronte no imenso Amazonas, E as águas do Prata murmuram-lhe aos pés.

Sofria há três 8éc’los cruel pesadelo, E a turba de insetos, pairada ao redor, Lançara-lhe ferros, sorrindo-se ao vê-lo Cos olhos fechados e o corpo em suor.

E as aves que gemem, as feras que rugem, Os ventos que zunem, os próprios fuzis Não quebram-lhe o sono! Criaram ferrugem Nos pulsos tão nobres cadeias tão vis!

Sorriam-se eles!… Sem verem que o sono Somente o retinha no mesmo lugar, Bem como o menino reputa-se dono Da onça dormida que o pode tragar.

Sorriam-se eles! Sem verem que aos poucos Nas veias o tangue fervia afinal; No orgulho embuçados, não viam, que loucos! Que a hora batia solene e fatal.

Mas eis de repente surgiu no horizonte Qual surge nas trevas brilhante farol, Um dia de glórias, os vales e o monte Enchendo de vida, banhando de sol!

Romperam mil cantos, cessaram queixumes, Do trino das aves encheu-se o vergel, E o prado de flores, e a flor de perfumes, E os ramos de frutos, e os frutos de mel!

Dolago e do rio, do tigre e da pomba, Dos ventos nos troncos, da briaOyna flor, Da terra, dos ares, do mar qtce ribomba, Um hino de bênção se eleva ao Senhor!

Aos férvidos raios do sol fulgurante, Do hino inefável ao mágico som, Do longo letargo desperta o gigante, Que excelso destino tivera por dom.

Período de Transformação Romântica, Poesia, 1830-1870 1039

Desperta… e dos membros sacode as cadeias. Qual rija borrasca das nuvens o véu, Qual águia das asas sacode as areias, Abrindo-as velozes nos campos do céu.

E à turba insensata, que ao vê-lo se assombra Atira dos lábios sorriso de dó, Em vez de vingança prestando-lhe sombra, Que o sol desse dia tomara-os em pó!

Desde esse momento, saindo da selva, As terras demanda, que um dia verá; Se acaso o caminho nem sempre é de relva, Que importa, diz ele, se avanço pra lá?

Se às vezes duvida, se treme, se cansa, Ao sol de setembro renasce outra vez Nos membros a força, no peito a esperança, E a marcha prossegue com mais rapidez.

E vendo esse dia, que tanto memora,

Por sobre o horizonte de novo surgir,

Cum brado espontâneo saudamos-lhe a aurora,

Honrando o passado, com fé no porvir.

Oh! hoje que raia tão límpida e calma, Nos filhos do índio, saudemo-la nós, Com rosas na fronte, com júbilo n’aima, E o riso nos lábios e o canto na voz!

Saudemo-la todos! Tais dias são arcos Na senda que ao templo da glória conduz, Nas eras passadas, são fúlgidos marcos, Que as trevas separam de enchentes de luz!

Por ela animados, com força dobrada À liça da pátria voemos também, Se espinho e poeira tivermos na estrada, Mais de uma coroa teremos além!

Corramos, lutemos, cingindo de louros A fronte que bate de ardor juvenil! Um nome leguemos aos nossos vindouros, Cubramos de glórias o nosso Brasil!

Unidos reguemos de nossos suores A planta, legado de avós e de pais, Seus pomos dourados, no gosto melhores, Os ramos vergados carregue’ inda mais!

E como o guerreiro, depois da vitória, No ganho estandarte repousa por fim; Depois das fadigas, envoltos na glória, Soldados da pátria, durmamos assim!

Virão nossos filhos, colhendo esses pomos Que tornem maduros benéficos sóis, Depor-nos coroas, bem como as depomos Na imagem querida dos nossos heróis.

E após venha a história, que os feitos estampa, Os nossos narrando com traços fiéis, E honroso epitáfio nos grave na campa, Cercando-a de flores e novos lauréis."

Nesse tempo ainda havia entusiasmo geral pela emancipação nacional; havia toda a confiança em virmos a ser uma nação forte e próspera.

Ainda não se tinha inventado a teoria jeitosa, que se vai agora insinuando, de ser em tudo conveniente submeter este país à influência do chamado adiantamento europeu.

Poucos hão de calcular o que vai de insídia nesta calamitosa insinuação… Bendito seja o nome de Franco de Sá, o nome de um patriota.

É urgente passar adiante.

Voltemos, ó leitor, ao Sul, ao Rio de Janeiro, a ouvir os carmes de Teixeira de Melo e Casimiro de Abreu. São dous patrícios, dous amigos, que entram perfeitamente na intuição geral da época.

Depois iremos escutar a ronda aérea dos cantares nortistas, de que Junqueira Freire, Augusto de Mendonça e Franco de Sá já nos deixaram nos ouvidos alguns sons intensos e expressivos.

José Alexandre Teixeira de Melo (1833-1907). — Eis aqui um poeta de grande merecimento, inteiramente esquecido.

Eu mesmo, que estudo com interesse e carinho tudo que se refere ao Brasil, conhecia-o só vagamente de nome; nunca o havia lido atentamente!… E assim terão feito muitos outros.

Para que ler as poesias de Teixeira de Melo, os dramas de Agrário, os romances de Alencar, se ali estão as drogas de Ohnet, de Montepin, de Du Boisgobey, que posso ingerir, arrotar depois as essências de Paris, e passar por homem de tom e adiantado? y

É a regra geral: uma curiosidade inquieta e malsaine pelo que vem de fora e completa ignorância do que se produz na pátria…

18. As Sombras e Sonhos de Teixeira de Melo s&o de 1858; os Enlevos de Franklin Dória e as Primaveras de Casimiro de Abreu s&o de 1859.

Entretanto,- Teixeira de Melo foi um lirista de primeira ordem no Brasil, sem ter quem o exceda em Portugal na fase correspondente ao seu desenvolvimento.

O poeta, de certo tempo em diante, abandonou quase inteiramente a sua arte divina.

Empregado superior da Biblioteca Nacional, dedicou-se com força ao estudo da história pátria.

Nesta esfera são dignos de nota o livro que publicou sob o título de Efemérides Nacionais e a Memória consagrada à questão das Missões, secular pendência entre o Brasil e a República Argentina, só recentemente resolvida.

Também são dignos de apreço diversos estudos seus publicados nos Anais da Biblioteca Nacional e na Gazeta Literária.

Mas é do poeta que devo especialmente falar, e por este lado, ele está nas Sombras e Sonhos e nos Miosótis, especialmente no primeiro destes livros.

Teixeira de Melo teve por amigos e companheiros literários Casimiro de Abreu e o Dr. Luís Delfino dos Santos, que o ofuscaram inteiramente sem possuir merecimento superior ao seu.

Casimiro, primando pela simplicidade, que às vezes chegava ao chatismo, morreu pouco depois de publicar as Primaveras, e viu-se repentinamente célebre.

Luís Delfino dos Santos, primando pela elevação que descamba muitas vezes no exagero, no gongorismo esdrúxulo, fez ruidosa carreira médica, juntou cabedais e aguardou a vinda de um momento propício para alçar-se ao posto de pontífice máximo de um grupo de sectários.

Teixeira de Melo, que tem a simplicidade sem a cha-teza e a elevação sem a bombasticidade, não teve nenhuma dessas consagrações entusiásticas: ainda hoje ele é um obscuro.

Eu sou o primeiro a colocá-lo em seu lugar; não que o seu merecimento fosse jamais contestado; nem negado nem afirmado; simplesmente despercebido, como non avenu.

As Sombras e Sonhos são um livro notável e superior aos seus companheiros de datas Primaveras e Enlevos.16

Estes três livros, a que se devem juntar as Primeiras Páginas de Pedro de Calasãs, as Flores Silvestres de Bittencourt Sampaio e as Flores e Frutos de Bruno Seabra,

podem bem servir de termômetro para aquilatar-se a temperatura poética dos anos que vão de 1855 a 62 no Brasil.10

O movimento continuou no mesmo sentido pelos anos de 62 a 64 com as publicações de Fagundes Varela, que inaugurou o que eu chamei o naturalismo báquico, que serviu de passagem para a escola condoreira.20

O livro de Teixeira de Melo é exuberante de seiva, como são tantos outros do animado e luxuriante lirismo brasileiro.

O que individualiza e distingue as feições da poesia deste autor é certa singularidade, certa elevação graciosa e delicada das frases, certa garridice das imagens ; alguma cousa que lembra Vítor Hugo nos bons tempos, quando ele não tinha ainda gongorismos, a fase em que escreveu Sara la Baigneuse e outras jóias desse quilate.

Indicarei ligeiros trechos aptos a documentarem o que digo. Vejam:

"Tinhas então no olhar a morbideza Da infância que pressente a mocidade; Tinhas na fronte o selo da beleza E n’aima a sombra vaga da saudade.

Amemos como à luz as mariposas,

Como a flor ama o orvalho que a remoça!

Amar não é topar pela existência,

Como a topaste, um’alma irmã da nossa?

O amor é a vida na mulher que um dia Ao passar pelo espelho achou-se linda! Ama e vive, mulher! quando morreres… Quando morrermos… viverás ainda!"

Ou isto que é melhor ainda ; o poeta fala de um mundo à parte:

"Onde haja musgo em que teça Um ninho em que eu adormeça Com meus amores implumes; Onde não vinguem espinhos; Onde o sol entre carinhos Viva de azul e perfumes!

19. As Primeiras Páginas de Calas&s s&o de 1855, as Flores Silvestres de Sampalo, de 1860; as Flores e Frutos de Seabra, de 1862.

20. Veja-se — A Literatura Brasileira e a Critica Moderna, pág. 185.

Procurei no mundo todo Um -ponto, pér’la no lodo, Onde o amor fosse verdade! Onde a vida fosse um lago! Nosso baixel… um afago! Nossa brisa… a mocidade!"

É o lirismo alado do XIX século. Eis ainda superior:

"A cada riso dela eu via o mundo Sumir-se a nossos pés e o céu se abrir! Então eu m’esquecia de mim mesmo, Do mundo que a esperava e do porvir!

A tarde era uma aurora mais risonha, A insónia minha eterna companheira, Sílfide o tempo, as ilusões um berço Em que pensei dormir a vida inteira…"

Ou este brado:

"Meu peito o abismo, teu amor o raio, Meus lábios harpa em que passou teu nome, Tudo mentiu-me! As emoções se foram Como as neblinas que a manhã consome."

Ou ainda este:

"Quanta ventura a trescalar em tudo! Quanto silêncio a perfumar a selva! E quanto sol a enamorar as flores E quanta flor a enamorar a relva!"

Ou finalmente estas quadras de uma belíssima poesia à Lua:

"Quando sacodes sobre a noite as asas Lágrimas caem, garça que não torna, Como o sereno que a descuido a aurora Por sobre as flores — toda riso — entorna!

Tu passas nua, escabelada e muda, Levada em braços de milhões de anjinhos, E vais, quem sabe? te banhar nos lagos Em que lavam-se o sol e os passarinhos…

Eu te vejo passar, tão perto às vezes,

No meu deserto, fugitiva embora!

Tu és o cisne que em meus cantos canta;

Tu és a amante que em meus prantos chora!"

São fragmentos citados a esmo; outros mais belos existem no livro, que deve ser lido com a maior atenção. É um bom companheiro para horas de desalento.

Outra qualidade particular das poesias de Teixeira de Melo é a completa correção da língua e da forma métrica. O poeta é impecável ; é um primoroso romântico e um verdadeiro precursor dos parnasianos modernos.

Pode-se só por ele aquilatar o progresso da poesia brasileira em três séculos de vida.

No regímen clássico a língua não tinha essa elasticidade, essa flexibilidade, esse doce torneio, essa capacidade caprichosa e ondulante de ostentar-se em belas frases.

Reparem-se os seguintes decassílabos, ou versos chamados de Gregório de Matos ; note-se a doçura, a mobilidade da expressão.

No velho poeta baiano do século XVII esse metro, por ele introduzido na língua, era ainda áspero e duro. O vocabulário era então parco; as palavras obrigatórias apareciam sempre.

A poesia tinha um pequeno léxico de convenção que não deixava jamais.

Leiam estes versos e reparem bem que estão a ouvir um lirista de um tempo cheio de exigências:

"Tanto orvalho por noites d’encanto Molha as plantas abertas em flor! E meus lábios molhou-mos o pranto Sempre, sempre que abriu-mos amor.

Tanto sol nestas veigas tranqüilas Ergue as flores — já mortas talvez! Requeimas8e-me embora as pupilas Eu quisera, nascendo outra vez.

Requeimá-la8 de novo!… Bendito Seja aquele que à lívida flor Abre em jorros o sol, e ao proscrito Abre o sol — sempre puro — do amor!

Venha um beijo de fogo aquecer-me: Tenho n’aima do inverno os rigores! Deixa à vida de novo prender-me A esperar pelo sol — como as flores.

Sim! minh’alma pertence à esperança Como à terra meu corpoaue é seu. Por um fio, mulher, dessa trança Se soubesses que amor te dou eu!

Nunca a língua de fogo dum beijo De meus lábios queimou-me os palores! A teus pés, anjo meu, eu desejo De perfumes viver como as flores.

Tens perfumes na voz que embriaga:

Como os anjos tu cantas falando,

E doa seios na túmida vaga

Tens perfumes que alentam matando…

Tens perfumes na boca mimosa! Um azul beija-flor do vergel Já tomou-a por folhas de rosa E uma abelha por favos de mel…

Por amar já sofri tanto, tanto! Faz-me um dia esquecer que sofri. Num requebro do olhar — por encanto Como Deus — cria um mundo pra til

Abre as asas da tua beleza Sobre o abismo do meu coração! No silêncio da virgem devesa. Que me esconde, serei teu irmão.

Nós teremos por tenda as campinas Em que a relva se veste de flor, Estas névoas por alvas cortinas, Estes ermos por leito de amor!

Vai, que eu sei, tanto amor pelo mundo E tu deixa8-me, virgem, sozinho! Dá-me um riso, só um, mas tão fundo Que me faça encurtar o .caminho….

Que te custa fingir um sorriso — Tênue gota no mar da esperança! Dá-me amor, dá-me vida… preciso De viver… Que te custa, criança?

Vem tu ser meu condão de ventura! Abre os lábios e ctó-me a existência! Como o oiro, que ao fogo se apura, Regenere-me a tua inocência.

É um mundo que tiras do nada

E onde podes mandar — como Deus…

Solta a voz e verás n’alvorada

Que rebenta a um sorriso dos teus…"

Eu não sou clássico, e nem romântico, e nem parnasiano; não estou com a velha, nem com a nova geração…

quero estar com a novíssima, com aquela que ainda há de vir. Por cima e além das escolas atuais vislumbro alguma cousa de superior que há de ser a poesia do tempo futuro.

Quaisquer, porém, que venham a ser as conquistas e os progressos do lirismo do porvir, ninguém contestará que esses versos serão sempre e sempre um belo espécimen de uma poesia sonora, perfumosa, irisada e macia como as penas sedosas de matizados pássaros.

Foi necessária a longa série de seis gerações de talentos poéticos, todos empenhados em aperfeiçoar o instrumento de seus cantos, para a arte chegar a esse apuro, verdadeiramente precursor do parnasianismo recente. De igual requinte é a peça intitulada Fantasia:

"Náiade viva da legenda antiga, Deixa o seio do rio em que te encantas! Dá-me um riso d’amor, gota do orvalho Que em noites de verão desperta as plantas.

Vem às horas dos pálidos vampiros Sobre as asas em pó das borboletas! Algum silfo talvez te espere em cuidos. Sobre os seios azuis das violetas!

Não vês a natureza a sono solto Nos braços do silêncio, imóvel, fria? A alma vagando, estrela doutros mundos, Pelos campos da loira fantasia?

E os ventos que adormecem como a noite Nos cabelos das árvores do vai? Nem soluçam gemidos que te assustem Esses mortos que dormem no ervaçal.

Desce às horas do amor e dos mistérios! Poisa o pé sem temor… é chão de flores! Quando os vivos ressonam como os mortos, Vem banhar-te comigo, em mar de amores!

Aos clarões do luar, que despertou-te, Ouve-se a estrela a cintilar dormindo! Ouve-se a brisa a desfolhar saudades! Ouve-se a folha a suspirar caindo!

Vem, flor do rio, perfumada em risos; Vem, flor dos bosques, orvalhada em pranto! Mas se inda assim o coração te treme, Dessas asas que tens faze o teu manto.

21. Vide Ed. Scherer, Mélanges d’Histoire Religieuse, artlgo sobre Hegel.

Dá-me um hino dos teus na voz magoada; Dá-me um canto do céu na voz tristinha! Já que o mundo dos vivos me abandona Vem, princesa do vai, vem tu ser minha!

Vem teus sonhos de amor que a alma embalsama Desfolhar sobre mim e o meu futuro! O mundo não te espreita!… e só da noite Brilham olhos de Deus no manto escuro.

Mas… se a aurora acordar teu pai que dorme?! Se a brisa despertar no campo as flores?! Vem sempre! um anjo deve amar mais cedo, Mais cedo enlanguescer, morrer de amores!"

Teixeira de Melo é o que na linguagem escolástica da crítica se chama um idealista.

Por aí ainda existe muita gente que supõe serem idealismo e realismo dous sistemas, duas teorias, duas doutrinas opostas da arte, quando apenas, na frase felicíssima de Edmond Scherer, são os dous pólos entre os quais se tem movido em todos os tempos toda a poesia, toda a arte humana em geral.

Esta correlação do ideal e do real, apesar das extravagâncias dos críticos, é uma verdade que brota de toda a história da inteligência do homem.

Há quem baralhe e confunda as noções que parece saírem daquelas palavras, aplicadas às produções artísticas e literárias.

Os equívocos aglomeram-se e as tentações infundadas se apresentam; a quem conhecer, porém, um pouco o espírito humano e couber a certeza do que ele vale nos tempos modernos as vistas parciais não cegarão.

A idéia mais persistente, que uma das mais robustas edificações filosóficas do XIX século — a de Hegel — trouxe ao mundo, foi a do caráter relativo da verdade.

Para tal achado, à primeira vista tão simples, houve necessidade de todo o gênio do ilustre alemão, no intuito de determiná-lo, e de toda a ciência e habilidade de Comte e de Spencer a fim de o divulgar.21

Ainda bem: o princípio é geral e sua aplicação deve ser completa; as idéias absolutas sobre poesia são uma herança de velha e abstrusa metafísica e absurdas como uma tese de astrologia. Doravante a pretensão de governo único e despótico, por parte de um modo de ver parcial,

é um falseamento de doutrinas, um quadro incompleto do espírito do tempo.

Mas interrogue-se a história. Lá também, lá na Antiguidade, quando a consciência humana serena e imperturbável, porque a vida era ainda pouco complicada, modesta e tímida, porque o coração era ainda pouco exigente; quando a consciência humana, diante de todos os fundos problemas, se mostrava contente com a razão das cousas, vinha de quando em vez uma réstia de sombra empalidecer-lhe o brilho.

Abri as obras dos grandes gênios, os mais arredados de nós que quiserdes, desses daquele tempo em que não existiam ainda clássicos, românticos, realistas, parnasianos, impassíveis, impressionistas e tutti quanti; abri, por exemplo, o livro de Jó.

O espírito do sublime sofredor é açoitado por todas as flagelações que lhe atira o implacável habitador das trevas. Aí Satã é o destino; a grande luta da humanidade está travada.22

Abri Ésquilo: todos conhecem essa poesia travosa de suplícios, embriagada de sublime padecer. Aí Prometeu é o gênio preso, e todavia conspirado…

Abri Homero, abri Sófocles, abri Virgílio, abri Lucrécio. Onde haverá mais ideal, isto é, mais transfigurações do homem e da natureza, e, ao mesmo tempo, mais realidade, isto é, mais vida, mais luta, mais tormento, mais dor?

E, se for ponderado que entre o homem de hoje e o de então há todo o vasto labor de sonhos celestes, de desapego da vida, de ânsias para Deus, que enche uma extensa secção da história, a Idade Média, e constitui o caráter de muitos séculos, a parcialidade sistemática de todo se aniquila.

Nós outros os de hoje somos os filhos de uma civilização complexa.23

Todas as expansões reais e sentidas do homem antigo, sobremodo do grego e do romano, entrelaçaram-se a todos os ímpetos para o desconhecido do homem da Idade Média, onde larga parte tiveram os semitas, especialmente judeus e árabes.

A alma moderna é a soma de todas aquelas efusões; o pensamento hodierno agita-se por todos os lados.

22. Vide Ern. Renan, Le Livre de JobKanállse do poema.

23. Vide H. Talne, Philosophie de l’Art en Grèce: o momento.

Na grande literatura correm as ondas de todas as ânsias inefáveis, desde o sagrado entusiasmo pela mulher até a sede estupenda pela eternidade; desde a mimosa expansão pelo espetáculo das flores até o dilacerante desespero pelo céu que atormenta.

Ali há de tudo; o medíocre é que é exclusivo; são as grandes idéias encarnadas na forma brilhante; todos os sonhos como todas as realidades, todos os pesadelos como todos os risos, a dúvida e a crença, a maldição e a prece!… Vejam-se as obras mais perfeitas que resumem o XIX século.

Onde há aí poesia mais sonhadora, mais utópica do que a de Faust, a de Manfredo, a de Ahasvérus? Nessas indomáveis torrentes de impetuoso lirismo os velhos e novos mistérios, as velhas e novas impossibilidades se atestam, e, contudo, onde livros mais humanos, uma poesia em que a exatidão que nos toca seja mais séria e implacável? É o caso de todo Shakespeare.

Mas deixo esta ordem de motivos e toco noutra.

Que entendem por idealismo no terreno da arte? Se fosse a suprema expressão, o mais sublimado grau das concepções humanas, então nada haveria de sério que vedasse os poetas de por ele moldarem suas obras.

Se o julgam sinônimo de extravagâncias, acervo de impossibilidades fantásticas, neste caso tombam em falso, sem a mínima razão.

Mas nenhuma destas explicações é exata; a primeira é apenas uma vaga aspiração metafísica; a outra é evidentemente disparatada.

Nem tanto exagero de um lado e doutro; o ideal é também relativo; não se concebe a priori; depende das idéias que formamos das cousas.

Esta simples verdade mostra bem sua índole e seu valor; é o fundamento mesmo da arte e a história mostra sua constante variação.

Que é o realismo? Se é a velha pretensão de fazer da arte uma fotografia eternamente a retratar cenas do mundo, na pintura não passais da paisagem e na poesia da descrição. E, se o intento é julgar que o mister único da poesia, da arte, da literatura, é reproduzir o que parece certo, real, positivo para as inteligências, neste caso, o critério de cada uma delas é variável, ou, por outra, as idéias diversas de cada um trarão o idealismo, cujo sentido filosófico é assim ainda uma vez determinado.

Mas o realismo deve ser entendido de modo diverso, isto é, como aquilo que a ciência e a experiência forem tirando a limpo, e a conseqüência aqui é que ele é necessário, é uma força que se impõe inevitavelmente.

Idealismo e realismo, portanto, são princípios que não se combatem; unem-se e resguardam-se convenientemente. A poesia e a arte vivem do consórcio de ambos.

Um espírito compreensivo afugenta as idéias apertadas e frágeis e aspira sempre pela harmonia das cousas.

Existem, porém, uns críticos que se nutrem de acanhadas noções e apegam-se ao incompleto com obstinação.

Daí um bom número de juízos desponderados que se vão espalhando em dous sentidos opostos e a completa incapacidade para a compreensão verdadeira da intuição moderna, em literatura e arte.

É esse o motivo dos exageros pró ou contra o realismo hodierno e pró ou contra a concepção filosófica da poesia.

Abrem um livro qualquer e lêem, por exemplo, esta apóstrofe: "Geógrafos da inteligência, marcai sobre a carta do espírito humano neste pólo a ciência, naquele outro a poesia!"24

Tomam demasiado à letra a intimação e condenam uma das mais fecundas idéias da literatura contemporânea: a poesia fundada, ou melhor, a poesia adaptada às novas tendências do espírito humano. Entretanto, as duas cousas se excluem absolutamente quanto ao método e podem harmonizar-se quanto às intuições gerais.

Idêntica é a cegueira que lança o abismo entre idealistas e realistas extremados, aos quais falta uma compreensão total da humanidade e da natureza.

Com este critério e com tais idéias é que se deve julgar o mimoso lirista José Alexandre Teixeira de Melo, em cujas poesias o ideal e o real se irmanam e consorciam admiravelmente.

Casimiro José Marques de Abreu (1837-1860). — Bem diferente do de Teixeira de Melo foi o destino literário de Casimiro de Abreu; não houve jamais entre nós poeta mais lido; tem sido o predileto do belo sexo nacional. E essa notoriedade é bem cabida; o moço fluminense foi um espírito de merecimento.

Em torno de seu nome formou-se logo uma lenda de sofrimentos e outorgaram-lhe a coroa do martírio…

24. Charles Magnin, Causeries et Méditations Littéraires; ed. de 1842.

O poeta, na opinião geral, haveria sido uma pobre vítima de rigores paternos; teria sido atado ao poste do comércio, como a um suplício; teria sido contrariado em sua vocação, maltratado, injuriado, por entregar-se a qualquer leitura; não teria recebido educação alguma literária; teria sido desterrado para Portugal a fim de lhe acabarem ali com as veleidades e recalcitrações em poetar.

Há em tudo isto mais de um exagero e mais de uma ilusão.

O próprio Casimiro de Abreu nos prólogos que pôs em frente das Primaveras, de Camões e o Jau, e no fragmento A Virgem Loura oferece documentos para as lamentações que levantaram à conta de seu martirológio.

Igual intenção revela-se em sua poesia Dores:

"Há dores fundas, agonias lentas, Dramas pungentes que ninguém consola,

Ou suspeita sequer! Mágoas maiores do qúe a dor dum dia, Do que a morte bebida em taça morna

De lábios de mulher!

Doces falas de amor que o vento espalha, Juras sentidas de constância eterna

Quebradas ao nascer; Perfídia e olvido de passados beijos… São dores essas que o tempo cicatriza

Dos anos no volver.

Se a donzela infiel nos rasga as folhas Do livro d’alma, magoado e triste

Suspira o coração; Mas depois outros olhos nos cativam, E loucos vamos em delírios novos

Arder noutra paixão.

Amor é o rio claro das delícias

Que atravessa o deserto, a veiga, o prado,

E o mundo todo o tem! Que importa ao viajor que a sede abrasa, Que quer banhar-se nessas águas claras,

Ser aqui ou além?

A veia corre, a fonte não se estanca,

E as verdes margens não se crestam nunca

Na calma dos verões; Ou quer na primavera, ou quer no inverno, No doce anseio do bulir das ondas

Palpitam corações.

Não! a dor sem cura, a dor que mata, É, moço ainda, perceber na mente

A dúvida a sorrir! É a perda dura dum futuro inteiro E o desfolhar sentido das gentis coroas,

Dos sonhos do porvir!

Ê ver que nos arrancam uma a uma Das asas do talento as penas de ouro,

Que voam para Deus! É ver que nos apagam d’alma as crenças E que profanam o que santo temos

Co riso dos ateus!

É assistir ao desabar tremendo, Num mesmo dia, d’ilusôes douradas,

Tão cândidas de fé! É ver sem dó a vocação torcida Por quem devera dar-lhe alento e vida

E respeitá-la até!

É viver, flor nascida nas montanhas, Para aclimar-se, apertada numa estufa

À falta de ar e luz! É viver, tendo n’aima o desalento, Sem um queixume, a disfarçar as dores

Carregando a cruz!

Oh! ninguém sabe como a dor é funda, Quanto pranto se engole e quanta angústia,

A alma nos desfaz! Horas há em que a voz quase blasfema… E o suicídio nos acena ao longe

Nas longas saturnais!"

Devem-se 1er estas e outras passagens semelhantes cum grano salis.

Não é verdade que o mancebo não sofresse contrarie-dares na vida, dessas contrariedades de menino, de criança, diga-se assim, que intenta seguir um rumo que não é precisamente aquele que a família deseja.

Nos temperamentos excessivamente impressionáveis e doentios, como o de Casimiro, às vezes essas pequenas lutas transformam-se em grandes pugnas e deixam sulcos inapagáveis.

Mas daí a concluir que sua bela infância na Barra de São João, sua estada na poética Friburgo, onde estudou alguns preparatórios, sua residência na esplêndida Rio de Janeiro, onde foi caixeiro estimado, e na histórica Lisboa, onde exerceu igual profissão com a mesma distinção, con-

cluir que tudo isto foi o inferno em vida, me parece um pouco exagerado.

Nem tanto ao mar nem tanto à terra; nem vida de rosas nem tratos inquisitoriais.

É preciso que me compreendam: eu não contesto a sinceridade do poeta quando relata os seus sofrimentos. Creio bem em tudo que nos conta.

Censuro os excessos dos seus panegiristas e procuro diagnosticar-lhe a verdadeira medida e intensidade das dores.

Todo aquele barulho era apenas pela mor parte um desequilíbrio orgânico e subjetivo, estimulado por uma esquisita mania da época.

O poeta foi vítima de sua organização franzina e débil e das tolices e extravagâncias do meio social que o cercava.

É certo que o pai lhe vedou a matrícula numa academia e o atirou ao comércio.

Este fato simplíssimo, e muitas vezes vantajoso, es-candeceu a cabeça do poeta e apareceu-lhe como um suplício intolerável. Daí a exacerbação, a tristeza, o desespero íntimo. Tudo pura subjetividade.

A razão disto? É a seguinte: naquele tempo estávamos na fase agudíssima da sensiblerie nacional; o romanticismo melancolizante imperava sem estorvo algum.

A sociedade dividia-se em dous grandes grupos: os homens práticos e positivos e os poetas e sonhadores.

Os primeiros eram os homens sérios, os outros eram os boêmios, os gênios sedentos d’ideal; aqueles eram os burgueses chatos e estúpidos, na linguagem dos gênios; estes para os seus inimigos não passavam de uns malucos, uns extravagantes nocivos.

O desacordo não podia ser mais completo.

Os tais homens sérios tinham sua profissão de fé e o primeiro artigo dela era a guerra aos terríveis insensatos, os desalmados poetas; o segundo artigo era a propaganda e o endeusamento da ignorância.

Os intitulados gênios tinham seu programa, cujo primeiro artigo era a libação do conhaque e o segundo era a vadiagem.

Havia por certo algumas exceções de um lado e doutro; mas essa era a intuição geral da época.

Literatura e comércio eram duas cousas inconciliáveis; poesia e negócio eram o cão e o gato, viviam em perpétua luta, as duas profissões eram incompatíveis.

Ainda me lembro bem do tempo em que a condição primordial para ser bem aceito no comércio, ser logo bem empregado e ter boa e forte proteção, era ser bem estúpido, ter a cabeça bem fechada às insinuações das letras de fôrma.

Foi isto justamente na época em que para os poetas e literatos a carreira do comércio era a região do prosaísmo duro e insuportável.

Quanta ilusão, quanto despropósito de uma banda e doutra!

Ao pai de Casimiro, burguês ignorante do velho estilo, a idéia do filho querer ser homem de letras, escritor e poeta, afigurava-se um disparate, uma imitação da vadiagem literata do tempo. Ao moço poeta, idealista, sonhador, o comércio surgia na imaginação como a região áspera da morte que lhe vinha crestar todos os devaneios e esperanças. Era a luta entre dois animais bravios e ferozes: o carrancismo e o romanticismo.

Era uma luta em falso, oriunda de uma péssima orientação social.

O pobre poeta especialmente foi vítima de preocupações fantasistas de seu meio, exageradas por seu temperamento mórbido, preocupações que não teve força para combater.

Hoje tudo isto passou; já não achamos tão prosaica a vida mercantil, nem tão poético o doutorismo, muitas vezes inerte e que leva não raro ao completo pauperismo.

Casimiro de Abreu, em sua ingenuidade, supunha ser mais adequado à poesia o viver do homem graduado numa academia qualquer. O poeta desejava talvez formar-se em Direito.

Ora, os nossos bacharéis em Direito, que não se vão meter no comércio ou na lavoura, as duas profissões anti-poéticas dos românticos, ou vão ser advogados, ou magistrados, ou empregados de secretaria, ou professores…

Qual destas carreiras é mais poética do que a do comércio?

Será do advogado a lutar com velhacos de toda a casta, com meirinhos ensebados e escrivães capciosos e grosseiros?

Será a do magistrado a lutar com ladrões, assassinos e relapsos de toda a ordem?

Será a do empregado de secretaria a asinificar-se no meio da papelada do expediente e das importunações dos pretendentes ?

Será a do punhado de professores dos cursos jurídicos e dos cursos secundários a ouvir muitas vezes sandices de rapazes vadios ou estúpidos?

Creio que não. Parece-me que em todo caso antes a carreira mercantil, tão cheia de encantos, especialmente nas lojas e armarinhos elegantes, parada habitual do high-life em mais de uma cidade rica e pretendida mui civilizada…

Em que pese a Casimiro, não creio no prosaísmo do comércio.

Esta nobre profissão e esta ilustre e poderosa classe, um dos mais valentes propulsores do progresso universal, poderá ter os seus ridículos, os seus sestros e emperra-mentos; mas possui em compensação muita vida, muito entusiasmo, ia dizer, muita poesia.

E quantos poetas não a têm seguido e cultivado, sem por isso perder ou sequer enfraquecer o estro!

Foi o caso, entre nós, do grande Fernando Schmid, célebre poeta alemão, conhecido com o pseudônimo de Dranmor.

E para que estas e outras considerações que poderia alegar? O poeta é, o poeta nasce, como diz o povo.

Não é a carreira que, na luta pela existência, no embate das relações sociais, lhe é dado abraçar que o vai fazer poeta. Se tal fora, não teriam aparecido nem Dante, nem Tasso, nem Camões, e menos ainda Shakespeare, verdadeiro homem de negócios.

Casimiro de Abreu é de 1837; seu talento poético desenvolveu-se de 1854 a 60, ano de seu falecimento.

Foi na crise aguda do lamuriar dos românticos.

O poeta, franzino de corpo, predisposto à tuberculose, fez de seu coração um ninho para asilar e aquecer todas as ilusões, cismas, vaporosidades, sonhares irisados e fantasias aladas de seu tempo.

Esta impressionabilidade mórbida, expressa na linguagem e nas formas mais simples do falar português enriquecido, sonorizado, amenizado no Brasil, eis a poesia de Casimiro de Abreu.

A facilidade dos tons, a despretensiosidade da plástica lhe dão todo o valor.

O poeta fala de suas mágoas, de suas ambições, de seus anelos, naquele mesmo tom em que se queixaria à sua mãe das saudades que teve por ela na ausência, ou das dores que sentia em seu débil peito ao borbotar das golfadas de sangue. Ninguém resiste, não há coração que não se abrande.

Doce e miserando moço, queremos chorar contigo as dores que nos contas em tão sonorosa linguagem; dá-nos dos teus suspiros, reparte conosco a tua monodia! É a linguagem de todos.

A poesia aqui é tão íntima, tão pessoal, que dizer mal dela equivaleria a dizer mal do caráter do poeta; e quem seria capaz de deixar de amar um tão delicado e sincero companheiro?

Importa isto absolver completamente a tristeza sistemática da poesia romântica? De forma alguma. A tristeza sistemática e afetada é e será sempre censurável; mas Casimiro foi sincero e escapa às severidades da crítica.

Hoje as cousas estão mudadas; não existem mais tristezas e lamúrias afetadas; agora estamos no período das alegrias, dos entusiasmos fingidos.

Os que principiamos a ler os poetas e escritores há uns quarenta anos atrás ainda encontramos a literatura mergulhada nas trevas da melancolia.

Assisti e tomei parte na reação contra esse estado de preguiça mental.

É preciso, porém, dizer aos de hoje, que já acharam a mutação feita, como era aquele lamuriar literário e que batalhas foi preciso ferir para debelar o inimigo e preparar o atual estado de cousas que eles, os presunçosos de hoje, julgam ser obra sua…

Em 1870 comecei a atacar o adversário, e em 1872, a propósito da poetisa Narcisa Amália, que ainda teimava em choramingar, em fazer de Casimiro de Abreu, menos a sinceridade, escrevi isto:

"Na vida da literatura no século XIX há um quadro mal desenhado, um quadro sombrio, que há de parecer extravagante a futuros apreciadores: é o da tristeza romântica.

"Parece impossível que a uma vivacidade científica séria e despreocupada juntasse o nosso tempo uma expressão artística sonolenta e mórbida. Mas o fato é real e tem a sua justificativa histórica. O que parece a todo

propósito insustentável é a teima impertinente de se querer sempre, hoje como ontem, chorar pela mesma gama, suspirar fingidamente pela mesma clave. É uma inconsiderada porfia que se destina a parecer carunchosa e ridícula ao vindouro observador.

"O papel da tristeza e da alegria na literatura contemporânea é um sintoma bem pouco para contentar. Os poetas lançaram-se precipitadamente além do termo da estância querida do seu ideal: a melancolia deixou de ser um estado mais ou menos passageiro do espírito para tornar-se, extremo despropósito!… o alvo supremo dos sonhadores.

"Como o misticismo alexandrino procurava na destruição a suprema condição para fruir a eterna verdade, o romantismo dos últimos tempos buscava no desespero sentimental a ultima ratio do belo infinito! A doença propagou-se desumana e atrozmente; tornou-se endêmica.

"Em meio do geral desânimo a alegria afogou-se em prantos, velou-se de soluços, sumiu-se, e, quando se ousava mostrar, era forçada e mentida.

"Era o humorismo, essa criação moderna, esse rir desconsolado e factício de uma tristeza falsa, que se supunha incurável. A natureza humana se achava contrafeita; e certamente a história bem estava indicando qual devia ser o ideal do século XIX.

"A alegria pagã, serenidade majestosa, da vida sã da Antiguidade, a agonia dolorosa do espírito ascético medieval, anelo místico do teologismo cristão, tinham passado.

"Exclusivas, na órbita da respectiva evolução, legaram ao tempo da Renascença um espírito dúbio, que, pendendo, já para o sonho e para o céu, já para a realidade e para a terra, se distendeu no período de três séculos até nós.

"No século atual os dous impulsos deviam contrabalançar-se. Mas não foi assim; e viu-se que na sua primeira metade este século pertenceu quase exclusivamente às cismas do transcendentalismo, e só a custo agora vai buscando a direção oposta, já parecendo que se pretende exagerar. O idealismo abstruso e o empirismo grosseiro perderam o sentido das suas lutas. A ciência hodierna pisa um terreno mais sólido em que não se nos deparam as extravagâncias. É o que a história vai fazendo para as produções da humanidade filhas do sentimento e as criações oriundas da inteligência. Umas e outras corresponderam sempre

em todos os tempos aos ímpetos do homem para explicar o enigma do universo.

"As velhas doutrinas poéticas e religiosas de um lado e as metafísicas e científicas de outro, têm um desagravo justo, que deve porém ficar nas páginas da história.

"E é o que não compreendem todos aqueles que ainda hoje lhes querem dar o influxo da vida.

"Os poetas da primeira porção do século excederam-se; a sua tristeza foi vestindo todas as formas possíveis até a de fingida alegria.

"Esta em sua vitalidade exata raramente se denunciava. Tudo indicava uma falsa expansão da vida. Os cismadores enganaram-se. O alvo, o fim, o ideal da arte, repita-se a verdade mil vezes, está em estampar a realidade do homem e da natureza.

"Ora, a existência de ambos não se afirma nem pela alegria nem pela tristeza, que são momentos excepcionais, são horas de anomalia. Quando um dos dous cai em algum dos extremos arranca-nos logo o espanto. ‘Que tarde feia!!’ fala a moça que sente um vago medo diante do céu carregado… ‘Que adivinhas V diz o velho à moçoila, que loucamente gargalha… Ouvimo-lo diariamente. é que a tristeza, bem como a alegria, em sua expressão exagerada, passam pelo coração como rápidos toques de luz ou de sombra que correm sobre o fundo límpido da vida.

"O íntimo desta é a atividade, a luta, o trabalho, cuja fisionomia principal é a sisudeza. E sejamos justos, não é mais consolador, depois de tantas ilusões arrancadas, depois do perpassar áspero das revoluções, mostrar-se a humanidade serena e altiva, séria e desapaixonada?

"Não é mais sublime a poesia que partindo do íntimo de um coração por onde ficaram as impressões do flagício, qual uma onda alva, cristalina, transborda por cima dessas agruras e se vai espraiar além fulgurante, transparente? Mais valente, por certo, é o coração, que além dos dissabores da vida, pode, calando-os, arrojar a ode esplêndida de maravilhas.

"É a poesia impávida, essa suave ambrosia que os eleitos de tempos a tempos vêm dar-nos a saborear.

"Suguemos esses perfumes que são hoje os que mais nos podem aviventar. Depois da revolução política do século XVIII tivemos oXromanticismo plangente por uma aberração; depois da resolução filosófica e religiosa, que vai adiantada, tentemos a poesia humana, sem delíquios,

25. Vide Estudos de Literatura Contemporânea, artigo sobre A Alegria e a Tristeza na Poesia.

sem extravagâncias. Tem ela por condição mostrar-se serena e majestosa, como a vida do homem na virilidade."25

O belo talento de Casimiro de Abreu deixou-se influenciar pela intuição geral de seu tempo.

A poesia sentimental, recordativa, pessoal, íntima, toda eivada de melancolismo, é que ressoa principalmente no seu alaúde.

Os exemplos pululam em todo o livro das Primaveras; é abrir o volume e ler ao acaso. Os dotes principais do poeta são a simplicidade e a espontaneidade da forma aliadas ao calor e à intensidade do sentimento.

É muitas vezes um cantar de fogo disfarçado em volatas doces e sutis como cochichos de brisas e flores; é alguma cousa de doloroso, de veemente, velada em gazas de seda e arminho; sentida como uma punhalada, mas suave e macia como pétalas de odorosos jasmins.

Não quero ir longe; basta-me abrir a primeira página e ler a invocação A***:

"Falo a ti — doce virgem dos meus sonhos, Visão dourada dum cismar tão puro, Que sorrias por noites de vigília Entre as rosas gentis do meu futuro.

Tu m’inspiraste, ó musa do silêncio, Mimosa flor da lânguida saudade! Por ti correu meu estro ardente e louco Nos verdores febris da mocidade.

Tu vinhas pelas horas das tristezas Sobre o meu ombro debruçar-te a medo, A dizer-me baixinho mil cantigas, Como vozes sutis dalgum segredo!

Por ti eu me embarquei, cantando e rindo, — Marinheiro de amor — no batel curvo, Rasgando afouto em hinos d’esperança As ondas verde-azuis dum mar que é turvo.

Por ti corri sedento atrás da glória; Por ti queimei-me cedo em seus fulgores; Queria de harmonia encher-te a vida, Palmas na fronte — no regaço flores!

Tu, que foste a vestal dos sonhos d’ouro, O anjo tutelar dos meus anelos, Estende sobre mim as asas brancas… Desenrola os anéis dos teus cabelos!

Muito gelo, meu Deus, crestou-me as galas! Muito vento do sul varreu-me as flores! Ai de mim — se o relento de teus risos Não molhasse o jardim dos meus amores!

Não t’esqueças de mim! Eu tenho o peito De santas ilusões, de crenças cheio! — Guarda os cantos do louco sertanejo No leito virginal que tens no seio.

Podes ler o meu livro: — adoro a infância, Deixo a esmola na enxerga do mendigo, Creio em Deus, amo a pátria, e em noites lindas Min’alma — aberta em flor — sonha contigo.

Se entre as rosas das minhas — Primaveras — Houver rosas gentis, de espinhos nuas; Se o futuro atirar-me algumas palmas, As palmas do cantor — são todas tuas!"

A poesia chorosa e sentimentalista em Casimiro de Abreu é gostosamente legível.

É que a imaginação travessa do brasileiro sabe ungi-la de graciosidade; é que muitas notas alegres e saborosamente cômicas aparecem para diversificá-la, para diferenciá-la com agrado.

Esta última circunstância não tem sido notada, como se devia, em Casimiro de Abreu; sendo, entretanto, uma das melhores manifestações de seu talento.

O poeta não foi só um sentimentalista, qual se diz geralmente, foi também algumas vezes expansivo e alegre. Esta nota acha-se em Cena íntima, Juramento, Segredos, Quando?

Por ser o poeta muito conhecido quero ser parco em citações.

As peças que reproduzi — Dores e A*** — servem bem para exemplificar o seu estilo na poesia melancólica e na amorosa.

O Juramento é só por si suficiente para mostrar o talento faceto do poeta:

"Tu dizes, ó Mariquinhas, Que não crés nas juras minhas, Que nunca cumpridas são! Mas se eu não te jurei nada, Como hás de tu, estouvada, Saber se eu as cumpro ou não?!

Tu dizes que eu sempre minto, Que protesto o que não sinto, Que todo o poeta é vário, Que é borboleta inconstante; Mas agora, neste instante, Eu vou provar-te o contrário.

Vem cá! — Sentada a meu lado, Com esse rosto adorado, Brilhante de sentimento, Ao colo o braço cingido, Olhar no meu embebido, Escuta o meu juramento.

Espera: — inclina essa fronte… Assim!… — Pareces no monte Alvo lírio debruçado!

 Agora, se em mim te fias, Fica séria, não te rias,

O juramento é sagrado:

‘— Eu juro sobre estas tranças,

E pelas chamas que lanças

Desses teus olhos divinos;

Eu juro, minha inocente,

Embalar-te docemente

Ao som dos mais ternos hinos!

‘Pelas ondas, pelas flores,

Que se estremecem de amores —

Da brisa ao sopro lascivo;

Eu juro, por minha vida,

Deitar-me a teus pés, querida,

Humilde como um cativo!

‘Pelos lírios, pelas rosas, Pelas estrelas formosas Pelo sol que brilha agora

 Eu juro dar-te, Maria, Quarenta beijos por dia, E dez abraços por hora!’

O juramento está feito,

Foi dito coa mão no peito

Apontando ao coração;

E agora — por vida minha,

Tu verás, ó moreninha,

Tu verás se o cumpro ou não!…"26

Não vejo que seja mister desenvolver demasiado a característica deste poeta imensamente conhecido. Basta uma só nota mais.

26. Obras Completas de Casimiro de Abreu, sexta edição, pâg. 206.

Não tinha defeitos? Por certo os tinha, e entre eles o principal é por vezes descambar na vulgaridade até cair na prosa. Isto, porém, é raro.

Se faço esta declaração é no intuito de evitar a transformação deste livro num compêndio de elogios. Meu alvo não é encomiar nem vituperar. Compreender e explicar, eis o fim da crítica; sabe-se hoje.

 

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