Oliveira Lima
O SR. EDGAR PRESTAGE E O PASSADO DE PORTUGAL
Poucos serão os que no Brasil conheçam o Sr. Edgard Prestage: apesar de haver-se realizado a identidade das instituições, o nosso afastamento intelectual da antiga mãe pátria não tem feito mais do que acentuar-se, mesmo porque tem incontestavelmente baixado entre nós o nível de estudo. Em Portugal, porém, todos os intelectuais o conhecem c estimam como êle o merece.
É que raros têm feito pela cultura portuguesa o que há feito esse advogado e estudioso inglês que o azar das viagens levou a Portugal e que se apaixonou pelo passado sugestivo dessa terra gloriosa, e a ela se prendeu pelos laços do espírito — pois que aos poucos se foi deixando absorver pelos assuntos lusitanos — tanto quanto pelos laços do coração, pois que desposou a filha única e encantadora do grande poeta Gonçalves Crespo e da admirável escritora e perfeita dona que é a Sra. D. Maria Amália Vaz de Carvalho.
Na Universidade de Manchester, em cujo foro trabalhou, Edgar Prestage leciona literatura portuguesa — o que já é uma perfeita raridade no estrangeiro — e dela se ocupa com a mesma competência com que Ticknor tratou da literatura espanhola. Uma conferência sintética ali feita sobre a matéria, c que cu conheço, é certamente um dos mais interessantes, lúcidos e con ceituosos resumos que se pode imaginar.
Juntando o exemplo à palavra, entrou p Sr. Prestage a traduzir algumas jóias da literatura portuguesa — o Suave Milagre do Conde de Arnoso e de Alberto de Oliveira; depois as famosas Cartas de Mariana Alcoforado, inflamado breviário do amor; por fim o Frei Luís de Sousa, que tanto apelo exerce sobre os espíritos estrangeiros pela sua intensidade dramática c pela sobriedade do seu estilo.
Entretanto, com as longas permanências em Lisboa, onde o salão da Sra. Maria Amália Vaz de Carvalho lhe oferecia o ensejo de uma grata convivência com o que de mais escolhido conta a intelectualidade portuguesa, desenvolvia-se-lhe o gosto pelas pesquisas de documentos históricos, e o passado da nação a que se associara pela mente e pelo sentimento acabava por empolgá-lo por completo.
Tornou-se um colaborador do- Arquivo Histórico Português, a publicação que em Portugal corresponde à Revue Historique francesa; foi um dos fundadores e é um dos sócios mais prestantes e mais assíduos da Sociedade Portuguesa de Estudos Históricos, a qual edita igualmente uma revista análoga àquela outra, e vai empreender uma coordenação da bibliografia histórica nacional, com o fundamento necessário de qualquer trabalho de semelhante natureza; e entregou-se mesmo por sua iniciativa a trabalhos de pura documentação, como a transcrição dos registros paroquiais de Lisboa.
Destes acha-se já publicado na íntegra o Registo da freguesia de Santa Cruz do Castelo desde 1536 até 1628. Transplantou-se assim para Portugal um pouco dos processos britânicos seguidos pela Harleian Society c pela Parish Register Society, que ambas, bem como outras do mesmo gênero, têm feito imprimir tais registos que podem ocasionalmente ministrar dados importantes para a História.
A bibliografia inglesa já conta mais de 600 desses livros dados à luz da publicidade. Condados há onde funcionam associações de assinantes que custeiam as despesas de impressão dos registos das suas freguesias, e o genealogista Crisp, por sua vez, tem mandado imprimir à própria custa 38 desses volumes.
Santa Cruz do Castelo, coração de Lisboa como lhe chama o Sr. Prcstage, foi fundada no reinado de D. Afonso Henriques logo depois da conquista de Lisboa, c encerrava no seu âmbito o Castelo de São Jorge, assim denominado por D. João I sob a influência inglesa que fêz do São Jorge o padroeiro do reino, o paço real da Alcaçova, residência lisboeta de todos os monarcas até D. Sebastião, e a Torre do Tombo, que serviu de arquivo público até o terremoto de 1755, em que ficaram destruídos muitos dos cartórios paroquiais de Lisboa. A própria Igreja de Santa Cruz ocupa, segundo a tradição, o lugar da mesquita muçulmana.
Para avaliar a importância documental da mencionada publicação, basta dizer que o registro de Santa Cruz fornece indicações desconhecidas sobre as famílias de Gil Vicente e de Damião de Goes, presta informações minuciosas sobre costumes e demografia e fornece dados copiosos para a reconstituição da formação social do tempo, da moralidade dos costumes, da história da peste grande de 1569-70 que vitimou metade da população, etc. Em 1545 era pároco Pero Sardinha que pouco depois foi o primeiro bispo do Brasil.
Este gosto adquirido pelas pesquisas documentais combinan-do-se com a faculdade de crítica literária exercida através de uma educação intelectual estrangeira sobre os vultos da literatura nacional portuguesa, deu em resultado o último trabalho do escritor que hoje se pode bem denominar anglo-luso, pois que alcançou conhecer e manejar a língua vernácula com correção notável mesmo para um filho da terra.
Esse trabalho, que acaba de ser publicado por ordem da Academia das Ciências de Lisboa e que forma um grosso volume in-octavo de 614 páginas, versa sobre a individualidade de D. Francisco Manuel de Melo, certamente uma das mais impressivas do Portugal do século XVII — guerreiro, poeta, historiador, diplomata, humorista e moralista, tudo isto com muita arte e muito talento, mesmo que o lado ético deixe a desejar. Canovas dei Castillo, que cia em demasia espanhol para gostar de D. Francisco Manuel, presta homenagem ao seu valor intelectual — grande como escritor, diz dele, medianisimo sujeto en Io demás.
É curioso que individualidade tão eminente nas letras senão na história, onde seu papel foi secundário, e que na Espanha é igualmente considerado autor de nota, porque escrevia tão fluente e graciosamente em castelhano como em português, versejando ou prosando — do que dá testemunho, entre outros trabalhos, a sua clássica História da Guerra da Catalunha — andasse tão imperfeitamente estudada em Portugal, tanto pelo que diz respeito aos sucessos da sua vida romanesca como à apreciação do seu valor de poeta, estilista e filósofo.
A consciência saxónica do Sr. Prestagc não lhe permitiu estender-se sobre este valor literário sem haver bem esclarecido a biografia do escritor, donde resulta uma parte documental bastante extensa e abundantemente citada, que prejudicaria ligeiramente o efeito da parte propriamente literária se não fosse tão nova, tão cativante e tão indispensável.
Nem a grande cópia das transcrições e das provas, trazendo à baila uma infinidade de pormenores interessantes para o conhecimento da vida de D. Francisco Manuel c da sua época, exclui porém considerações de ordem filosófica sobre os sucessos ocorridos em tão variadas regiões quanto Portugal, Castela, Catalunha, Flandres, Inglaterra e Brasil, nem dispensa descrições pitorescas na sua brevidade, como a de Madri do tempo de Felipe IV e do Conde-Duque. A vida aventurosa do militar polígrafo traz em conseqüência uma enfiada de projeções históricas feitas com muita fidelidade, o que quer dizer com probidade e com muita discrição, o que quer dizer com gosto.
Londres, julho de 1914
Fonte: Oliveira Lima – Obra Seleta – Conselho Federal de Cultura, 1971.
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