A AMÉRICA LATINA E SUA TRADIÇÃO HISTÓRICA

Oliveira Lima

IMPRESSÕES DA AMÉRICA ESPANHOLA*

A AMÉRICA LATINA E SUA TRADIÇÃO HISTÓRICA **

O Sr. Thomas C. Dawson, que foi por alguns anos o admirável secretário da legação americana em Petrópolis, obtendo como encarregado de Negócios o regime de favor de que gozam presentemente algumas das mercadorias do seu país, e a quem foi depois confiada a tarefa de estabelecer o protetorado financeiro precursor do protetorado político dos Estados Unidos em São Do mingos,*** publicou há pouco o segundo volume da sua obra histórica sobre as repúblicas irmãs, irmãs pela maior parte pobres em sua natural opulência, descontentes no meio da sua licença, rixosas mau grado os apelos à fraternidade, e tratadas com desdém, por tudo isto e muito mais, na terra do autor.

* Excerto do livro Impressões da América Espanhola (1904-1906), publicado na Coleção Documentos Brasileiros, n.° 65, pela Livraria José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1953. As notas constam dessa edição e são devidas ao Sr. Manoel da Silveira Cardoso, conservador da Biblioteca de Oliveira Lima, pela Universidade de Washington.

** As cinco partes ou artigos em que está dividido o presente capítulo, e que aqui vão publicadas na ordem que lhe deu o autor, apareceram pela primeira vez no O Estado de S. Paulo, com os seguintes títulos e nas datas indicadas: 1) "As Repúblicas Irmãs", 3 de maio de 1905; 2) "O Interesse Europeu pela América Latina", 3 de abril de 1905; 3) "A Idéia Monárquica na América Espanhola", 13 de abril de 1906; 4) "O Sentimento Monarquista", 6 de setembro de 1905; e 5) "Culto do Passado", 16 de janeiro de 1905 (apareceu também no Diário de Pernambuco, 22 e 23 de dezembro de 1905).

*** O diplomata americano Thomas Cleland Dawson, que casou com Luísa Guerra Duval, de Porto Alegre, nasceu cm 1865 e morreu em 1912. Entrou para a carreira diplomática em 1897 como secretário da legação dos Estados Unidos no Brasil, em cujo posto permaneceu durante quase sete anos. Foi encarregado de Negócios ad-tnterim de 7 de fevereiro de 1898 a 11 de abril do mesmo ano, e novamente de 2 de outubro dc 1901 a 21 de fevereiro de 1902. Foi nesta época da sua carreira que Mr. Dawson escreveu a sua história da América do Sul, abaixo mencionada. Em 1904 foi promovido a ministro residente e cônsul geral na República Dominicana, que atravessa então um período particularmente angustioso da sua historia. Ao findar o ano tio 1907, foi Mr. Dawson transferido pa ra a Colômbia, como enviado extra ordinário e ministro plenipotenciário Até a sua morte, desempenhou variai missões diplomáticas no Chile, em Panamá e em Nicarágua, e prestou serviço no Departamento de Estado em Washington. De 1909 a 1910 serviu dc chefe da nova seção dc assim tos latino-americanos do referido I >< partamento. Foi no seu tempo Mr, Dawson o diplomata americano qui melhor conheceu a América Latina.

O primeiro volume, publicado em 1903,* ocupa-se dos países da costa oriental da América do Sul — o Brasil, a Argentina, o Uruguai — e desse Paraguai metido no interior do continente, a independência e integridade do qual respeitamos, na pior excitação da guerra, com mais generosidade do que previsão,** e que em breve desaparecerá como nacionalidade, fundindo-se na massa argentina, cujo volume aumenta constantemente e cuja atração se exerce direta e poderosamente sobre os vizinhos mais fracos, estimulada como é pela audácia e resolução dos seus políticos.

O segundo volume*** trata da Bolívia, igualmente central e igualmente atraída, apesar da distância, pela Argentina, ao mesmo tempo que é solicitada pelo Chile e socorrida pelo Brasil; das repúblicas propriamente do Pacífico; da que ficava a cavaleiro do istmo antes da novíssima invenção do Panamá, **** e da que ao norte do continente forma a barreira sul do Mar das Antilhas. É a parte da América do Sul a que interessa de perto à perfuração do istmo.

Para as nações que são banhadas pelas águas do Pacífico ou para elas encontram saída, nenhum cometimento podia com efeito ser de importância igual à do canal transoceânico que os americanos vão concluir em Panamá. ***** Com essa sua sensível aproximação da costa oriental dos Estados Unidos e da Europa ocidental, isto é, do mundo culto por excelência, renasce sob uma forma progressiva a velha estrada de comércio usada pelos espanhóis da época colonial, quando as mercadorias atravessam o istmo para descerem a costa do Pacífico e em vez de terem tomado o Atlântico Sul, chegavam a transpor os Andes para alcançarem o Rio da Prata.

* The South American Republics, Part I, Argentina, Paraguay, Uruguay, Brazil (New York, 1903). Ofereceu o autor um exemplar do primeiro volume a Oliveira Lima com dedicatória de 23 de novembro de 1903. Numa crítica do mesmo livro que escreveu Oliveira Lima para a Gazeta de Notícias (5 de janeiro de 1904), observou em parênteses a sede dos americanos para os negócios interesseiros na América Latina. ** "Como se em política internacional contasse, como condição de êxito, a generosidade…" Oliveira Lima na Gazeta de Notícias, 5 de janeiro de 1904.

*** The South American Republics, Part II, Peru, Chile, Bolivia, Equador, Venezuela, Colombia, Panama (New York, 1904). Em carta a Oliveira Lima, Washington, D. C, 26 de junho dc 1905, fala Mr. Dawson da obra e da presente crítica de Oliveira Lima: Your most kind and welcome letter of June 10th received. I thank you most heartily for the appreciative criticism of my book in the San Paulo paper. I sent you a copy of the second volume, addressed to Rio de Janeiro, and suppose it is lying there in the foreign office forgotten by the mailing clerk. I am afraid there are no copies bound in blue in New York. I think the blue ones were in the European edition only; but I cannot be sure of this until I hear from the publishers in New York. **** Refere-se Oliveira Lima à Colombia e ao Panamá, este último desmembrado da Colômbia como resultado de uma revolução que estalou no dia 3 de novembro de 1903. No dia seguinte proclamou-se a nova república independente, e no dia 6 do mesmo mês foi-lhe reconhecida a independência pelos Estados Unidos. . .. / took the Canal Zone and let Congress debate, disse Theodore Roosevelt em 1911. ***** Foi aberto à navegação a 15 de agosto de 1914.

 

O resultado correlativo da abertura do canal será sempre certa mente desviar mais a atenção economicamente absorvente dos Es tados Unidos para o lado ocidental da América do Sul, dividindo portanto em partes pelo menos iguais as suas preocupações mercan tis e políticas com relação ao nosso continente. Aliás o Peru já é um campo predileto de exploração americana e o Chile merece presentemente à grande república, além da consideração que sem pre impôs, a estima que escasseava nos tempos de Blaine,* da primeira conferência pan-americana** e do incidente do Balti-moré.***

É evidente que o Sr. Dawson não nutria a pretensão de apresentar novidades na parte narrativa do seu trabalho de vulgarização. A extraordinária conquista do Peru já foi esboçada com mestria inexcedível por um compatriota dele, o historiador Fiske,**** e antes de Fiske, outro americano, Prescott,***** a descrevera com menos senso artístico talvez, mas com uma competência, uma consciência e uma segurança que lhe valeram um universal renome literário.

À costa do Pacífico cabe o melhor da magia do passado anterior à descoberta, como o melhor da intensidade dramática da época ulterior. A costa do Atlântico não oferece tradições por igual forma românticas. Eram uns miseráveis índios os do nosso lado, dispersos, selvagens, guerreando-se uns aos outros, sem sombra de organização social e política que se encontrava nos platôs andinos e Litoral de além, e pela qual se tinham assegurado uma atividade pacífica e uma indústria comunista sob a direção guerreira de uma monarquia teocrática.

* James Gillespie Blaine (1830-1893), secretário de Estado em diversas épocas (1881, 1889-1892) dos presidentes Garfield, Arthur e Harrison. Em 1881 quis suavizar a sorte do Peru na guerra desastrosa para este com o Chile, que sobreveio como resultado da desinteligência que surgiu sobre a posse de certos territórios fronteiriços onde então se exploravam ricas minas de nitrato. ** Realizada em Washington, em 1889, sob a presidência de Blaine, de quem partiu a iniciativa para a magna reunião. O Chile ao princípio não quis aceitar o convite para comparecer à assembléia, por temer a possível discussão em público da questão com o Peru.

*** Deve ser visto dentro da história da revolução que rebentou no Chile em 1891 contra o Presidente Balmaceda, que até a sua derrota nesse mesmo ano teve sempre o apoio do ministro dos Estados Unidos, Pa-trick Egan. No dia 16 de outubro de 1891 os marinheiros do navio de guerra americano ancorado em Valparaíso, o Baltimore, desembarcaram para visitar a cidade, onde logo se deu uma série de tumultos em que um americano encontrou a morte e algumas outras pessoas, americanas e chilenas, ficaram feridas. Depois dum inquérito, os Estados Unidos pediram reparações, o que o Governo chileno se recusou a dar. O incidente, que envenenou as relações entre as duas nações, e que trouxe a ameaça de guerra, ficou terminado em julho de 1892, quando o Chile ofereceu pagar a quantia de 75.000 dólares pelos prejuízos sofridos pelos Estados Unidos.

**** John Fiske, The discovery of America with some account of ancient America and the Spanish conquest (2 vols., Boston e New York, 1898), II, 365-426. Fiske era amigo de Oliveira Lima, a quem ofereceu, além da sua fotografia com autógrafo, um exemplar do seu trabalho. ***** William H. Prescott, History of the conquest of Peru, with a preliminary view of the civilization of the Incas (2 vols., New York, 1847).

 

A aventura de Pizarro, correspondente à de Cortés no hemisfério norte, é um dos capítulos mais fascinadores ao mesmo tempo que mais repugnantes da história da humanidade, e esta dupla feição, a qual se sobrepôs ao fundo a um tempo sanguinolento e místico da civilização dos Incas, como que se perpetuou na história colonial e independente, cujas páginas de heroísmo são tão abundantes quanto as páginas de vileza, nela se confundindo o suave perfume da bondade e o vapor acre da atrocidade.

Também foi no lado do Pacífico que se efetuou a colonização aristocrática mais pronunciada, a qual hoje ainda se denuncia no desprezo pela plebe e na deferência pelo nascimento nobre, e que se firmou mais sólido o poderio eclesiástico, o qual hoje ainda se revela pelas lutas do espírito liberal contra o clericalismo. Na Argentina e países anexos aparece mais democrática e tolerante a colonização.

A menor quantidade e a desorganização dos índios a submeter, escravizar e destruir; os trabalhos agrícolas no lugar das extrações de minério rico; as dificuldades da luta pela existência desanimando as ordens religiosas mais mergulhadas na indolência, originaram no lado do Atlântico um produto que não desmentia a raça orgulhosa, irrequieta e batalhadora, porém mas cedo se distinguiu pelo espírito de indústria, pela independência intelectual e pelo senso prático.

Senso prático, é verdade, existe também no Chile, cuja organização oligárquica e quase feudal, predominante desde os tempos da conquista, corresponde de resto melhor do que nenhuma outra do continente às condições particulares de civilização. As gentes entretanto que aí dominavam no tempo de Ataualpa e de Pizarro eram pela maior parte indómitas e estavam longe de oferecer o espetáculo, mais culto na sua sujeição, da região setentrional de Cuzco a Quito. É por isso curioso observar que, onde no século XVI existia uma altiva barbárie e onde se fazia mister pelejar contra as hordas ariscas e contra a terra inculta, floresce hoje o melhor da civilização neo-hispânica, enquanto que a rebeldia e a desordem têm sido muito mais pronunciadas onde então reinava a disciplina e vingava a fertilidade.

O esforço de deslocação daquela já arraigada civilização abo-rígine foi mais acentuado ou pelo menos mais repulsivamente trágico, e ao mesmo tempo mais corruptor do que o de transplantar para um terreno quase por desbravar uma civilização estranha que criou raízes e vai prosperando, mau grado as inclemências e as borrascas do meio.

As guerras civis, tão típicas na América do Sul, nasceram com a fundação do seu sistema de colonização, ou antes de conquista, e a luta, no tempo da conquista, como no da independencia, como no de hoje, foi invariavelmente ditada pelos mesmos motivos: as ambições de mando, a sede das riquezas, os interesses em prol ou contrários à escravidão dos índios ou as liberdades populares to madas como pretexto; numa palavra assentou sempre sobre a par tilha dos despojos. No Pacífico a administração espanhola e de pois a administração autônoma revelaram-se pouco menos opressivas do que a primitiva monarquia incásica, com a diferença que a opressão produziu nos dois casos resultados diversos. Ao ser destruída, a monarquia dos Incas terminara justamente o ciclo das suas possíveis anexações, estendendo-se praticamente por toda a região compreendida entre o mar e os mais altos cumes da Cordilheira, ao passo que o governo dos vice-reis, no Peru pelo menos, o centro político, literário e social da América do Sul, teve que se concentrar.

O sistema de servidão e de crueldade estabelecido pelas encomiendas, * o regime de monopólio e de isolamento criado pela voracidade da metrópole,** a exploração das minas de prata que logo foram a fortuna e geraram a imoralidade impediram, juntamente com a configuração orográfica, que Lima presidisse a uma expansão como aquela a que os portugueses se entregaram no outro lado, e cujo efeito foi ficarem com uma parte do continente infinitamente maior do que a que lhes coubera na partilha original. A energia militar dos espanhóis esgotou-se em dissensões intestinas e em guerras de índios, resistindo os araucanos *** durante séculos à incorporação, quando a dos portugueses achava mais nobre emprego em resistir a agressões e ocupações estrangeiras, de que pela distância se conservou singularmente livre a costa ocidental.

* Sistema tributário imposto aos indígenas da América Espanhola, principalmente do México e do Peru, ao qual em determinadas épocas se ligou a obrigação de serviços pessoais. No Brasil, onde imperou a escravidão do negro, ou então, como no antigo Estado do Maranhão, o trabalho forçado do indígena das aldeias, nunca houve nada, que eu saiba, que se possa comparar com a encomienda. Sobre ela ver o excelente estudo de Astrogildo Rodrigues de Melo, As Encomiendas e a Política Colonial de Espanha, Boletim XXXIV da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (S. Paulo, 1943); e do mesmo autor, publicado na mesma série, O Trabalho Forçado de Indígenas nas Lavouras de Nova-Espanha (São Paulo, 1946).

** Parece-me justo observar que Oliveira Lima, nas suas apreciações do período colonial da América Espanhola, mostra-se partidário até certo ponto do que os espanhóis chamam a leyenda negra. O leitor, querendo, pode encontrar um corretivo ameno do extremismo dos historiadores da época liberal no recente livro de Salvador de Madariaga. The Rise of Tre Spanish American Em-pire (London, 1947), e no de Rómulo D. Carbia, Historia de la Leyenda Negra Hispanoamericana (Buenos Aires, 1943).

*** Nome dado aos índios do Chile localizados, durante a época colonial, ao sul de Santiago.

Contudo, a independência hispano-americana foi toda ela ga-nha a ponta da espada, após uma luta porfiada. A nossa, pelo con-trário, igualmente separatista e igualmente republicana na sua ten dência geral, foi salva da guerra fratricida, ao mesmo tempo que desviada da demagogia e portanto da anarquia, pela dinastia nacio nal,. que assim tornou quase incruenta a emancipação, preservou a unidade política e não careceu de imolar as liberdades. Porventura aquela origem pacífica, combinada com a história da ocupação, menos agitada em suas discórdias civis, explica que nós, descenden tes de portugueses, sejamos menos dotados do instinto militar do que os descendentes dos espanhóis.

O Sr. Dawson encontrou nas magníficas obras do General Mitre sobre Belgrano * e San Martin ** dos trabalhos históricos de raro valor na nossa literatura latino-americana — a melhor parte das suas informações sobre a gênese da libertação dos domínios espanhóis na América do Sul, que Torrente desenhara mais ao jeito da metrópole. *** A história posterior a essa fase é menos gloriosa, posto que semelhantemente fértil em episódios bélicos, de uma efervescência continuada, monótona porém no seu movimento, porque este se resume em raros parênteses de paz e confiança, abertos por um ditador que sacrificava a liberdade à ordem, numa rota confusa e revolta.

As duas lições não têm sido entretanto perdidas, os tempos não têm passado sem produzirem experiências e acusarem melhoria, e a América Latina toda ela, a parte adiantada como a atrasada, apresenta uma perspectiva quase uniforme de tentativas de regeneração mais sérias e eficazes do que aquelas, ilusórias e inconsistentes, a que emprestavam seus nomes os generais caricatos que desacreditaram um continente. São consideráveis, respeitáveis e louváveis os esforços empregados por esses países, ou antes pelos elementos melhores desses países, para apagar uma tradição já demasiado longa e demasiado enraizada de desassossego, de desgoverno, de rapinagem; para elevar o nível da educação, infelizmente das classes superiores mais do que das inferiores; para estimular o sentimento da responsabilidade moral, ao mesmo tempo que a riqueza se vai espalhando c aumentando o conforto ou a necessidade do conforto.

Se tudo isto ainda está muito incompleto, não é razão para se pensar que jamais se há de completar. A solução do problema depende de causas variadas e reside sobretudo na afluência da imigração européia. A prosperidade cresceu sempre à medida que tal elemento se avolumou e foi bem acolhido. É inquestionável que da America do Sul espanhola, as nações onde o progresso é mais fraco, são aquelas onde foi maior a importação de africanos, co mo a Venezuela e o Peru, ou foi muito mais forte a infiltração sangue índio, como a Bolívia e o Equador; ao passo que a Argentina, onde o branco estrangeiro fêz desaparecer o negro e o indígena, e o Chile, onde a aristocracia territorial se conservou à dis tância dos cruzamentos em que se deleitavam os peones,* são in contestávelmcnte as nações mais ricas em promessas e mais abun dantes em realidades.

* Bartolomé Mitre, Historia de Belgrano y de la Independencia Argentina (4.a edição, 3 vols., Buenos Aires, 1887). Esta edição foi a que Oliveira Lima consultou.

** Historia de San Martín y de la Emancipación Sud-americana (2.a edição, 4 vols., Buenos Aires, 1890). Esta edição foi a que Oliveira Lima consultou.

*** Mariano Torrente, Historia de la Revolución Hispano-Americana (3 vols., Madri, 1829-1830).

 

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No sei precisamente qual a razão preferente: se porque bai xou a estatura moral dos políticos do Novo Mundo, se porque se preocupações de natureza econômica primaram por completo no Velho Mundo sobre as de ordem liberal. Estas, e outras razões mais contribuíram proporcionalmente para um mesmo resultado que é o ter a América Latina deixado de interessar à Europa como acontecia há três quartos de século atrás. O espetáculo passou porventura de ser atraente para ser tedioso, porque lhe faltaram a vibração das primeiras representações de combate, de uns Hernântí políticos, e o gesto folgado dos atores de primeira plana.

A literatura inglesa, alemã e francesa sobre o Novo Mundo é, com efeito, das mais consideráveis entre 1810 e 1830, tanto a pitoresca como a estatística, tanto a histórica como a descritiva, c as figuras heróicas da Libertação falavam então extraordinariamente à imaginação dos povos mais cultos, aparecendo gigantescas como as de ciclopes que forjassem num antro de desolação uma obra bela de regeneração intelectual. Bolívar, por exemplo, teve o seu período de aura estrangeira tanto ou mais brilhante quanto a de Washington.

Lafayette, incumbido de fazer chegar às mãos do grande venezuelano um medalhão contendo uma miniatura e cabelos do gra"de virginiano e levando gravada uma inscrição de oferta pelo adotivo do autor da Liberdade na América do Norte… àquele que alcançou glória igual na América do Sul, ** diz na sua carta a Bolívar que a personagem algum da história houvera oferecido de preferência o mimo o próprio Washington e ajunta as seguintes memoráveis palavras de veneração:

Que mais diria eu ao grande cidadão que a América do Sul saudou com o nome de Libertador, nome confirmado por ambos os mundos, e que, dotado de influencia igual ao seu desinteresse, aninha no seu coração o amor da liberdade sem reserva alguma e o da República em toda a sua pureza? *

* Palavra que se emprega nalgumas panes da América Espanhola para descrever os trabalhos rurais de ínfima qualidade. No Chile emprega se de preferencia a palavra huasos. ** Aristides Rojas, Washington en el centenário de Bolívar, ofrenda al libertador en su primer cente nario impresa por disposición del ilustre americano, regenerador, pacificador y presidente de los Estados Unidos de Venezuela General Gusmán Blanco, 24 de julio de 1883 (Caracas, 1883), p. 11.

 

Não creio — outro caso — que personagem algum da América do Sul de hoje, nem mesmo o General Mitre que há pouco morreu cercado do respeito universal, ** possuía com os diretores da política européia as relações cordiais e íntimas que o General Soublette *** mantinha com Lord Clarendon.**** Acabo de ler, publicadas pelo falecido historiador colombiano Ricardo Becerra, uma porção de cartas de conhecido homem político inglês nos anos de 1841 e 1846, ***** que são das mais significativas por vários motivos: pela confiança que lhe inspirava o futuro de Venezuela, entregue a patriotas virtuosos que, no dizer dele, tinham logrado fazer brotar a ordem do caos da guerra civil, conservando a liberdade mesmo sob instituições amplamente populares; pela consideração particular que lhes infundiam os talentos e outros predicados pessoais do General Soublette; pela crença que afagava o parlamentar britânico da possibilidade de um verdadeiro sistema representativo na América Latina; finalmente pelo receio que manifestava dos Estados Unidos e da sua política ambiciosa, assim se externando a propósito da anexação do Texas:******

Quão necessária é a estreita união das repúblicas hispano-americanas para oporem um dique à desaforada ambição daqueles pretensos civilizadores!

Soublette merecia bem a amizade e respeito de Lord Clarendon, como merecera de Wellington que dele dissesse a Lord Aber-deen nunca haver encontrado pessoa que lhe fizesse impressão mais favorável. As suas façanhas militares, uma guerra prolongada e desigual, caracterizada pela ferocidade das represálias, foram excedidas pelos seus esforços sinceros em prol da estabilidade administrativa e das bases liberais de organização de uma terra que, desconjuntada em 1830, ainda durante a agonia de Bolívar, a federação criada pela sua valentia e pela sua perseverança, * oferecia o quadro que o citado historiador Becerra traça numa página que vale a pena traduzir por sintética e impressiva:

* Ibid., p. 12. A carta do General Lafayette a Bolívar foi escrita cm Washington e traz a data de 1 de setembro de 1925.

** Mitre morreu em Buenos Aires a 19 de janeiro de 1906.

*** O General Carlos Soublette (tl870) foi um dos homens notáveis da Venezuela. Militou nas guerras da independência e serviu de secretário ao General Francisco de Miranda. De 1837 a 1838 esteve encarregado do poder executivo da Venezuela; foi presidente efetivo da república de 1843 a 1848. Também foi ministro do seu país na Inglaterra. **** George William Frederick Vil-liers, 4.° Conde de Clarendon (1800-1870), estadista e diplomata inglês. Foi Vice-Rei da Irlanda, tomou parte no Congresso de Paris, e serviu de ministro das Relações Exteriores nos gabinetes de 1853, 1865 e 1868.

***** Ricardo Becerra (1836-1905).

****** A vasta província de Texas, para onde uns 30.000 americanos tinham imigrado dos Estados Unidos nos anos imediatos à independência do México, revoltou-se em 1835 e no ano seguinte conquistou a sua liberdade política. Em 1845 entrou Texas para a união americana. As intrigas britânicas na questão foram magistralmente estudadas por E. D. Adams, Brilisli Interesls and Activilies in Texas, 1838-1846 (Baltimore, 1910).

 

Por sede e teatro um vastíssimo território, quase deserto, para mais devasI tado e empobrecido até o esgotamento numa guerra implacável. Como pes soai, um punhado de colonos de raças e cores distintas, ignorantes na maioria, instruídos uns poucos, todos sem educação política, nem outra escola de admi nistração c governo além de um direito municipal amplo em teoria, mas muito fiscalizado na prática pelo receoso poder da mctrópolçe.

Um estado social embrionário com classes dantes sobrepostas pela conquis ta e pela escravidão, logo saídas dos eixos e confundidas, mas não harmoniza das pelo movimento revolucionário. Uma propriedade imóvel pobre, mal constituída, sujeita freqüentemente à espoliação e que carecia da prescrição para garantir seus títulos cm o novo regime. Ambições numerosas, ardcnttes, justificadas todas elas por serviços heróicos, que desembocam ao mesmo tempo no teatro da vitória, repletas de desejos, sem noções cívicas capazes da ponderá-las c acalmá-las. Por fim, o antigo inimigo cm frente, nas cosias de Cuba e Porto Rico, fumaradas de incêndio mal extinto em vários pontos da do território, e por acréscimo a voz, quase o mandado da antiga união colombianu nos lábios do homem extraordinário que agoniza à beira do Atlântico. Nunca elementos tão pobres e tão reciprocamente opostos serviram para levantar uma construção política.

O tempo foi, com efeito, mostrando como eram realmente de ficienles os elementos em questão. A obra dos constituintes de 1830 foi ordeira e liberal, prometendo vingar e dar frutos que bem sazo nassem;** mas logo entrou a fermentação daquela mistura inicial a operar e a corromper o resultado. O atraso rural por um lado, determinando uma economia de proveito problemático, que a fe racidade da terra tende todavia a assegurar; a indisciplina das vontades por outro, originando a anarquia no Governo; todas as paixões achando pasto nas sucessivas contendas civis; os sonhado res generosos da república e os defensores incoercíveis da independência substituídos por aventureiros de caserna, acompanhados de aventureiros de toga: eis o espetáculo que, vinte ou trinta anos de pois, apresentava na sua triste plenitude a criação prometedora de Bolívar em qualquer dos fragmentos em que se despedaçara.

A corrupção de Guzmán Blanco, *** cultivada num longo consulado, trouxe uma paz instável com um rebaixamento mais acentuado porém dos caracteres. O crédito do país, que no seu alvorecei arrancara votos simpáticos de toda a Europa culta e liberal, fora-se, entretanto, desmoronando, enquanto se esvaía no geral o prestígio ou antes a sedução da América Latina, que era muito a tentação do fruto proibido.

* Trata-se do desmoronamento da Grã-Colômbia, a federação da Nova Granada (hoje Colômbia), Venezuela, e Equador ideada por Bolívar, o qual veio a falecer, quase ao abandono, em 17 de dezembro de 1830. ** O congresso constituinte da Venezuela reuniu-se em Valência em 1830, declarou a independência da nação no dia 6 de maio, promulgou a constituição federal no dia 22 de setem bro, e nomeou José Antonio Pác/ presidente.

 

*** Antonio Guzmán Blanco teve ao seu cargo o poder supremo da Vem zuela, direta ou indiretamente, dfl 1870 a 1888.

É mister observar o que Becerra põe bem em relevo na introdução publicada no seu estudo sobre Soublette, a saber, que o elemento educado, tradicional, aristocrático (se a palavra não c mal soante, denominando-o o autor liberalismo hierárquico, ilustrado, produto direto da cultura europeia) íoi desde muito sendo gradualmente levado de vencida pelo elemento popular, inculto, nati vista nas idéias como nos sentimentos, numa palavra democrá tico; nem esquecer que uma democracia pode ser ateniense.

Éste elemento muito a começo guerreara até o outro, o que aliava a aspiração da independência com as tendências oligárqui cas, e só a junção dos dois tornou afinal possível a separação da metrópole, reunindo-se num mesmo objetivo o pensamento c a força. Não dependeu do pensamento ser esbulhado pela força, mas d fato é que a tradição colonial que queria transformar-se sem se desmanchar no molde das novas idéias e das novas necessidades foi suplantada pela brutalidade plebéia do movimento de revolta ou, antes, de destruição, marcado pelo compasso da lança do lianero, cuja energia, como a de Anteu, se renovava após cada esforço pelo contacto com a terra sobre que livremente galopava.

A desagregação da Colômbia foi o primeiro fruto desse movimento de que se derivou, involuntariamente, não conscientemente, como é próprio das doenças, a série de convulsões que tem sido a história chamada constitucional, e que antes deveria chamar-se inconstitucional, da república nascida de um conúbio que as mais das vezes se pode dizer híbrido do liberalismo e da democracia. O General Páez, * o fundador da Venezuela autônoma, e alguns mais dos democratas foram os primeiros, verdade é, que, influenciados talvez pela autoridade moral dos idealistas e pela magia próxima das suas ilusões, se deixaram sugestionar pelas liberdades civis, que respeitaram e até praticaram.

Não dependia, contudo, mais deles parar a obra da gangrena que tinha entrado e fora corrompendo os músculos do corpo nacional.

A demagogia militar seguiu invadindo a esfera da administração ao som dos imortais princípios, da mesma forma que os girondinos e o próprio Rouget de Lisie subiram ao patíbulo ao som da Marselhesa redentora.** Os demagogos dos quartéis e dos jornais intimavam que aqueles princípios não eram acatados pelos fidalgos, pelos próceres, pelos reputados oligarcas, e no quererem aplicá-los, impondo-os a seu modo e jeito, foram matando as liber dades. O autoritarismo, que não pudera florescer na atmosfera temperada do liberalismo, teve de se instalar aos poucos em re~ ção à anarquia e como medida de salvação pública. A ocorrência é comum na história, dando-se, no entanto, desta vez com elemen tos muito menos susceptíveis de regeneração porque, sem verdade representativa e com falta de base popular, os elementos em ação agitavam-se sem rumo nem firmeza numa louca sarabanda. Em tais condições, que subsistem para parte da América Latina e para o resto há bem pouco que deixaram de existir, não admira que desaparecesse o melhor do interesse europeu pelo Novo Mundo de Bolívar, Belgrado e San Martin.

* José Antonio Páez (1790-1873) — dissera dele Simão Bolívar que "es vano y ambicioso, no quiere obedecer sino mandar: sufre al verme más arriba que él en la escala política de Colombia: no conoce su nulidad: él orgulho de la ignorancia le ciega" (L. Peru de Lacroix, Efemérides Colombianas sobre Venezuela, Colombia, Ecuador que Formaron en un Tiempo una Sola República (Paris, 1870), p.73 — dominou o horizonte político da Venezuela durante largos anos como protetor que foi da oligarquia conservadora. Foi Presidente da República de 1830 a 1835, 1838 a 1843 e dc 1861 a 1864.

** Houve aqui engano. Claude-Joseph Rouget de Lisle (1760-1836), autor da letra c compositor da música da Marselhesa, não morreu na guilhotina.

 

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Um tema interessante de história constitucional americana, ou, melhor, de psicologia coletiva latino-americana, seria a enumeração, documentada e comentada, das tentativas feitas desde a Independência para o estabelecimento, no meio constituído democraticamente, de realezas próprias. O seguimento é picante, através de meio século, da velha idéia monárquica, rebelde a desaparecer de um continente que a fraseologia demagógica denominou o livre solo onde só logra vicejar a flora republicana.

Haveria que começar pelas intrigas portuguesas no Rio da Prata para o prolongamento da dominação da dinastia nacional; passar pelas tentativas mais ou menos sinceras dos próceres da independência argentina para enxertarem na colônia um ramo da árvore bourbônica, * evocar as ilusões românticas de Chateau-briand; ** recordar a política da Santa Aliança de transplantar para a América Espanhola a instituição ameaçada na Europa pelos povos em fermentação de revolta, e ferida aquém mar pela organização da democracia anglo-saxônica — de Washington, o qual, como César, recusou a coroa, mas com esta a realidade do poder. ***

Haveria mais a mencionar os sonhos nacionalistas e já india-nistas de Rivadavia, de Belgrano e outros, de uma dinastia incásica consorciada com uma casa reinante européia; **** narrar o episódiò lúgubre de Iturbide; * relembrar o oferecimento do cetro real a Bolívar feito pelos patriotas colombianos, ** desiludidos da miragem republicana e de que foi portador Antonio Leocádio Guzman, o pai de Guzman Blanco e publicista eminente de Venezuela, ‘ 0 qual para isso se dirigiu ao Peru, onde se encontrava pelejando o Libertador. ****

* Em Buenos Aires considerou-se a candidatura de Dom Carlos Luís de Bourbon, Duque de Luca, neto de Dom Carlos IV de Espanha. ** A lembrança que teve Chateau-briand, quando ministro das Relações Exteriores (1823-1824), foi de se criarem monarquias constitucionais na América Espanhola. *’** Durante a assembléia constituinte, que se realizou em Filadélfia em 1787, isto é, antes da eleição de Washington para presidente, discutiu-se a idéia de uma monarquia eletiva, servindo o monarca assim eleito por toda a vida, mas a Washington nunca se lhe ofereceu pelo menos oficialmente, a coroa. Depois da ratificação da Constituição pelas províncias americanas em 1789, propôs-se no Senado conceder a Washington o tratamento de suprema alteza e o tí tulo de protetor das liberdades do povo, mas a proposta não teve efeito. **** A idéia de uma monarquia incaica partira de Manuel Belgrano, o não foi, ao contrário do que se possfl imaginar, posta de lado sem séria dis cussão na Argentina.

 

A enumeração terminaria na tragédia de Querétaro, ***** após o ensaio de império hispano-americano destinado a contrabalançar ;i expansiva democracia saxônio-americana e promovido pelo espírito sonhador de Luís Napoleão. Entre esses dramas e comédias mais conhecidas, quantos entremezes menos divulgados porém, que seria interessante pesquisar, trazer à luz e explicar!

Ê, por exemplo, bastante sabido que em 1829, no ano anterior à dissolução da Grande Colômbia e à morte angustiosa de Bolívar tão descoroçoado da sua obra política que, pouco antes de expirar, escrevia tristemente sentir como se tivesse arado no mar****** quando os enredos dos generais ambiciosos de dominar e a crescente desordem dos espíritos faziam prever o século irrequieto e doloroso que tem atravessado a antiga Nova Granada, houve em Bogotá uma ativa propaganda para o estabelecimento de uma monarquia constitucional, que não pôde vingar por haver Paez separado Venezuela do seu trono político e terem na Pequena Colômbia tomado a direção dos negócios os militares que se proclamavam democratas.

* Agustin de Tturbide (1783-1824), natural da Nova Espanha, primeiro serviu nos exércitos del-rei para depois consumar a independência do México, em 1821. Na falta dum príncipe da casa de Bourbon, subiu hurbide, com o nome de Agustín I, ao novo trono imperial do México em 1822. sendo obrigado em 1823 a abdicar. Regressando ao seu país, da Europa, para chefiar o que êle esperava ser uma revolução popular contra o governo da república, foi feito prisioneiro pelas autoridades desta e, em 1824. fuzilado.

** Numa carta escrita a José Fernández Madrid. Bogotá, 13 de fevereiro de 1830, diz Bolívar que o autor principal do oferecimento do ano de 1826 foi o General José Antonio Páez. "Para ello movió todos los resortes y, sin embargo, yo rechacé sus ofertas, desdeñando una corona que me hubiera cubierto de ignominia." Vicente Lecuna, Cartas del Libertador Corregidas Conforme a los Originales. Mandadas Publicar por el Gobierno de Venezuela Presidido por el General J. V. Gémez, IX (Caracas, 1929), p. 233.

*** A obra dispersa de Antonio Leocadio Gusman foi reunida em quatro volumes com o título de Datos Históricos Sur-Americanos (Bruxelas, 1878-1882).

Pelejando, propriamente dito, não. Depois da batalha de Ayacucho (1824), o único foco espanhol de resistência (e este de somenos importância) foi Callao, que acabou por sc render a 22 de janeiro de 1826. Bolívar dedicava-se antes à organização política do antigo vice-reinado do Peru.

***** Em 19 de junho de 1867 o Arquiduque Fernando Maximiliano, irmão do Imperador Francisco José da Áustria, foi fuzilado pelos mexicanos nos arredores da cidade de Querétaro. Mercê da força militar francesa, fora o arquiduque designado imperador do México em 1863. A última tentativa de restauração monárquica no Novo Mundo teve, pois, um desenlace fatal.

****** Em carta ao General Juan José Flores disse o Libertador que "ei que sirve una revolución ara en el mar.. ." Barranquilla, 9 de novembro de 1830. Lecuna, op. cit. p. 376.

 

Pois ainda em 1843, segundo acabo de ver em documentos recentemente publicados, um estadista c diplomata colombiano, Limo de Pombo, que batalhara na guerra da independência e compartilha ra as responsabilidades do governo autônomo, manifestava em carta ao General Soublette, duas vezes presidente de Venezuela e uma das figuras mais simpáticas e austeras dos anais desta República, a sua convicção da necessidade da implantação da autoridade real.

Toda a esperança de melhoria [manifestava êle] supõe a continuação da paz interior, coisa muito problemática nestas malditas chamadas repúblicas americanas, onde nunca será possível contar com o dia de amanhã senão quando, à força de experiências e desenganos, tiverem ganho terreno e triunfado sóbrias exageradas teorias democráticas os únicos princípios estáveis de governo. Entre nós, os granadinos, onde a escola do positivismo adquire cada dia m prosélitos, há tempos que se busca a alavanca com que travar a roda d revoluções, e já existe, por conseguinte, entre a classe ilustrada um numeroso c respeitável partido em favor da monarquia constitucional com um príncipe europeu Bourbon de qualquer dos ramos dinásticos, como sendo o sistema único de assegurar-nos o gozo das liberdades públicas e de enveredarmos para a felicidade. Não está porventura longe a época em que francamente comecem a ser preconizadas as doutrinas monárquicas c a procurar em seu apoio o sustentáculo da opinião. *

Soublette, que era um homem de princípios, o que às vezes impede de ver as coisas claramente, rechaçou a proposta e reafirmou a sua fé republicana em conceitos que o tempo não tem, infelizmente, comprovado. Para esta dupla corrente, que depois de 1850 deixou propriamente de coexistir — pois que a aventura de Maximilia-no foi um tanto anacrônica por incompatível com o desenvolvimento tomado pelos Estados Unidos ** e com as tradições já formadas pelo regime democrático mexicano, apesar de até então anár quico — constituía o Império do Brasil um incentivo e uma provocação: incentivo para os que lhe invejavam a mnis ampla liberdade ligada com a ordem mais cedo conquistada, e provocação para os que lhe temiam a pujança dessa ordem derivada, o imediato espírito militar e de absorção, a influência última da sua força e do seu prestígio em benefício da instituição que era o único país a representar na América.

Por ocasião da Guerra do Paraguai, tachada de guerra da conquista e que, com efeito, o foi, no terreno econômico, para a República Argentina, o Brasil chegou a sentir de perto o hálito quente das increpações apaixonadas das suas vizinhas republicanas, mas penso que nunca a desconfiança foi maior do que nos primeiros tempos, logo depois da independência comum, quando o império espanhol se libertou, fragmentando-se, e a colônia portuguesa, graças à monarquia, se libertou, mantendo sua unidade c assim afirmando, ao que se supunha, o seu poder de expansão.

* Carta de Lino de Pombo.
** Foi de fato a atitude enérgica assumida pelos Estados Unidos, logo depois da guerra civil que terminou em 1865, que obrigou a França em grande parte a desistir da sua aventura mexicana. Isto acabou de poi der a causa de Maximiliano, o qu|] sem o apoio militar de Napoleão III. se viu abandonado e, portanto, obrigado a percorrer o calvário que o levou à morte inglória em 1867.

 

£ verdade que a anexação da Banda Oriental e sua conversão em Província Cisplatina emprestavam fundamento a essas descon-fiannças, que aparecem, mesmo claras e precisas, na larga correspondência, hoje publicada, de Bolívar. O Libertador, quando se lançou na empresa da expulsão dos espanhóis do Peru, concentrou forças na nossa fronteira mal demarcada e esteve a ponto de nos atacar por motivo dos limites do Alto Peru e sobretudo por temer as cobiças brasileiras, muito exploradas desde então.:

Neste sentido a integração republicana do continente correspondeu, na sua apregoada e exagerada fraternização de discursos, a alguma coisa mais do que uma simples figura de retórica materna lica: foi a ruptura, menos consciente do que fatalista, de uma tradição já longa de antagonismo, político mais do que racial, estabelecido ao verificar-se a diferenciação das metrópoles de suas possessões.

Por outro lado, para explicar o prolongamento ultramarino do sentimento monárquico, apesar da revolta colonial ser contra tudo quanto a metrópole encarnava como instituições e como métodos, há que contar em sociologia com a natural persistência de um sentimento ou a reação conservadora de uma idéia, quando se trata de transformar aquele ou substituir esta. Não há movimento histórico que seja descrito como mais espontâneo, mais geral e mais irresistível do que a Declaração da Independência americana, e contudo acaba um autor, Sr. Hazelton, um destes escritores que gostam de esmiuçar as coisas e de alterar-lhes o aspecto tradicional, de escrever um compacto e documentado volume para mostrar quanto em 1775, no ano de Bunker Hill, com a guerra já acesa, a maioria das colônias desejava a reconciliação. **

Poucos eram os que, um ano antes de afirmá-la, nutriam a aspiração separatista, e desses mesmos uns se mostravam receosos e outros acanhados no manifestarem tal opinião. O primeiro Congresso Continental *** não encarou sequer a hipótese da Independência; os próprios Franklin, Washington e Jefferson — suas cartas testemunham — a declaravam fora de questão ou pouco razoável Pensilvânia e Nova York, duas das mais importantes colônias. rejeitavam abertamente. Diz John Adams que em Filadélfia fugiam dele como se fosse leproso, pelo fato de o descreverem como separatista, * pois em Massachusetts se começara com efeito a enxergar a necessidade de uma medida que foi gradualmente parecendo às outras colônias forçosa e imperativa.

* A 2 de julho de 1824, Luís José de Carvalho e Melo, ministro dos Negócios Estrangeiros, convidou os governadores de Chiquitos, Santa Cruz de la Sierra e Mojos a incorporarem os seus respectivos territórios ao Brasil. O convite foi aceito pelo governador de Chiquitos, Tenente-Coronel José Maria Velasco, em nome do Coronel Sebastião Ramos, enquanto durasse a guerra entre o rei de Espanha e os "sediciosos" Simão Bolívar c Antonio José de Sucre. Assinou-se para tal efeito uma convenção entre o referido Velasco e o comandante de armas de Mato Grosso, Manuel Veloso Rabelo de Vasconcelos e, a 24 de abril de 1825, em Santa Ana de Chiquitos, procedeu-se ao juramento e proclamação de Dom Pedro I. Foi como resultado disto — a ação de Vasconcelos foi depois repudiada pelo governo imperial — que Sucre e Bolívar se mostraram hostis contra o Brasil (pelo menos nesta altura). ** John Hampden Hazelton, The Declaralion of lndependence, lis Jlis-tory (New York, 1906), p. 13. *** Inaugurado em Filadélfia a 5 de setembro de 1774.

 

A mudança de opinião foi paulatina e não sem oposição acompanhando a acentuação da política inglesa de repressão: quer dizer que, se o Parlamento Britânico houvesse compreendido a situação e por conseguinte tentado obviar ao seu desfecho, a Independência não dataria de 1776. A 1 de julho, três dias antes de adotada a famosa Declaração redigida por Jefferson, ainda a Pensilvânia o a Carolina do SuL votavam contra a separação, abstendo-se Nova York por aguardar instruções: foi preciso bastante manejo político para se alcançar a tão proclamada unanimidade. É sabido que, depois da República, somente dependeu de Washington o ser, pelo menos algum tempo, rei da América Inglesa, e o sentimento monarquista, então abafado e que parecia sepultado debaixo de toneladas de singeleza democrática c de puritanismo republicano, ressurge estranhamente, imperialista e quase imperial, debaixo do porrete de Teodoro Roosevelt.

Quem tiver ainda viçosas as suas ilusões sobre os Estados Unidos de Chateaubriand ** e de Tocqueville, *** que atente nas circunstâncias singulares do consórcio de Miss Alice, para o qual o Presidente, não o chefe de família, distribuiu 5.000 convites, cada um dos quais, mau grado a profusão, representa no dizer dos jornais americanos uma honra que conta para toda a vida! ****

O Presidente Cleveland casou-se durante a sua primeira administração o mais simples, o mais burguês, o mais despretensiosamente possível.***** Ao casamento da princesa americana ****** assiste nos seus dourados o grupo dos embaixadores; a França manda à noiva um valioso Gobelino; o rei da Itália encomenda para ela uma jóia de alta execução artística; o Senado cubano — república tributária da nova Roma — vota por aclamação um presente de 25.000 dólares ouro, do ouro arrancado ao trabalho e à pobreza: só falta que o Brasil, para não destoar nesse concerto de caras gentilezas, reúna num colar, que seria realmente o ciou do espetáculo, os mais cristalinos diamantes das nossas minas.

* Carta de John Adams a Timo-thy Pickering, 6 de agosto de 1822, citada em Hazelton, op. cit., p. 11. ** "Voyage en Amérique." Oeuvres Illustrées de Chateaubriand, I (Paris, 1853), 24-103 (a paginação não é consecutiva). Citamos esta edição por ter sido a de que se serviu Oliveira Lima.

*** Alexis de Tocqueville, De la Démocratie en Amérique (13." edição, 2 vols., Paris, 1850). Serviu-se Oliveira Lima desta edição, e por isso a citamos.

**** Miss Alice Lee Roosevelt, filha do primeiro matrimônio do Presidente, casou-se a 17 de fevereiro de 1906 com Nicholas Longworth numa cerimônia que teve lugar na Casa Branca, c que, pelo seu éclat, deu muito que falar.

***** Stephen Grover Cleveland (1837-1908) foi presidente durante os anos 1885-1889, 1893-1897. Casou a 2 de junho de 1886, aos 48 anos de idade, com Frances Folsom. ****** Chamavam-na alguns jornais americanos "Princess Alice."

 

Significará a revivescência monárquica na América do Norte, não só decorativa como administrativa, que tal ressurreição ainda se dará na América do Sul?

*

Não é muito fácil responder ao pé da letra a uma pergunta, aliás freqüente, que se costuma fazer no estrangeiro aos brasileiros, sobretudo aos que, por serem diplomatas, parecem ter mais autoridade para responder, ou, por outra, estarem em situação de responder com mais segurança. Versa a interrogação sobre a vitalidade e consistência do sentimento monarquista no país.

Seria por demais extraordinário que uma realeza de quase um século de duração, com muitas páginas brilhantes, algumas gloriosas c nenhuma vergonhosa nos seus anais, tivesse desaparecido sem deixar a mínima recordação. Que aquele sentimento existe é uma realidade inquestionável, e negá-lo compete apenas àqueles, infelizmente não raros, que derivam da diplomacia a obrigação de mentir a propósito de tudo, mesmo quando é palpável a evidência dos fatos.

Será, porém, o aludido sentimento a forte aspiração de um regresso à forma anterior de governo, ou antes a suave cristalização de uma saudade provocada pelo espetáculo do novo regime? Pulsará nas nossas veias alguma da lealdade dinástica que caracteriza o povo britânico, ou encherá nosso coração muito desgosto pelo que em redor nos tem oferecido de desanimador a moral republicana? Quer-me parecer que os erros da República trazem tão-sòmente a culpa, se culpa há nesse sentimento tão nobre quanto o do fanatismo democrático — da reversão platônica à monarquia que se abriga na alma de uma porção pequena ou grande, creio eu que não pequena, da população nacional.

O Império foi simplesmente idealizado por alguns que se lhe conservaram fiéis e por muitos que descreram da República, a qual no começo fora bem recebida por quase todos. As adesões em massa que saudaram o advento da forma de governo implantada a 15 de novembro de 1889 não significaram tanto apego aos cargos, portanto cobardia moral, quanto a irradiação de um sentimento latente de preferência republicana, até aí contido pelas conveniências e interesses cujo cultivo é tão natural, tão humano.

É um lugar-comum histórico que se a dinastia não tivesse tido que procurar um abrigo além-mar em 1808, o Brasil haveria sido uma república em 1822 ou antes mesmo, e ter-se-ia muito provavelmente fragmentado, devendo-se à Monarquia o serviço inestimável da garantia da coesão nacional, da manutenção da unidade brasileira. As doutrinas da Revolução, a austeridade e simpatia do credo liberal, a comunidade das instituições republicanas a toda a América, o espírito latino de novidade foram, porém, alimentando na nossa alma, quer dizer no elemento educado da Nação, um desejo de mudança que se traduzia pelo devaneio democrático Acresce que, ao cair, era a Monarquia por vários motivos impo pular. Impopularizara-a sobrejíido e profundamente entre as classes conservadoras a maneira por que se fizera a abolição da escravidão. E não sem causa.

Os monarquistas de coração não têm absolutamente autor| dade para censurar a República e seus governos por qualquer abuso de poder ou falta de proteção à propriedade particular, pois não se poderia conceber maior espoliação do que foi o decantado 13 de maio de 1888. Uma propriedade garantida pelo Estado, sobre a qual, depois de extinta, se cobraram ainda impostos atrasados, foi violentamente arrebatada aos seus legítimos donos sem um real de indenização, reduzindo-se muitos deles à miséria e todos à pertur bação mais grave das condições da sua economia. Pode-se, é claro, dissertar longamente sobre a anormalidade da propriedade escrava, sobre os avisos que a propaganda devia ter dado aos senhores de escravos; nem por isso subsiste menos o fato de que, sem guerra como nos Estados Unidos, onde de resto só em 1863, dois anos depois de iniciado o rompimento e aberta a pugna, ousou Lincoln lançar a "sua proclamação abolicionista, milhares de contos em bens reconhecidos pela Constituição e garantidos pelas leis foram extorquidos àqueles que os detinham e, para mais, não numa forma improdutiva, sim sob a forma do único instrumento do trabalho nacional.

Convém lembrar que o sul dos Estados Unidos pegara em armas e despedaçara o laço federal para defender, muito mais dq que a sua propriedade, a própria instituição servil, que se pretendia conservar para sempre e até estender a novas regiões; ao passo que os nossos agricultores estavam, sem exceção é lícito dizer, convencidos da impossibilidade, em face da civilização, de preservar a escravidão e só reclamavam, só pediam que os não despojassem abusivamente do que para a maior parte era o melhor da sua fortuna. A pobreza do norte do Brasil, sem negros e sem imigração, que sirva de comentário à política pela qual a coroa imolou o seu destino.

Quando se fizer a história completa e imparcial do movimento abolicionista, será um dos pontos a debater não tanto a parte tomada — visto que o afastamento e a doença o privaram de dirigir nessa época os negócios pátrios — como o apoio concedido pelo imperador à lei de emancipação imediata, incondicional e sem indenização. Tem-se dito que D. Pedro II a reprovou e também que a aplaudiu. O seu senso político e a sua longa experiência do governo entrariam porventura em conflito com o seu espírito filantrópico e a sua ambição de riscar a escravidão do mapa do mundo culto, arrasando o seu último reduto. Este último estado de espírito, uma vez consumado o ato, prevaleceria sobre o anterior. O espírito profundamente liberal do soberano folgaria decerto com a maneira incruenta por que se realizou a grande transformação — lenta mas não inocua como então se apregoou — e quiçá não julgaria excessivo o preço por que a dinastia pagou o seu açodamento abolicionista, prestando ouvidos às promessas da propaganda.

Porque o grande característico de D. Pedro II foi, além da sua intransigente probidade, o seu intransigente liberalismo. Por experiência pessoal conheço a grande estima que nos Estados Uni-dos cerca o nome do imperador, quando ali foram apreciadas e são relembradas a sua despretensão, a sua ilustração c a sua seriedade. Tem, porém, sido para mim motivo de alguma surpresa o verificar o respeito que igualmente lhe circunda o nome na América Espanhola, onde, aliás, por ocasião da Guerra do Paraguai, fora a política imperial tão acremente tachada de desabridamente imperialista. A justiça chegou mesmo aí, e não ouvi ainda pessoa alguma referir-se nestas terras irmãs a D. Pedro II senão como a um monarca e um homem modelo. A boa fraternidade republicana não é bastante condescendente para dissipar a impressão de que, sob o ponto-de-vista da moralidade administrativa, da dignidade internacional e das liberdades públicas, o Brasil nada tinha que lucrar.

A figura do imperador impõe-se sem discrepâncias, a sua memória subsiste como entre nós, onde forma, no meu conceito, o melhor do sentimento monarquista. O imperialismo, diria Monsieur de la Palisse, não existiria em França sem Napoleão, o Grande Tampouco existiria monarquismo no Brasil sem D. Pedro II. E é natural que, assim como a França, decaída da sua posição de dominadora da Europa, volve seus olhos humilhados para o extraordinário guerreiro e reorganizador que descansa nos Inválidos, o Brasil, desiludido de muitas esperanças ao ver desenfreados os apetites e soltas as paixões, volte a sua vista saudosa para o sereno e nobre ancião que jaz na terra dos seus e nossos antepassados. *

As nações precisam, como os indivíduos, destes consolos de alma. Nem é doutra maneira que se constituem as lendas. Prevenia-me uma vez o ilustre literato e político D. Eduardo Blanco, ao oferecer-me o seu conhecido trabalho Venezuela Heróica, ** que não procurasse nessas páginas de primoroso estilo, destinadas a evocar os combates nacionais dados em prol da libertação, nem o rigor da investigação nem a severidade da crítica que devem distinguir os estudos históricos. Venezuela Heróica fora concebida e composta num tempo em que o sentimento nacional atravessava uma fase melancólica, em que o espetáculo nauseante das revoluções sinistras e da anarquia moral desoladora aconselhava algum cordial, recomendava um estimulante poderoso como o que somente podia fornecer a lembrança avivada dos feitos quase místicos da Indepen dância. O livro teve grande voga e tornou-se clássico.

* Quando escreveu Oliveira Lima estas palavras, ainda jazia o imperador no panteão da Casa de Bragança, junto à Igreja de São Vicente de Fora, Lisboa.

** A quinta edição apareceu em Caracas em 1904. O exemplar na Biblioteca Oliveira Lima traz a seguinte dedicatória: Al Excelentísimo Señor / Dn. Manoel de Oliveira Lima / Su S.S.S. I Eduardo Blanco / Caracas 28 de Junio de 1905.

 

O efeito, todavia, deixou a desejar. Não se inventou, o meu es tômago que o diga, remédio algum contra o enjôo.

Como seria ò sentimento monarquista entre nós mais do que a expressão ideal de uma aspiração por alguma coisa de melhor como seria a equivalência de uma convicção poderosa, se mesmo durante o império semelhante sentimento quase não existiu sob este último aspecto? É por demais conhecido o modo por que foi o trono abandonado e renegado pelo chefe ultraconservador que era o Conselheiro Paulino de Sousa. Eu próprio recordo-me sempre de uma conversação que, dois meses antes de República, em setem bro de 1889, tive ensejo de ter na Europa com o Conselheiro José Antônio Saraiva. *

Discorrendo eu, com a confiança que me permitiam os meus verdes anos,^* /sobre a disseminação do sentimento republicano no Brasil, e assegurando ao provecto estadista, com o dogmatismo de sectário, que a República estava feita e se estabeleceria da noite para o dia, tal qual se fizera havia pouco a abolição, fiquei atônito o devo dizer também penalizado de perceber o nenhum apego do chefe liberal, duas vezes presidente do Conselho e proclamado Nestor do Senado, ao regime que servia e que nele depositava sua perfeita confiança. Pior do que isso. A expressão injuriosa com que êle qualificou a princesa imperial *** revelou-me mais do que aquele desapego, que em suma poderia ser o fruto das decepções da vida pública e de uma variação consciente de convicções: demonstrou-me nesse estadista a falta de um verdadeiro sentimento de responsabilidade do seu papel, da gravidade da sua classe e da dignidade da sua posição.

A minha ingenuidade é que pasmava. A falta em questão foi-me gradualmente aparecendo comum e penso hoje que constitui um dos nossos defeitos. É de ver que há exceções, mas não são poucos os ministros que, a exemplo de um que agora recordo, se descobriam ao subirem as escadas do ministério, tanto era o respeito tributado às suas próprias funções. Mais freqüentes são infelizmente outros que não desdenham à noite escrever em mangas de camisa mofinas nas redações dos jornais. O próprio imperador, em quem era inexcedível o sentimento do decoro, não possuía em grau suficiente a consciência da importância ou melhor da preeminência do seu cargo.

Entrava nisso o plano errado de democratizar e popularizar a Realeza, mas entrava também sincera indiferença ao valor das aparências para o prestígio da instituição. Que esperar dos outros, dos adeptos quando o próprio principal interessado assim pensava e agia, afirmando que não relutaria em trocar as galas do trono pelo modesto viver de mestre-escola?

* Estava Oliveira Lima nessa altura em Lisboa.

** Chamou-a de burra, segundo revela Oliveira Lima nas suas Memórias, p. 57.

*** Nasceu Oliveira Lima a 25 de dezembro de 1867. Tinha êle então 22 anos incompletos.

 

Junte-se a este desinteresse do mando por parte daquele a quem cabia a suprema autoridade, o instinto muito geral entre os seus governados de repulsa de todas as peias, de hostilidade contra todas as afirmações do poder, e ver-se-á que a solução de 15 de novembro tem uma explicação mais larga, possui uma razão de ser mais profunda do que uma sedição militar contra um gabinete per-seguidor ou um golpe de Estado dado por uma classe ambiciosa.

O mesmo Conselheiro Saraiva, tipo da moderação e espírito essencialmente ordeiro, indo com um amigo visitar a National Galle-ry de Londres, recusou-se a entrar porque à porta lhe exigiram a bengala. O amigo, mais acostumado aos regulamentos europeus, cansou-se de explicar-lhe que a disposição não tinha intentos vexatórios, que se tratava de uma simples precaução para evitar que algum louco ou algum imprudente furasse com a bengala qualquer tela preciosa. O venerando político não se quis persuadir de que o não quisessem fazer vítima de uma arbitrariedade, e retirou-se solene e irritado como se em São Cristóvão lhe houvesse o imperador provocado a demissão do seu ministério.

Quando o exemplo da indisciplina e da apatia parte de cima, numa terra onde os conselheiros de Estado não se querem submeter aos mais anodinos regulamentos de polícia e o chefe da Nação proclama a sua descrença da perpetuidade da sua dinastia, não pode existir um poderoso, um genuíno, um íntimo sentimento monárquico. O que pode haver é uma preferência gerada no balanço dos dois regimes e alimentada pela saudade. Ora, a saudade é de natureza inconsistente e acessível às consolações. Delicioso pungir lhe chamou o poeta, ao cantar a sua tortura frágil, o seu desespero efêmero. É muito raro que ela leve à ação. Contenta-se de ordinário com ser dolorida e platônica.

Passamos geralmente no nosso próprio foro por termos em abundância sentimentalismo, delicadeza, senso estético e outras muitas coisas que podemos possuir em proporção superior, compa-rando-nos com povos mais destituídos delas — alguns dos nossos irmãos hispano-americanos por exemplo — mas que seguramente não temos em absoluto, na escala pelo menos em que o imaginamos.

Se fôssemos verdadeiramente dotados de sentimentalismo, teríamos hesitado em inserir nos nossos anais páginas bárbaras como as dos assassinatos do Paraná, do morticínio de Canudos e outras que lhes querem correr no encalço. Durante o Primeiro Reinado e a Regência a vida humana deixou de ter no Brasil o menor valor, sendo sacrificada por atacado em lutas inglórias e na maior parte dos casos vazias de sentido. Com a República a tendência está-se infelizmente renovando, deixando as matanças de excitar funda repulsão, apenas provocando uma mórbida agitação moral.

Se possuíssemos eerdadeiramente delicadeza, não afrontariamos para os humilhar inullmente, brios que são sempre respeitáveis e antes convirá estimular, nem por outro lado rebaixaríamos instinti vãmente a independência de caráter ao nível da insubordinação no ma terra em que aliás a rebeldia é clássica e cessou de ter importãn cia, ou converteríamos invariavelmente a vitória da força em fábri ca de adesões.

Se nos distinguisse verdadeiro senso estético, amaríamos as ruínas, experimentaríamos a sensação íntima do passado, revelaría mos a veneração não convencional mas genuína das coesas idas.

Não faltam os exemplos desta ausência de senso estético. Mi nas, a capitania do ouro e dos diamantes, possuía uma velha capital que é um encanto e o seria em qualquer parte da Europa mais pitoresca e mais artística; povoada de tradições dramáticas e de lendas fragrantes; um sorriso da natureza entreaberto sob um céu ameno; uma jóia de cidade toda de palácios e igrejas do século XVIII, metida num formoso engaste de rochas e de verdura. Sem vacilar, sem que se lhe magoasse o coração, sem mesmo medir o atentado que perpetrava contra o bom gosto, desertou essa capital e mudou a sede da sua administração para um antigo curral em que parava o gado do sertão a fim de pagar o tributo antes de descer a caminho do litoral; um descampado ventoso envolto, em vez dos finos nevoeiros de Ouro Preto, por nuvens sufocantes de pó verme lho; um planalto estorcendo-se de sede sob um sol ardente de trópico.

A intenção, a tentação foi fazer à americana, fazer surgir do nada uma cidade de monumentos. Esqueceram tão-sòmente um pormenor importante: que os americanos só realizam desses prodígios quando os incita a necessidade, quando não têm belas cidades antigas que aproveitar e aformosear, num carinho expressivo pela sua história local. No Oeste é natural que se levantem capitólios onde se agrupavam casebres de aborígines; que se erga a Chicago des lumbrante de hoje nas imediações do forte que há um século, pouco mais, assinalava contendas de franceses, ingleses e índios. A leste, porém, a capital da Virgínia aristocrática não deixou de ser a cidade de Richmond que a guerra tornou famosa; a do Maryland católico não deixou de ser a Anápolis com sua academia de marinha, quase tão tradicional como a antiga Baltimore com sua sé primacial; a capital do Massachusetts puritano não deixou de ser a Boston de preocupações religiosas, literárias e democráticas.

Se nalguns Estados, como os de Nova York e Pensilvânia, se abandonou a principal cidade, Nova York ou Filadélfia, por uma capital mais nova, menos aparatosa e menos ruidosa, fêz-se isto não num prurido de desdém pelas coisas velhas, mas no intuito de subtrair o Governo e a legislatura à influência dos negócios, rodear um e outra da calma e autonomia moral precisas para as graves deliberações que lhes competem criar, segundo o modelo de Washington, em cada Estado da federação, uma cidade burocrática e pedagógica, um centro intelectual propulsor das energias. Nada disto se dava com relação a deliberação mineira. Ouro Preto já era, coitadinha, à cidade sem riqueza nem indústrias, quieta e recolhida, talhada para aquele papel. Oh, se os americanos a tivessem! Não seriam eles com seu culto cada vez mais acentuado da história nacional, com a sua compreensão cada vez mais apurada da arte e da estética, que a desprezariam e repudiariam. Se íôsse coisa que se pudesse trans-plantar, seriam até capazes de comprá-la e não vejo por que um apêgo de última hora impedisse a realização do negócio.

Um exemplo mais, Pernambuco conta ao lado do Recife a mais nhoril das povoações, o ideal dos centros de ensino, uma mina de tradições históricas, cujos vestígios de grandeza eclesiástica — a única que sobreviveu — ainda se ostentam sobre os cômoros adornados de coqueiros.

Em toda a parte existe a tendência para conservar as cidades universitárias. Só na França a plaina terrível da revolução desfez todas as peculiaridades e uniformizou todos os aspectos, centralizando em Paris a inteligência como a arte, a indústria e o progresso. Ainda assim, ficou uma Montpellier, associada indiretamente à história da nossa independência dos laços coloniais, para exemplar daquele tipo desaparecido.

A Alemanha zela entretanto com carinho inexcedível as suas Heidelberg e Bonn, a Inglaterra sua Oxford e a sua Cambridge, Portugal a sua Coimbra, a Espanha a sua Salamanca. Se a conveniência de tornar largamente acessível às suas densas populações o cultivo universitário levou esses países a promoverem grandes e fecundos estabelecimentos de ensino nos seus centros de trabalho, de política e de agitação, aquelas outras escolas ficaram em suas cidades pacíficas, isoladas como oásis da inteligência, para refúgio dos que temem os rebuliços e refrigério dos que amam a contemplação.

Os próprios Estados Unidos, país novo, quase sem tradições intelectuais particulares, organizaram ao lado de Boston a pacata Cambridge, onde funciona no seu esplêndido isolamento mental a universidade de Harvard com seus cem anfiteatros, halls, museus, laboratórios, bibliotecas; montaram Yale, Princeton, Cornell, longe dos centros de grande população e de grande indústria, verdadeiras reproduções das admiráveis cidades universitárias da Europa; em Washington mesmo e em São Francisco da Califórnia, buscaram o sossego dos arrabaldes para a instalação das suas recentes grandiosas instituições de ensino, como a Universidade Católica e a Universidade Stanford. *

No Brasil, onde desde 1828 funcionava em Olinda uma academia, prestigiada a partir da fundação por gerações de lentes reputados pelo saber e pela austeridade, e de estudantes que foram deixando nomes fulgurantes nas letras e na política, uma instituição cujos hábitos e peculiaridades já se estavam enraizando, cujas, tradições já se estavam formando e cujas tendências já se estavam discriminando, é que se entendeu sensato e progressivo transportar o núcleo universitário do Norte, teatro de uma atividade literáírio não só considerável como sugestiva, para o porto comercial em que os holandeses, mais inclinados às vantagens positivas do que às bekezas naturais, estabeleceram o seu projetado empório mercantil. Do quanto já significa e já recorda a faculdade pernambucana nos fastos da inteligência e na história do pensamento bràsileiro,\£ornece valioso testemunho a memória correspondente ao ano de 1903, cuja elaboração fora incumbida ao talentoso lente Sr. Dr. Faelante da Camara. *

* É demais dizer que Stanford fica nos arrabaldes de São Francisco, pois a distância entre esta cidade e a universidade é dumas 30 milhas pouco mais ou menos.

 

Há pouco tempo justamente eu e o Sr. Alfredo de Carvalho mostrávamos Olinda a Euclides da Cunha, na passagem*dêste para Manaus, e o coração franco aos entusiasmos e o espírito franco às seduções do passado, do ilustre autor de Os Sertões, expandiram-se a vista daquele cenário tradicional: as janelas de peitoril da biblioteca do Mosteiro de São Bento abrindo-se para a imensidade azul-ferrêite do oceano; os frescos muros caiados de branco do Convento de São Francisco, lá ao longe, sobre o morro; as paredes esboroadas e ainda imponentes do Convento dos Carmelitas; a fachada sem arquitetura ligada à igreja sem estilo do Convento de Santa Teresa, ao fundo dum capinzal verde, lembrando na disposição do edifício, mais do que no viço da vegetação em redor, e no tom a um tempo místico e leigo, despido de conforto e alambicado, os recolhimentos de frei ras dos subúrbios de Lisboa, de que persistem como tipos as velhas construções de Cheias e de Odivelas.

Esta cidade do passado, cuja Sé episcopal se levanta, tão branca no exterior quão lúgubre no interior, no local da primitiva torre , quadrada de defesa do donatário Duarte Coelho, e cujos nomes de ladeiras e largos deveriam tão-sòmente rememorar os heróis da conquista e da reconquista pernambucana, em vez dos de governadores e prefeitos, que agora se ostentam em campo azul, mas daqui a um século terão que ser exumados pelos estudiosos do Instituto Arqueológico, sob pena de se tornarem ignorados como os dos Faraós antes dos egiptólogos, merecia ser o viveiro dos nossos elementos de inteligência no futuro. Ela possui toda a placidez e ao mesmo tempo toda a sugestão propícia aos labores mentais.

No Recife pobre e decadente de hoje não abundam por certo as diversões. O teatro raramente funciona, as reuniões sociais deixaram de ser freqüentes, os desportos físicos são desaconselhados pelo clima. Contudo é o meio bastante mais largo, as preocupações bastantes mais variadas para determinarem uma dispersão que, ao contrário, em Olinda não ocorreria, estabelecendo-se nesse meio restrito e impressivo maior camaradagem entre os estudantes e maior intimidade, quando para tanto houvesse ensejo e disposição, entre lentes e alunos.

* Memória Histórica da Faculdade do Recife, Ano de 1903 — (Recife, 1904).

E seria preciso não saber calcular a marca profunda que sobre o espírito dos estudantes pode imprimir o contato fora das aulas com um professor eminente e querido, como foi Tobias Barreto e é presentemente Clóvis Beviláqua, para desprezar a possibilidade des-se desenvolução mental, muito mais fecunda do que a promovida belas lições pronunciadas ex-cathedra. Quando estudei cm Lisboa, * horas algumas eram tão aproveitáveis ao mesmo tempo que tão gratas para nós, estudantes, como as que se consumiam em passeios no velho e aprazível claustro das Mercês, ** um verdadeiro ensino peripatético iluminado pela erudição imensa e o gênio proselítico de Teófilo Braga.

Com seu ar meio desconfiado, meio emperrado, a sua conversação inesgotável e magnética, o seu proverbial guarda-chuva acompanhando com movimentos as dissertações, o notável professor perorava tardes inteiras de omni re scibili, c os apontamentos que dali trazíamos gravados no cérebro valiam mais para nossa formação intelectual do que as notas a lápis que das aulas vinham traçadas nos nossos canhenhos.

É tanto mais para lastimar que se não proporcione à Academia de Pernambuco um cenário seu e adequado à sua ação, quanto o seu atual grupo de professores abrange nomes conhecidos em todo o país e assinaladas dedicações profissionais, continuando apesar da loucura pedagógica do ensino livre, numa terra latina e para mais brasileira, e a caterva das faculdades livres que se meteram a desorganizar e relaxar a nossa educação superior, a produzir rebentos notáveis.

* De 1873 a 1887, ano este em que recebeu o certificado geral do antigo Curso Superior de Letras, hoje Faculdade de Letras.

** O Curso Superior de Letras, fundado em 1859 por D. Pedro V, ficou instalado no antigo Convento de Jesus, onde já funcionava, desde 1834, após a supressão das congregações religiosas cm Portugal, a Academia das Ciências.

Fonte: Oliveira Lima – Obra Seleta – Conselho Federal de Cultura, 1971.

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