O OÁSIS D’ALMA (Lendas Matogrossenses)

O OÁSIS D’ALMA

Era o dia que sucedeu àquela noite tenebrosa, noite feia e de ingrata memória, em que o olvido ao primeiro e maior dos mandamentos produziu na cidade moça um grande cataclismo moral.

Do Baú ao Porto do Mundéu ao Lava-pés, a ação nefasta dos nossos maus hóspedes se estendeu com toda a crueldade de que podem ser capazes os indivíduos que a sede do ouro cegou e corrompeu.

— Morram os pés de chumbo!

Era este o grito que rompia de todos os bairros da cidade, naquela noite em que, os aventureiros, como que esquecendo-se da hospitalidade que recebiam dos matogros-senses, se arvoraram senhores em casa alheia e moviam séria perseguição dentro da cidade, aos portugueses, nossos amados irmãos.

— Morram os pés de chumbo! — Gritavam amotinados, forçando as portas das casas, em Cuiabá; gritavam os arruaceiros em horrorosas e infrenes depredações pelos quatro cantos da cidade.

Ao romper d’alva, ali, pelas bandas do Cai-cai, se viam três cavaleiros, em rigorosa vigilância, com a cabeça levantada, ouvidos atentos. Aguardavam alguém ou algum sinal.

Sem muito tardar, um assobio agudo se fez ouvir. Os cavaleiros se movimentaram, sem saber, contudo, o rumo que deviam seguir.

No mesmo instante, um vulto branco relanceou lá embaixo do cerrado e soltou um outro assobio.

Era um outro cavaleiro que se tinha destacado da companhia daqueles, para examinar certo ponto.

Os três que ali, de outra banda se achavam, cedendo toda a rédea aos seus cavalos, galoparam em direção ao companheiro e, no mesmo instante, saiu de uma moita um quinto cavaleiro que ganhou a todo o galope o rumo do Pari.

— Morra o pé de chumbo!

— É êle!…

— Pára ou morre!

Os perseguidores tendo tomado a toda a brida a direção do perseguido, tinham confiança na força e agilidade dos seus cavalos.

E aquele homem perseguido era um bom português, acusado ao poviléu amotinado de haver enterrado grandes frascos de ouro que possuía, de uma lavra de alguns anos.

Aqueles perversos queriam agarrá-lo para que lhes dissesse o lugar das suas riquezas e depois matá-lo.

Desde as primeiras horas da noite lhe davam busca; encontraram-no já pela terceira vez, mas o seu cavalo, de puro-sangue matogrossense, franzino, mas veloz e forte, quase que voava com êle, quando descoberto.. .

O perseguido parou um instante para ver se avistava os seus perseguidores e julgando ter-se distanciado muito deles, moderou a marcha para que não ficasse extenuado o seu cavalo.

Pouco depois, porém, bateram-lhe perto. Sentiu o bafo cálido das montadas dos seus incansáveis adversários e soltou de novo as rédeas…

Terreno ondulado e pedregoso, aquele. Perseguidores e perseguido, lá iam em sobe-desce, em pega não pega.

O português atravessou uma estrada beradeou uma moita para lhes dar um engano; tomou porém, lá mais adiante, a mesma estrada e descendo por um areal, por baixo de umas árvores, chegou a um pequeno banhado, onde o cavalo parou para beber, apesar do correr das esporas do seu dono.

Quando acabou de beber, já sentia, de novo, o ruído furioso dos cavalos que lhe batiam à retaguarda.

Correu ainda. O clarão auroreal já tingia a barra do céu.

O fugitivo estava a todo o instante sob as vistas dos inimigos e, tendo deixado outra vez aquela estrada, que passava a correr por um pequeno campo, para ganhar de novo o cerrado, deu um encontrão com um dos perseguidores, dando os cavalos grande peitorada, rolando e caindo com a cabeça contra as pedras o perverso.

O perseguido, correndo sempre as esporas ao seu cavalo, ganhou boa distância aos inimigos que, por alguns instantes pararam para reconhecer aquele que havia caído.

O dia tinha raiado. Belo dia de sol, dia de céu azul.

Aquele homem havia caído sem sentidos, mas os seus companheiros que não tinham tempo a perder, deixaram-no lá, pelo cerrado, e seguiram, ainda com mais empenho, ao alcanço do bom homem tirador de ouro que ora corria a toda à brida, ora encurtava as rédeas ao seu cavalo, tal a confiança que tinha em sua ligeireza.

Neste momento, tendo certeza de haver ganho boa distância aos seus inimigos, parou para observar e escutar algum tropel. E o tropel que ouviu estava por perto e parecia que era então de maior número de cavaleiros. E eis que, tendo-se posto de novo a correr, se lhe deparam à frente alguns cavaleiros que vinham do Pari, e amedrontado, julgando serem eles os seus perseguidores, rodou o cavalo para a esquerda, mas, à vista do caraguatazal que aí se enfeixava espesso, intransitável, ia correndo para o outro lado, quando dá frente a frente com os inimigos a quem dando mais uma vez rápido engano, num zigue-zague, passou por entre eles mais que depressa. Atravessou ligeiramente um arvoredo e deu com um caminho, à cuja margem, uma velha cruz de madeira abria os seus misericordiosos braços como que para abraçar o cristão perseguido.

O cavalo parou de repente; estava extenuado de forças; caiu afinal, com o cavaleiro que, graças à sua agilidade, nada sofreu.

Os perseguidores já vinham ainda outra vez perto. O tropel dos seus cavalos já se ouvia perfeitamente e o pobre perseguido, vendo-se completamente perdido, se resignou a morrer, mas morrer abraçado com a cruz.

Aquela cruz de madeira, plantada um dia à beira da estrada, para indicar aos transeuntes que um cristão chamado às contas finais por Deus, entregou seu corpo ali, ao pó de que foi formado, aquela cruz sacrosanta foi o oásis de sua alma quase desesperada pela aflição.

E o homem, abraçado àquela cruz antiga, com o coração desfeito em preces, sentia o orvalho do céu descer em sua pobre alma.

Confiante na proteção da cruz, nenhum medo teve dos seus inimigos que tendo logo chegado, sustaram a corrida.

Estavam quase pisando o cavalo do perseguido e nem este nem o seu dono que se achava a uns dez passos adiante, podiam ver.

Procuraram os rastos do cavalo para verem se havia subido ou descido o caminho, mas os mesmos rastos só vinham até à beira da estrada: não continuavam nem para diante, nem para qualquer dos lados.

Os perversos ficaram admirados, espantados, assombrados. ..

Os cabelos começaram a arrepiar-lhes na cabeça; negro pavor começou a apoderar-se deles e" uma sombra misteriosa começou a errar pelo chão, sombra de homem! As corujas começaram a cantar, os cavalos a espirrar, cheios de certo espanto e os malvados, sem dizer palavra alguma, fugiram como impressionados, aterrorizados, procurando o rumo da cidade.

O homem se viu livre do perigo. A cruz foi o oásis da sua alma; a cruz foi o seu conforto; a cruz, a sua salvação E, ajoelhando-se ao pé dela, recitou muitas orações e cobriu-a de flores. E mais tarde, quando entrou na cidade e ficou de posse, outra vez, das suas riquezas, distribuiu parte delas entre a igreja e os pobres e quando lhe perguntavam o seu nome, respondia: Um devoto da Santa Cruz, porque foi ela, no dia do mal, — o oásis de minh’alma…

Feliciano Galdino: Lendas Matogrossenses. Tipografia Calháo & Filho, Cuiabá, 1919, pp. 79-85.

Fonte: Estórias e Lendas de Goiás e Mato Grosso. Seleção de Regina Lacerda. Desenhos de J. Lanzelotti. Ed. Literat. 1962

 

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