PELO TIROL – Paixão em Oberammergau

PELO TIROL

Oliveira Lima

I. "Paixão" em Oberammergau

O Tirol bávaro e austríaco é certamente uma das porções privilegiadas desta Europa onde não escasseiam as belezas naturais. A parte austríaca é mais agreste, por isso mesmo mais imponente; a bávara mais harmônica, se bem que menos majestosa. Naquela predominam os picos escarpados e nus, de um colorido cinzento a que a luz empresta intermitentemente tons róseos e violáceos; nesta avultam os montes forrados de alto a baixo de pinheiros pontiagudos que lhes servem de manto perenemente verde-escuro, quase negro na sombra, mais claro quando o sol se esforça por penetrar no recesso da mata.

Certas colorações das folhas nas encostas em que árvores de espécies diferentes se misturam com as coníferas, e as camadas de neve que entram a listrar de branco os cumes mais altos e mesmo a borrifar algumas faldas de rochedos, emprestam no outono uma sedução particular a essa região. Sem que a possamos despojar do qualificativo de alterosa, interrompem-na contudo largos vales verdes e plácidos, onde pasta a grama um gado pequeno no tamanho e moderado na corpulência, mas manso e luzido.

Cortam os vales lagos de águas verdes pelo reflexo da fron-dente vegetação das montanhas, e rios de águas cristalinas que o degelo da primavera, transformando em torrentes as quedas e as cascatas, converte em grandes massas impetuosas. Quando o outono é seco, o azul do céu e a transparência do ar, que as calma e vapores do verão costumam alterar, ajuntam novos encantos a paisagens que já são proverbialmente atraentes.

O Tirol não se recomenda, porém, somente por este lado da formosura natural. Há dentro dos seus limites muito mais a servir de chamariz aos forasteiros que em número cada vez maior o visitam. Este ano, por exemplo, a concorrência foi enorme, mercê das representações da Paixão que, como é sabido, se verificam cada dez anos na aldeia de Oberammergau, no Tirol bávaro. Sua reputação não está de resto por fazer e patrocinam especialmente este antigo "mistério", curiosamente conservado nos nossos dias e mantendo certos dos seus característicos essenciais ao passo que outros evoluíram, verdadeiras multidões de ingleses e americanos, os quais têm escrito a respeito toda uma biblioteca.

Poder-se-ia acreditar que as presentes circunstâncias tivessem desmanchado a primitiva e delicada feição do espetáculo. Pelo contrário: perdeu êle o que poderia apresentar de infantil e conservou o que oferecia de tocante. O progresso dos tempos, significando um mais exato conhecimento de outras épocas, ajuntou certamente toques mais corretos à velha produção saída da imaginação medieval, mas o cabotinismo dela anda por enquanto felizmente arredado.

A Paixão de Oberammergau continua a ser o que era e o que devia ser para ter alcançado a fama de que goza, a saber, uma impressiva cerimônia em que os traços artísticos são repassados de unção religiosa sem perderem todavia seu efeito profano, posto que despido, aparentemente pelo menos, da preocupação mercantil manifestada na alienação do primitivo caráter da representação.

Ninguém ignora donde proveio tão singular perpetuação de uma forma dramática desaparecida. Originou-a a promessa feita pela aldeia de Oberammergau, quando uma vez visitada pela peste negra, no século XVII, de pôr em cena de dez em dez anos o mistério da Paixão, se se visse livre da terrível epidemia. O preventivo a que rej correu o pavor guiado pela devoção pronta ao milagroso foi decertot sugerido, segundo judiciosas opiniões, pela familiaridade com semelhantes espetáculos ocasionada pela vizinhança do grande mosteiro beneditino de Ettal, fundado pelo Imperador Luís, o Bávaro como foco de cultura dessa região e também como albergaria para os exércitos germânicos e as caravanas de comerciantes que transitavam pelas montanhas do Tirol,,entre a cidade imperial de Augsbur-go e a cidade lombarda de Verona, porta da Itália.

O voto tem sido facilmente cumprido e a representação é na essência a mesma. Apenas a tradição, em parte oral, do "mistério" foi na segunda metade do século XIX reduzida a escrito e arranjada com aproveitamento de várias fontes contemporâneas do voto, ainda que sem sacrifício da sua anterior ingenuidade e do seu pristino fervor, pelo pároco Dasenfterger, o qual durante algumas dezenas de anos exerceu em Oberammergau o seu sacerdócio com zelo e caridade que ficaram memoráveis.

Na sua forma atual a representação comporta a tragédia cristã desde a entrada festiva em Jerusalém até o suplício do Gólgota, entremeada de quadros alegóricos que prendem o Velho ao Novo Testamento e são explicados e comentados pelo coro, em versos por vezes de grande elevação e sempre de grande piedade, que uma música apropriada faz realçar ainda mais. Assim, à venda de José pelos irmãos corresponde a aleivosa negociação do discípulo traidor com o Sinedrim; aos sofrimentos de Job o martírio do Nazareno; ao desespero de Caim o de Judas; à denúncia de Daniel perante Dario a apresentação de Jesus no pretório do procônsul romano.

Todos esses quadros vivos são admiravelmente dispostos e por si sós constituem uma maravilhosa exibição, em que achariam que aprender muitos contra-regras e diretores de teatros. O que, porém, poderia sobretudo servir de lição a ensaiadores de peças de grande espetáculo, melhor dito, de abundantes figurantes — quando mesmo aqueles ensaiadores se chamem Antoine e Beerbohm Tree — é o movimento das multidões no drama propriamente desempenhado no singular teatro de Oberammergau.

Um palco enorme, com um cenário fixo, formado por duas colunadas laterais por onde entra e sai o coro cada vez que vem executar seu papel de lamentação — o papel clássico que lhe cabe na tragédia grega — conta outro palco onde, de cada ocasião que abaixa o pano, se prepara o cenário do ato ou quadro seguinte. Ladeiam este palco menor, à esquerda, a casa de Anaz e à direita a de Pôncio Pilatos, enxergando-se por trás os grandes montes verdes da aldeia, que prolongam e dotam de maior naturalidade e sugestão o vasto espaço em que se passa a ação.

Ouvi há anos citar como um exemplo extraordinário do quanto pode alcançar o talento de um ensaiador a reconstituição do Fórum romano, na tragédia de Shakespeare, Júlio César, levada à cena no His Majesty’s de Londres. O Fórum regorgita de gente, uma multidão fremente, na ocasião em que Marco Antônio, diante do cadáver ensanguentado do ditador, declama seu famoso discurso que converte a população romana ao reconhecimeitfo e ao culto do grande homem assassinado pelos puros da Repúbli«|.

Pois o espetáculo que em Oberammergau se oferece é muito superior. Centenares de pessoas pejam o enorme tablado no momento da apresentação de Cristo, flagelado e coroado de espinhos, ao povo de Jerusalém, em confronto com Barrabás. O Sinedrim dominado pelo sumo pontífice e pelo grão-sacerdote Caifás e bem assim os vendilhões expulsos do templo dirigem a multidão contra o Nazareno, cuja crucificação reclamam todos em altos gritos. Cada comparsa move-se, gesticula e brada livremente, como aconteceria na vida real, e no entanto o conjunto é de tal e tão surpreendente efeito que a ilusão é flagrante e o efeito é mais seguro. Cada um sai convencido de que a cena devia ter-se passado assim mesmo e não podia haver ocorrido diversamente.

É necessário que uma longa tradição de arte, como a que se encarna nessa população secularmente afeita a semelhante espetáculo, se una um genuíno sentimento religioso, para que o resultado possa ser tão completo quanto o obtido por essa representação, que dir-se-ia despida de toda a convenção e na qual a população da histórica aldeia participa sem exceção, com a consciência de perfazer um encargo superior senão de cumprir uma missão sagrada.

Na alma desta gente que por mais de três séculos e meio tem mantido o seu voto, como tem conservado suas ocupações, seus leais, numa palavra seu tipo moral, deve de fato existir um fundo ze idealismo que é fortemente posto em jogo neste caso. No seu trato mesmo descobrem os que lá vão alguma coisa de grave, que é como que o reflexo da dignidade do papel que lhes anda atribuído, de serem no mundo cristão os intérpretes por excelência do drama fun-danental do Cristianismo.

Dizia-se dos artistas da casa de Molière — les comédiens or-dinaires de Sa Majesté: dos aldeões de Oberammergau se poderia dizer que são os comediantes ordinários de Deus. Na sua atitude, nos seus gestos, no seu todo. tanto na vida comum como no palco, ao darem conta dos seus variados personagens, observa-se um quê de surerior à sua condição, senão ao seu meio.

Faço esta distinção porque o meio me parece por sua vez superior ao normal, ao que se poderia ali esperar. A representação decenal requer tamanho preparo, que seria impossível deixar dc exercer uma influência salutar sobre a cultura dos que nela tomam parte A vida intelectual e social da pequena comunidade havia de

fatalmente ressentir-se do ssu efeito. As exigências dramáticas devem emprestar correção à linguagem; a evocação da história ou da lenda de outras eras e de outras terras deu-lhes por certo a percepção de um mundo maior do que o das suas montanhas; o acompanhamento da música e da pintura neles produziu uma notação superior de arte, a qual não é todavia de natureza a degenerar em afetação.

Tampouco seria lícito apontar o prurido da afetação religiosa. Ao que parece, as pessoas encarregadas dos papéis de Cristo, da Virgem e dos santos têm obrigação de ser irrepreensíveis em suas condutas — a Virgem de verdade imaculada — mas não significa isto que a aldeia de Oberammergau se pareça com um mosteiro de trapistas. Sua vida é antes a vida comum de qualquer povoado bávaro, onde se consomem cerveja e fumo, se procura distÃr o espírito e refestelar o corpo, somente com um tom de seriedade^ de graça que lhe são por assim dizer peculiares, porque são o fruto da sua educação artística e da sua tradição religiosa.

Fonte: Oliveira Lima – Obra Seleta – Conselho Federal de Cultura, 1971.

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