A DESCOBERTA DOS DIAMANTES PELO MISTÉRIO DE TORI-CUIEGE

A DESCOBERTA DOS DIAMANTES PELO MISTÉRIO DE TORI-CUIEGE

E uma lanterna mágica, suspensa na noite, a tremulejar espectralmente ao capricho da brisa, a lenda feiticeira do primeiro diamante descoberto nas grupiaras do alto Araguaia. À laia de uma teia translúcida, entretecida na escuridão pelos dedos fatais de uma bruxa, essa lenda resplandece no bojo do mistério, como a debuxar no mapa das ambições humanas, o roteiro lastreado de malefícios e ilusões. Malefícios sublimes! ilusão transfiguradora que aco-roçoou cobiças e acendeu luminárias na ansiedade atilada dos mineradores, que, fascinados, em raides anônimos pelos desertos sem raias, verdadeiros amansadores do impossível, calcinados pelas soalheiras e crestados pelas rajadas inclementes de todas as intempéries, coroaram, al-fim, de êxito, os longos dias de angústias, quando — acinturareis em torno da quimera maravilhosa da forluna, enfebrecidos pelo rescaldo da imensa sofreguidão de suas esperanças — transformaram aí a utopia que os encantara, em realidade eficiente.

A história dessa descoberta, misto de fatalidade e sortilégio, resulta de uma generosa dádiva do acaso que pôs uma faúlha denunciadora na margem de um despenhadeiro; faúlha essa que comprometeu a integridade do vasto mistério de onde ela provinha. E tal aconteceu, devido unicamente ao escandaloso alarde de resplandecência que cindia a quietude sinistra do escrínio das trevas como uma sigla de ambição.

Que força sobrenatural poderá impedir que um diamante deixe de gritar pela garganta do seu fulgor, quando engastado em seu elemento essencial que é a escuridão! É de crer que não haja potência alguma, por mais afoita em revelar os agentes dominadores da sua tirania que seja capaz de eclipsar e epilepsia desvairada, da infinita vaidade dessa pedra que o Criador certamente destinou a ser a eleita do sol, a única depositária da luz, de todas as

luzes, nos labirintos a natureza. O seu desespero é brilhar! É acabrunhar e humilhar com o espetáculo irradiante de seu temível orgulho, a maciça vizinhança desviçosa; vizinhança que não tendo sido contemplada pelo esplendor que leva ao triunfo. Espelhando-se na limpidez hialina dessa pedra, baila, em seu redor à sua confusa coréia taciturna que continuadamente emerge da grosseria e da barbárie dos elementos que forma deslembrados a luz e que se revolvem e se enovelam e se misturam no anonimato pobre da melancolia de todos os negrumes! A missão máxima do diamante é brilhar! Êle jaz no seio pardo, indeciso e incolor da variegada e farta família das pedras insignificantes, que dormem o sono das coisas "banidas da luz, como um desagravo a tanta humildade; e sendo êle o expoente da claridade no reino da limpidez, uma noite, o acaso o traiu. E dessa traição, resultou o carreamento das cobiças e das ambições para a remota zona do Brasil desconhecido da região do Garças.

A madrugada vivaz e lucilante que surgiu para os desertos do reduto central, deve-se ao orgulho e à vaidade de um diamante, que, do alto do peitoril da encosta do rio, chamejava na calada da noite, onde talvez, a milênios, conjurava na penumbra protetora; essa pedra — minúscula estrelinha a palpitar na desolação profunda da ribanceira erma — fugitiva como são todas as chispas postas a tre-meluzir teimosamente no negror, foi pelo efeito desse orgulho, o milagre alvissareiro que revelou às turmas mine-radoras, um tesouro que jazia largado na ingratidão e no descarinho dos abismos florestais!

Coube a sorte da descoberta desse calhau caprichoso, a um índio bororó que o braço do acaso, como que a escarnecer e a mofar de sua secular ingenuidade, guiou na direção da riqueza para êle inconsciente. Foi, não há dúvida, por uma brincadeira de mau gosto do acaso que, ante a indiferença filha da robusta ignorância do silvícola, essa riqueza sentiu por certo, nesse momento, a maior decepção que possa experimentar quem no mundo arrasta tanta prosápia, qual aquela arrastada pela fortuna que tudo embriaga e subjuga.

Morreu na ingenuidade do bugre toda a filauciosa importância do valor! Porém, o curioso brilho da barranca, mesmo lutando contra a espessa ingenuidade do bororó, conseguiu despertar em sua imaginação rudimentar, uma inquietação fantasmagórica que o envolveu de chofre na opacidade do mistério, fazendo-o matutar em face do deslumbramento que aos seus olhos atônitos parecia librar-se no ar como uma estranha fascinação.

E pela curiosidade, mesclada à inquietação que gera esse pavor que sói provocar nas almas rudes, o aborto do medo, uma noite, nos intervalos de espessas fumaçadas de ativo tabaco e uma troca de impressões aquela comoção veio à baila e fez com que o bororó, acionado pela grave lembrança que o induzia a falar, levantasse o véu do mistério.

Têm um acentuado sabor de romance fantástico as revelações desse indígena que surpreendeu numa noite, no silêncio das trevas, o fulgar da primeira pedra que revelou a existência dos garimpos. E a história dramática do diamante que serviu de delator para o encontro dos outros, devido à fatalidade que o exilou na riba onde ao desaga-salho, êle pompeava como um solitário maravilhoso; essa história comburia na memória do filho da selva, quando, no curso das divagações, a conversa resvalou com franco interesse até a história que já se propalava pelos cafundós do alto Araguaia, da possibilidade de haver diamantes na região.

A certa altura da prosa, o fazendeiro, dono da casa onde se achavam os adventícios em troca de impressões, que era o Sr. João José de Morais Cajango, mostrou a todos, umas formas de diamantes que havia mariscado nas margens do Araguaia. E essas "formas", eram o indício seguro de existir a preciosa gema no local em que as mesmas foram encontradas, segundo afirmava o Sr. Cajango; e, tendo mais a confirmar essa suposição, o fato de terem sido elas analisadas por um químico de Cuiabá. Visto e revisto o punhado de cascalhos refulgentes, quando todos faziam considerações a esmo, sobre o que acabavam de ver, o fazendeiro dirigiu-se ao bororó que a tudo assistira calado, mas de olhos esbugalhados denunciadores de uma lembrança que lhe transitava longiquamente pelas quebradas da memória; fazendo-lhe uma pergunta, que como uma pedra de fogo ferida pelo aço, arrancou chispas daquela memória que incubava o mistério. E mostrou-lhe os pedregulhos que tirava do fundo dum comprido sapiquá, onde os guardava. E aproximando um punhado dos mesmos aos olhos do índio, perguntou-lhe

— Você não conhece diamantes?

O outro, que já era catequisado e suficientemente amansado, responde-lhe humildemente:

Não ao responder isso, o bororó pegou numa daquelas formas que luziam e aproximou-a do brilho dos seus olhos e nesse exame permaneceu alguns minutos. Depois, olhando para os companheiros, exclamou entre alegre e curioso:

— Ah! eu já vi uma pedra como esta, porém mais cheia de fogo!

E contou à todos.

— Quando pela primeira vez eu vi uma pedra igual a esta, porém mais brilhante, cuidei que ela fosse um olho de onça dentro do mato. Mas olho de onça senti logo que não podia ser, porque era um só e onça tem dois luzeiros. Não era de bicho "brabo" o que eu acabava de ver, mas podia ser de "Boppe" do "Coisa Ruim" do Diabo que anda às vezes solto, tentando a gente. Parei. Assim que agarrei um pouquinho mais de coragem, caminhei até a beirada do rio. A coisa não era olho de animal nem do demônio! Era uma pedra como esta, mais vistosa, mais clara, clara como a luz. Peguei nela e vi que a danada que me tinha assustado não passava de uma Tori-Cuigge, de uma pedra de estrela.

E o bororó explicou então que na sua raça, a Tori–Cuigge, era portadora de um grande mistério. Alguma coisa de muito grave encontrada. Ante esse encontro que provocava o medo e predizia acontecimentos funestos, eles voltavam às suas locas tranzidos de pavor.

— E o que fizeste da pedra —, perguntou-lhe o fazendeiro?

— Joguei fora —, respondeu-lhe o bororó.

Dias depois da cena, que decidiu da sorte dos garimpos, o Sr. Cajango acompanhado pelo índio, dirigia-se ao local onde fora encontrada a pedra de estrela.

Transcorridos alguns meses após esse episódio que na história do Garças marca o início das minerações; episódio esse ocorrido em casa do fazendeiro em fins de 1908, penetraram por essa época em Mato Grosso, vindos da Bahia, a pé, para os trabalhos da indústria da borracha, alguns homens, que vinham afirmando a sua temeridade através de todos os sofrimentos, até chegarem às margens do Garças e Araguaia. Vários desses ávidos sertanejos, haviam sido garimpeiros nas lavras baianas.

A pesquisa da mangabeira os norteara. Varejando serrados, vadeando rios e transpondo vales e alcantilados na procura da árvore da borracha, uma tarde, como que protegidos por um alto desígnio celeste, essas criaturas de

vontades de ferro e têmpera leonina, cansadas, maltratadas por todas as necessidades e por todas as distâncias, divisaram sofregamente, na orla do horizonte que delimitava o avanço do serradão, uma azulada espiral de fumaça, como um grito de vida no deserto, que punha uma nota de esperança no pavoroso silêncio da solidão verde. Era a casa do fazendeiro Morais Cajango. Os homens, derrotados pelas soalheiras e pela fome, chegaram e imploraram um pouco.

O dono da casa, velho mineiro, endurecido no sertão deste Brasil abandonado, compreendendo aquela misera-bilidade, e afeito a franquear a sua mesa e um pouso a todos os que lhe batem as portas, após a vianda deu-lhes também o conforto de um ótimo conselho. Um jantar e um abrigo, no meio de tais vicissitudes, ao cabo de vários meses de fome e extenuações, na alma daqueles tristes argonautas perdidos no mar verde das matas milenárias, atingiu o esplendor emocionante de um milagre.

Jantaram voraginosamente, movidos pelo melhor dos aperitivos — a fome!

Findo o jantar, os desconhecidos, envolvendo um cigarro pachorrentamente, externaram o desapontamento que medrava em seus ânimos, desapontamento esse originado pela escassez de mangabeira através o território dos serrados. Para mudar o roteiro de uma aventura nada concorre tanto quanto o desalento de uma decepção. Artimanhas do acaso, solercias do destino, instigações arroladas no imprevisto das consequências orientadoras, desgarradas, porventura, da essência das fatalidade e de outras manifestações fortuitas emergidas da bruma das forças ocultas que os sentidos compreendem mais do que razão!

Enfim, seja lá o que fôr que tenha colaborado para o povoamento da região do Garças, que tem sabido compensar as desesperanças dos que até lá se abeiram, com os primores surpreendentes, de sua feracíssima feira de diamantes. O fato é, que, raramente uma coincidência se tem embicado às margens das aspirações humanas com tanta oportunidade louvável.

A oportunidade esbarronda entraves, esborcina a e’er-na muralha das dificuldades, para que dê imprevisto transito à maravilha e à gloria. Foi pela brecha oportuna daquele desalento que o Sr. Cajango insinuou-se nas almas dos desconhecidos, seduzindo-os com o irresistível fulgor dos diamantes. E, ao mesmo tempo, o fazendeiro, profundo conhecedor da zona frisou ante o aborrecimento daqueles homens, a escassez da árvore que justificava a pe-

netração até aquelas paragens. E, depois disso, esvasiou o sapiquá que continha o mostruário intencional de uma fortuna bem mais digna de ser explorada do que estava sendo naquele momento por eles.

Ante a exibição daquelas pedras toscas, de luz todavia embaciadas, por serem unicamente um plágio dos diamantes, os olhos dos homens que prescrutaram aqueles indícios de pedras preciosas rebrilharam e, às suas cobiças, eles anunciavam algures a presença de outras autênticas, límpidas, caras e perfeitas, formadas, a sonharem no embalo das águas e na agrestidade dos manchões. Foi o necessário para que acordasse, célere, como o perpassar de um corisco, o garimpeiro que dormitava no âmago de alguns daqueles baianos. A cobiça, castigada pelos dissabores dos insucessos, reçumou à tona da alegria, transfigurando-lhes o semblante como uma justa desforra contra velhos e des-presíveis suplícios.

Nessa noite mesma, ficou assentado que não iriam mais a busca da árvore minguada do látex elasticífero. A visão próxima da riqueza, entrando-lhes pelos escaninhos da ambição, à guisa de um vendaval que sacode as plantas no cimo de um monte, varreu-lhes dos corpos alquebrados todo o vestígio de cansaço, toda a prostração que os arrasava. E a faina da garimpagem desdobrou-se ante os seus olhos. Ei-los a caminho da fortuna!

Apetrechados de utensílíios improvisados para a tarefa das faiscações, em arremessos de ganância felina, num alto desagravo à penúria, agruparam-se esses desvirginadores do mistério de Tori-Cuigge, nos flancos do rio Araguaia, precisamente no ponto em que o bororó levara o fazendeiro para mostrar onde havia encontrado a pedra de estrela. Garimparam mais com a cobiça do que com os braços. À tarde desse dia, ao cabo de um labor que os empolgara na satisfação de uma copiosa colheita, à luz da estrela vesperal que tomava posição de brilho na abobada celeste, eles, numa homenagem que era um misto de fatalidade deslumbradora e de esperanças luminosas, tontos de felicidades, em face da estrela que lhes sorria como a lhes suavizar o sonho e a indicar que aquelas que eles procuravam eram feitas da sua felicidade, com o nome de Garimpo da Estrela, como um agradecimento à estrela que luzia no céu que os havia de guiar na pesquisa daquelas que reverberavam no seio das águas.

Instalado o primeiro garimpo no coração da vasta floresta, onde se abismam os mais formidáveis tesouros da

América do Sul, para a região do Garças nortearam a sua ambição levas e levas de garimpeiros que, em pouco tempo, transformaram o cenário bruto, projetando no recesso das brenhas, os primeiros laivos de progresso.

E esse garimpo — marco simbólico da felicidade — clamando "buenas-dichas" para os garimpeiros, foi a mascote do sertão.

Sílvio Floreal: O Brasil Trágico. Empresa Gráfica Rossetti, São Paulo, 1928, pp. 213-225.

Fonte: Estórias e Lendas de Goiás e Mato Grosso. Seleção de Regina Lacerda. Desenhos de J. Lanzelotti. Ed. Literat. 1962

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