Os restos do naufrágio – (Pinheiro Chagas)

Os restos do
naufrágio

Nas praias da Bretanha vivia um pescador com a
mulher e um filho. A idade já lhe quebrara um pouco as forças, mas ain­da
lutava com o mar no seu frágil barquinho, a que pusera um nome audacioso: Avante!

Uma tarde em que o pescador, tendo acabado de
jantar, fu­mava o seu cachimbo à porta da choupana, contemplando
o marmide se balouçava o bote amarrado aos cais, e que
principiava a picar-se[1]) com as zargunchadas[2])
do vento, viu vir ao longe, muito ao longe, um navio de velas brancas, enquanto
no céu um ponto escuro[3]) anunciava borrasca iminente[4]).
O pescador me­neou a cabeça murmurando: “Vão passar um
bocadinho amargo os mareantes daquela embarcação.”

O temporal veio: porém ainda*mais depressa do
que êle pre­vira. Num momento o mar se levantou em
vagalhões furiosos, e açoitou com o látego de espuma, as penedias da costa.

O vento soprava com violência. O pescador
seguiu, com o cachimbo apertado entre os dentes, o caminhar do navio, que lutava
visivelmente com dificuldade, e que desaparecia de instante a instante no doido
turbilhão que enchia o horizonte dessas alvuras de escuma, mil vêzes mais
sinistras do que as mais densas ondas. A mulher, que o conhecia bem, olhava
inquieta para o rosto levemente franzido do pescador.

A tempestade redobrava de violência, e entre
todos os clamo­res sinistros da procela ouviu-se vagamente
um tiro isolado, de­pois outro e outro. O navio pedia socorro!

As companhas5)
dos barcos de pesca tinham-se unido na praia a ver o mar, e seguir de longe,
com ansiedade, o drama que lá no horizonte se estava representando. Quando se
ouviram os

tiros,
muitos aos mais valentes empalideceram. U mar estava me­donho. Mas êles, os
desgraçados, haviam de morrer
ali, quase à vista da terra,
sem que lhes estendessem a mão, sem que pro­curassem
salvá-los? O pescador não resistiu à voz imperiosa do dever. Envergou o caban [5]) e, quando a mulher soluçando
pro­curava
demovê-lo do seu propósito heróico e lhe
mostrava o filho, êle respondia: “Pois então? [6]) eu hei-de deixar morrer, à
minha vista, aquela pobre gente, sem lhe acudir, sem me arriscar um pouco
também? Lá isso é que não. Deus há-de ir
conosco. / Já
muitas vêzes me tem tirado de perigos maiores. Se morrer, pa­ciência; não há-de
faltar quem vos ampare a ti e ao pequeno, que ainda há almas cristãs por êsse
mundo. Eh! rapazes! toca para o mar! Isto agora não é pescar sardinhas, é
pescar gente, que é obra mais asseada. Vamos lá, quem não tem mêdo!”

 

E desembaraçando-se da mulher, saltou para dentro do bote. Seguiram-no
todos os da companha; mas o mar, cada vez mais empolado, não aplacou por isso a
sua fúria insana. Êles remavam intrèpidamente; a mulher, com o pequeno ao
peito, viu por muito tempo o vulto enérgico do seu marido, quando soltavam a
vela,- em pé, envolto
numa nuvem de espuma, a segurar com
mão firme

o leme. Depois sumiram-se no horizonte, e nunca mais, nunca mais
voltaram!

Três dias durou a tempestade e três dias esperou a viúva, lavada em
lágrimas e pungida pelos soluços, que as ondas lhe restituíssem o cadáver do
marido. Nada, o mar guardava cuida
dosamente a prêsa. Passaram-se *) anos
e a pobre viúva tôda se consagrou ao filho estremecido; mas um mêdo pungente,
atroz, continuo a perseguia: — Se o mar lho roubava! —
Todo o seu cuidado era afastá-lo para longe, muito para longe dessas ondas
terríveis, traiçoeiras, fatais que lhe tinham roubado o marido. E

eram
elas, contudo, a tentação do pequeno. Apenas apanhava a mãe descuidada, aí
corria êle à praia, a enterrar os pés na areia,

a
molhá-los na espuma da vaga preguiçosa. A mãe corria logo a buscá-lo, ralhava-lhe, lembrava-lhe a morte do pai, suplicava-lhe que lhe
não desse um desgosto, que lhe não amargurasse a exis- tencia com essa fatal
predileção. E, assim que o viu um pouco crescido, foi ter com o cura, pediu-lhe
que o ensinasse, que lhe metesse na cabeça o latim, a gramática, para que
pudesse ser pa­dre, qualquer cousa enfim que o afastasse
para sempre do mar, desse mar feroz e implacável que a vestira para sempre de
luto, do luto da viuvez.

O bom do cura [7]) condescendeu, e
e pequeno, bondoso e meigo, também resignava-se e ia todos os dias para a
escola do cura com os seus livros debaixo do braço, voltando as costas ao mar,
a esse mar que êle tanto amava e que o fizera órfão. Estava horas a vê-lo
com o livro caído nos joelhos, a contemplar as ondas que cintilavam de branco o
horizonte, e os barcos que partiam alegre­mente, com as velas sôltas ao vento,
levando a bordo [8]) muitos dos seus companheiros
de infância, que eram felizes, bem felizes rsses que podiam remar, sentir o
balanço das ondas, o sopro rijo da ventania nas amplas solidões do mar alto.

Uma
tarde, ia o sol a declinar para o ocaso e o mar alteroso batia com furor nas rochas pacientes. Um navio ao longe
lutava com a tempestade. Da praia os pescadores inquietos assistiam a essa cena
eternamente repetida e eternamente trágica. Renova- va-se quase textualmente a
situação que já descrevemos. O rapazito, fremente, de
lábio convulso, de lágrimas nos olhos, via os bons dos pescadores preparar já
um barco para ir em socorro do navio que naufragava. A mãe, essa agarrava
pálida, assustada, palpitante, nas mãos trêmulas do filho, e murmurava-lhe no
ouvido palavras suplicantes. Enfim, como a tempestade redobrava de vio­lência,
como o perigo era iminente, uma voz sonora e rude bra­dou: “Vá, rapazes! quem
quer acudir aos nossos irmãos em pe­rigo?” O filho de pescador deu um passo,
mas a mãe, agarran­do-se a êle frenética, louca de terror, abraçando-o,
apertando-o com ânsia, bradou-lhe: “Não vai, não te deixo ir! já me
roubaram leu pai, essas ondas malditas. Não te hão de
roubar agora! Não, meu filho! não quero que me deixes, não
quero que te matem.”

E o rapazito, banhado em lágrimas, vencido
por essa dor

imensa, por essa súplica desvairada, beijava-a e prometia-lhe, com a
dor no coração, que a não deixaria, que a não deixaria nunca!

Nisto, porém, a vaga furiosa que cuspia na praia os detritos de vinte
naufráfios, depois de balouçar por algum tempo no seio espumante um
objeto
pesado e informe, arrojou-o emfim à areia, e
todos puderam ver a pôpa de um barco que os temporais tinham sacudido por
longos anos e por todos os mares, de um barco que desaparecera no horizonte e
que nunca mais voltara. .. e na pôpa dêste barco, lavada pela espuma, revestida
das incrustações do Oceano, todos puderam ler esta divisa audaciosa:
Avante!

 

Então o rapazito não pôde resistir; erguendo a cabeça com gesto
resoluto,
sentindo-se homem enfim, desembaraçou-se de sua
mãe, que caiu quase desmaiada na areia, e com um grito de triun­fo saltou para
dentro do barco, empunhou um remo e, ao seu impulso vigoroso e ao dos seus
companheiros, a embarcação lá foi em procura dos náufragos.

Nem sempre a Providência desampara os bons e o dever tem muitas vêzes
também as suas recompensas na terra. Êstes herói­cos rapazes voltaram são e
salvos da temerosa
empresa, voltaram trazendo consigo os
marinheiros arrancados à morte e ao abismo, e, quando o filho do pescador
abraçado
à sua mãe, que chorava de
susto e de alegria e de saudade, a beijava e a afagava, murmu­rou-lhe ao
ouvido, apontando-lhe para a
épave 1), para a relíquia do naufrágio de seu pai, para a pôpa do
bote, onde a palavra
Avante brilhava,
como a expressão do dever:

“Mãe, bem vês! não podia! o pai tinha falado.”

Pinheiro Chagas.

 


[1] picar-se
— enfurecer-se.

[2] zargunchadasrajadas,
lufadas, golpes.

[3] um ponto escuro ou negro — uma pequena
nuvem prenunciativa de temporal.

[4] iminente — próxima.

[5] Caban, palavra
francesa, de origem italiana, que corresponde a gar bão
casacão usado
pelos povos
à beira-mar, com capuz,
cabeção e mangas.

[6] pois então = nestas
circunstâncias.

[7] Vide a
nota i) à pág. 21.

[8] Vide a
nota 2)
à pág. 42.

Fonte: Seleta em Prosa e Verso dos melhores autores brasileiros e portugueses por Alfredo Clemente Pinto. (1883) 53ª edição. Livraria Selbach.


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