VOLTAIRE – DO SÉCULO DE LUIS XIV – O SISTEMA DE LAW

DO SÉCULO DE LUIS XV – O SISTEMA DE LAW – VOLTAIRE

O SISTEMA DE LAW

ESSE famoso sistema de Law, que parecia de molde a arruinar a regência e o Estado, sustentou na realidade um e outro, mercê de consequências que ninguém havia previsto. … Foi o caso de, por uma prestidigitação, cujos passes não se tornaram visíveis dos mais peritos e dos mais argutos, um sistema quimérico dar origem a um comércio real e fazer ressurgir a Companhia das índias, criada outrora pelo célebre Colbert e arruinada pelas guerras. Em suma, se houve muitas fortunas particulares destruídas, por outro lado a nação passou a ter uma vida comercial mais intensa, tornando-se mais rica. Esse sistema esclareceu os espíritos, do mesmo modo que as guerras civis aguçam a coragem.

Foi uma doença epidêmica a espalhar-se da França à Holanda e à Inglaterra, e merece a atenção da posteridade, pois não era o interesse político de dois ou três príncipes que transtornava as nações. Os povos precipitaram-se por si mesmos nessa loucura que enriqueceu algumas famílias e reduziu outras tantas à mendicidade. Eis aqui qual a origem da demência, precedida e seguida de tantas outras:

Um escocês, de nome João Law, a quem costumámos chamar João Lass, não possuindo outra profissão que a de grande jogador e grande calculista, obrigado a fugir da Grã-Bretanha por causa de um assassinato, tinha, desde muito tempo, traçado o plano de uma companhia que se propunha pagar em notas de banco as dívidas de um Estado, reembolsando-se com os proventos disso. Era um sistema complicado, mas, reduzido a justos limites, podia ser muito útil. Tratava-se de uma imitação do Banco da Inglaterra e de sua Companhia das índias. Law propôs a empresa ao duque de Savóia, depois primeiro rei da Sardenha, Vitor Amadeu, que lhe respondeu não ser suficientemente rico para arruinar-se. Veio, então, propô-la ao ministro da Fazenda, Desmarets, mas justamente numa época em que o país atravessava uma fase infeliz de guerra, em que toda confiança se perdera, e a base do seu sistema era a confiança.

Afinal, encontrou ocasião favorável na regência do duque de Orléans: dois milhões em dívidas a saldar, uma paz que concedia lazeres ao governo, um príncipe e um povo apaixonados por novidades.

Law começou por fundar um banco em seu próprio nome, em 1716, o qual se tornou logo uma repartição geral arrecadadora das receitas do reino. A ele seguiu-se uma companhia do Mississipi, da qual se faziam esperar grandes vantagens. O público, seduzido pela isca do ganho, lançou-se furiosamente à compra de acções da companhia e do banco reunidos. As fortunas, outrora retraídas pela desconfiança, circularam em profusão. Os títulos duplicavam, quadruplicavam tais riquezas. A França tornou-se muito rica, realmente, pelo efeito do crédito. Todas as profissões conheceram o luxo e este passou para os países vizinhos da França, que partilharam do vantajoso negócio.

O banco foi declarado banco real em 1718; encarregou-se do comércio do Senegal, adquirindo o privilégio da antiga Companhia das índias, fundada pelo célebre Colbert e que entrara depois em decadência e abandonara seu comércio aos negociantes de Saint-Malo. Finalmente, encarregou-se das fazendas gerais do reino. Tudo ficou, pois, nas mãos do escocês Law, e todas as finanças do reino na dependência de uma companhia de comércio.

A companhia parecia estabelecida sobre sólidos alicerces, e as acções atingiram vinte vezes o seu valor inicial. O duque de Orléans cometeu, sem dúvida, uma grande falta em ter abandonado o povo a si mesmo. Era fácil ao governo pôr um freio a esse frenesi, mas a avidez dos cortesãos e a esperança de aproveitar-se da desordem impediram-no de fazê-lo. As variações frequentes nos preços dos títulos facultaram a pessoas desconhecidas fortunas imensas: algumas, em menos de seis meses, tornaram-se mais ricas que muitos príncipes. Law, seduzido, ele próprio, pelo seu sistema e embriagado com a embriaguez pública e a dele mesmo, havia fabricado tantas notas, que o valor quimérico das acções correspondia, em 1719, a oitenta vezes o dinheiro que podia circular no reino. O governo reembolsou em papel todos os contribuintes do Estado.

O Regente não podia controlar uma máquina tão imensa, tão complicada e cujo movimento rápido o arrastava contra a vontade. Os antigos financistas e os grandes banqueiros reunidos esgotaram o banco real, sacando sobre ele somas consideráveis. Cada qual procurou converter seus títulos em moeda sonante, mas a desproporção era enorme. O crédito caiu de um momento para outro. O Regente procurou reanimá-lo com decretos que acabaram por aniquilá-lo. Não se viu mais que papel: uma miséria real começava a suceder a tanta riqueza fictícia. Foi então que se entregou o cargo de director-geral das finanças a Law, precisamente na ocasião em que lhe era impossível desobrigar-se da tarefa; isso em 1720, época da subversão de todas as fortunas particulares e das finanças do reino. Viram-no, em pouco tempo, de escocês tornar-se francês, por naturalização; de protestante, católico; de aventureiro, senhor das mais belas terras; e de banqueiro, ministro de Estado. Tive oportunidade de vê-lo 1 chegar ao Palais Royai, seguido de duques e pares, de marechais de França e de dignitários da Igreja. A desordem atingira o ponto culminante. O Parlamento de Paris opôs-se, tanto quanto pôde, a essas inovações, sendo exilado para Pontoise. Por fim, no mesmo ano, Law, sob o peso da execração pública, foi obrigado a fugir do país que tinha querido enriquecer e ao qual havia transtornado. Partiu numa mala-posta que lhe emprestou o duque de Bourbon–Condé, não levando consigo senão dois mil luíses, quase tudo o que lhe restara de uma opulência passageira.

1 Voltaire é aqui historiador e testemunha ocular ao mesmo tempo.

Os libelos da época acusaram o Regente de haver-se apoderado de todo o dinheiro do reino para satisfazer suas ambições, mas a verdade é que ele morreu com uma dívida de sete milhões exigíveis. Acusaram Law de haver feito passar, em seu proveito, dinheiro da França para países estrangeiros. Viveu ele algum tempo em Londres das liberalidades do marquês de Lassey e morreu em Veneza, em 1729, num estado pouco acima da indigência. Tive ocasião de ver sua viúva em Bruxelas, tão humilde quanto tinha sido altiva e triunfante em Paris. As causas e os efeitos de tais revoluções não constituem os assuntos menos úteis para a história.

Fonte: VOLTAIRE. Clássicos Jackson vol XXII. Tradução de Brito Broca.

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