Histórias da Carochinha
A GATA BORRALHEIRA
Era
uma vez uma bondosa mulher que tinha uma única filha, uma menina linda e meiga,
a quem amava muito. Um dia, a mulher adoeceu gravemente e, embora ainda fosse
jovem, sentiu que não ia durar muito tempo. Assim, chamou a filha para perto de
si e, depois de abraçá-la carinhosamente, pediu:
—
Seja sempre meiga e bondosa para com todos, minha filha, que lá do céu estarei
o tempo todo olhando por você!
Mal
terminou de dizer essas palavras, a mãe da menina fechou os olhos e morreu. A
pobre criança quase morreu também de tanto chorar. A mulher foi enterrada num
lugar muito bonito, no quintal da casa e, desde então, a menina passou a ir todos os dias até o túmulo
da mãe, onde ficava ajoelhada, rezando e chorando.
O
tempo passou e, com a chegada do inverno, os dias se tornaram cinzentos, e as
árvores ficaram secas e tristes. Mas, quando veio a primavera, o jardim da
casa voltou a se encher de flores e passarinhos.
Foi
então que o pai da menina resolveu se casar de novo, escolhendo para esposa uma
viúva, que tinha duas filhas. No entanto, a chegada da madrasta e das filhas
naquela casa não trouxe para ela nenhuma alegria, pois as filhas da viúva eram
muito invejosas e tinham mau coração. Desde o primeiro dia, trataram a nova
irmã com desprezo, fazendo de tudo para aborrecê-la e humilhá-la. Além disso,
passaram a tomar, um por um, os melhores vestidos que a menina possuía, deixando-a
apenas com uma roupa velha e um par de tamancos de madeira.
A
madrasta e as filhas eram também muito preguiçosas, e a menina era obrigada a
trabalhar, fazendo todo o serviço da casa sozinha. E à noite, quando terminava
o trabalho, morta de cansaço, a pobrezinha
não tinha sequer uma cama confortável onde pudesse descansar, e era
obrigada a dormir na cozinha, junto às cinzas do fogão. Por causa disso, as
irmãs lhe deram o apelido de Gata Borralheira.
A vida de
Gata Borralheira era, assim, muito triste, mais triste ainda porque o pai
parecia não ver seu sofrimento e nada fazia por ela. O único refúgio da pobre
menina era 0 túmulo da mãe, aonde ia sempre que podia.
Um dia, o
pai precisou ir até a cidade e perguntou a cada uma das meninas o que gostaria
que ele trouxesse de presente.
— Eu quero lindos vestidos! — disse uma das filhas da
madrasta.
— Eu quero pérolas e diamantes! — disse a outra.
Gata
Borralheira, entretanto, nada pediu, e o pai, vendo-a calada, perguntou-lhe se
não ia querer nenhum presente.
— Papai — ela respondeu
—, quero apenas que me traga o primeiro galho de árvore que, no caminho de
volta, esbarrar em seu chapéu!
O pai partiu e, na cidade, comprou vestidos bonitos e
pedras preciosas, conforme as filhas da mulher haviam pedido. Quando já voltava
para casa, passou embaixo de uma enorme figueira. Alguns galhos da árvore eram
muito baixos e um deles derrubou seu chapéu no chão.
Quando
desceu para apanhá-lo, o pai se lembrou do pedido da Gata Borralheira. Por
isso, arrancou o galho da árvore e o levou para a filha.
Ao
chegar em casa, entregou os presentes a cada uma das meninas, e Gata
Borralheira, depois de agradecer-lhe muito, correu até o túmulo da mãe. Plantou
ali o ramo da figueira, chorando tanto, que o regou com suas lágrimas.
Em pouco tempo o ramo começou a brotar e ficar viçoso, transformando-se numa árvore grande e bonita, ao pé da
qual a menina se ajoelhava para rezar e chorar suas tristezas. Todas as vezes
que isso acontecia, um passarinho branco vinha pousar num galho da figueira, e
bastava que Gata Borralheira expressasse algum desejo para que ele lhe trouxesse
o que ela estava pedindo. O passarinho branco se tornou, assim, o único amigo
da menina, que não tinha mais ninguém neste mundo em quem pudesse confiar.
O
tempo passou, e, um dia, correu por toda a cidade a notícia de que o rei daria
uma grande festa, que duraria três dias. Seriam realizados três grandes bailes,
para os quais estavam convidadas todas as moças em idade de se casar, porque
dentre elas o príncipe escolheria uma para ser sua noiva.
Logo que
soube da notícia, Gata Borra-lheira sentiu uma vontade enorme de ir ao baile,
mas, quando disse isso às irmãs, as duas começaram a rir e uma delas falou:
— Com esse vestido sujo e esses tamancos de madeira,
você quer ir ao baile?!
— E essas mãos grossas?! — disse a outra, morrendo de
rir. — Você acha que as mãos delicadas do príncipe foram feitas para segurar as
mãos de uma Gata Borralheira?
A
pobre menina, humilhada, saiu de perto das duas malvadas para que elas não
vissem suas lágrimas.
* * *
Logo chegou o dia do baile, e enquanto as irmãs
passavam o tempo todo se arrumando, Gata Borralheira, como sempre, fazia todo o
serviço da casa. À tarde, para fazê-la sofrer ainda mais, as duas a obrigaram a
passar seus vestidos e a pentear-lhes os cabelos para irem à festa. Quando já
estavam quase prontas, as maldosas meninas lhe disseram:
— Agora você pode
voltar à cozinha. Lá é o lugar certo para uma Gata Borralheira!
Muito
magoada, Gata Borralheira foi procurar a madrasta para dizer-lhe que também
queria ir ao baile. Mas a mulher, ao ouvir o pedido, respondeu:
— Você, Gata
Borralheira? Como quer ir ao baile se vive tão suja e empoeirada? Ainda por
cima, você não tem nem vestidos nem sapatos adequados!
Gata
Borralheira, entretanto, pediu tanto, insistiu tanto que a madrasta acabou dizendo:
— Está bem. Mas só vou
levá-la ao baile se você cumprir uma tarefa: despejei um prato de lentilhas no
meio das cinzas do fogão. Se em duas horas você conseguir tirar as lentilhas das cinzas, separar os grãos estragados
e colocar os bons de volta no prato, você irá ao baile.
E saiu de
perto, tendo a certeza de que dera a Gata Borralheira uma tarefa impossível de
se cumprir em tão pouco tempo.
Entretanto,
logo que a madrasta saiu, a menina lembrou-se de pedir ajuda ao seu amigo
passarinho. Assim, foi até a figueira e cantou:
— Querida avezinha do céu, ajude-me a escolher: os grãos bons ponha no prato, e os maus
pode comer!
O
passarinho branco logo veio em seu socorro.
Mas desta vez não veio sozinho. Assim, em um instante a cozinha estava
repleta de pássaros de todos os tipos que, trabalhando rapidamente, ajudaram
Gata Borralheira a realizar a tarefa, em pouquíssimo tempo. Quando estava tudo
pronto, ela agradeceu a seus amigos e esperou que eles saíssem para ir correndo
chamar a madrasta e entregar-lhe o prato cheio de lentilhas. Mas a malvada,
furiosa ao ver que a menina tinha conseguido realizar o trabalho, disse-lhe:
— Não posso
levá-la ao baile, Gata Borralheira! Você nem dançar sabe!
A menina,
no entanto, continuou insistindo no pedido, e a madrasta, como não queria
levá-la, deu-lhe outra tarefa, mais difícil ainda que a anterior: despejou
desta vez dois pratos de lentilhas no meio das cinzas, dando-lhe apenas uma
hora para separar os grãos bons dos estragados. E, certa de que agora seria
mesmo impossível que ela realizasse o trabalho, saiu da cozinha toda satisfeita.
Mesmo
estando triste, Gata Borralheira nao desanimou. Voltou a pedir ajuda a seu
amigo passarinho e, junto com ele, entraram pela janela da cozinha duas
pombinhas brancas, uma rolinha, muitos sabiás, e logo todos os pássaros do céu
estavam ali para ajudá-la. Novamente, em pouquíssimo tempo o trabalho estava
terminado, e Gata Borralheira mais uma vez agradeceu a seus amigos e esperou
que todos eles saíssem para chamar a madrasta à cozinha. A mulher, ao ver que não tinha
conseguido seu intento, empalideceu de ódio e disse:
— Sabe de uma coisa, sua Gata
Borralheira? Você não vai mesmo ao baile! Só ia nos fazer passar vergonha
diante do rei e, além do mais, já é tarde e estamos de
saída!
Com o
coração doendo de tristeza, Gata Borralheira sentou-se nas cinzas do fogão e
começou a chorar. Assim que todos saíram para o baile, correu para o túmulo da
mãe, ajoelhou-se e, contemplando a figueira com os olhos cheios de lágrimas,
pediu:
— Minha avezinha querida,
faça-me mais este bem:
se não for pedir muito,
queria ir ao baile também!
Quase que
no mesmo instante, o passarinho branco pousou num ramo da árvore, trazendo
para a menina um magnífico vestido e um par de sapatinhos muito delicados,
todos bordados com ouro e prata.
Gata Borralheira, cheia de alegria, vestiu-se
rapidamente e foi para o baile. Estava tão linda, tão linda, que assim que
entrou no salão todos se viraram para admirá-la. O próprio pai e a madrasta
com as filhas não puderam reconhecê-la, e o príncipe, deslumbrado com sua
beleza, veio diretamente ao seu encontro, dançando com ela a noite inteira, não
permitindo que nenhum outro jovem se aproximasse.
Quando
chegou a madrugada, Gata Borralheira quis retirar-se da festa. O príncipe
insistiu em levá-la para casa, porque queria saber onde morava uma jovem tão
encantadora e quem eram os seus pais. Como não conseguiu fazê-lo desistir
da idéia, a moça foi obrigada a fugir correndo pelas escadarias do
palácio. Mas o príncipe, decidido a descobrir quem era aquela jovem
misteriosa, continuou a segui-la pelas ruas e viu quando Borralheira chegou em casa. Correndo pelo jardim, ela já não sabia mais onde se esconder, e acabou subindo no
pombal, na esperança de que lá não seria encontrada pelo príncipe.
Assim que o
pai de Gata Borralheira chegou em casa, o príncipe, que tinha ficado ali esperando, contou-lhe o que havia acontecido. O
velho pensou imediatamente: "Será que a moça de quem ele fala é Gata
Borralheira?". E, curioso, derrubou com seu machado o pombal.
Mas, para
decepção dos dois, não havia ninguém lá dentro. É que a menina, muito esperta,
tinha saído dali sem que o príncipe a visse, e, rapidamente, tinha devolvido ao
passarinho a roupa e os sapatos com que tinha ido ao baile. Assim, quando a
madrasta e as filhas passaram pela cozinha, encontraram Gata Borralheira
dormindo profundamente no meio das cinzas, maltrapilha como de costume.
Na noite
seguinte, mais uma vez a madrasta recusou-se a levá-la ao baile. Gata
Borralheira esperou pacientemente que todos saíssem e foi ajoelhar-se diante do
túmulo da mãe para pedir:
— Minha avezinha querida,
faça-me mais este bem:
se não for pedir muito,
queria ir ao baile também!
Novamente
o passarinho branco veio em seu auxílio e atirou-lhe um vestido e um par de
sapatinhos mais ricos e bonitos que os da noite anterior. E, como na outra vez,
quando Borralheira chegou ao baile, sua impressionante beleza provocou
murmúrios por todo o salão. O príncipe, que já a esperava ansiosamente, assim
que a viu, correu ao seu encontro, dançando com ela durante toda a noite.
De
madrugada, mais uma vez Gata Borralheira precisou fugir para que o príncipe
não a acompanhasse. Sendo novamente perseguida até o jardim de casa, a menina
se escondeu de novo, desta vez numa pereira que havia no quintal.
Mas o
príncipe, cada vez mais curioso e encantado com aquela jovem misteriosa, voltou
a esperar que o dono da casa chegasse para contar-lhe o ocorrido. O velho,
intrigado, pensou outra vez: "Mas será
Gata Borralheira a moça de quem ele fala?". E, toman-do de novo seu
machado, derrubou imediata-mente a árvore, não encontrando ninguém ali.
Quando a
madrasta e as filhas passaram pela cozinha, lá estava Gata Borralheira, com seu velho vestido, encolhida e dormindo profundamente
no meio das cinzas.
* * *
Na terceira
noite, mais uma vez Gata Borralheira pediu e mais uma vez o passarinho branco
veio em seu auxilio, trazendo–lhe agora um vestido ainda mais bonito e um par
de sapatinhos delicadíssimos, bordados em ouro puro.
Ao
entrar no salão do baile, todos, inclusive o pai, a madrasta e as filhas,
ficaram boquiabertos com sua deslumbrante beleza, e de toda parte vinham
murmúrios de admiração.
O
príncipe, olhando-a com amor, tomou suas mãos, convidando-a para dançar. E de
novo passou a noite inteira ao seu lado, não permitindo que mais ninguém se aproximasse.
Mas nessa
madrugada, quando Gata Borralheira fugiu, o príncipe não teve pressa em
segui-la, porque, decidido a descobrir quem era a jovem por quem estava
apaixonado, tinha mandado os criados do palácio espalharem piche por todas as
escadarias. Assim, na pressa de fugir, Gata Borralheira acabou perdendo o
sapatinho do pé esquerdo, que ficou preso no piche.
O
príncipe recolheu o delicado sapatinho e, no dia seguinte, quando o rei lhe
perguntou se havia escolhido sua esposa, respondeu:
— Sim, meu
pai. Já fiz minha escolha: eu me casarei com a moça em cujo pé servir este
sapatinho.
No mesmo dia o príncipe
em pessoa saiu pela cidade percorrendo todas as casas onde houvesse moças em
idade de se casar, experimentando em todas elas o rico sapatinho. Mas nenhuma
moça do reino parecia ter um pezinho tão pequeno a ponto de usar um calçado
tão delicado.
Depois de visitar muitas casas, o
príncipe acabou chegando à casa de Gata Borralheira. Foi recebido pela madrasta
que, certa de que a escolhida seria uma de suas filhas, pediu-lhe que
esperasse um pouco e levou o sapatinho até o quarto da moça mais velha, para
que ela o calçasse.
Por
mais que a moça forçasse, entretanto, não havia jeito de fazer com que o
sapato lhe servisse, pois um dedo de seu pé era grande demais. Quando estava
cansada de tentar e já ia desistir, a mãe, trazendo um enorme facão da
cozinha, lhe disse:
— Se o
sapato lhe servir, você se tornará rainha e não precisará andar muito. Por
isso, acho melhor cortar esse dedo tão grande!
A ambiciosa
moça aceitou o conselho e, logo depois, mal conseguindo disfarçar a dor,
apresentou-se diante do príncipe como sendo a verdadeira noiva.
Mesmo
decepcionado, ele a colocou sobre o cavalo e os dois partiram, rumo ao palácio
real.
Entretanto,
quando passaram diante do túmulo da mãe de Gata Borralheira, duas pombinhas
brancas que estavam pousadas nos galhos da figueira começaram a cantar:
— A verdadeira noiva esta não é!
Se o príncipe olhar para o sapato,
verá que há sangue no pé!
Ao ouvir
isso, o príncipe olhou para o pé da moça e, vendo o sangue que escorria do ferimento,
descobriu que havia sido enganado. Levou-a imediatamente de volta para a
mãe, que se desculpou dizendo:
— Não
fique zangado, meu príncipe! Deve ter havido algum engano. Na certa o sapato
servirá em minha filha mais nova, que está no quarto.
Enquanto o
príncipe esperava, a madrasta levou o sapatinho ao quarto da filha mais nova.
Mas esta também tinha um pé tão grande que não havia como fazer com que o
calçado lhe servisse, a não ser cortando-lhe um pedaço do calcanhar.
E foi o que
mãe e filha fizeram, pensando que, como a moça seria brevemente rainha, não
precisaria mais andar muito, e um pedaço do pé não lhe faria falta. Lá se foi
outra vez o príncipe, levando a falsa noiva
sobre seu cavalo. Mas, mais uma vez,
ao passarem pelo túmulo da mãe de Gata Borralheira, as pombinhas brancas
começaram a cantar:
— A verdadeira noiva esta não é!
Se o príncipe olhar para o sapato,
verá que há sangue no pé!
O
príncipe olhou então para o sapato da moça e, vendo o sangue que escorria do
ferimento, descobriu que havia sido enganado outra vez. Levou-a imediatamente
de volta e, muito zangado, perguntou à madrasta se não havia mais nenhuma jovem
na casa. A mulher respondeu que não, mas como ele insistisse, acabou
confessando:
— Existe aqui outra jovem, mas ela é tão feia e anda tão
suja e maltrapilha que certamente não é a pessoa que Vossa Majestade procura!
— Não faz mal! — respondeu o príncipe. — Tragam-na assim
mesmo!
Como não podia desobedecer-lhe, a madrasta
mandou chamar Gata Borralheira, que, vestida com suas roupas velhas, apareceu
logo em seguida. Com a maior naturalidade, Borralheira tirou o pesado tamanco
que usava e calçou delicadamente o sapatinho, em que seu pé entrou sem o menor
esforço.
Muito
feliz, o príncipe, que já a havia reconhecido, colocou Borralheira sobre seu
cavalo e os dois partiram, deixando a madrasta e as filhas loucas de ódio e
inveja.
Ao
passarem diante do túmulo da mãe da menina, lá estavam outra vez as duas pombinhas
brancas, que, alegremente, começaram a cantar:
— Agora está certo,
pois, de fato, esta é a noiva
verdadeira,
e não há sangue no sapato!
Em
seguida, as duas pombinhas voaram ao redor de Gata Borralheira e do príncipe,
indo depois pousar delicadamente nos ombros da moça, acompanhando-a até o
palácio.
Gata Borralheira e o príncipe se casaram m meio às
festas mais bonitas que o reino já havia tido.
No
dia do casamento, as duas irmãs, fingindo-se
arrependidas, pediram à menina que lhes deixasse acompanhá-la e a seu
noivo no Cortejo nupcial. Gata Borralheira permitiu, mas, na saída da igreja, o
coração das malvadas ia cheio de pensamentos maus, de ódio e inveja. Por isso,
as duas pombinhas brancas voaram na direção das invejosas e, com o biquinho,
furaram-lhes os dois olhos, deixando-as cegas pelo resto da vida, como castigo
por sua maldade.
Quanto a Gata
Borralheira, viveu feliz com o príncipe por muitos e muitos anos.
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