PELO TIROL
Oliveira Lima
II Os Castelos Reais
A dinastia dos Wittelbalbach primou sempre no gosto pela edificação: assim sobretudo* se há manifestado seu gosto artístico. A formosa cidade que é Munique foi obra dos soberanos bávaros. O Rei Luís I, especialmente, o que sucedeu ao protegido de Napoleão, transformado de duque eleitor em monarca, e resgatou com a abdicação sua paixão senil por Lola Montes, cobriu a capital de palácios em que se estampara seu carinho pelas linhas clássicas e se refletia sua predileção pela arquitetura florentina. Maximiliano II reconstruiu Hohenschawgan, um lindo castelo do Tirol, e seguiu as pegadas paternas em seu zelo pelos grandes monumentos urbanos.
A inclinação de família resvestiu o feitio de paixão com o Rei Luís II, cuja sorte trágica está na memória de todos e que deixou traços indeléveis e custosos da sua suntuosidade construtora. Os castelos reais da Baviera, concebidos e realizados pela sua ardente imaginação e febril atividade, tornaram-se um dos pontos de atração na Europa para os viajantes do mundo inteiro, e são com efeito de todo ponto merecedores de uma atenta visita.
E contudo moralmente impossível separá-los da história do jn-feliz soberano. Devem ser percorridos com a sua biografia na mão. Para bem os entendermos, isto é, penetrarmos-lhes a significação, é preciso inteirarmo-nos de quem era psicologicamente esse príncipe que subiu ao trono aos vinte anos impregnado de romantismo bebido nas fontes medievais; vivendo espiritualmente na legenda tanto quanto na realidade; admirador entusiasta de Wagner, quando pouquíssimos ainda o percebiam e suportavam; compenetrado até o íntimo dalma da sua régia missão de cultura e dominado pela convicção da valia inestimável do seu poler majestático.
Lhano, bondoso, afetuoso mesmo para seus dependentes, para os pobres e para os artistas — o que explica sua notável popularidade e justifica a saudade com que é recordado, sobretudo entre a população rural — havia no seu espírito um fundo de misantropia que o arrastava para o isolamento dos seus semelhantes, arredando-o particularmente do convívio dos seus iguais e dos grandes da sua corte. Ao mesmo tempo havia nele mais do que uma necessidade, uma ânsia de ação que, não encontrando vasão na sensualidade, alheia ao seu temperamento, nem nos^esportos, estranhos ao seu feitio, mal se acomodava com a merjf satisfação dos deveres do Governo e com a proteção, por mais liberal, às artes.
Profundamente imbuído do sentimento germânico, ninguém mais do que êle desejou a unidade e a coesão do grande organismo nacional, enfraquecido pelas dissensões e atrofiado pelos ciúmes, tal sentimento já fora tão vivo no avô Luís I, que Napoleão chegara a falar em mandá-lo fuzilar, quando príncipe herdeiro: no seu íntimo julgaria o neto achar nesse campo uma faina adequada à sua personalidade e uma glória proporcionada à sua aspiração.
No dia, porém, em que a união se realizou e o império se proclamou na Galeria dos Espelhos, aliás pela própria, ainda que talvez forçada iniciativa do rei da Baviera, imaginou éste que o seu prestígio sofrera uma forte diminuição, passando o seu reino a condição deveras subalterna, e deixou livre curso à morbidez da sua ingénita melancolia. Não podendo ser grande pelos feitos de guerra, que abominava, nem pela categoria política, já que outro passara a ocupar o primeiro lugar numa confederação em que antes eram todos iguais, pretendeu pelo menos ser grande nas exterioridades, no fausto, no esplendor, no incremento dado às artes da paz, e assim enveredou pelo caminho da prodigalidade e da magnificência solitária que o conduziu à ruína e, segundo foi dito, à vesânia. Datam de então os famosos castelos.
É lícito perguntar até que ponto ou mesmo se era louco o rei da Baviera. O desperdício por si só não implica numa particular ausência, de razão: pode merecer-lhe a interdição de gerir seus bens, mas não a detenção em um hospício. E Luís II não dava, ao que parece, outras provas mais graves do seu destempero mental. A megalomania mesmo não é num homem público pecha que o iniba de ser mantido à frente dos negócios, uma vez que ela não conduza o país a perigosas aventuras. Para ser um grande patriota, há mesmo que sacrificar um tanto à megalomania.
O soberano desbaratou suas finanças particulares e, se lho tivessem permitido, comprometeria as do Estado. Compreende-se que por isso lhe retirassem a autoridade sobre os dinheiros da sua casa e bem assim a suprema administração da nação. Mereceria contudo ser encerrado num castelo, com doutores e enfermeiros à vista, como um alienado perigoso? Seus assomos ds cólera eram próprios do seu gênio irascível, tanto quanto caridoso noutras ocasiões, e não datavam dos últimos tempos. Sua hipocondria era orgânica, pois que desde muito se denunciara, no brusco e nunca satisfatoriamente explicado rompimento do seu compromisso matrimonial com uma princesa da sua estirpe; no afã com que procurava subtrair-se a intercursos enfadonhos e a convivências antipáticas; no gosto cada vez mais pronunciado pelo retiro e pela clausura.
O misantropo não é entretanto forçadamente um louco — o Alceste de Moliére tinha até muito juízo —, e o rei da Baviera contentava-se com sê-lo. Êle jamais enveredou pelo caminho das crueldades ou sequer das violências, contentando com cultivar a excentricidade, que já passou por ser característico inseparável dos ingleses opulentos. Até a última suas palavras foram sensatas e seus gestos comedidos, e o seu suicídio, precedido ao que parece — porquanto a verdade do que se passou não podia ser rigorosamente apurada por falta de testemunhas — da morte do médico Gudden, que fora o mais instante em aconselhar seu sequestro, mostra bem que lhe não faltou a percepção clara do futuro merencório que f altamente aguardava um monarca decaído do poder A do prestígio da autoridade soberana.
O suicídio representava a única solução razoável de semelhante situação, mormente levando em conta a opinião de um clínico francês de que um doido é apenas um indivíduo essencialmente lógico, o qual leva um raciocínio a suas últimas conseqüências, isto é, ao absurdo, partindo muito embora de premissas falsas e acreditando de preferência na sua razão do que nos seus sentidos.
É curioso observar que os famosos castelos levantados no Tirol correspondem inteiramente às duas feições capitais do espírito do Rei Luís II, melhor dito, aos domínios em que de preferência operava sua vivíssima imaginação: o romantismo das lendas e tradições nacionais, e a noção exagerada da régia autoridade. Seus ídolos intelectuais foram por isso Wagner e Luís XIV, a saber, o músico que aproveitando os mitos germânicos, as criações da época da elaboração da nacionalidade comum, lhes deu por vestimenta artística as mais opulentas harmonias e o monarca que pelo orgulho e pelo luxo encarnou a tal ponto o poderio e a majestade do trono que lhe foi atribuído por símbolo o Sol.
O pequeno castelo de Linderhof perto de Oberammergan, escondido a todas as vistas pelas folhagens do parque, e que o montículo dominado pelo templozinho clássico de Vénus basta para ocultar de quem chega quando as árvores se acham despidas, é uma jóia de decoração no gosto de Versalhes, de que o rei da Baviera faria mais tarde uma imitação grandiosa a qual por sua morte ficou incompleta, numa ilha do lago Chien, onde existira uma abadia.
A riqueza dessa decoração excede quanto se possa devanear. Por toda a parte, num e noutro palácio, são estofos pesados do ouro empregado em bordá-los; veludos, brocados e setins maravilhosos; móveis admiravelmente torneados, feitos de pau-rosa e de outras madeiras prediletas dos marceneiros dos séculos XVII e XVIII, com ornatos de bronze dourado trabalhados a buril, pinturas recordando batalhas e cerimônias da corte francesa; gobelins e oubussons de assuntos mitológicos; mármores, talhas, cristais, porcelanas, metais, aproveitados, rebuscadas, facetados, coloridas, cinzelados, de maneira a ser cada sala, cada móvel, cada painel, cada fechadura um objeto de arte.
A fantasia resultava cara, mesmo para um rei, e davam-lhe aspectos de extrema excentricidade as circunstâncias do viver de quem a afagava e lhe promovia a realização. Assim, Luís II habituara-se a só viajar de noite, a desoras. Gostava então de cortar as águas dos lagos, prateadas pelo luar, em barcos que até afetavam a forma do que o cisne rebocav^l transportando Lohengrin. Apetecia-lhe deslizar pelo gelo ao galope vertiginoso dos cavalos, nos soberbos trenós de estilo Luís XV que se podem admirar nas cocheiras da Residência de Munique, altaneiros e dourados como carruagens de gala, com figuras esculpidas na lança e na almofada e, na caixa, pinturas em "vernie Martin".
Puxavam esses trenós cavalos ajaezados de veludo e ouro, montados por lacaios fardados a caráter, tudo de tal primor que as lanternas dos batedores acusavam linhas não menos puras e motivos não menos corretos do que a arcada da Galeria dos Espelhos do palácio de Herrenç^iiemsee.
Munique, 1910
Fonte: Oliveira Lima – Obra Seleta – Conselho Federal de Cultura, 1971.
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