Oliveira Lima
A CRISE SOCIAL*
Se soubesse, quando fui procurado pela vossa benevolência, que esta festa acadêmica comportava êste ano uma parte dançante, teria escolhido assunto mais leve para tema das minhas palavras do que — "a crise social". Reconheço que a matéria é grave em demasia e decerto contrasta com a despreocupação e a alegria da ocasião; mas por outro lado não faz mal relembrar que nem tudo no mundo é folia, se bem que se não deve tomar por sistema as coisas ao trágico.
"Dançais sobre um vulcão" — diria um moralista mais soturno: mas descansai que o vulcão aqui ainda não rebenta esta noite. Faz-nos o favor de dar uma folgazinha…
Entrais para a vida, meus jovens amigos, num dos momentos mais interessantes e mais palpitantes da evolução humana, na ocasião em que a nossa civilização, velha de 30 séculos, parece ameaçada de dissolver-se, mas de fato se dispõe a alcançar outra fase diversa e melhor.
É uma nova sociedade a que se está organizando e da qual tereis de ser também obreiros. Por isso, quando digo que entrais para a vida, quero dizer a vida do espírito, ou por outra que, aprendendo
* Conferência pronunciada na Facul dade de Direito do Recife, 11 agô. 1919, na comemoração da data de aniversário da fundação dos cursos jurídicos no Brasil e publicada no Diário de Pernambuco, 15 agô. 1919.
Direito, vos preparais para lidar com os gravíssimos problemas da atualidade, os problemas que a conflagração mundial arrastou violentamente para o debate e que na paz terão que ser resolvidos.
Por maior que seja o dom de previsão de alguns, ninguém sabe exatamente o que vai ser o dia de amanhã. Apenas podemos com segurança vaticinar que não serão tão impregnados de suavidade como muitos de ontem. Tem-me acudido com freqüência à memória o que dizia Tallcyrand do período que precedeu a Revolução Francesa, e no qual êle foi abade de alcova e bispo de salão: que quem não tivesse vivido aqueles tempos ignorava o que fosse a doçura de viver. De fato a Revolução Russa, com o seu Terror, com as suas experiências comunistas, ameaça transformar a Europa, se-meando-a de ruínas, entre as quais o passado muito próximo aparecerá facilmente como uma saudade. E entretanto no meio das saudades vicejam as esperanças.
Há dias anunciou o telégrafo a previsão do Sr. Arthur Henderson, leader dos trabalhistas ingleses e espírito ponderado e refletido que já conheceu as responsabilidades do poder e que teve a coragem de desejar a paz quando isso era chamado um ato de traição, sendo-o realmente de patriotismo. Teria êle declarado que dentro em poucos meses haveria tamanha explosão de raiva e de desespero entre os povos da Europa, que o resto da civilização ficaria totalmente aniquilada. E isto por quê? Não o diz o telégrafo, sempre parco para a nossa curiosidade. Mas é fácil responder: é porque a paz se faz com espírito de ódio e de vingança, que é o espírito da guerra. Tratado, Liga de Nações, tudo respira sentimento de domínio, a vontade de escravizar o adversário.
Ora, a superioridade do nosso tempo, o que justifica que se possa alimentar esperanças a meio da derrocada, está em que compreendemos as injustiças, mesmo quando a pusilanimidade nos impede de irmos contra elas. Foi Macaulay, o grande historiador, que previu o dia em que o filho da Nova Zelândia contemplará as ruínas da Catedral de São Paulo e da Ponte de Londres, assim como hoje o brasileiro ou o argentino, herdeiro da civilização latina, contempla as ruínas do Coliseu e o Arco de Constantino, que escreveu estas frases conecituosas:
Quanto mais se estuda a história do passado, tanto mais inexplicável resulta o erro dos que imaginam que a nossa época engendrou novas misérias sociais. As misérias são antigas. O que há de novo é a inteligência que as descobre e o sentimento humanitário que as mitiga.
Faz-se, porém, mister encarar esta categoria das questões sociais não só com espírito de altruísmo, para minorar os sofrimentos de que temos conhecimento, mas com espírito de eqüidade, para reparar os erros cometidos pelos que nos precederam. A caridade é contudo mais fácil de ser aplicada do que a justiça. Da justiça é o direito a expressão legítima. Assim o vemos desenvolver-se desde as formas implacáveis da pena de Talião até às concepções humanitárias de Beccaria, sem que lhe falte entretanto a sanção penal que é o império judicial.
Não pode haver sociedade sem organização jurídica e não pode haver organização jurídica sem que a lei desça da sua esfera abstrata às realidades da sua aplicação. As leis variam porém no texto e no espírito e o grau da sua eqüidade há que o medir pela anuência ou resistência que desperta. Assim é que a legislação de caráter restritamente social tende em toda a parte a ser substituída por outra, e se dos dois lados se nota repugnância, seja para alterar, seja para conservar a que existe, é porque em caso tal são feridos os interesses ou sacrificados os anelos. O papel do direito é harmonizar um conflito dessa natureza, que é a um tempo moral e positivo. Não há talvez tarefa mais bela nem mais difícil; dela depende no entanto a continuidade da civilização.
Nós temos leis liberais, ninguém o contesta, se bem que nem todas se pratiquem; mas essas leis foram concebidas num espírito diverso do que vai prevalecer. Era o espírito da liberdade individualista, do desafogo do cidadão, que o Estado oprimia. Neste sentido se chegou a resultados que vieram por sua vez firmar a tirania de umas classes sobre as outras. Agora ao que mais se visa é a emprestar ao Estado a função protetora dos indivíduos sobre os quais pesa a tirania, que era ontem aristocrática e é hoje plutocrática .
Não se deve por isso voltar à opressão, antes o que se deve é encaminhar o livre jogo das atividades humanas, fundindo-as para o benefício comum: neste sentido sou comunista e sempre o fui de coração. Nem se deve estacionar no platonismo dos votos formulados, quando se impõe a tarefa positiva. Em artigos aqui publicados tive ensejo de qualificar de razoáveis quatro tópicos do programa socialista que não tenho a menor dúvida em fazer meus: a limitação das horas de trabalho, para não esgotar a energia muscular e nervosa do trabalhador; o salário-mínimo, abaixo do qual é impossível a um homem manter-se; a participação do trabalho nos lucros do capital por vezes mesquinho, mas outras vezes escandalosos; por fim a limitação das fortunas ou antes a derivação dos excedentes para fins de utilidade pública e de benemerência social. Tudo isto repousando sobre uma legislação especial comportando a proteção dos menores, a regulação dos acidentes do trabalho, as pensões de velhice e outras medidas, de cuja eqüidade já se tinham compenetrado os governos mais esclarecidos da Europa.
É claro que um regime que oferece oportunidades semelhantes de malversação — basta a aplicação das sobras imensas do capital particular uma vez limitado — só é compatível com a regra de absoluta e inflexível honestidade. Por isso os operários fazem bem em renegar os políticos profissionais. Se nem todos são desonestos — que seria de nós todos se os não houvesse também honrados? — muitos o são, entre os que pecam ou os que deixam pecar, e deram má reputação à espécie. É natural a desconfiança em quem tem sido enganado.
A verdade é que nos falta infelizmente bastante o senso da probidade pública, que é uma coisa a um tempo muito simples e muito complexa porque inclui delicadezas cuja infração não constitui propriamente um delito. Pois não vemos a Academia Brasileira, da qual não posso falar com despeito porque a ela pertenço desde a fundação e pelos estatutos não posso renunciar a uma imortalidade que me pesa, estar desviando do seu fim, que é a promoção da instrução, parte do rendimento do avultadíssimo legado do livreiro Alves, inventando fichas de presença de 100S000 para os seus membros que concorreram às sessões como se isto não fosse para eles uma obrigação moral desde que solicitaram a honraria? Chamo a tal proceder "roubar o morto" e entendi que não podia passar sem um protesto que fiz nas colunas do A. B. C. Resolvi também abster-me de toda participação na vida da Academia, enquanto durar êste estado de coisas, e tenho como companheiro nada menos do que o Sr. Rui Barbosa que está agindo de igual modo e apontou aquele como um dos motivos para se afastar da Academia.
Compreende-se que os operários não queiram ver aplicados seus ideais por um pessoal viciado. Não é de 4iom alvitre fazer casa nova com traves atacadas de cupim, que deitariam a perder a construção, a qual deve ser feita com materiais da maior resistência e estes são, não o sangue e o ódio mas a simpatia e a concórdia. Numa conferência notável, realizada há poucas semanas e versando sobre os projetos de legislação do trabalho, o eminente homem de Estado argentino Sr. Zeballos fêz ver que a lei da vida não é a guerra, nem a luta de indivíduo contra indivíduo ou de corporações contra corporações, a qual se traduz por violências, derramamento de sangue, destruições de propriedade e ataques à liberdade alheia, senão que é a paz, a harmonia e a ordem legal, que se conseguem estabelecendo o império da justiça para os fracos e para os fortes, pois que todos, operários e capitalistas, carecem de bem-estar moral e material.
A Constituição argentina é, no dizer do notável orador, liberal bastante para prever^ e abrigar toda a expansão da comunidade a que serve de lei orgânica. Também o é a nossa, mas não dispensa a meu ver a legislação de caráter puramente social. Nem há mister somente de leis de franquia, também de leis restritivas. Nenhuma classe deve poder vir a ser tiranizada. O capitalista tem direito a comer e a gozar como o operário; os russos, ao que parece, estão esquecendo muito que seus opressores da véspera têm estômago e que este tem suas exigências indeclináveis.
É contudo fácil exagerar uma reação: o difícil é contê-la dentro dos justos limites. Isto é o que apela para o que os ingleses chamam de statemanschip, e que é o instinto da direção. As sociedades não caminham sem direção, seja esta a de um indivíduo ou grupo de indivíduos, em que se encarna a democracia, seja a de uma casta ou de uma convenção. O essencial é que esta direção seja honesta, esclarecida c moralizada. Pouco importa que o socialismo seja no Estado, seja na massa. À sua organização devem corresponder aqueles predicados. O mundo mesmo não suportaria um estado crônico de sangria, de humilhação e de vergonha. As crises agudas raramente
Fonte: Oliveira Lima – Obra Seleta – Conselho Federal de Cultura, 1971.
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