Zeballos – UM GRANDE ARGENTINO

UM GRANDE ARGENTINO

Oliveira Lima

Exprimentei com a notícia da sua morte — não me pejo de confessá-lo aos muitos que entre nós o denegriam, o caluniavam e o atacavam, geralmente com um ódio muito postiço e por vezes de encomenda — um vivíssimo pesar. É que me honrava com ser seu amigo, conhecia bem as delicadezas do seu coração e admirava não só sua prodigiosa atividade mental como seu espírito imbuído de sentimento humano, que não importava na abdicação de um patriotismo que alguns pretendem manifestar, mesmo ruidosamente, sem quererem no entanto conceder aos outros licença para fazê-lo, opor-inuamente que seja.

O falecimento de Zeballos não foi contudo para mim uma sur-prêsa. Sabia-o enfermo há tempos e a morte da esposa estreme-

cida, ocorrida há um ano, foi para êle um golpe fatal. Há poucos meses esteve a ponto de expirar, mas, recobrando alento, posto que alquebrado, não quis deixar de satisfazer o compromisso assumído de ir dar conferências na reunião este verão do Instituto de Polí tica de Williamstown e dizer aos americanos do norte o que êle, e com êle a opinião comum na América do Sul, pensavam da dou trina de Monroe e do pan-americanismo. Zeballos nutria um ver dadeiro fervor pan-americano, mas não em detrimento da altivez nacional, que na sua individualidade moral era o traço que pre dominava.

Dos Estados Unidos passava agora à Europa, onde devia pre sidir em Londres a reunião da International Law Association, à qual ultimamente se dedicava com grande entusiasmo, porque a sua alma apaixonada de justiça social nela enxergara um veículo excelente de disseminação de idéias proveitosas à concórdia universal, morte descaroável, implacável, colheu-o ao desembarcar em Liver pool, enfermo siempre como êle me escrevia de New York a 16 setembro, mas cm plena expansão de sua inteligência que sempre foi nobremente posta ao serviço das causas generosas.

Quão mal o julgavam, quão iniqüamente o tratavam os que o apontavam como um temperamento trêfego e como um ânimo votado ao fomento da discórdia internacional! O que por mim observei nas nossas relações pessoais e epistolares muito seguidas foi que o principal desejo de Zeballos era uma inteligência com o Brasil, em que não fossem sacrificados os melhores ideais de nenhu ma das duas nacionalidades. A grandeza de uma das pátrias não significa forçosamente o amesquinhamento da outra e há felizmente campo no nosso continente para ambas se desenvolverem e pros perarem, sem que seus destinos venham jamais a opor-se. Raros eram entretanto os que queriam admitir que Zeballos não fosse um invejoso do nosso país, e não poucas foram as injúrias que ele recebeu do Brasil, quer pela via da imprensa, quer mesmo pelo conduto de graciosos de mau gosto, que lhe mandavam publicações, diplomas e desenhos ofensivos e até obscenos, dos quais êle fazia coleção. Com uma serenidade que irritaria os que tentavam magoá-lo e que dava a medida da sua superioridade, exibia êle estes troféus da grosseria e era o primeiro a rir-se dos que acreditavam atingi-lo.

Disse de Zeballos todo o bem que pensava no perfil que dele esbocei como o homem mais representativo da sua geração na sua terra, no volume sobre a República Argentina, a qual vi e estudei graças ao ensejo do seu convite como presidente do Instituto Po-‘ pular de Conferências e da qual procurei fixar um desenho exato e leal. Só tenho hoje que confirmar quanto então escrevi e que tão grande prazer lhe fêz porque, como todo espírito delicado, era sensível à simpatia dos que têm valor moral. Tenho também que deplorar que a nação amiga haja perdido uma das suas glórias mais legítimas e mais puras. Os adversários de Zeballos, os seus desafetos, que todos os ganham nas lides da vida, freqüentemente

inveja, pelo despeito ou por interesses contrariados, sempre lhe respetaram a probidade imaculada, a sua honra privada e pública. Não são todos os que podem contar esta dita, porque eu imagino que deve ser um vexame, quando não uma tortura, mesmo para os mais cínicos, o. verem descobertas suas falcatruas e postas a nu suas mazelas. Zeballos, se cometeu erros como político, o que é possível em quem tinha meio século de vida jornalística e administrativa, nunca errou por motivos vis, antes sempre guiado por intenções elevadas e altruístas, nas quais o prestígio argentino constituía a preocupação máxima. Se os interesses do seu país bri-gasem e entrassem em conflito com os do Brasil, é claro que optaria sem hesitar pelos \do seu país c os defenderia com o vigor que pulsava na sua natureza combativa, pronta às reivindicações ditadas pela eqüidade e mesmo pela susceptibilidade, que é inseparável de todo patriotismo. Zeloso porem como era do futuro da sua nacionalidade, a que tinha verdadeiro entusiasmo de pertencer, estou convencido de que possuía desassombro e isenção bastantes para eventualmente indicar aos seus compatriotas que tinham tomado c estavam seguindo uma trilha falsa.

Provou-o durante a guerra, cultivando, justificando e apregoando a neutralidade que lhe parecia justa e conveniente observar e que o Presidente Irigoyen timbrou em conservar ilesa para bem do seu país. Eu gabava-me e honrava-me de opinar como o meu lente amigo em muitos pontos da política internacional e raramente o que êle me escrevia com sua habitual franqueza, que nem Iodos reconheciam e menos ainda estimavam, deixava de corresponder a íntimos pensamentos meus, provenientes das minhas reflexões, talvez porque nossos espíritos não andavam orientados por princípios de ordem subalterna.

A sua banca de advogado rendia bastante ao ilustre juris-perito, o bastante para êle viver desafogadamente e ajudar os pai entes sem fortuna, pois que não só ensinava como praticava a caridade; mas Zeballos não possuía fortuna. Atravessou a política, foi parlamentar e por três vezes ministro sem amontoar cabedais e sem desperdiçá-los no luxo e na dissipação, que é uma forma cômoda de parecer pobre depois de morto. Sua vida de família era exemplar, um modelo mesmo na mais grave sociedade argentina, e esse homem essencialmente bom, sem fazer alarde de virtuoso e sem gozar particularmente da fama de austero pelo seu feitio brincalhão, não tinha vícios como o jogo, nem cultivava o desregramento. Só no trabalho gastou e consumiu a sua robusta saúde, que parecia fadá-lo para centenário.

Tinha gostos mais discretos e mais educativos do que a tavo-lagem ou a depravação: praticava com afinco e amor alguns desportos, sobreudo a equitação e a esgrima, e tinha a paixão das flores, de que a sua botoeira andava sempre decorada, como que a simbolizar que sob o cravo ou as violetas batia um coração enamorado de quanto é belo, no mundo físico ou no mundo moral — as paisagens risonhas ou grandiosas, as obras de arte, o heroísmo

e a dedicação. Não era indiferente senão ao vulgar, e hostil senão ao feio c ao criminoso.

Outra paixão sua era a dos livros, que se acumulavam na sua biblioteca, sempre ampliada, e que êle lia com sofreguidão e com discernimento, anotando-os e criticando-os. A Revista de Derecho, Historia y Letras, por êle fundada há mais de trinta anos e que saía, com a maior pontualidade, a 1 de cada mês, está repleta do trabalhos bibliográficos, históricos, jurídicos e literários desse homem deveras extraordinário, a quem os seu contemporâneos, uns por ignorância e outros por maldade, não concederam todo o crédito devido, porquanto era uma inteligência lúcida e pode dizer-se formidável, em constante ação, e um caráter diamantino ao qual repugnavam as hipocrisias e as falsidades e que tinha apenas o defeito de ser honesto, quando a desonestidade recolhe o melhor das adulações, e de ser inteiriço, quando a flexibilidade acrobática anda mais do que nunca na ordem do dia.

Em Zeballos o apuro no trajar era notório, sem envolver no mínimo ridículo ou afetação: era a elegante sobriedade inglesa posta em contribuição por um esmero físico ao qual correspondia um esmero moral. Esse janota era um valente,, como o demonstrou na guerra do Paraguai, em que fêz serviço, na sedição de Mitre contra. Avellaneda e em muitas ocasiões da sua vida política.

Consola-me que no Brasil não seja eu só a prestar-lhe um preito sincero de saudade. Sertório de Castro, o brilhante jornalista, nunca se esquivou a expressar-lhe sua simpatia. Carneiro Leão, que entre nós dá o raro exemplo de uma mentalidade fiel ao seu primeiro ideal da organização e vulgarização da instrução e a quem em boa hora foi confiado o importante departamento educativo do Distrito Federal, votava-lhe admiração e consideração, e bem assim Anibal Fernandes, uma grande vocação de publicista e um espírito impregnado de coragem e de sinceridade, e Barbosa Lima Sobrinho, que comunga com Zeballos no culto do direito liberal e que, como êle, vê na guerra um meio odioso de obviar as dificuldades que a simples justiça, bem entendida e bem aplicada, bastaria para sanar. Lemos Brito também, que se ocupa com talento e proficiência das questões internacionais, patenteou repetidamente sua estima pelo homem de bem que foi o grande argentino desaparecido.

Fonte: Oliveira Lima – Obra Seleta – Conselho Federal de Cultura, 1971.

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